UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO CENTRO DE LETRAS E ARTES – INSTITUTO VILLA-LOBOS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM MÚSICA O BAÚ DO ANIMAL: ALEXANDRE GONÇALVES PINTO E O CHORO Pedro de Moura Aragão Rio de Janeiro, 2011 O BAÚ DO ANIMAL: ALEXANDRE GONÇALVES PINTO E O CHORO por Pedro de Moura Aragão Tese submetida ao Programa de Pós Graduação em Música da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro como requisito parcial para a obtenção do grau de Doutor, sob a orientação da Professora Dra. Martha Tupinambá de Ulhôa. Rio de Janeiro, 2011 F385 Aragão, Pedro de Moura. O baú animal : Alexandre Gonçalves Pinto e o choro / Pedro de Moura Aragão, 2011. 333f. Orientador: Martha Tupinambá Ulhôa. Tese (Doutorado em Música) – Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2011. 1. Choro (Música). 2. Música popular – Brasil. 3. Etnomusicologia. 4. Memória - Aspectos sociais. I. Ulhôa, Martha Tupinambá. II. Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (2003-) Centro de Letras e Artes. Curso de Doutorado em Música. III. Título. CDD – 780.420981 AGRADECIMENTOS Aos meus colegas de doutorado. À minha orientadora, Martha Ulhôa, pelo apoio generoso e constante. Aos professores Luiz Otávio Braga e Nailson Simões, pela participação na banca de ensaio e valiosas sugestões. Aos professores Samuel Araújo e Elizabeth Travassos, que acompanharam este trabalho desde o seu começo, e que foram fundamentais em diferentes etapas de minha vida acadêmica. À professora Martha Abreu pela participação na banca. Aos meus colegas do choro: Déo Rian, Luiz Otávio Braga, Mauricio Carrilho, Anna Paes, Luciana Rabello, Sérgio Prata, Leonardo Miranda, Egeu Laus, Rodrigo Ferrari, Simone Cit e Roberto Gnattali, que colaboraram com seus valiosos depoimentos e sabedorias. Aos meus familiares. À amiga Graziella Moraes, pela revisão e comentários sobre o texto. À minha esposa Paola e meu filho Antonio pelo carinho de sempre. i ARAGÃO, Pedro de Moura. O Baú do Animal: Alexandre Gonçalves Pinto e O Choro. Tese (Doutorado em Música) – Programa de Pós-graduação em Música, Centro de Letras e Artes, Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro. RESUMO Esta tese propõe uma releitura do livro O Choro: reminiscências dos chorões antigos de Alexandre Gonçalves Pinto a partir de ferramentas metodológicas da memória social e da etnomusicologia. O livro, lançado em 1936, se insere entre os primeiros discursos sobre a música popular urbana em um período marcado por intenso processo de solidificação da indústria fonográfica no Brasil, e aponta para a construção da memória musical do país ao eleger uma prática musical – o choro – como fator de identidade de uma rede formada por diversos estratos sociais do Rio de Janeiro. Escrito por um carteiro aposentado que era também cavaquinhista e violonista, a obra apresenta cerca de trezentos perfis de músicos populares da época, se constituindo como um dos primeiro relatos etnográficos realizados por um insider de uma música popular urbana. A partir dos aparatos metodológicos citados, propõe-se uma leitura da obra como um texto polifônico, cuja linguagem pode ser caracterizada como uma trama complexa que apresenta elementos díspares como gírias, oralidades e fragmentos de visão de mundo de diversos estratos sociais da época. Em particular, salienta-se o fato de que o livro representa uma memória subterrânea e subalterna de instrumentistas populares que elegeram a polca como representante da nacionalidade em detrimento do samba que então surgia como símbolo da música brasileira. A releitura abrange ainda aspectos musicológicos apresentados pelo livro, tais como ensino, aprendizado e transmissão das práticas musicais descritas, com destaque para o papel dos acervos manuscritos de choro dos séculos XIX e primeiras décadas do século XX. Finalmente, a tese discute as diversas re-significações do livro por parte de diferentes atores sociais da atualidade como músicos, jornalistas, professores universitários, e amantes da música brasileira de forma geral. Palavras-Chave: Choro – Música popular urbana – memória social – etnomusicologia ii ARAGÃO, Pedro de Moura. O Baú do Animal: Alexandre Gonçalves Pinto e O Choro. Tese (Doutorado em Música) – Programa de Pós-graduação em Música, Centro de Letras e Artes, Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro. ABSTRACT This dissertation revisits one of the most important books about a Brazilian popular music "O Choro: reminiscências dos chorões antigos", written by Alexandre Gonçalves Pinto. Written in 1936, the book can be considered one of the first portrays of urban popular music in a period marked by the phonographic industry consolidation in Brazil. The book also provides an original approach to the construction of Brazilian musical memory electing a musical practice – o “choro” – as an identity factor of a network formed by various social strata in Rio de Janeiro. Written by a retired postal worker who was also a guitarist and “cavaquinhista”, the book presents biographies of nearly three hundred musicians of this period of time, and can be considered one of the first ethnographic accounts written from an insider’s perspective. The dissertation reviews the diverse readings of this historical piece by musicians, journalistas, scholars, and music lovers in general. Relying on ethnomusicologic and social memories concepts, I propose new readings of this work that emphasizes previously underestimated musicological aspects, such as teaching, learning and transfer of musical practices. In particular, I emphasize the key role of choro’s manuscripts collections of the nineteenth and early decades of the twentieth century. Keywords: Choro – Popular music – social memory - ethnomusicology iii SUMÁRIO LISTA DE FIGURAS E TABELAS............................................................................vi PREÂMBULO..............................................................................................................vii INTRODUÇÃO.............................................................................................................. 1 CAPÍTULO 1 – Memória, história e etnografia: representações da obra de Gonçalves Pinto através do tempo...............................................................................11 1.1) A historiografia da música popular urbana carioca: entre o ‘colecionismo’ e a história social 1.2) As construções das “histórias do choro”: as várias leituras do livro de Gonçalves Pinto 1.2.1) A leitura de “O Choro” pela geração ‘colecionista’: o fichamento de Jacob do Bandolim e os trabalhos de Ary Vasconcelos 1.2.2) Tinhorão e a história social do choro 1.2.3) As teses acadêmicas sobre o choro 1.3) Música, cultura e sociedade: questões metodológicas 1.3.1) Signos musicais e sociais: a “eterna paralela” 1.3.2) Memória e etnografia como ferramentas metodológicas 1.3.3) Bakhtin, heteroglossia, carnavalização e circularidade Cultural CAPÍTULO 2 – Vida festiva, malandragem e folhetim............................................92 2.1) Estrutura do livro 2.2) O “choro” e a “roda” e a “velha-guarda” 2.3) O etnógrafo do choro 2.4) Os “heróis do choro” e a vida festiva CAPÍTULO 3 – Gonçalves Pinto e os primeiros memorialistas da música popular urbana carioca.............................................................................................................165 3.1) Influências mútuas 3.2) “O Choro” e a Indústria Fonográfica 3.3) Influências da intelectualidade: Mello Moraes, bumba-meu-boi e o choro CAPÍTULO 4 – A práxis musical em O Choro: aspectos do aprendizado, transmissão musical e acervos de partituras.............................................................200 4.1) Aspectos da transmissão: o oral e o escrito 4.2) Aspectos do aprendizado 4.3) O Baú do Animal: acervos de partituras manuscritas de choro 4.3.1) O Acervo Jacob do Bandolim 4.3.2) Os cadernos manuscritos da Coleção Jacob do Bandolim 4.3.4) Os cadernos de Jupyaçara Xavier 4.4) Uma musicologia popular CAPÍTULO 5 – Representações de O Choro na atualidade....................................254 5.1) O “Retiro da Velha Guarda” 5.2) A Revista Roda de Choro e as “Histórias do Animal” 5.3) A gravadora Acari e o resgate do “choro antigo” 5.4) O Animal para as crianças 5.5) Em busca do Animal CONSIDERAÇÕES FINAIS......................................................................................294 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS......................................................................313 ANEXOS.......................................................................................................................320 LISTA DE FIGURAS Figura 1 – Fichamento de O Choro por Jacob do Bandolim: exemplo de uma página – pág. 40 Figura 2 - Maximiano Martins (“Max-Mar”), editor e fundador do jornal do Ameno Resedá – pág. 104 Figura 3 – Caricatura de Raul Pederneiras – pág. 139 Figura 4 – Página do jornal do Ameno Resedá de 1917 – pág. 163 Figura 5 – “Histórias do Animal” na Revista Roda de Choro – pág. 271 LISTA DE TABELAS Tabela 1 – Fichamento de O Choro por Jacob do Bandolim: categorias utilizadas – pág.42 Tabela 2 – Estrutura Geral do livro – pág. 113 Tabela 3 – Locais de Trabalho – pág. 126 Tabela 4 – Músicos Militares – pág. 130 Tabela 5 – Profissões – pág. 131 Tabela 6 – Bairros – pág. 134 Tabela 7 – Bandas, clubs, etc. – pág. 220 Tabela 8 – Organização das partituras do acervo Jacob do Bandolim – pág. 227 Tabela 9 – Coleção de cadernos manuscritos acervo Jacob do Bandolim – pág. 234 Tabela 10 – Gêneros musicais mais representativos nos cadernos manuscritos do acervo Jacob do Bandolim – pág. 242 ǀŝ Preâmbulo - Castelos de Memórias Em um dia de abril de 1879, o carteiro francês Ferdinand Cheval cumpria sua rota de entregas em uma região rural situada entre as cidades de Lyon e Valence, quando subitamente tropeçou em uma pedra. Ficou surpreso ao constatar que a pedra tinha uma forma bastante pitoresca e começou a procurar outras com formatos parecidos. Com elas lhe veio ao pensamento uma idéia: a de construir um castelo. Pelos próximos trinta e três anos de sua vida coletou pedras e, sem ter qualquer conhecimento de arquitetura, com elas construiu seu castelo, a que denominou “Palácio Ideal”. O exótico monumento que erigiu misturava elementos da arquitetura hindu, de castelos medievais, de chalés suíços, bem como referências a elementos da Bíblia, animais fantásticos e esculturas surrealistas, e foi visto com extrema desconfiança por seus pares, que o tomavam como louco. Recebeu o reconhecimento de artistas franceses como Andre Breton pouco antes de sua morte, em 1924, e hoje seu nome é uma referência de arquitetura surrealista na França. Em meados da década de 1930, um carteiro brasileiro, de nome Alexandre Gonçalves Pinto, agindo como que “impulsionado por uma missão” que lhe parecia “ter sido ditada pelo poder supremo de todas as coisas” começou a escrever um livro que mostrasse às “gerações d’agora e futuras” o brilho de uma falange de músicos que “enalteceram e elevaram as músicas genuinamente brasileiras”; sem ser um escritor, a tarefa lhe parecia tão difícil quanto a de um “náufrago que, agarrado ao batel da Esperança, luta sulcando o mar revolto da descrença”. Entretanto, criava em sua imaginação, à maneira de seu colega francês, “extraordinários castelos de fantasia”, que com o correr dos tempos, pelas dificuldades encontradas, se “desmoronavam como bolhas de sabão”. Apesar disso conseguiu erigir sua obra: seu estilo de escrita, bastante tortuoso e não-convencional, reúne, também à maneira de seu colega francês, elementos díspares que confundem o leitor à primeira vista. Sua prosa, criticada à época por não seguir a norma culta, se apresenta como uma espécie de bricolagem onde se fundem elementos de oralidade, gírias, fragmentos de visões de mundo e memórias vernáculas de categorias sociais à margem da história como carteiros, lustradores, funcionários das ferrovias, etc. Tudo isso unido por uma grande paixão pela música que descrevia. Seu livro, entretanto, caiu no esquecimento, permanecendo como uma espécie de “contra-memória” até a década de 1970, quando foi redescoberto pelo pesquisador Ary Vasconcelos. A partir daí passou a ser ponto de vii partida para uma teia de re-significações e interpretações sobre as práticas musicais e sociais que descreve. O castelo de pedras do carteiro Cheval é hoje uma referência mundial de construção artística feita por um homem comum; o castelo de memórias do carteiro Gonçalves Pinto, se não alcançou a glória de seu colega francês, nos permite vislumbrar as práticas musicais e os feitos artísticos de centenas de homens comuns. Esse trabalho é dedicado à memória de Ary Vasconcelos e Alexandre Gonçalves Pinto. viii 1) Introdução Esta tese tem como foco um dos mais instigantes livros sobre a música popular urbana do Rio de Janeiro: o livro O Choro — reminiscências dos chorões antigos escrito em 1936 por Alexandre Gonçalves Pinto (por alcunha “o Animal”), documento chave para o entendimento do choro no início do século e uma das principais fontes de pesquisa de todos os pesquisadores do gênero. Contendo “o perfil de todos os chorões da velha guarda, e grande parte dos chorões d’agora” (Pinto, 1978) o livro pode ser considerado como o primeiro relato de um insider sobre uma música popular urbana no Brasil. Escrito por um carteiro que era ao mesmo tempo violonista e cavaquinhista, o relato descreve uma gama de personagens e situações do choro no início do século, em uma linguagem bastante peculiar. Sua edição inicial de 1936 foi de dez mil exemplares, e embora o autor planejasse uma 2ª edição da obra, esta nunca se realizou em seu período de vida. Em 1978, através da iniciativa do pesquisador Ary Vasconcelos, a obra foi reeditada em versão fac-similar pela FUNARTE. O livro se insere entre os primeiros discursos sobre a música popular urbana em um período marcado por intenso processo de solidificação da indústria fonográfica no Brasil. Da mesma forma que os trabalhos de Orestes Barbosa1 e Francisco Guimarães2, por alcunha o “Vagalume” – ambos lançados em 1933 –, o livro de Gonçalves Pinto aponta para a construção da memória musical do país ao eleger uma prática musical – o choro – como fator de identidade de uma rede formada por diversos estratos sociais do Rio de Janeiro. Como indicado por Moraes (2006) o discurso destes primeiros memorialistas da música popular têm alguns pontos em comum: 1) o fato de terem estabelecido a “fusão entre a prática da construção da memória e a organização, compilação e 1 2 O Samba lançado em 1933. Na roda de samba igualmente lançado em 1933. arquivamento das diversas formas de registros sobre a música urbana, no momento em que ela surgia como fato cultural e social” (Moraes, 2006: 120); 2) por serem tais memorialistas “observadores participantes” (pelo menos no caso de Gonçalves Pinto e Barbosa) ou pelo menos “testemunhas oculares” (como é o caso de Vagalume) dos eventos musicais da época, suas visões parecem, no dizer de Moraes, “ter-lhes concedido uma espécie de credenciamento automático para definir a seleção dos ‘fatos dignos’ de registro, sua veracidade e a ordenação causal e temporal dos eventos (id., 121). Tal grupo de fatores também teria mais dois desdobramentos: o primeiro seria a possibilidade de organização, por parte destes memorialistas, de um “discurso fundador sobre certas ‘origens, características e linha evolutiva’ da música popular (...) nas primeiras décadas do século XX (id., ib.); e o segundo seria o de que, ao realizar um discurso baseado nas vivências de rodas, festas, serestas etc, a narrativa que prevalece entre tais memorialistas é em geral, fragmentada (id., ib.). Como discurso fundador de uma representação de prática musical – o choro, que posteriormente seria consolidado como um dos mais representativos gêneros musicais do Rio de Janeiro ganhando, ao lado do samba, dimensão nacional –, o texto de Gonçalves Pinto foi alvo de sucessivas “leituras” por parte de pesquisadores, jornalistas, músicos, historiadores e sociólogos. Tais leituras de modo geral privilegiam aspectos sócio-históricos da obra, numa abordagem que freqüentemente “substitui” o objeto artístico pelos meios de produção com que estes são gerados3 (Hennion, 2002). No caso específico do livro, a motivação principal do autor para escrevê-lo - sua paixão por esta prática musical - desaparece de modo a fazer com que a obra se converta em 3 Para Hennion “a sociologia interrompe a relação sujeito-objeto artístico ao mostrar a tela social necessário para esta projeção recíproca”. Dessa forma, a abordagem da sociologia da arte dá ênfases a aspectos como condições de produção e de difusão, autonomização de uma profissão, etc., fazendo com que os objetos artísticos permaneçam obliterados (Hennion, 2002: 126) 2 mera fonte primária de entendimento das condições sociais e históricas que permitiram o aparecimento do choro (como por ex. em Tinhorão 1998a: 93 a 109). A proposta da tese é realizar uma leitura da obra a partir de uma perspectiva etnográfica, algo que a meu ver nunca foi feito pelos poucos estudiosos que se debruçaram sobre ela, como Vasconcelos, Tinhorão e Cazes. Tais autores, apesar de reconhecerem a importância do livro do “Animal”, limitaram-se a tratá-lo como uma mera “fonte primária”, utilizando-se deste para realizar contextualizações históricas e sociais a respeito do ambiente do choro no início do século XX, mas muitas vezes deixando de lado aspectos musicais importantes, conforme procurarei demonstrar ao longo da tese. Mais do que isso, creio que a principal lacuna de todos os escritos sobre o livro passa pelo enfoque da leitura. O ponto central da tese é o de que O Choro é um documento complexo, que não pode ser lido como uma narrativa convencional: ele não é em essência um livro de um historiador da música popular, nem obviamente de um profissional das letras. Quando lido assim, sua análise redunda em dois extremos diferentes: por um lado tem-se uma atitude crítica, resultado da aparente falta de estrutura do livro e das “incorreções gramaticais”: é esta a postura de Catulo da Paixão Cearense ao negar-se a escrever um prefácio para o livro, conforme solicitado por Gonçalves Pinto. É esta também a postura de críticos da atualidade, como Cazes (1998), para quem o livro: (...) por tantas vezes usado como fonte, é tremendamente mal escrito e cheio de imprecisões e absurdos. Assim, vê-se literalmente na página 115 a seguinte sandice: ‘A polka é como o samba — uma tradição brasileira. (...) A polka é a única dansa que encerra os nossos costumes, a única que tem brasilidade’” (Cazes, 1998:18) Apesar das inúmeras “sandices”, o autor reconhece que “quando tratado do ponto de vista estatístico e nos trechos em que fala dos ambientes do Choro, o livro 3 revela, por entre dezenas de erros de gramática, dados importantes.” (idem). No extremo oposto, outros estudiosos adotaram uma espécie de atitude de condescendência com um autor considerado “semi-letrado” e “sem instrução”, advindo das classes populares, um “primitivo” que, apesar de importante, não estava “culturalmente equipado para a tarefa que com tanto amor e dedicação se lançou” (Vasconcelos, 1977: 29). Este enfoque de leitura, portanto, nos leva a estes dois extremos, igualmente equivocados em minha opinião: Gonçalves Pinto não é um ignorante que se esforça para escrever, por um lado, e nem um “ingênuo” e pobre carteiro a quem devemos tratar com condescendência. Por certo ele também não é um intelectual no sentido usual do termo. Como podemos então classificá-los, a ele e sua obra? Como já sugerido, sua escrita é uma trama polifônica e complexa que traz em seu bojo numerosos elementos: ela mistura fragmentos da imprensa carnavalesca da belle époque, elementos da oralidade, gírias, fragmentos de conceitos e idéias de diferentes extratos sociais da época (incluindo temas como nacionalidade, identidade e indústria cultural), referências a fatos históricos, políticos e cotidianos, tudo isso unido por um único fio condutor: a paixão de seu autor por uma música. Esta paixão musical leva o autor a fazer pela primeira vez na história da música popular urbana brasileira um trabalho que poderíamos cunhar de etnográfico: são mais de duzentos “personagens” da época descritos em pequenos “verbetes” ao longo do livro, além de descrições dos ambientes musicais da época, das festas, danças, etc. Ao mesmo tempo, o livro deixa patente o conceito de música como algo que não se resume a um discurso sonoro, mas que engloba todo o seu entorno social – as festas, as comidas, o público ouvinte, o carnaval, etc. 4 Lido portanto através deste prisma – o de um depoimento etnográfico escrito por um bricoleur que faz uma espécie de mosaico de modos de discursos – a obra ganha nova dimensão. O objetivo principal do trabalho é, portanto, o de demonstrar como o meu objeto de estudo, um livro escrito por um velho carteiro aposentado, longe de ser um amontoado de “recordações” mal coligidas, “tremendamente mal escritas e cheias de absurdos”, se constitui como uma trama narrativa com objetivos bem claros: descrever um grupo unido por uma identidade sonora, muito embora composto de pessoas de diferentes classes sociais; fornecer uma paisagem sonora do Rio de Janeiro no início do século, relacionando diversos bairros da cidade com a música que ali se fazia; sugerir como os músicos definiam o que era um bom e um mau instrumentista ou compositor, como se aprendia aquela música, de que modos era transmitida. E, mais importante, demonstrar como redes de sociabilidade e práticas musicais se articulam e se constroem mutuamente. Antes de prosseguir, preciso relatar agora um pouco da minha própria experiência em relação ao livro. Adquiri-o por acaso em um sebo em 1998 (trata-se de uma obra relativamente difícil de ser encontrada, já que a edição da FUNARTE foi de somente dois mil exemplares) e minha primeira impressão lendo a obra foi de estranhamento: além dos inúmeros erros gramaticais, havia erros tipográficos, construções de frases estranhas, e grande número de referências para mim sem sentido. Com o tempo, à medida que passei a me interessar pela pesquisa em choro, fui aprendendo a reconhecer a importância das informações contidas no livro, ainda que por vezes o estranhamento se mantivesse. Posteriormente pude perceber que uma análise detalhada mostrava não apenas um material riquíssimo sobre o ambiente musical do Rio de Janeiro das primeiras décadas do século XX como uma descrição cuidadosa das práticas musicais dos instrumentistas populares da época. Mais ainda, que o livro 5 desvelava aspectos musicológicos da praxis musical da época tais como relações de ensino e aprendizagem, a relação entre o oral e o escrito, a importância dos acervos de partituras manuscritos, a relação do choro com a indústria fonográfica, entre outros aspectos. Esta percepção, entretanto, só me foi dada quando meu enfoque de leitura foi modificado: ao invés de tentar identificar uma narrativa linear e coesa, passei a entender a obra como um feixe de discursos, muitos deles fragmentados, e que portanto demandava uma leitura igualmente polifônica e analítica. Esta leitura me propiciou desvendar, à maneira de um novelo emaranhado, uma série de “fios” que me conduziram às diferentes etapas de pesquisa deste trabalho. No primeiro capítulo, intitulado Memória, história e etnografia, procuro compreender as representações da obra de Gonçalves Pinto através do tempo, identificando as diferentes leituras e análises do livro a partir da década de 1960. Através de uma análise da historiografia clássica da música popular brasileira (particularmente a carioca) e do choro em particular, procuro entender de que forma diferentes práticas musicais do início do século XX foram posteriormente rotuladas em “rubricas” estanques como “choro” e “samba”. No segundo tópico apresento a metodologia utilizada como ferramenta teórica para o presente trabalho, calcada no binômio memória-etnografia. Como base metodológica para tal tarefa, realizei uma revisão bibliográfica de textos que julgo particularmente importantes para sua realização. Estes textos estão relacionados com três questões básicas: 1) o problema da leitura e da interpretação de um texto advindo de uma “classe subalterna” 2) a relação entre identidades sociais e música; 3) o papel da narrativa neste processo — tomo aqui o conceito Villa (1995), para quem a narrativa constitui uma categoria epistemológica que foi tradicionalmente confundida com um gênero literário, mas que seria um dos esquemas cognoscitivos mais importantes do ser humano. Para os dois primeiros 6 tópicos utilizo alguns textos-chave da etnomusicologia e de estudos sobre a música popular como Blacking (1995), Middleton (1990) e Hennion (2002), além de textos sobre memória social e recentes estudos que trabalham com as relações entre etnografia e história (Coelho, 2009; Gonçalves, 2007; Martins, 2008); para o terceiro tópico uso como referenciais teóricos textos de crítica literária como Bakhtin (1981, 1987) e da micro-história como Ginzburg (2006). No segundo capítulo, intitulado Vida festiva, malandragem e folhetim, procuro entender de que modo a música determinava um modo de percepção de mundo para os chorões da época. Como se verá, havia uma associação imediata entre este tipo de música e um modo de vida festiva, com farta comida e bebida, em oposição ao dia-a-dia de trabalho. Esta dualidade é colocada de forma recorrente, com a citação, por parte do autor, do que ele chama de “heróis do choro”, ou seja, aqueles indivíduos que frequentemente abandonavam o trabalho e a família para viver esta outra dimensão da vida representada pelos choros. Procuro fazer aqui uma análise destes “anti-heróis” citados no livro, me utilizando de dois referenciais teóricos: o primeiro diz respeito ao mote bakhtiniano da “vida festiva” e da concepção de mundo das classes populares da Idade Média (Bakhtin, 1987). O segundo traz uma comparação entre o escrito de Pinto e a questão da dialética da malandragem proposta por Antonio Cândido em seu ensaio sobre o livro Memórias de um sargento de milícias, como se verá. Além disso, procuro fazer uma relação entre os escritos do “Animal” e a literatura folhetinesca e carnavalesca da época: para isso comparo os escritos de Gonçalves Pinto aos de algumas publicações da imprensa carnavalesca como os jornais lançados pelo rancho carnavalesco Ameno Resedá. No terceiro capítulo, intitulado Gonçalves Pinto e os primeiros memorialistas da música popular urbana carioca realizo uma análise comparativa entre o livro O 7 Choro e outras fontes importantes que se constituem como memórias das práticas sonoras e sociais da época tais como os escritos de Catulo da Paixão Cearense, Francisco Vagalume, Orestes Barbosa e Mello Moraes. Ao comparar estes escritos, procuro entender algumas das diferentes visões e leituras da música popular do período no que tange a conceitos como gênero musical, “brasilidade”, relação com a indústria fonográfica etc. Como se verá, os relatos deste período estão longe de apresentar uma visão unívoca sobre a música popular e suas diversas facetas: a classificação de “gêneros musicais”, a questão das “origens”, a relação com a indústria fonográfica, etc. Neste capítulo procuro dialogar com os mais recentes textos acadêmicos sobre este tema, que incluem Abreu (1998, 2007), Sandroni (2001), Braga (2002), Carvalho (2006), etc. O quarto capítulo, intitulado A práxis musical em “O Choro”, tem como foco aspectos da transmissão musical do choro no período de 1870 a 1930 — período que compreende a narrativa de Gonçalves Pinto. Estes aspectos podem ser formulados através de uma série de perguntas: 1) de que modo os músicos aprendiam esta música? Quais os lugares de aprendizado e de que forma este conhecimento era transmitido? 2) De que modo os músicos reconheciam um bom instrumentista e de que forma se inseriam os chamados “facões” (músicos fracos) na roda, e qual a importância destes? 3) de que modo os músicos de choro contribuíram para o nascimento e o estabelecimento de um cânone de compositores e de repertório do gênero?; 4) de que modo esta música era transmitida? Como se verá, o livro fornece informações preciosas a respeito dos arquivos de partituras dos chorões, algo que a meu ver foi pouco abordado pela bibliografia sobre o gênero até hoje. Pelo seu relato, sabemos que a leitura e a escrita de partituras era algo importante para a transmissão do choro, sendo que muitos músicos escreviam álbuns de partituras que eram frequentemente copiados 8 uns pelos outros, em uma verdadeira rede de informação. A partir deste fato, procuro discutir aspectos da transmissão oral e escrita no choro, tomando como referencial teórico textos da musicologia (Treitler, 1992) e da etnomusicologia (Nettl, 1985) sobre o tema. Este aspecto nos chama ainda a atenção para o gigantesco acervo de partituras manuscritas da época e que hoje se encontram em instituições públicas e particulares (veja-se por exemplo a coleção Jacob do Bandolim do Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro, bem como o acervo Donga, de posse de sua família), material a meu ver pouco analisado até o presente trabalho. Ao longo do capítulo procuro fazer um mapeamento e uma análise das coleções manuscritas de choro encontradas nestes acervos. Finalmente, o quinto capítulo trata da rede de significações do livro na atualidade. O primeiro item é dedicado ao “Retiro da Velha Guarda”, espécie de reunião semanal de músicos de choro que perdurou até a década de 1970, alguns dos quais chegaram ainda a ser retratados no livro O Choro, como Napoleão de Oliveira e Léo Vianna. Meu objetivo é analisar de que forma aspectos do ambiente da “roda” ressaltados no livro se mantiveram ou não nestes encontros entre antigos músicos. O segundo tópico do capítulo é dedicado à Revista “Roda de Choro”, publicada na década de 1990 e editada pelo livreiro Rodrigo Ferrari e pelo designer Egeu Laus. A revista continha uma seção dedicada às “Histórias do Animal”, onde o carteiro “reaparecia” nos tempos atuais para contar “causos” do seu livro e também histórias da atualidade, narradas “ao estilo” do carteiro. O terceiro tópico é dedicado ao movimento de “redescoberta” do choro antigo (ou seja, de compositores e obras de finais do século XIX e primeiras décadas do século XX entendidos como ligados ao choro) por um grupo de músicos ligados a gravadora Acari, tendo o livro de Gonçalves Pinto como referência principal. O quarto tópico é dedicado ao livro infantil “Pedro e o Choro”, de 9 autoria de Simone Cit (com direção musical de Roberto Gnattali), uma espécie de paródia do clássico de Sergei Prokofiev “Pedro e o Lobo”, onde a figura do lobo é substituída pelo “Animal”, ninguém menos do que o carteiro Gonçalves Pinto. Como a análise da linguagem do livro é um dos pontos principais desta tese, optei por preservar integralmente a grafia e a gramática utilizadas no original, sem apontar para qualquer desvio da norma culta. Da mesma maneira, como o objetivo é dialogar com o texto e as referências e transcrições de trechos do livro são constantes, optei por identificá-las apenas pelo número da página. Tal indicação remete sempre à edição fac-similar da FUNARTE de 1978. 10 Capítulo 1 Memória, história e etnografia: representações da obra de Gonçalves Pinto através do tempo O tema da música popular urbana no Rio de Janeiro no período da belle époque – finais do século XIX e inícios do século XX – exerce ao mesmo tempo um enorme fascínio sobre pesquisadores e amantes da música em geral e uma multiplicidade de discursos e posições, muitas vezes ideológicas, sobre o significado das práticas musicais da época em esferas mais amplas. Período em que surgem gêneros musicais que serão considerados fundadores de uma ansiada “identidade nacional”, como o maxixe, o choro, e – em maior escala – o samba, é, justamente por tal motivo, também um período prenhe de significados e desafios para pesquisadores da atualidade. Tanto os discursos da época em suas variadas instâncias – fontes primárias como jornais e revistas, livros publicados, gravações etc. – como os discursos posteriores sobre este período são repletos de conceitos como música e nacionalidade, “autenticidade”, “origens”, “ancestralidade”, formando uma espécie de caleidoscópio onde muitas imagens, representações, discursos e mitos podem ser vislumbrados. Mais do que isso, representações da história são moldadas a partir de signos culturais (incluindo aí também certamente os signos sonoros) para a produção de discursos. Este processo envolve uma verdadeira “rede” de mediadores formada por diversos atores sociais, que ao longo deste período se entrelaçam através de uma teia complexa que envolve fatos sociais, memória, história, interpretação, paixão musical, entre outros elementos. Em última análise, as próprias palavras normalmente utilizadas para designar o que chamamos de “gêneros musicais” podem ser interpretadas como instâncias mediadoras pelas quais abarcamos um conjunto de signos culturais, sociais e sonoros. “Samba”, “tango”, “maxixe”, etc, são termos que tentam de certa forma transformar em conceitos unívocos o que na verdade se constitui como uma teia de significados. Como explicado na introdução, este trabalho tem como objeto de estudo justamente um relato em forma de livro que se intitula “O Choro”. Por trás deste nome há sem dúvida um mundo de significados. Usualmente definido pela bibliografia como sendo primeiramente o nome pelo qual se designava o conjunto formado por violões, cavaquinhos e flautas surgidos nas últimas décadas do século XIX (ou o lugar onde o conjunto tocava), posteriormente seria o nome dado ao gênero musical decorrente da interpretação peculiar que estes grupos davam à execução de danças européias, tais como polcas, valsas, schottischs, quadrilhas, entre outros. Nesta passagem de nome de conjunto para gênero musical, a bibliografia ressalta sempre uma “influência africana” que teria funcionado como uma espécie de catalisador no processo de “nacionalização” destas danças européias (analisaremos esta questão no decorrer do capítulo) No entanto, por trás desta definição aparentemente monolítica, para qualquer um que esteja minimamente familiarizado com a história da música popular brasileira, a simples menção da palavra “choro” remete a um conjunto de significados que podem incluir itens diversos como nomes de compositores (Pixinguinha, Ernesto Nazareth, Chiquinha Gonzaga, etc.), instrumentos musicais (flauta, cavaquinho, violão), memórias sonoras (músicas de choro, sonoridade dos instrumentos), situações sociais (festas, rodas de choro), etc. Obviamente estas associações mudam de acordo com o ponto de vista de cada indivíduo ou grupo social que evoque a palavra. Para um músico de choro da atualidade, a palavra pode estar ligada a um repertório, a determinadas práticas musicais realizadas em conjunto ou mesmo ao desempenho mecânico e técnico do instrumentista necessário para executar determinado repertório. Para um jovem de classe média do Rio de Janeiro de finais da década de 1990, a palavra poderia estar 12 ligada à ideia de boemia, diversão e mesmo associada a certos locais da cidade, como a Lapa (bairro boêmio do Rio de Janeiro que presenciou neste período um dos muitos “renascimentos” do gênero). Ao mesmo tempo, a palavra já esteve (ou ainda está, dependendo do ponto de vista) associada a um gênero “antigo”, praticado por velhos músicos, ou a um repertório muito restrito de músicas. Toda esta teia de significações, que está em permanente mutação, resulta em grande parte desta cadeia de mediadores que inclui músicos, compositores, ouvintes, animadores culturais, jornalistas, pesquisadores, acadêmicos, etc. Mais do que isso, esta cadeia atua de forma sincrônica e diacrônica: estruturas do passado (relatos, depoimentos, composições) são sempre “recuperadas” para “validar” discursos do presente. Meu principal objetivo neste capítulo é procurar descrever o processo de como um relato específico – o livro O Choro de Alexandre Gonçalves Pinto – pode representar ao mesmo tempo uma polifonia de discursos sobre as práticas musicais e sociais da época e se constituir como parte de uma cadeia de significações posteriores. Em outras palavras, o discurso do “Animal” incorpora opiniões e visões de mundo de seus companheiros e amigos músicos da época – visões nem sempre livres de contradições, como se verá. Ao mesmo tempo, seu discurso é usado por praticamente todos os escritos sobre o choro da segunda metade do século XX para validar e para “re”-significar o choro, muitas vezes com finalidades distintas. No primeiro item deste capítulo, procuro entender de que forma o relato de Gonçalves Pinto foi interpretado de maneira diversa por pesquisadores, acadêmicos e músicos ao longo do século XX. Como introdução a este tema, faço uma pequena análise da historiografia da música popular urbana brasileira desde as primeiras décadas do século XX, incluindo os autores “clássicos” das décadas de 1940 a 1960 e as novas perspectivas abertas pela literatura acadêmica a partir da década de 1990. Em seguida, 13 foco minha análise na historiografia específica sobre o choro, procurando entender de que forma foram construídas diversas representações históricas sobre este termo e quais os diferentes papéis que a obra de Gonçalves Pinto assumiu neste processo. Esta revisão bibliográfica, que inclui também a literatura acadêmica mais recente, nos aponta caminhos possíveis que vão além de uma “história-social” do choro, como se verá. No segundo tópico do capítulo discuto o modelo metodológico que será adotado ao longo do trabalho. 1.1) A historiografia da música popular urbana carioca: entre o “colecionismo” e a história social Comecemos com algumas reflexões sobre a historiografia da música popular urbana carioca. Embora gêneros considerados “nacionais” já existissem desde meados do século XIX, como a modinha e o lundu, é somente a partir da década de 1930 que surgem os primeiros “historiadores” destas músicas, realizando ao mesmo tempo um trabalho de construção de memória e de “institucionalização” destas práticas musicais. Ao contrário do que se poderia supor, este movimento não parte da intelectualidade musical brasileira – a discussão sobre a música popular urbana está totalmente ausente ou, quando muito, abordada de modo apenas marginal na obra de historiadores da música ou musicólogos brasileiros como Guilherme de Melo, Renato Almeida, Mário de Andrade, Luiz Heitor Corrêa de Azevedo e Oneyda Alvarenga. Sem o aval dos intelectuais, este movimento acaba por partir de escritores normalmente ligados a atividades jornalísticas, como era o caso, no Rio de Janeiro, de Francisco Guimarães (por alcunha o “Vagalume”) e Orestes Barbosa – autores dos dois primeiros livros sobre a música que se tornaria o símbolo nacional por excelência: Na 14 roda de samba e Samba, respectivamente, ambos lançados em 1933. Ou ainda de músicos populares, como é o caso do próprio Gonçalves Pinto, cuja obra é o alvo deste trabalho. Estes primeiros memorialistas tinham em comum o fato de serem testemunhas “oculares” e até certo ponto participativas destas práticas. No entanto, seus discursos eram antagônicos em muitos pontos. No que se referia à indústria cultural nascente (o disco e o rádio), por exemplo, Vagalume era um verdadeiro opositor daquilo que ele considerava a “mercantilização” do samba, e não hesitava em atacar figuras como Francisco Alves e Ary Barroso, classificando-os depreciativamente como “sambestros”, ou seja, estranhos ao ambiente da “verdadeira” roda de samba. Já Orestes Barbosa defende o rádio como o mais importante meio de difusão do samba e exalta as “novas” figuras como Noel Rosa e Lamartine Babo (tal tema é alvo de discussão de diversos trabalhos recentes como por exemplo Sandroni 2001, Napolitano 2000 e Moraes 2006). Gonçalves Pinto, conforme veremos ao longo deste trabalho, fará um contraponto ambíguo a estes dois outros escritores, por um lado criticando, por outro enaltecendo os artistas do rádio. Analisaremos de forma mais aprofundada o trabalho destes primeiros memorialistas no capítulo três. De toda forma, são os escritos destes cronistas e o fortalecimento da indústria cultural na década de 1930 – o rádio e o disco principalmente – que fazem com que as diferentes práticas musicais da cidade se consolidem em uma espécie de “instituição”: a música popular brasileira. Instituição complexa, que envolvia não só a prática sonora, mas conceitos mais amplos como identidade, nacionalidade e ancestralidade; instituição “polifônica”, que trazia em seu bojo uma série de discursos muitas vezes antagônicos, como mencionado. E como toda instituição, portadora de uma “história” – ou de várias “histórias” possíveis – e de personagens principais e “mitos”. 15 Como conseqüência deste processo de historicização, surgem, a partir da década de 1950, os primeiros acervos sistemáticos de música popular brasileira. Formados por especialistas que eram também muitas vezes “atores” da música popular, como o radialista e cantor Almirante (Henrique Foréis Domingues) e o instrumentista Jacob Pick Bittencourt (Jacob do Bandolim), ou simplesmente pesquisadores, como Mozart Araújo, Jota Efegê e Lúcio Rangel, tais acervos tinham como principal objetivo serem uma espécie de salvaguarda da memória musical nacional, através de suportes materiais – gravações, partituras, fotos, documentos históricos – que não só ilustrassem esta história, mas que determinassem com pretensões científicas as “verdades dos fatos” da música popular: o que incluía temas como suas “origens”, o estabelecimento de uma linha evolutiva desta música, questões de autoria (as célebres discussões sobre a autoria de músicas como Pelo Telefone e Luar do Sertão, por exemplo) e outros fatores, todos com forte cunho ideológico e nacionalista. Esta geração de “pesquisadores/colecionadores” tem papel fundamental na “institucionalização” da música popular brasileira, mas sua relevância ainda suscita muitas questões. Por um lado, os escritos desta geração1 são apontados como tendo caráter essencialmente biográfico ou com ênfase nas obras artísticas – ou seja, se resumiriam a uma espécie de arrolamento de biografias e obras de músicos e compositores (ver a este respeito Contier, 1988). Ainda que considerados importantes por terem “no mínimo, mapeado autores, repertórios, sublinhando características de épocas” (Braga, 2002: 4), este corpus permaneceria de certa forma na categoria de obras de caráter “não científico”. Para Napolitano e Wasserman (2000), estes pesquisadores poderiam ser classificados sob a denominação de “folcloristas urbanos”. Segundo estes autores, a geração de Almirante e Jota Efegê, não tendo encontrado no pensamento 1 Poderíamos apontar como exemplos destes escritos obras como No tempo de Noel Rosa, de Almirante, Sambistas e Chorões de Lúcio Rangel e Figuras e coisas da música popular de Jota Efegê. 16 intelectual da época (notadamente no de Mário de Andrade) um apoio para estabelecer uma tradição reconhecida e legítima do samba como eixo central da música popular brasileira, tomou para si “a tarefa de consolidar um pensamento historiográfico sistematizado em torno da música urbana. (...) Dialogando com as posições de Francisco Guimarães, mas imbuídos de um espírito “científico” de coleta e preservação, estes jornalistas e radialistas acabarão por demarcar o espaço de um inusitado ‘folclorismo urbano’” (Napolitano e Wasserman, 2000). Sob a denominação “folclorismo urbano” subjaz sem dúvida a ideia de folclore como uma atividade excluída de um corpus acadêmico. No dizer de Vilhena (1997:22) (...) o folclorista se tornou o paradigma de um intelectual não acadêmico ligado por uma relação romântica ao seu objeto, que estudaria a partir de um colecionismo descontrolado e de uma postura empiricista. Dessa forma, os estudos de folclore são freqüentemente vistos como uma disciplina ‘menor’ ou como um recorte temático inadequado, praticados fora das instituições universitárias por ‘diletantes’. Mais do que um simples “colecionismo”, o trabalho desta geração estabeleceu uma filiação – ainda que controversa – com o pensamento nacionalista que norteou os trabalhos da musicologia brasileira desde o início do século XX. Este verdadeiro paradigma nacionalista estava associado à ideia de que a identidade nacional só seria encontrada na aquisição de um perfil próprio, desvinculado dos moldes europeus. No cerne deste processo estaria a “crença na existência de uma força interna a cada povo, sua alma ou personalidade, que se manifesta na história, na língua, nas instituições sociais, nas formas de governo e de expressão artística” (Travassos, 1997:7). Em outras palavras, as classes que tinham menos contato com a “civilização” e o contexto urbano conservariam uma “pureza” latente em seus costumes, que configuraria sua “identidade” como povo, e que, portanto, deveria ser “recuperado” pelo homem urbano e “civilizado”. Ao mesmo tempo, são sempre identificadas as contribuições de cada uma das “raças” formadoras no processo de formação musical da nacionalidade. É esta, em 17 termos genéricos, a orientação subjacente aos trabalhos de Mário de Andrade (1934, 1939), Renato Almeida (1926), Luiz Heitor Corrêa de Azevedo (1939, 1950, 1954), Oneyda Alvarenga (1960), entre outros. A filiação de estudiosos da música popular urbana brasileira ao pensamento nacionalista calcado na valorização da música rural e “folclórica” é sem dúvida um processo que envolve rupturas e paradoxos. Como já mencionado, o pensamento da intelectualidade musicológica brasileira primou sempre pela valorização das músicas produzidas fora do contexto urbano em detrimento das músicas taxadas como “popularescas”, isto é, marcadas por modismos, pela superficialidade e pela transitoriedade. Conforme afirma Mário de Andrade: O documento folclórico, na sua prática, pode durar apenas uns poucos anos e desaparecer totalmente, esquecido da maioria dos cantadores. Mas isto não impede que ele guarde sempre, por sua natureza, a condição de sua tradicionalidade. Ele continua sempre excluindo de si a noção da moda, e o seu elemento de transitoriedade no tempo. Ele foi esquecido, mas isto não implica que tenha passado. E se revivido pela memória dum cantador, ninguém reage folcloricamente contra ele. Ao passo que o documento popularesco, pelo seu semi-eruditismo, implica civilização, implica progresso, e com isso, a transitoriedade, a velhice, a moda. O documento folclórico, por prescindir do tempo, se torna eterno e sempre utilizável. (Andrade In: Coli, 1998:178-179) De que forma então poder-se-ia superar o paradoxo entre a “pureza folclórica” e a “transitoriedade” dos gêneros populares urbanos? Em outras palavras: como conferir aos gêneros populares urbanos foros de autenticidade que ao mesmo tempo os livrasse do estigma de transitoriedade subjacente ao modo com que eram disseminados (ou seja, através da indústria cultural em expansão: o disco, o rádio, as editoras de partituras, etc.) e garantisse a eles uma “tradicionalidade” de modo a validá-los como músicas representativas da nação? Este processo se deu através de uma diversidade de discursos e posicionamentos nem sempre congruentes. Em primeiro lugar, procurou-se conferir 18 historicidade aos gêneros populares urbanos, ligando-os às mesmas “raízes” apontadas pela intelectualidade como formadoras de uma síntese nacional. Assim, o surgimento de gêneros como o samba e o choro está diretamente ligado à ideia de “africanidade”, desde autores como Vagalume e Gonçalves Pinto (como veremos), passando por Almirante, Jota Efegê, Mozart de Araújo e outros, como já fartamente demonstrado pela bibliografia (ver p. ex. Sandroni, 2001 e Vianna, 1995). Em processo paralelo, procurou-se apontar “raízes folclóricas” – ou seja, filiações com músicas rurais produzidas fora de contexto urbano – para explicar as gêneses destes mesmos gêneros. Um exemplo bastante claro é o livro No tempo de Noel Rosa de Almirante (citado por Napolitano e Wasserman, 2000), em que o autor inicia sua biografia sobre o compositor de Vila Isabel traçando uma linha que liga o samba às tradições musicais nordestinas trazidas para a cidade por músicos e “personalidades” como João Pernambuco e Catulo da Paixão Cearense2. Este processo será intensificado pela geração de historiadores da música popular das décadas de 1960 em diante – notadamente Ary Vasconcelos e José Ramos Tinhorão –, sobre a qual falaremos posteriormente. Em segundo lugar procurou-se encontrar uma por vezes difícil conciliação entre a validação de gêneros musicais populares urbanos e a criticada “transitoriedade” das músicas veiculadas através do disco e da rádio. Este processo se deu na contramão das críticas contundentes ao processo de “mercantilização” com que gêneros como o samba e o choro eram absorvidos pela indústria cultural em expansão – sendo a epítome deste discurso o já citado livro do “adorniano” Vagalume (ver p. ex. Sandroni 2000, Braga, 2002, entre outros), para quem as instâncias originárias do samba, as “rodas” e o “morro” seriam os símbolos da pureza do gênero, em contraposição ao ambiente deletério da comercialização da indústria cultural. Na raiz deste processo de legitimação 2 No primeiro capítulo do livro, significativamente intitulado “Antecedentes Folclóricos”, o autor inicia seu texto citando autores “clássicos” do estudo de folclore do início do século como Silvio Romero, Melo Morais Filho, Pereira da Costa, entre outros. 19 dos gêneros “nacionais” através da grande indústria cultural, dois fatores podem ser apontados: o primeiro reside no fato de muitos de seus cultores serem eles mesmos representantes do disco e da rádio, como Orestes Barbosa e Almirante. Barbosa, parceiro de nomes como Noel Rosa e Silvio Caldas em clássicos como Positivismo e Chão de Estrelas, fará a defesa do rádio em seu livro Samba de 1933: O rádio. O samba tem no rádio um grande servidor. O rádio é no momento um problema descurado por parte do poder. A cidade, que tanto lhe deve, precisa igualmente voltar pra ele as suas vistas, prestigiando, colaborando para que ele cumpra as suas finalidades em prol do progresso geral (Barbosa, 1933: 188). Almirante, por sua vez, orientará toda a sua carreira radiofônica para a função de produtor de programas de cunho nacionalista, muitos deles voltados para a história (e a exaltação) da música popular urbana, tais como “Histórias de Orquestras e Músicos” (1944) e “O Pessoal da Velha Guarda” (1947). O segundo fator deste processo seria o estabelecimento de um cânone de autores e obras que seriam consideradas “clássicas”, representantes da mais “pura” nacionalidade e que por isso mesmo estariam fora da transitoriedade inerente aos modismos e à velocidade com que novos gêneros musicais eram lançados pela indústria. Para que se alcançasse este objetivo era necessário validar a música popular urbana como “música artística”, ou pelo menos relativizar a primazia desta última: Há quem pense, com um partidarismo absurdo, que toda e qualquer música popular não presta, e que só as grandes obras clássicas, as sinfonias, os quartetos, as sonatas, etc. etc., que prestam. Pois estão redondamente enganados. Há muita obra de grande autor considerada até legítima droga. Por outro lado, sabemos também que boa parte da música popular também não vale grande coisa, mas em compensação, há no gênero legítimas obras-primas, que como perfeição, como expressão de arte, nada ficam a dever às obras tidas como clássicas no repertório musical de todo o mundo (Almirante, texto do programa O Pessoal da Velha Guarda transmitido em 17/03/1948; grifo meu). A partir deste reconhecimento valorativo da música popular estabelecer-se-iam diversos cânones de representação: linhas evolutivas de compositores, arranjadores e 20 intérpretes que conteriam, da mesma forma que a música “folclórica e pura”, os elementos representativos de uma esperada brasilidade. Não nos esqueçamos da importância, neste processo, da figura do arranjador, responsável pela mediação entre os sons apresentados pelos compositores e o padrão sonoro exigido pelas instâncias de mídia (ver a este respeito os trabalhos de Braga, 2002 e Aragão, 2001). O estabelecimento destes cânones estava então diretamente ligado à constituição de acervos com material histórico e sonoro que os validassem de forma “científica”, como já dissemos. É neste sentido que podemos entender a constituição das coleções como as do próprio Almirante, Jacob do Bandolim, Lúcio Rangel, Mozart de Araújo entre outros. Seria possível então utilizar a expressão “folcloristas urbanos” para designar esta geração de pesquisadores, conforme proposto por Napolitano e Wasserman (2000)? Certamente há pontos comuns entre estas duas vertentes de pesquisa, a ponto de haver em meados da década de 1940 uma espécie de “disputa” velada entre intelectuais ligados ao movimento folclórico e os novos “doutores em samba” conforme designação de Mário de Andrade. Como apontei em trabalho anterior (Aragão, 2006: 69-80), surge no Rio de Janeiro no ano de 1941 uma “Comissão de Pesquisas Populares”, que congregava intelectuais como Luiz Heitor Corrêa de Azevedo, Marisa Lira, Joaquim Ribeiro, Brasilio Itiberê e Renato Almeida; seu objetivo era a formatação de uma equipe multidisciplinar que teria como objeto de pesquisas justamente o estudo do “folclore urbano”. Entre os locais de pesquisa da Comissão estavam lugares típicos do samba carioca, como a Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira, de onde Mariza Lira, em artigo sobre a expedição, salienta a importância do compositor Angenor de Oliveira, o Cartola. O que se percebe de maneira geral no discurso da Comissão é uma contradição entre a aceitação de gêneros denominados “puros” ou “tradicionais” e um 21 enfoque extremamente crítico da divulgação destes mesmos gêneros através do rádio e do disco. Mais ainda, haveria uma espécie de legitimação do papel do “verdadeiro folclorista”, conforme se nota neste depoimento de Mariza Lira: O povo irá ter a compreensão do que é folclore e talvez se apague essa crença, que os menos avisados do rádio têm espalhado, que folclore é música popular e que folclorista é o artista de rádio ou colecionador de trovas. O folclore cada vez mais alarga o âmbito de suas investigações e a música, o canto e as danças populares são partes deles (Lira, 1953:17, grifo meu). A crítica velada parece ter como alvo o radialista Almirante, que, na época, transmitia programas radiofônicos com o tema do folclore musical brasileiro, inclusive realizando trabalhos de “coleta” musical através de uma espécie de campanha entre os ouvintes (Cabral, 1990: 175-180). O mais contraditório no discurso, entretanto, é a foto que ilustra o texto de Lira, mostrando um concerto organizado pela Comissão de Pesquisas Populares. Com a legenda intitulada “Estudo retrospectivo da música do povo carioca num concerto organizado, em 1940, por Mariza Lira, nos estúdios da Rádio Mayrink Veiga”, a foto traz entre as figuras de Mário de Andrade, Pixinguinha, Mariza Lira, o cantor Ciro Monteiro, Luiz Heitor, Carleton Sprague Smith, diretor da seção de música da Biblioteca Pública de Washington e as cantoras Odette Amaral e Cinara Rios (Aragão, 2006). Ou seja, em que pesem as críticas ao rádio, os intelectuais da Comissão acabavam usando dos mesmos meios de comunicação para divulgar suas ideias e eventos; ao mesmo tempo, o fato já prenuncia as dificuldades de delimitação de termos como “folclore” e “música popular” a partir da segunda metade do século XX. Conforme apontado por Napolitano e Wasserman (2000), as décadas de 1950 e 1960 acabarão por unir figuras oriundas do folclore e da música popular urbana na defesa de gêneros musicais brasileiros, contra o que era percebido como influência deletéria das músicas estrangeiras. Um claro exemplo disso é a Revista de Música 22 Popular3, comandada por Lúcio Rangel, que reunia artigos tanto de nomes como Marisa Lira e Renato Almeida quanto os de Almirante e Jota Efegê. Ou ainda o I Congresso Nacional do Samba de 1962, organizado pela Companhia de Folclore Brasileiro, com o objetivo de “preservar as características do samba sem tirar-lhe as perspectivas de modernidade e progresso” (op.cit.). Uma nova vertente de estudos sobre música popular nasce na década de 1960 a partir da obra de autores como José Ramos Tinhorão. Embora contendo ainda elementos que podem ser apontados como resquícios do “colecionismo” da geração anterior, suas obras têm por bases as metodologias da história social e do materialismo histórico comuns a este período. Fatos históricos e políticos da nação brasileira passam a ser entendidos como “estruturas” definidoras das condições sociais e artísticas que são desenhadas em diferentes períodos. A música aparece então como “supra-estrutura” determinada pelas condições econômicas e políticas da nação; mais do que isso, ela resulta do enfoque das lutas de classe e de estágios de dominação em diferentes níveis, regidos por forças nacionais e internacionais. De uma forma bastante genérica, pode-se dizer que o cerne da obra de Tinhorão está calcado na relação entre grupos sociais e a ideia de “autenticidade” cultural, por oposição a outros grupos sociais que se afastariam, por injunções econômicas e políticas, desta. Entre os grupos portadores desta “autenticidade” estariam os contingentes negros e proletários da população que em finais do século XIX e primeiras décadas do século XX se estabeleceu no Rio de Janeiro, em regiões como a Cidade Nova e o Estácio. A condição de “autenticidade” está essencialmente ligada às raízes folclóricas rurais percebidas como “matrizes” deste grupo. Por outro lado, à medida que a música brasileira se afasta historicamente das manifestações culturais 3 A Revista de Música Popular teve 14 edições entre 1954 e 1956. (Napolitano e Wasserman, 2000) 23 promovidas por este grupo e recebe influências de instrumentos de “dominação cultural” como o rádio e posteriormente a televisão, ela perderia seu caráter original e nacional: No caso especial do Brasil, a realidade desse mecanismo de dominação cultural [o mercado internacionalizado] gerou uma intervenção contínua no processo evolutivo da música urbana, tornando-se mais forte à medida que a classe média se foi apropriando dos gêneros criados pelas camadas populares das cidades que se nutriam do material folclórico estruturado após quatro séculos de vida rural (Tinhorão, 1969:9 apud Napolitano e Wasserman 2000) Uma das mais importantes obras do autor, sua História Social da Música Popular Brasileira, lançada na década de 1990, exemplifica de modo mais significativo esta linha de pensamento. Dividido em sete partes – A cidade em Portugal, Brasil Colônia, Brasil Império, Brasil República, O Estado Novo, O Pós Guerra, e Regime Militar de 1964 –, o livro tem como eixo central a dicotomia entre apropriação e expropriação cultural dentro de um contexto de dominação política e ideológica a que, segundo o autor, o país estaria condicionado desde o período de colonização até os dias atuais. Com extensa pesquisa documental – muito embora não fiquem muitas vezes claras, para o leitor, as procedências das informações citadas pelo autor – o livro é sem dúvida referência fundamental na abordagem da história da música popular sob o prisma da história social, em que pesem as críticas já suficientemente apontadas sobre os reducionismos inerentes ao materialismo histórico usado pelo autor (ver a este respeito Souza, 1998 e Braga, 2002). A partir das décadas de 1970 e 1980, as pesquisas acadêmicas sobre a música popular urbana brasileira ganharão novos contornos com influências metodológicas de outras disciplinas como literatura, antropologia, história, sociologia e semiótica. Nas instituições universitárias de música novas perspectivas serão abertas a partir da influência da etnomusicologia. Obviamente, foge ao objeto deste estudo realizar um balanço completo dos estudos acadêmicos deste período, mas de um modo geral 24 podemos apontar algumas destas novas diretrizes pesquisas – o que nos ajudará a situar nosso próprio trabalho. Em primeiro lugar, houve um deslocamento do eixo central dos objetos de estudo: ao invés da procura pelas origens étnicas formadoras de uma identidade nacional, passou-se a uma postura crítica dos estudos sobre a origem. Tal postura envolvia também o questionamento do clássico modelo proposto pela intelectualidade brasileira (ver Andrade, 1939) de utilização da música “folclórica” como substrato para uma “música artística”, bem como o próprio questionamento destas categorias previamente dadas, tais como “música folclórica”, “artística” e “popular” (v. Travassos, 2003). Em última análise, relativizou-se mesmo o conceito de “música”, tal como percebido através de uma postura eurocêntrica: sob o prisma da etnomusicologia, o conceito passa a ser fragmentado e entendido como um sistema de comunicação envolvendo sons estruturados produzidos por membros de uma comunidade e identificado por estes como sons musicais por oposição aos sons da natureza e aos ruídos (Seeger, 1991). Em segundo lugar, os temas da indústria cultural e da circulação das práticas culturais em contextos pós-industriais emergem como foco de grande número de trabalhos. O advento da fonografia e os diversos processos de mercantilização e consumo passam a ser analisados como parte integrante da compreensão musical do século XX em suas diversas teias sociais. No dizer de Zan (2001), a indústria cultural não pode ser encarada como uma estrutura fechada, mas como “um processo de produção e consumo de bens culturais cujos efeitos devem ser analisados como movimentos tendenciais impregnados de contradições e conflitos”. Este processo é identificado em última análise como uma poderosa ferramenta de “mediação social”, termo que resulta em parte da visão de Adorno sobre o objeto de arte como “elemento na qual a sociedade se objetiva”. Em outras palavras, a música estaria diretamente 25 ligada a hábitos cognitivos, formas de consciência e desenvolvimentos históricos da sociedade (De Nora, 2000:2). Em terceiro lugar, as visões panorâmicas sobre vastos períodos históricos são substituídas por leituras mais focadas em recortes temporais e temáticos mais reduzidos ou estreitos. Finalmente, intensificam-se as pesquisas que têm como tema os nexos entre música, cultura e sociedade, sob uma variedade de prismas metodológicos que envolvem etnografia, história, estudos de crítica literária, entre outros. Este tema será desenvolvido de uma perspectiva mais abrangente no segundo tópico deste capítulo. No que tange à música popular urbana carioca, a grande maioria dos trabalhos publicados versa sobre o samba e sua consolidação como símbolo da música nacional. Neste processo, é dado ao choro uma espécie de papel coadjuvante, quase que uma etapa na “linha evolutiva” do samba. Obviamente, foge ao objetivo desta tese fazer uma análise exaustiva de todas as pesquisas sobre música popular, mas apontaremos de forma sucinta os principais trabalhos, dirigindo nossa análise para o seguinte questionamento: de que forma o choro é representado nestes trabalhos mais recentes sobre o samba? No seu artigo “Getúlio da Paixão Cearense”, Wisnik (1982) procura analisar as diferentes instâncias de representação da música popular urbana nas três primeiras décadas do século XX, através de um complexo jogo social que envolve intelectuais ligados ao programa nacionalista de Mário de Andrade, instâncias políticas que culminarão com o Estado Novo em 1937 além de instâncias da indústria cultural, como o rádio e o gramofone, tudo isso tendo por pano de fundo um mosaico de diferentes práticas musicais populares, advindas de diferentes regiões da cidade. Para o autor este jogo de representações é simbolizado pelo que ele chama de “biombos” culturais4, ou seja, territórios culturais de passagem que permitiam articulações entre diferentes 4 Originalmente a expressão “biombos culturais” foi cunhada por Roberto Moura em seu livro Tia Ciata e a Pequena Àfrica no Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultural, Dep. Geral de Doc. e Inf. Cultural, Divisão de Editoração, 1995. 26 camadas sociais. Tomando como base a estrutura física da casa da Tia Ciata, a célebre babalaô baiana que corporifica a ideia de “africanidade” no Rio de Janeiro da época, Wisnik cria uma espécie de leque de espaços culturais que iam do plano “erudito” (sala de concerto) aos espaços de “afirmação de contingentes negros” (op.cit. 158) - os terreiros de candomblé -, passando por diversas instâncias “intermediárias”: o sarau, o salão de baile, o quintal do samba, etc. Estes diferentes “espaços”, separados por “biombos” (ou seja, dividindo o território mas ao mesmo tempo permitindo trocas e interpenetrações) formariam uma espécie de painel onde as lutas de classes seriam escamoteadas em um jogo de imagens “de um paternalismo de novo tipo onde cultura dominante e culturas do povo buscam referendar-se num espelhamento” (op. cit. 160). Tal painel se tornaria ainda mais complexo por dois fatores: a ideologia cíviconacionalista do Estado Novo, com projetos de integração que passavam necessariamente pela afirmação de uma “identidade” nacional-musical (demandando, portanto, um discurso sobre autenticidades e origens) e as forças do mercado que “inviabilizavam a manutenção de uma tradição purista, unívoca e linear” (Napolitano e Wasserman, 2000). O samba seria então o ponto de encontro entre estas duas forças divergentes, a única possibilidade de interseção entre o desenfreado apelo do mercado e uma estética de autenticidade procurada pela intelectualidade e pelo Estado. Para o autor, o choro ocuparia, neste processo, um “lugar paralelo e elástico entre o samba, o salão e o sarau” por conter um duplo significado: ao mesmo tempo em que “tangenciava a batucada”, aspirava eventualmente a um status erudito. Em outras palavras, o choro seria uma espécie de “coringa” musical, podendo se configurar como uma música apta a ser tocada tanto nos “grandes salões” quanto na mítica casa de Tia Ciata. Um exemplo claro disso seria dado pelo chorão Sátiro Bilhar, violonista e funcionário da Estrada de Ferro Central, que, segundo depoimento de Donga, citado por 27 Wisnik, “estilizava a mesma composição (entre as poucas que tinha), conforme as conveniências do público a quem tocava, em gradações nuançadas entre o erudito e o popular” (op. cit. 158). Visões semelhantes do choro nos dão os trabalhos de Vianna (2007) e Sandroni (2001). O trabalho de Vianna é definido pelo próprio autor como um estudo das relações entre cultura popular e construção da identidade nacional através da análise do que o autor denomina o “mistério do samba”, que poderia ser expresso da seguinte forma: por que motivo um gênero musical apontado pela bibliografia como “perseguido”, isto é, reprimido pelas elites como “música espúria” (Efegê, 1980: 24) se torna de uma hora para outra música símbolo da nacionalidade? Para Vianna este seria “o grande mistério da história do samba: nenhum autor tenta explicar como se deu essa passagem (o que a maioria faz é constatá-la), de ritmo maldito à música nacional e de certa forma oficial” (Vianna: 2007: 29). Assim, o objetivo do autor é mostrar como a transformação do samba em música nacional não foi um processo repentino, como quer a bibliografia, mas sim o “coroamento de uma tradição secular de contatos (...) entre vários grupos sociais na tentativa de inventar a identidade e a cultura popular brasileiras”. (Vianna, 2007: 34). O livro tem como base metodológica o conceito de “invenção de tradição” do historiador Hobsbawm (1990); a transformação do samba em música nacional não é entendida, portanto, como “descoberta de nossas verdadeiras ‘raízes’ antes escondidas, ou ‘tapadas’ pela repressão, mas sim como o processo de invenção e valorização dessa autenticidade sambista” (op. cit: 35). Vianna cita ainda o conceito de hibridismo de Canclini, para afirmar que não considera a cultura popular invenção de um único grupo social – ou seja, o samba não seria apenas a criação de grupos “negros pobres moradores dos morros do Rio de Janeiro”. Na raiz do conceito de hibridismo de 28 Canclini “o popular se constitui em processos híbridos e complexos, usando como signos de identificação elementos procedentes de diversas classes e nações” (Canclini: 1992: 205 apud Vianna 2007). Possíveis críticas ao trabalho de Vianna, não obstante sua fundamental importância, poderiam ser feitas a partir da problematização de algumas premissas teóricas utilizadas por ele no decorrer da análise. Em primeiro lugar a noção paradigmática do samba como “concepção tópica”, no dizer de Sandroni (2001:114), ou seja, como “herança negra” previamente dada, já existente nas “noites de senzala”, nos “terreiros de macumba ou nos morros do Rio de Janeiro” (op. cit), embora preponderante na bibliografia clássica sobre o gênero (Vianna e Sandroni citam trabalhos de Arthur Ramos, Oneyda Alvarenga e Sérgio Cabral, Jota Efegê, entre outros), já é questionada, ainda que isoladamente, desde pelo menos finais da década de 1940. Veja-se por exemplo esta fala do radialista Almirante: Há um erro em torno do nosso samba, em torno daquilo que deveríamos chamar de música popular carioca, e [que] tem perdurado devido à despreocupação ou à ignorância daqueles que tem escrito ou que tem informado àqueles que escrevem em jornais, em revistas ou em livros, a respeito desta nossa arte popular. Este erro está em afirmar-se que o samba nasceu no morro, ouvintes. Isto não é verdade. Ajudem-me a desfazer esta lenda, que além de ser mentirosa contribui para emprestar à nossa música popular os foros de barbarismo que certos escritores, certos jornalistas, certos cronistas tanto apreciam, sem investigar coisa alguma, sem se terem aprofundado no assunto, sem querer ter o trabalho honesto de estudar antes de afirmar. Certos cavalheiros nos quais o povo acredita, vão publicando tolices e mentiras deste jaez, e que tanto depois prejudicam o estudo das origens da nossa música popular (Almirante, programa O Pessoal da Velha Guarda, fins da década de 1940, grifo meu). Fica claro neste texto do radialista a crítica à ideia do samba como uma criação “autêntica” dos morros cariocas; é também muito interessante notar a crítica aos “escritores, jornalistas e cronistas” que, ao identificarem o morro como lugar de origem do samba, estariam sub-repticiamente contribuindo para propagar almejados “foros de 29 barbarismo” à música popular. Almirante continua sua fala apontando a origem do samba como uma espécie de instância mediadora surgida a partir do encontro entre as práticas musicais da comunidade afro-bahiana da Cidade Nova e os primeiros compositores populares urbanos. Vale a pena a longa transcrição: O samba, ouvintes, não nasceu no morro. Quando ouvirem isto, desmintam e mandem os caras conversar [sic] comigo. Foram as bahianas que se instalaram no Rio, nos fins do século passado e princípios deste, que realizavam nas festas meio candomblé que realizavam freqüentemente nas suas casas, que começaram a difundir por aqui o ritmo curioso do “baiano”, que já era o samba, nas suas duas modalidades que eram o dançado, que se chamava partido alto, e o cantado que se chamava raiado. Freqüentavam as casas destas bahianas, principalmente a casa de tia Ciata, que era na rua Visconde de Itaúna 117, os primeiros compositores populares que depois se incumbiram da propagação do ritmo baiano entre os cariocas. Foram eles, pois, os que revelaram ao povo o samba, que até então ficava restrito às quatro paredes das casas das bahianas. A modalidade espalhada então por aquela gente, por aqueles primeiros compositores, tinha um aspecto já um tanto diferente do que se ouvia nos candomblés das bahianas. Eram músicas que já possuíam duas partes distintas e inalteráveis, partes diferentes portanto dos sambas primitivos que só possuíam uma parte estável, a outra parte ficava sujeita às variações e aos improvisos do momento. Os primeiros cultores do samba foram Donga, Sinhô, Pixinguinha, Chico da Bahiana, China, Hilário. Mais tarde vieram Freitas, Souto, Careca e outros. Mais tarde ainda Ary Barroso, João de Barro, Wilson Batista, Ataulfo Alves e mil outros. Pois bem ouvintes, daqueles primeiros, dos segundos e dos terceiros, nenhum deles, notem bem, nenhum deles foi de morro. O morro muito mais tarde teve cultores do samba, e mesmo bons compositores, mas isso não dá direito a que se afirme esta inverdade, que o samba veio de morro. (Almirante, op.cit) . Obviamente a meta do radialista nesta fala é desmentir a ideia de samba como tendo “origem no morro”, mas note-se que, ao fazê-lo, ele já aponta para o samba como fruto de um processo de mediação. Por um lado haveria uma “instância original” representada pelas práticas musicais ligadas aos candomblés das tias bahianas; por outro, a mediação de compositores urbanos que teriam propagado o gênero musical para além das quatro paredes das casas das bahianas, alterando, entretanto, sua forma original. Note-se que não há nenhuma menção às instâncias repressoras do samba neste processo. 30 Em segundo lugar, conforme salientado por Sandroni, a utilização do termo “invenção de tradição” aplicada ao samba tenderia a esvaziar o termo de toda sua carga de significação sonora e social, convertendo-o em uma “música neutra, despida de marcas culturais potencialmente conflitivas (...) um produto, por assim dizer, completamente artificial – criação arbitrária, isenta de quaisquer heranças, atavismos e etnicidades” (op. cit: 114-115). Ou seja, Vianna tenderia a acentuar o extremo oposto da bibliografia tradicional: o samba não é mais visto como uma “herança afro-bahiana” em essência, mas se converteria em uma construção artificial inventada por diversas classes sociais do Rio de Janeiro. Apesar disso, o próprio autor acaba por cair em contradição ao afirmar que, embora o samba não possa ser considerado “criação de grupos de negros”, as participações de outras classes, raças e nações se deram pelo menos como “relação exterior” ao “mundo do samba”, o que acaba por reificar a noção de mundo do samba como “universo negro” em essência – conforme também assinalado por Sandroni. Visto sob o prisma de estudos mais recentes sobre memória social (veja-se p. ex. Peralta, 2007), a teoria da “invenção das tradições”, ainda que válida na medida em que contribui para rebater versões “naturalizadoras” ou “essencialistas” de tradição ou de identidade, tenderia a reduzir a percepção do passado a uma construção unívoca, determinada, regida e coercitivamente imposta exclusivamente por uma constelação de poderes pré-determinados (governos, entidades, instituições políticas etc)5. Se é certo que a construção social do passado encerra, sempre, relações de poder e de dominação, não se pode por outro lado ignorar outras instâncias de memórias “espacialmente localizadas em paralelo com as memórias oficiais” (op. cit). 5 Para uma abordagem crítica do conceito de “invenção das tradições” veja-se também Burke 2008:111. 31 Finalmente, poderíamos problematizar também a aplicabilidade do conceito de hibridismo. Como salienta Kartomi (1981), termos como hibridismo, “crioulo” e “mestiço” seriam criticáveis na medida em que salientariam as características de parentesco e de “ancestralidades” das práticas musicais como categorias “científicas”, tomadas de empréstimo aos campos das ciências naturais (como biologia e agricultura), em detrimento da percepção destas práticas como válidas por si mesmas. Em última análise poder-se-ia argumentar que o conceito de hibridismo como artefato cultural que usa “signos de identificação elementos procedentes de diversas classes e nações” pode ser aplicado às diversas “categorias” de músicas, incluindo as de tradição européia, e não apenas às “músicas populares”. Detive-me de modo mais detalhado na análise do trabalho de Vianna pelo fato de que grande parte das discussões a respeito do samba são também, a meu ver, pertinentes ao universo do choro. Em última análise as fronteiras entre os dois gêneros são também tênues, pelo menos durante um largo período da história da música popular urbana carioca; não por acaso os dois personagens principais - pelo lado dos músicos populares - no encontro que é o mote principal do livro de Vianna são Pixinguinha e Donga, músicos que se dedicavam tanto ao choro como ao samba. O que se pode apontar é o fato de que, no fundo estas duas categorias “samba” e “choro”, ainda não estavam separadas de forma estanque nas duas primeiras décadas do século XX – algo que iria acontecer somente a partir da década de 1930, conforme veremos. Certamente havia várias grandes correntes de práticas musicais no período: uma ligada à tradição dos compositores de música instrumental já oriunda do final do século XIX e derivada em grande parte das danças européias (polcas, schottischs, valsas, etc), formadas por agrupamentos instrumentais que se chamavam choros e com uma relação forte com os registros musicais escritos, conforme demonstrarei ao longo deste trabalho. Outra 32 corrente seria representada pela comunidade afro-bahiana da Cidade Nova, como suas práticas musicais que seriam posteriormente apontadas como “instâncias de origem” do samba: as chulas, partidos, cânticos de candomblé, etc. Some-se a isso outras correntes como a que era representada pelo surto de “músicas regionais”, particularmente nordestinas, no Rio de Janeiro, que teria representantes ilustres como João Pernambuco e, tempos depois, grupos nordestinos como o Turunas da Mauricéa, ou ainda a onda do jazz-band que se constituiu como uma verdadeira febre em todo o Brasil nas duas primeiras décadas do século XX. Estas correntes se interpenetravam e se influenciavam mutuamente. Músicos como Pixinguinha e Donga estavam portanto imersos neste universo plural e sua caracterização como simplesmente “sambistas” no encontro entre intelectuais descrito por Vianna é, neste sentido problemática. A dicotomia entre “intelectuais” representados por Gilberto Freire e Sérgio Buarque de Hollanda e o “povo”, representado pela “turma de Pixinguinha” (Vianna, 2007: 29), também o é em parte, na medida em que contrapõe um pensamento “intelectual” e portanto “culto”, a uma matriz “popular”, subentendida como “inculta”. Ora, Pixinguinha e Donga eram músicos que representavam instâncias mediadoras das correntes musicais descritas acima e neste sentido poderíamos dizer que estavam também imersos em uma tradição “culta” musical: ambos sabiam “ler e escrever” música, eram detentores de acervos de partituras que remontavam ao século XIX etc. O texto de Sandroni é focado na mudança estilística do samba a partir de finais da década de 1920 com o advento de um novo paradigma rítmico que ficaria associado ao bairro do Estácio, calcado em forte tendência contramétrica: este seria o samba que se consolidaria verdadeiramente como “representação nacional”. Em um trabalho que o próprio autor classifica como de “etnografia histórica”, Sandroni realiza uma revisão da bibliografia sobre o samba e seu surgimento, identificando de forma crítica as lacunas e 33 as falsas premissas dos escritos sobre gêneros vistos como antecessores do samba, como o lundu e o maxixe. Para o presente trabalho é particularmente importante a análise que o autor faz do processo de nacionalização da polca, baseado em análise de partituras da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro: ele servirá como referência para o terceiro capítulo, onde discutiremos as transformações nos padrões de acompanhamento de choro a partir da década de 1930. Também deve ser ressaltado o fato de que Sandroni talvez seja o autor que realiza de forma mais aprofundada uma análise da relação entre o samba e o choro, problematizando a dicotomia, presente na bibliografia clássica (Máximo e Didier, 1990; Silva e Oliveira Filho, 1989), entre o choro como prática semiculta da baixa classe média (Cidade Nova) em oposição ao samba como música “primitiva” dos descendentes de africanos (Estácio). Para o autor, as relações entre música e classe social seriam mais complexas do que sugeriam estas polarizações (Sandroni, 2001: 139): as interpenetrações entre estas diferentes práticas musicais são ressaltadas, assim como a importância de figuras mediadoras destes processos, como Pixinguinha, por exemplo. Entretanto, ainda que não seja esta a intenção do autor, a análise histórica de todos os gêneros que “antecederam” o samba do Estácio acaba por levar o leitor inadvertido a identificar uma espécie de “linha evolutiva” das práticas musicais cariocas, onde estágios predecessores – lundu, polca, choro, maxixe – desembocariam finalmente no ápice da contrametricidade atingida pelos compositores do novo estilo de samba do final da década de 1920. Neste sentido o choro fica implicitamente colocado como uma etapa na consolidação do verdadeiro mainstream da música nacional: o samba. O que pretendo sugerir ao longo do trabalho, e particularmente no terceiro capítulo, quando discutiremos as transformações nas práticas musicais do choro a partir 34 de sua inserção na indústria do disco e da rádio é que: a) o choro teve papel decisivo nas transformações de contrametricidade surgidas no Estácio através de figuras mediadoras como Benedito Lacerda (figura pouco lembrada na bibliografia tradicional sobre samba mas que teve, a meu ver, papel decisivo na configuração e divulgação deste novo padrão) e Pixinguinha e; b) que o choro também foi influenciado, de forma paralela e complementar ao samba, por esta contrametricidade apontada por Sandroni como símbolo do Estácio. Não por acaso os primeiros arranjos do “novo samba” que preservaram suas características contramétricas em detrimento da síncope característica do maxixe foram feitos por Pixinguinha; também não por acaso o conjunto regional com maior atuação nas gravações do novo samba desde o final da década de 1920 até praticamente a década de 1970 será o conjunto formado pela trinca Canhoto (Waldomiro Tramontano) – Dino (Horondino José da Silva) e Meira (Jayme Florence); a princípio reunidos como “regional de Benedito Lacerda” e depois como “Regional do Canhoto” a partir da década de 1950. 1.2) As construções das “histórias do choro”: as várias leituras do livro de Gonçalves Pinto Neste tópico faço uma análise dos diversos discursos formadores das “histórias” sobre o gênero choro. Meu objetivo principal é identificar de que modo um “discurso fundador” – o livro de Gonçalves Pinto – foi sucessivamente lido e interpretado ao longo de diversas gerações por diversas categorias de atores sociais – pesquisadores, acadêmicos, músicos, animadores culturais. Mais do que isso, pretendo entender as razões pelas quais este livro exerceu e ainda exerce tamanho fascínio em 35 diferentes gerações de pesquisadores e músicos. Obviamente esta análise não pode ser feita sem que se realize uma revisão bibliográfica sobre os escritos sobre o choro. De um modo geral, a historiografia sobre o choro apresenta as mesmas características da música popular brasileira apontadas no tópico anterior: os textos das décadas de 1940 a 1960 (com reflexos até os dias atuais, diga-se de passagem) são calcados na busca de etnogêneses, nas possíveis definições etimológicas do termo “choro”, e no arrolamento de obras e compositores do gênero desde sua formação. No que diz respeito às origens etimológicas do nome as interpretações variam entre cinco hipóteses: a) a versão de Cascudo (Cascudo, 1962) que vê a palavra como corruptela do termo xolo, identificado como designação africana para “bailes de negros realizados em dias de festas”; b) a versão de Mozart de Araújo, para quem a palavra viria da “expressão dolente, chorosa da música que aqueles grupos executavam.” (apud Carvalho, 1972); c) a versão de Vasconcelos, para quem a palavra seria derivada da expressão choromeleiros, “corporação de músicos de atuação importante no período colonial brasileiro” (Vasconcelos, 1961); d) a versão de Batista Siqueira (1969), para quem a expressão viria da corruptela da expressão latina chorus, empregada erroneamente em um dos catálogos da Casa Edison; e) a versão do musicólogo Curt Lange (1980), que aponta para uma possível incorporação do termo alemão chöre, utilizado para designar grupos corais e instrumentais do sul do país que teriam se propagado para outras regiões, tornando-se dessa forma sinônimo de agrupamentos instrumentais. No que diz respeito às etnogêneses, a bibliografia clássica sempre ressalta que o choro nasceria como um jeito de se tocar as danças européias, sendo que este jeito pressupunha sempre algo ligado à sincopação tida como africana. Assim, para Lira, o que diferenciaria a interpretação de Callado 36 não eram os desenhos que traçava com a melodia, nem o ritmo, tão pouco as variações do contra canto; era tudo isso, repousando numa preguiça, indecisão propositada, espécie de ‘ganha tempo’. Não se percebia bem se era soluço ou pretexto transformado em síncopa. Síncopa original, preparo de modulações que se emaranhavam num sussurro, caricioso ou num cascatear álacre (Lira, 1940-41: 211) Esta sincopação de origem indefinida seria vista por alguns como herança dos “músicos barbeiros”, normalmente escravos libertos que no período colonial se reuniam em agrupamentos instrumentais para ganhar a vida nas cidades: “Por volta de 1870 – ano em que termina a Guerra do Paraguai – surge, no Rio de Janeiro, o choro, inicialmente não propriamente um gênero, mas um conjunto instrumental e logo um jeito brasileiro de se tocar a música européia da época (...) Aos grupos instrumentais, geralmente formados de dois violões e um cavaquinho – uma evolução da “música dos barbeiros” – superpõe-se, agora, geralmente a flauta (...) Com o decorrer do tempo, essa composição de instrumentos passa a variar, mas sempre sobre a mesma estrutura básica. O gênero, ou melhor, o repertório, vai sendo enriquecido com a colaboração de novos músicos-compositores” (Vasconcelos, 1977: 13-14, grifo meu) Veremos ao longo de nossa análise que o próprio texto de Gonçalves Pinto salienta esta origem do choro, fazendo uma relação com o que ele denomina “nossos antepassados africanos” e a música dos barbeiros. O que se pode concluir destas buscas por etnogêneses é o fato de que não há como dissociá-las de categorias de discursos que procuram de alguma forma legitimar e conceder “autenticidade” ao choro, através de construções que procuram historicizá-lo e identificá-lo a partir de mitos de origem. Conforma salienta Bastos (1997), os discursos sobre as músicas tradicionais urbanas latino-americanas tenderiam sempre a identificá-las sob a égide das três raças – portuguesa, africana e ameríndia – onde o elemento índio seria “monolitizado e mais ou menos descartado” e o mundo negro-africano tratado genericamente como uma espécie de “infraestrutura ou sensibilidade (sob a senha de um ritmo obsessivamente binário) de uma musicalidade cuja superestrutura ou inteligibilidade (melodia, harmonia) é Ocidental ibérica (id:8). Esse processo de construção de discursos é realizado por musicólogos e acadêmicos, como os listados acima, mas também pela própria tradição 37 oral do choro, da qual nosso carteiro é um dos porta-vozes. O fato da filiação do choro com as músicas dos barbeiros se encontrar presente tanto no discurso de pesquisadores e musicólogos, como Vasconcelos e Tinhorão, quanto no de um instrumentistas populares da década de 1930 como Gonçalves Pinto, é algo bastante simbólico, que a meu ver salienta o quanto estes discursos de origem são “realimentados” por uma cadeia que envolve diferentes atores e estratos sociais ao longo do tempo. Cumpre agora identificarmos de que forma nosso objeto de estudos foi ele mesmo objeto de partida para estas mesmas cadeias de discurso de origem. 1.2.1) A leitura de “O Choro” pela geração “colecionista”: o fichamento de Jacob do Bandolim e os trabalhos de Ary Vasconcelos No que se refere à obra de Gonçalves Pinto, talvez a primeira pesquisa detalhada sobre o livro seja o fichamento elaborado por Jacob Pick Bittencourt, o Jacob do Bandolim. Bandolinista e compositor dos mais importantes das décadas de 1940 a 1960, Jacob foi também um destacado pesquisador da música brasileira, podendo ser colocado ao lado de Almirante e Mozart de Araújo na “geração colecionista” descrita em tópico anterior. Tendo iniciado sua carreira tocando na Rádio Mauá em 1947, Jacob logo ganha um programa exclusivo como solista, onde atende inclusive a pedidos de ouvintes. Sua correspondência revela que muitos destes ouvintes lhe enviavam partituras de autores antigos, o que fez com que Jacob iniciasse a constituição de um acervo de partituras que é hoje uma das maiores coleções do gênero, principalmente no que diz respeito ao século XIX e às primeiras décadas do século XX (analisaremos com mais detalhes esta coleção no capítulo quatro). 38 Pesquisas por mim realizadas em seu acervo, hoje parte do Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro, revelaram uma pasta catalogada como “Fichamento do livro ‘O Choro’”. Contendo cerca de 70 páginas (datilogradas e manuscritas) o fichamento é uma espécie de índice onomástico e índice de assuntos abordados no livro, catalogados com o “rigor científico” característico desta geração. Além de criar um índice onomástico, Jacob elabora listagens com tópicos diversos, como a relação de bairros, cemitérios, bandas, clubes, sociedades dançantes e carnavalescas, gírias, locais de festas e pontos de encontro, locais de trabalho, instrumentos, etc., sempre relacionando os temas às pessoas citadas. Aparentemente este trabalho foi elaborado na década de 1960: uma das folhas utilizadas como rascunho manuscrito por Jacob é de uma agenda datada de 1961. Certamente o trabalho não visava à publicação e permaneceu inédito até os dias atuais, mas ele é particularmente importante por dois motivos: em primeiro lugar, o fichamento nos permite ter uma “visão panorâmica” dos dados propiciados pelo livro, informações que ficam dispersas pela estrutura fragmentada da narrativa. Em segundo lugar, abre caminho para uma série de estudos “histórico-sociais” que vão identificar o livro como um vasto cabedal de informações que serão “interpretadas” por analistas de modo a comprovar relações e esquemas sociais. Figura 1 – Fichamento de O Choro por Jacob do Bandolim – exemplo de uma página 39 Este trabalho de fichamento será analisado com maiores detalhes no próximo capítulo: por ora pretendo apenas oferecer uma “visão panorâmica” das categorias utilizadas por ele. A tabela 1 foi elaborada por mim justamente com este propósito: o de demonstrar quais as categorias criadas e quantas ocorrências existem em cada uma delas. Saliente-se novamente que Jacob relacionava cada pessoa citada no livro à categoria em questão: assim, sabemos que são 29 os bairros citados ao longo da obra, e temos o nome de cada uma das pessoas que habitavam cada bairro (ver fig. 1). Através da listagem sabemos que são citados bairros de todas as regiões da cidade, incluindo as partes “nobres” (como Botafogo, Copacabana e Gávea), passando pelo centro e região portuária (Cidade Nova, Gamboa e Saúde), zonas norte e oeste (Vila Isabel, Andaraí, 40 Jacarepaguá) e subúrbios (Piedade, Engenho de Dentro, etc). A categoria “bandas, clubes, etc” inclui tanto bandas militares e civis (como a banda do Corpo de Bombeiros e do Arsenal de Guerra) como agrupamentos sociais carnavalescos e “sociedades dançantes” (orquestras de ranchos como o “Ameno Resedá”, “Flor do Abacate”, o “Pragas do Egito”, este último fundado pelo próprio Gonçalves Pinto, etc.). Há duas categorias que se referem à vida profissional dos biografados: o item “locais de trabalho” inclui repartições públicas como Correios e Telégrafos, Alfândega, Ministério da Guerra, etc. Nem sempre fica claro no texto de Gonçalves Pinto qual a função que o biografado exercia nestas repartições – normalmente ele nomeia as hierarquias funcionais daqueles empregados nos Correios, sem dúvida por ser ele mesmo carteiro. A outra categoria, “profissões”, parece estar ligada a atividades liberais como jornalistas, médicos, tipógrafos e mesmo palhaços. Por oposição à “vida profissional” há uma categoria intitulada “Locais de Festas, pontos de encontro etc.”, em que são arrolados 46 itens que determinam espaços de sociabilidade em torno da música: praças, confeitarias, lojas de músicas e mesmo casas de pessoas. Há outra categoria que de certa forma se confunde com esta: é a denominada “Ponto dos chorões”. Ao contrário das outras categorias anteriores, que foram nomeadas por Jacob e cujos itens se encontram de forma esparsa através do livro, esta categoria é original do autor: na página 95 do livro, sob o título “Ponto dos Chorões”, o autor estabelece uma listagem dos lugares onde “os grandes chorões” eram procurados por aqueles que promoviam ocasiões festivas. Tabela 1 – Fichamento de O Choro por Jacob do Bandolim – Categorias utilizadas Categorias Número de ocorrências 41 Bairros 29 Bandas, Clubs, etc 34 [inclui bandas militares e civis, bandas de ranchos e sociedades carnavalescas, etc] Cemitérios 2 Gírias, significados, etc. 9 Locais de Festas, pontos de encontro, etc. 46 [inclui casas de pessoas, praças, confeitarias, lojas de músicas, etc] Locais de trabalho 25 [inclui repartições públicas como Telégrafos, correios, etc.] Músicas [nomes de músicas citadas no livro] 84 Profissões 9 [não inclui funcionários públicos mas profissionais liberais como médico, jornalista, etc] Cantores 123 [inclui tanto cantores profissionais do rádio, como Carmen Miranda, como chorões que também cantavam] Atores 12 Poetas, declamadores, etc 16 Instrumentistas - Cavaquinho 38 Instrumentistas - Violão 72 Instrumentistas - Flauta 109 Instrumentistas - Bandolim 7 Instrumentistas - Banjo 1 Instrumentistas - Bombardão 6 Instrumentistas - Bombardino 13 Instrumentistas – Cítara 2 Instrumentistas - Clarinete 11 Instrumentistas – Contrabaixo 1 42 Instrumentistas - Fagote 1 Instrumentistas – Guitarra ? 1 Instrumentistas – Harmônica ou Harmonium 3 Instrumentistas – Oficleide 22 Instrumentistas - Oboé 2 Instrumentistas - Ocarina 1 Instrumentistas - Órgão 1 Instrumentistas - Piano 19 Instrumentistas - Piston 14 Instrumentistas - Pandeiro 1 Instrumentistas - Requinta 4 Instrumentistas - Saxofone 10 Instrumentistas - Trombone 18 Instrumentistas - Violino 9 Instrumentistas - Violoncelo 1 Instrumentistas – Viola 1 No que se refere aos instrumentistas, o fichamento nos dá uma visão muito clara da popularidade de instrumentos como a flauta (109 instrumentistas), violão (72) e cavaquinho (38), mas também se pode observar a grande quantidade de cantores, o que sugere que as práticas musicais do choro sempre envolveram o canto e seus gêneros relacionados, como a modinha e o lundu. A listagem de cantores mistura tanto profissionais, que tinham carreira no rádio na década de 1930, como Carmen Miranda e Francisco Alves, como instrumentistas de choro que também cantavam nas festas. Instrumentos de metal, como trombones, trompetes e oficleides também aparecem de 43 forma significativa na listagem, por oposição a instrumentos exóticos como ocarina (1 ocorrência), cítara (2), harmonium (3). Como dito, este trabalho de fichamento elaborado por Jacob será analisado de forma detalhada ao longo da tese. Por ora, cumpre apenas assinalar que este foi o primeiro trabalho sistemático que encontrei a respeito do livro; aliás, tudo indica que foi a primeira abordagem sobre o livro após o seu lançamento em 1936. Minhas pesquisas em fontes primárias (jornais, revistas etc.) sobre a recepção da obra nas duas décadas posteriores ao seu lançamento não encontraram qualquer referência a ela: como veremos no segundo tópico deste capítulo, neste sentido o livro pode ser caracterizado, pelo menos até a década de 1960, como uma obra de “contramemória”. Escrito por um carteiro que era praticamente um anônimo quando comparado a celebridades como Orestes Barbosa e Francisco Vagalume (jornalistas de renome no cenário da época) e Catulo da Paixão Cearense, ele terá pouca repercussão até a década de 1970, quando, graças ao trabalho de uma série de mediadores, passará de “contramemória” para “memória oficial do choro” – processo que será analisado com maior profundidade no capítulo cinco, dedicado às leituras da atualidade sobre o livro. Ora, ainda que se possa dizer que o fichamento de Jacob inaugura de alguma forma este processo de “recuperação” do livro, ele ficou também restrito ao acervo particular do bandolinista até os dias atuais. Na realidade, o principal responsável pela redescoberta da obra será o jornalista e pesquisador Ary Vasconcelos, não apenas pelo fato de ter sido o responsável pela reedição do livro em 1978 pela FUNARTE, mas porque se serviu dele como base e inspiração para uma linha de estudos que se estendem por uma série de livros de sua autoria como Panorama da Música Popular Brasileira, Raízes da Música Popular Brasileira, A nova música da República Velha, e, especialmente, Panorama da Música Popular Brasileira na Belle Époque. Esta linha de 44 estudos previa o estabelecimento de uma espécie de catálogo histórico e biográfico de músicos, instrumentistas, compositores e letristas populares. Exatamente como no livro de Gonçalves Pinto, as obras citadas acima trazem “verbetes” sobre diversas personalidades musicais; entretanto, o objetivo é fazer (ao contrário da obra do carteiro) um fichamento “científico”, provendo o leitor do máximo de informações possíveis sobre a biografia de cada personagem. Este gigantesco esforço de catalogação, que se assemelha a uma espécie de arqueologia musical, visava um fim específico: construir uma história dos músicos populares situados à margem da história da música brasileira, em uma perspectiva que foi sem dúvida aberta pelo livro O Choro, ainda que Vasconcelos lamentasse o fato de Gonçalves Pinto não fosse “culturalmente equipado” para esta tarefa: Foi realmente lamentável que tantos vultos históricos importantes não tivessem encontrado, a tempo e a hora, o seu biógrafo, ou, pelo menos, quem deixasse indicações precisas aos que, no futuro, quisessem fixar essas vidas. Que pena que Alexandre Gonçalves Pinto, por exemplo, não estivesse culturalmente equipado para a tarefa a que, com tanto amor e dedicação, se lançou! (Vasconcelos, 1977: 28-29). Boa parte do esforço de Vasconcelos, particularmente em obras como Panorama da Música Brasileira na Belle Époque, será o de tentar complementar os dados biográficos dos músicos retratados em O Choro, muitas vezes a única fonte de informação sobre estes. Este processo envolvia buscas nem sempre bem-sucedidas a outras fontes que pudessem complementar as informações do “Animal”, que aliás são extensamente citadas no livro (com algumas exceções onde o autor efetivamente conseguiu complementar os dados dos biografados) e uma tentativa de localizar no tempo e no espaço estas figuras, ainda que de forma aproximada: Não me restou outro recurso, com os poucos elementos disponíveis, do que fazer corresponder a cada nome – ou fragmento de nome, apelido, diminutivo – uma data aproximada, um local possível de nascimento e morte, naturalmente, nesses casos, colocando sempre um ponto de interrogação (op. cit. 28) 45 A ideia, em outras palavras, era “arrumar a casa”, no sentido de não deixar que figuras históricas ficassem “flutuando irrealmente no espaço e no tempo”, ainda que este processo envolvesse aproximações e suposições históricas. O foco, entretanto, residia mais nas informações biográficas sobre os “atores musicais” do que em análises históricas e sociais minuciosas sobre música popular - embora o autor não se furtasse a fazê-las. É bastante significativo observar que a maioria dos livros de Vasconcelos é divida em duas partes: na primeira, de menor extensão, o autor faz uma contextualização histórica do período a ser abordado. Esta contextualização envolve revisão e crítica bibliográfica, por um lado, mas também novas propostas de periodizações históricas da música popular (sendo uma das mais importantes a proposta de divisão de “gerações” do choro). A segunda parte, de maior extensão e de caráter por assim dizer enciclopédico, é sempre dedicada às biografias, apresentadas em formas de verbetes da mesma forma que o livro de Gonçalves Pinto (buscando-se naturalmente, um viés “científico” calcado na metodologia histórica tradicional). Ainda que reconhecendo que a falta de referências impedia uma visualização de todas as peças deste quebra-cabeça, o autor agia na perspectiva de que seus estudos pudessem ser complementados por futuros pesquisadores ou mesmo por colaboradores eventuais amealhados entre seus leitores (familiares ou amigos dos músicos antigos, etc.). Em suma, podemos dizer que o livro de Gonçalves Pinto é redescoberto em grande parte devido ao trabalho de Ary Vasconcelos; em contrapartida, boa parte da obra deste pesquisador é baseada na premissa aberta pelo livro do carteiro. É a partir dele que se abre a perspectiva de um rico filão de estudos sobre a música popular: o resgate dos músicos e instrumentistas populares marginalizados pela história. 46 1.2.2) Tinhorão e a história social do choro Importante contribuição ao estudo do choro foi dada por José Ramos Tinhorão em seus textos publicados a partir da década de 1970 tendo por diretriz uma história social da música popular brasileira, e mais especificamente tomando por base o materialismo histórico, como apontado em tópico anterior. Dois textos são particularmente importantes para o presente estudo. O primeiro é o capítulo intitulado “A nacionalização sonora pelo choro” da já mencionada História Social da Música Popular Brasileira (1998a); o outro é intitulado simplesmente O Choro e faz parte do livro Música Popular: um tema em debate (1998b). Estes textos me interessam particularmente pelo fato de que neles o livro de Gonçalves Pinto funciona como verdadeira “chave” para que o autor possa analisar as condições históricas e sociais do Rio de Janeiro de fins do século XIX que permitiram o aparecimento do choro. Ao mesmo tempo, as características naïves do livro do carteiro são ressaltadas: Em 1936 apareceu no Rio de Janeiro, impresso na Tipografia Glória, da Rua Lêdo, n. 20, um livro de uma enorme ingenuidade, mas que se tornaria, surpreendentemente, o maior repositório de informações sobre centenas de compositores e músicos dos antigos choros cariocas. Chamava-se o livro, vendido ao preço de quatro mil réis (a tiragem foi de dez mil exemplares), O Choro – reminiscências dos chorões antigos, e seu autor assinava-se Alexandre Gonçalves Pinto. Como documento sociológico, o livrinho do bom Alexandre revela-se precioso desde sua apresentação (Tinhorão, 1998b: 93, grifos meus). Convém assinalarmos de início dois fatos: em primeiro lugar, como já dito, o analista enfatiza os aspectos “primitivos” do livro e de seu autor. O leitor toma conhecimento de um objeto – um livro, no caso – a partir de uma contradição: por um lado seria “um livro de uma enorme ingenuidade”, mas ao mesmo tempo – “surpreendentemente” – muito importante como “documento sociológico”. A condescendência do analista para com o autor do livro também é bastante clara na referência ao “livrinho do bom Alexandre”. Neste simples adjetivo “bom” já se passa ao 47 leitor a ideia de que não se pode levar o livro e nem o seu autor muito a sério; fica subentendido o fato de que ambos, livro e autor, são ingênuos, ou pelo menos, “bons primitivos”. Entretanto – e aí entra o segundo fator a ser ressaltado – a partir da análise das entrelinhas históricas e sociais presentes no texto, o analista descortinará ao leitor a importância do livro como “documento sociológico”. Em última análise, poderíamos dizer que o texto em si não importa muito, mas sim as entrelinhas desveladas pela análise. Obviamente exagerei um pouco no “estranhamento” da análise de Tinhorão para ressaltar esta característica básica das interpretações histórico-sociais, conforme apontado por Hennion (2002: 126): a interrupção da relação sujeito-objeto artístico por uma espécie de “tela social” necessária para que o leitor compreenda esta projeção recíproca. Em outras palavras, a análise social da arte consistiria em substituir os objetos analisados pelos “mecanismos coletivos de produção subterrânea mediante os quais os fazemos aparecer” (id., ib.). O que importa então não é o “livrinho” ingênuo do “bom Alexandre” mas sim as condições históricas e sociais, desveladas pela análise, que permitiram o aparecimento das práticas musicais descritas no livro. Tais condições histórico-sociais, diga-se de passagem, são brilhantemente descortinadas por Tinhorão nos dois trabalhos citados, tornando-os referências obrigatórias nos trabalhos acadêmicos sobre o choro a partir da década de 1990. O autor apresenta o período que compreende o final do século XIX e início do XX como um período de intensas modificações políticas no país, modificações que acarretaram transformações expressivas no cenário urbano da capital federal. Fatores econômicos como o aumento da exportação de café a partir de 1869 e os primeiros ensaios de industrialização no país permitiram uma série de melhoramentos na capital. Entre estes estavam o telégrafo (1852), as primeiras linhas da estrada de ferro entre Rio e Petrópolis 48 (1855), o sistema de bondes puxados a burros em 1859, o gasômetro para iluminação da cidade a gás em 1860, obras de canalização de esgotos em 1864, primeira linha telefônica em 1877 e, finalmente, luz elétrica em 1879. Tais modificações se intensificariam na década seguinte com dois acontecimentos políticos marcantes: a abolição da escravatura e a proclamação da República, fatores decisivos para o aparecimento de uma nova e mais complexa estrutura de divisão de trabalho. Ainda segundo Tinhorão, este fato se traduziria: no aparecimento, ao lado da moderna figura do operário industrial, das camadas algo difusas dos pequenos funcionários de serviços públicos —repartições civis e militares, Correios e Telégrafos, Alfândega, Casa da Moeda, Arsenal da Marinha, Estrada de Ferro Central do Brasil —, e de empresas particulares da área dos transportes urbanos, da produção de gás e da iluminação pública (Tinhorão, 1998a: 194). É nesta nova classe social, representada por estes “pequenos funcionários”, que o choro, segundo Tinhorão, se desenvolveria: sem contar com um espaço próprio no acanhado quadro social herdado do império – representado pela antiga divisão entre senhores e escravos –, estas novas camadas sociais tiveram que criar espaços próprios de participação na vida social, o que incluía certamente novas formas de lazer. Assim, segundo o analista, enquanto as camadas mais abastadas iriam procurar “equiparar-se à pequena burguesia européia”, as camadas médias e baixas passariam a encontrar diversão nos bailes familiares produzidos por músicos amadores que tocavam instrumentos populares como a flauta, o violão e o cavaquinho. Em um período em que a produção de discos ainda era incipiente e a rádio ainda não existia, estes instrumentistas populares cumpririam o papel de levar diversão às camadas formadas por pequenos funcionários públicos; o virtuosismo de alguns destes músicos, segundo o autor, “correria de boca em boca, até firmar-se, espontaneamente, no consenso da população, o seu conceito de grandes tocadores” (Tinhorão, 1998b: 101). 49 Ora, todo este quadro social é, sem dúvida, corroborado pelo livro de Gonçalves Pinto, e Tinhorão utiliza o texto para comprová-lo. Assim, o analista destaca, com precisão estatística, que dos cento e vinte e oito músicos com profissão definida no livro, cento e vinte e dois músicos eram funcionários públicos de diversas instituições (bandas militares, repartições públicas federais, etc) sendo quarenta e quatro provenientes dos Correios e Telégrafos. É ressaltado ainda o fato de que, em sua quase totalidade, estes músicos não eram remunerados nos bailes populares em que tocavam (casamentos, aniversários, batizados, etc.); o “pagamento” se dava apenas através dos comes e bebes tão largamente citados no livro de Pinto, como se verá no segundo capítulo deste trabalho. Também muito importante é a constatação de que as práticas musicais do choro dificilmente chegavam às camadas mais baixas da população: o autor salienta o fato de que a simples possibilidade de aquisição de um instrumento musical representava “prova de um poder aquisitivo que as maiorias (onde a pobreza confrontava às vezes com a miséria) estavam longe de alcançar” (Tinhorão, 1998a: 201). Assim, as práticas musicais do choro, realizadas em grande parte em festas noturnas, só eram possíveis graças à “relativa suavidade” dos empregos públicos, com seus “horários flexíveis”. Mais problemática, entretanto, é a afirmativa de Tinhorão sobre a relação entre as práticas musicais do choro e questão “racial”: após constatar que o choro não era acessível à maior parte da população de mais baixa renda, representada em grande parte por negros recém-libertos, o autor afirma que não teria existido “qualquer preconceito de cor” entre estes primeiros chorões, pelo fato de que o “mestiçamento” aparecia em grande escala nestas camadas médias que seriam o habitat natural do choro. E para comprovar este fato o autor usa uma passagem do texto de Gonçalves Pinto em que este, descrevendo um músico negro, se referiria à cor da pele 50 apenas para acrescentar “mais um dado à figura do biografado”. A descrição de Gonçalves Pinto é a seguinte: João da Harmônica era de cor preta, conheci-o em 1880 morando na Rua de Santana nos fundos de uma rinha de galos de briga. Exercia a arte culinária, bom chefe de família e excelente amigo e grande artista musical, conhecido chorão pela facilidade com que executava as músicas daquele tempo em sua harmônica Embora a passagem seja bastante elogiosa ao músico descrito, não há nada nela que nos permita fazer a afirmação generalizante de que não havia “preconceito de cor” entre os músicos de choro. Este trecho exemplifica, aliás, um dos problemas recorrentes nas análises sobre o livro de Gonçalves Pinto: como procurarei demonstrar nos capítulos subseqüentes, as descrições do carteiro procuram caracterizar o “grupo do chorões” da forma mais homogênea e “positiva” possível, omitindo ou atenuando (conscientemente ou não) possíveis heterogeneidades comuns em qualquer agrupamento social, como rivalidades e críticas. Esta não será a postura de outros cronistas da época, como Catulo da Paixão Cearense, por exemplo, que não hesitará em formular descrições críticas dos instrumentistas da época, como será mostrado no terceiro capítulo deste trabalho. De qualquer forma, a análise de Tinhorão aponta para o choro como uma construção de um grupo social específico: as camadas médias do Rio de Janeiro surgidas a partir do início da industrialização e do desdobramento de um “funcionalismo público” surgido a partir da proclamação da república. Não há dúvida que este é um fato corroborado por diversas fontes históricas, inclusive o livro de Gonçalves Pinto, fartamente usado como prova dos esquemas sociais citados nas análises. Entretanto, o que pode ser apontado como crítico na análise de Tinhorão e no seu uso da narrativa de Pinto? Alguns fatores podem ser apontados. Em primeiro lugar, as relações entre música e classes sociais são apresentadas ao leitor como “dados” preexistentes, e o processo pelo qual música e sociedade se inter-relacionam não ficam 51 totalmente claros. O choro surge no vácuo de uma classe social recém-formada que não dispunha de opções de lazer em um quadro social recém implantado pela república: não tendo opções musicais para o seu divertimento, esta nova classe procura imitar as práticas musicais das elites “ao som da música mais comodamente posta ao seu alcance: a dos tocadores de valsas, polcas, schottischs e mazurcas à base de flauta, violão e cavaquinho” (op. cit: 195). Ou seja, seria uma espécie de apropriação particular da música de uma classe alta por uma classe média: entretanto não há maiores informações sobre como se dá este processo. Ilações sobre as relações entre músicos e classes sociais são por vezes feitas a partir de dados “ocultos” ou não compreensíveis para os leitores, como é o caso da afirmação sobre a ausência de preconceito de cor entre os músicos de choro citada acima. Em segundo lugar, estas classes médias são apresentadas como um grupo homogêneo, e neste ponto Tinhorão parece aceitar sem maiores questionamentos a descrição de Gonçalves Pinto sobre os chorões como um grupo coeso, sem heterogeneidades. Este grupo seria ao mesmo tempo homogêneo e “mestiço”, ficaria situado entre as elites e as camadas mais pobres da população em uma espécie de limbo cultural; sem ter, por um lado, acesso à alta cultura dos teatros e dos concertos de ópera e nem mesmo aos espetáculos de classe média alta dos cabarés que apresentavam música ligeira européia (como era o caso do Alcazar Lyrique da Rua da Vala, citado por Tinhorão como local de apresentação das lorettes francesas) e sem terem sido, por outro lado, influenciados por uma indústria cultural que ainda não existia (no caso do rádio) ou ainda era por demais incipiente (no caso do disco), este grupo social cria, numa espécie de passe de mágica, a música mestiça que seria considerada nacional por excelência. Em outras palavras, o grupo social responsável pelo nascimento do choro se torna uma espécie de “povo puro”, como aqueles míticos povos idealizados pelos 52 folcloristas: sem dúvida é esta a leitura que Tinhorão faz do “bom” (por ser uma mescla de “puro-ignorante-autêntico”) Alexandre Gonçalves Pinto. Em ambos os textos citados, Tinhorão conclui sua análise mostrando as condições históricas e sociais responsáveis, segundo ele, pelo fim deste período que poderia ser caracterizado como o “choro antigo”. Para o autor, a partir da década 1920, o advento do capitalismo industrial com seus avanços tecnológicos e a popularização do samba como “avassaladora” contribuição das “camadas baixas” da população, por um lado, e o interesse da classe média pelos jazz-bands norte-americanos, por outro, fizeram que os músicos chorões percebessem que “seu tempo havia passado” (Tinhorão, 1998a: 202). Descontadas as posições extremistas do autor, que aborda a novidade do jazz-band como “um primeiro sinal de alienação forçada pela realidade da dominação econômico-cultural que se instalava no país”, podemos afirmar com relativa segurança que o final da década de 1920 marca a transição de um período em que as práticas musicais do choro estavam ligadas a músicos diletantes (que tocavam em festas, bailes, casamentos, etc., mas que tinham efetivamente outras profissões) para um período de profissionalização do músico de choro, do qual a geração de Pixinguinha e Donga será a maior representante. Não há dúvida que o livro de Gonçalves Pinto será em parte uma espécie de pranto de saudade por este período passado; entretanto é preciso assinalar alguns dados importantes: 1) a análise de Tinhorão estabelece uma espécie de turning point da história do choro; por um lado haveria uma espécie de “choro antigo”, o choro do século XIX até fins da década de 1920, caracterizado pelo diletantismo acima descrito; por outro, o “choro moderno”, fruto da profissionalização dos músicos e da fusão com elementos “estranhos” como a jazz-band, o rádio, o disco, fusões com outros gêneros etc. 2) há na análise do “choro antigo” uma tentativa de caracterizá-lo como “puro”: ele representaria uma fusão positiva (porque fora do eixo da indústria cultural) 53 das influências européias e de influências “rurais” (como a música dos barbeiros); este seria o verdadeiro processo de “nacionalização sonora pelo choro” que dá nome a um dos textos citados. Tinhorão se apropria então do texto de Gonçalves Pinto para caracterizá-lo como uma espécie de “bom primitivo” que pranteia este “tempo perdido”; entretanto, o discurso do carteiro, como se verá ao longo deste trabalho, pode ser caracterizado como uma via de mão dupla: em parte pranteia o tempo passado e em parte saúda o advento do rádio e aplaude os músicos de choro que fazem sucesso pelo rádio; ele é, em última análise, um discurso mediador entre os dois períodos do choro. Mais duas observações me parecem importantes: o diletantismo (porque não ligado a atividade profissional-musical) característico deste “choro antigo” continuou ao longo da segunda metade do século XX de forma paralela ao movimento de profissionalização do choro e continua até hoje; este fato pode ser comprovado através dos diversos “clubes de choro” – em atividade em várias regiões do país, fundados e mantidos em muitos casos por não-profissionais –, além das rodas de choros mantidas até hoje por não-profissionais. Por outro lado, o diletantismo destas primeiras gerações foi freqüentemente confundido pela bibliografia (inclusive a acadêmica, como apontaremos no próximo tópico) com uma etapa “primitiva” e, portanto, “menos sofisticada” (Garcia 1997: 99), no que se refere ao seu conteúdo musical. Esta é uma visão equivocada, fruto em parte do desconhecimento do repertório destes primeiros músicos de choro, mas também resultado de uma tentativa de se estabelecer uma espécie de “linha evolutiva” do gênero, que identificaria gerações mais modernas como mais desenvolvidas em relação às primeiras (Pixinguinha seria então visto como “superior” a Callado, por exemplo). Voltaremos a este tópico posteriormente. De tudo o que foi dito acima em nossa análise dos textos de Tinhorão podemos concluir que, não obstante a importância do aparato da história social para a 54 compreensão de práticas musicais, esta ferramenta não está isenta de estabelecer reducionismos como os apontados acima. Mais grave do que os reducionismos, entretanto, questiona-se a oclusão dos mediadores e seus discursos sobre as práticas musicais em favor da “revelação” das condições sociais e históricas que, na visão de analistas como Tinhorão, seriam as únicas causas de seu aparecimento (tanto das práticas musicais quanto dos mediadores). Em última análise, pode-se perguntar: como analisar a paixão de Gonçalves Pinto e seus parceiros pelas práticas sonoras por ele descritas sem reduzi-la unicamente a uma história-social? 1.2.3) As teses acadêmicas sobre o choro Resta-nos agora fazer uma análise das teses acadêmicas sobre o choro, em sua maioria escritas a partir da década de 1990, e compreender de que modo o livro de Gonçalves Pinto foi utilizado e interpretado por estes trabalhos. Pesquisa no banco de teses da Capes6 com a entrada “choro” revelou 61 dissertações de mestrado e 11 teses de doutorado sobre o gênero ou afins. Boa parte destes trabalhos versa sobre compositores específicos, o uso de determinados instrumentos no choro (análises do violão de 7 cordas ou do saxofone, por exemplo), ou ainda possibilidades didáticas do gênero em educação musical. Foge ao objetivo desta tese fazer uma análise exaustiva de todo este material, mas apontaremos de forma sucinta os principais trabalhos que têm por foco o choro de maneira mais ampla. Um primeiro trabalho a ser analisado é a tese de doutorado de Marcelo Verzoni, intitulada Os primórdios do choro no Rio de Janeiro. A partir de uma análise das biografias e obras de três compositores das primeiras gerações do choro (Joaquim 6 Pesquisa realizada em 30/4/2010 no site da Capes http://www.capes.gov.br/servicos/banco-de-teses 55 Callado, Chiquinha Gonzaga e Ernesto Nazareth) o autor realiza uma “confrontação de posicionamentos sobre os primórdios do fenômeno ‘choro’” (Verzoni, 2000: 7). O objetivo específico seria o de demonstrar que os compositores citados não classificaram suas obras como choros, mas sim através das designações de gêneros da música européia como polca, schottischs, quadrilhas etc; e que a designação “choro” teria sido adotada a partir de pressão dos editores de partituras a partir da década de 1920. No primeiro capítulo o autor aborda a questão da etimologia da palavra choro através de uma revisão de autores como Mozart de Araújo, Luís da Câmara Cascudo, Ary Vasconcelos e Marisa Lira, indicando as recorrências e discordâncias nas concepções sobre a palavra – tema já citado em tópico anterior, e que será também recorrente nas teses acadêmicas sobre o choro, conforme veremos. Após constatar que, ainda que a definição etimológica seja controversa, a maioria dos autores classifica o choro como um modo brasileiro de interpretar a música européia, Verzoni questiona então, com bastante propriedade, qual seria a substância musical deste “jeito de tocar que transformaria polcas em choros” (op. cit, 12). Entretanto, os capítulos que se seguem não fornecem pistas sobre a questão levantada: o desenvolvimento do trabalho segue um perfil biográfico focado nos três compositores citados – Nazareth, Chiquinha e Callado. Através de uma listagem de obras destes compositores, o autor procura demonstrar que pouquíssimas vezes as composições eram classificadas por seus próprios autores como “choros”. Certamente este é um fato histórico, já bastante apontado pela bibliografia tradicional: como já citado, até a década de 1920, pelo menos – e é difícil precisar uma data exata desta transformação – a palavra choro designava o conjunto ou o lugar onde se tocava esta música. No entanto, a tese de que a adoção do nome “choro” teria se dado exclusivamente por pressão da “indústria cultural” é sem dúvida infundada, já que o 56 autor em nenhum momento apresenta dados concretos que comprovem esta prática. Da mesma forma, as análises das biografias dos compositores citados se baseiam, em grande parte, mais em suposições do autor do que em análises de fatos históricos que as comprovem. Assim, Nazareth é apontado como um compositor que não teria tido contato com o ambiente do choro: Achamos curioso o fato do nome de Ernesto Nazareth aparecer regularmente em listas de compositores que teriam produzido músicas classificadas genericamente como choros. Sabemos que nunca fez parte de grupos de chorões e que, em seus manuscritos, não chamava as suas peças de ‘choro’. Ao que tudo indica, não se sentia pertencente àqueles grupos. É bem provável que se considerasse um músico mais refinado (op. cit. 61, grifo meu) Da mesma forma, o fato de Nazareth ter escrito composições em tonalidades consideradas “difíceis” pelo autor, como sol sustenido menor, o colocaria “numa posição mais próxima dos compositores de formação acadêmica” (op. cit 71). Reducionismos deste tipo, envolvendo questões como “erudito” por oposição ao “popular” estão presentes em vários trechos do trabalho: mais do que apontar simplesmente erros históricos, o que se questiona é a validade de argumentos expostos sem comprovações que os sustentem. O estudo de Thomas Garcia The Brazilian Choro: music politics and performance de 1997, tem como objetivo analisar “o desenvolvimento histórico e estilístico do choro de 1870 a 1950, do seu desenvolvimento inicial até o seu desaparecimento do cotidiano musical do Brasil.” A ênfase do trabalho reside na história da “prática de performance”, algo que constituiria, segundo o autor, uma lacuna na bibliografia sobre o gênero. E de fato este é um dos primeiros trabalhos acadêmicos a focar no aspecto da análise de gravações de choro de diversos períodos. Entretanto, a tese segue em grande parte o modelo tradicional da bibliografia musical popular brasileira, caindo por vezes nos mesmos reducionismos raciais e em afirmativas questionáveis sobre os mitos de “origem”, já devidamente apontados em tópico anterior. 57 Assim, na introdução o autor reafirma o conceito clássico do choro como sendo “originalmente um estilo de se tocar danças populares de origem européia – como a polca, a valsa e o schottisch – praticada por músicos amadores”, sendo que posteriormente este estilo se transformaria em gênero musical, graças à “influência da música africana e os gostos locais” (Garcia, 1997: 6). Entretanto, sua análise neste tópico é predominantemente histórica, e o autor não explica de maneira palpável como se deu este processo de influência rítmica africana. E mesmo na parte histórica há afirmações errôneas, como a de que os escravos no Brasil (ao contrário de outros países, como os EUA) eram mantidos em seus grupos tribais e também “autorizados a manterem suas linguagens” (op. cit: 20). Os dois primeiros capítulos do trabalho são focados nas origens e definições do choro. No primeiro o autor faz uma revisão histórica de gêneros que poderiam ser considerados, segundo ele, antecessores do choro, em uma espécie de linha evolutiva que começaria com o lundu e a modinha, passaria por influências européias como a polca e o schottisch e terminaria com a nacionalização destes gêneros, que é visto como um processo de reação ou resistência à dominação européia (op. cit: 6). O autor não cita, entretanto, nenhum documento ou fragmento de discurso de época que comprove este viés. Em seguida há mais uma vez uma discussão sobre as origens etimológicas da palavra choro, com remissão à bibliografia já citada (Vasconcelos, Araújo, Cascudo, etc). Particularmente importante é a caracterização do choro como um gênero de transmissão oral por excelência; esta particularidade é repetida diversas vezes ao longo do trabalho: “Muitos dos melhores chorões, particularmente das primeiras gerações, não podiam ler música e baseavam-se unicamente na transmissão oral para aprender” (op. cit: 86); “músicos das primeiras gerações do choro (...) usualmente não podiam ler música, mas apesar disso desenvolveram a habilidade de improvisar “de ouvido”. (op. 58 cit.92); “em sua maior parte, entretanto, o choro das primeiras gerações não era escrito, mas passado oralmente de músico a músico, ocasionando os tipos de alteração que se poderia esperar deste jogo de ‘telefone sem fio’ musical” (pg 137). Conforme veremos no capítulo quatro, esta noção do choro como gênero de tradição oral por excelência precisa ser relativizada: veremos como o livro de Gonçalves Pinto nos ajuda a situar os acervos manuscritos de partituras dos instrumentistas de choro como uma importante forma de transmissão do gênero. Outro fator a ser questionado na análise de Garcia é a visão do que ele denomina early choro (“choro antigo”) como uma etapa “primitiva” em uma linha evolutivo-musical. Assim, a música destes primeiros chorões seria “relativamente pouco sofisticada em ritmo, harmonia, melodia e forma” (op. cit 159) e nomes como Callado e Anacleto de Medeiros são analisados depreciativamente como compositores de músicas para diletantes: este tipo de afirmativa, bastante problemática, revela o desconhecimento de um corpus de repertório das primeiras gerações do choro que era bastante comum até pouco tempo, mesmo entre músicos e intérpretes do choro. A tentativa de qualificar estas músicas como “pouco sofisticadas” leva o autor a conclusões evolucionistas no mínimo questionáveis: A conclusão inevitável é a de que o gênero choro evoluiu – ganhou estrutura – apenas quando perdeu suas associações com formas de dança européias características das primeiras gerações do choro, graças à combinação de influências do nacionalismo, o desenvolvimento do rádio e das indústrias de gravação e a subseqüente profissionalização do choro (op. cit.: 160; tradução minha). O livro de Gonçalves Pinto é mais uma vez visto sob um duplo aspecto; embora o autor reconheça que o livro “traz um grande número de informações”, críticas são feitas à “prosa desconexa” e à “falta de coesão gramatical”. Mais uma vez é enfatizada a importância da narrativa como “história social” mais do que como fonte de entendimento sobre as práticas musicais: 59 O livro de Pinto é, entretanto, válido como uma história social, mais do que como discussão sobre a música. Embora o autor dê informações a respeito de instrumentos e grupos de performance (assim como de habilidades de intérpretes individuais) pouca informação é oferecida sobre a ‘música em si’ (op. cit.: 138: tradução minha). A tese de Tamara Elena Livingston, Choro and music revivalism in Rio de Janeiro, Brazil (1973-1995) traz uma perspectiva diferente das teses anteriores. O enfoque é o que a autora chama de “revivalismo” do choro na década de 1970 que é abordado com um duplo objetivo: demonstrar de que maneira a música funciona como recurso chave para ações sociais e instrumento político, e realizar uma análise comparativa de diferentes “revivals” musicais como forma de teorizar sobre a natureza e a função deste fenômeno típico do século XX, apontado ao mesmo tempo como produto e reação contra a modernidade. Samuel Oliveira, em sua dissertação Heterogeneidades no Choro: um estudo etnomusicológico (2001), apresenta talvez pela primeira vez um estudo do gênero sob o aparato metodológico da etnomusicologia. Seu foco de estudo são as práticas musicais heterogêneas realizadas na Lapa, bairro boêmio do Rio de Janeiro, no começo do século XXI. Utilizando um quadro teórico calcado na noção de campo de Bourdieu, Oliveira procura entender como funciona a complexa teia de relações entre instrumentistas de choro, relacionados como pertencentes a diferentes “famílias” ou “clãs”. Na primeira parte de seu trabalho, o autor procura problematizar as diferentes escritas do que ele afirma ser “uma história oficial do choro”, realizando uma leitura crítica dos textos de Cazes (1998), Vasconcelos (1977) e Verzoni (2000), bem como depoimentos como o de Jacob do Bandolim. Apontando diferenças em cada discurso, Oliveira constata que uma pretendida “autenticidade chorística”, presente em diversos textos e depoimentos, seria na verdade uma construção ficcional, utilizada de diferentes formas por grupos ou 60 famílias do choro, cada qual procurando legitimar suas respectivas práticas (Oliveira, 2001: 172). O autor cunha o termo capital acústico, que se inscreveria dentro do conceito de capital simbólico de Bourdieu, para caracterizar uma série de instâncias legitimadoras pela qual os instrumentistas se valorizariam perante seu próprio clã e também perante outras famílias de chorões: entre estas instâncias estariam domínio de um determinado repertório, habilidade de improvisação, prêmios recebidos etc. Apesar de o autor citar eventualmente o trabalho de Gonçalves Pinto, não há uma reflexão maior (e certamente o trabalho não se propunha a isso) sobre sua possível influência no modo de percepção da história do choro por parte dos instrumentistas da atualidade. Contudo, a caracterização do choro como uma prática plural, que abrigaria em seu interior uma série de lutas internas e a ideia de que os instrumentistas de choro se agrupariam em estruturas familiares ou clãs, de acordo com suas posturas e discursos sonoros e verbais sobre o choro são, a meu ver, contribuições importantes para a compreensão da dinâmica do choro na atualidade. Como possível reflexão, entretanto, caberia pensar de que forma o trabalho seria lido pelos próprios “nativos” do choro, para nos servirmos de um termo próprio da antropologia. Ao apontar lutas internas e disputas entre as famílias de chorões, Oliveira chega a apresentar um quadro onde instrumentistas são nomeados e distribuídos entre os clãs construídos pelo autor; no entanto não há na dissertação nenhuma “voz” de retorno destes instrumentistas que conteste ou corrobore este quadro específico, o que nos leva, de forma mais ampla, ao problema das premissas da autoridade etnográfica tal como discutidas por Clifford (1998). Finalmente, cumpre analisarmos a tese A invenção da música popular brasileira: de 1930 ao final do Estado Novo, de Luiz Otávio Braga. Trata-se de um trabalho de grande importância para o presente estudo, uma vez que uma parte 61 significativa é dedicada ao estudo da obra de Gonçalves Pinto, e constitui um dos mais completos trabalhos sobre a obra do carteiro que pude encontrar na literatura acadêmica. Várias das questões desenvolvidas ao longo dos próximos capítulos foram delineadas na tese de Braga, que tem como foco a invenção da música popular brasileira. Para o autor, a construção da música popular urbana brasileira se dá em um período marcado por grandes inovações tecnológicas (advento de novas técnicas de gravação, intenso surto industrial, etc.) e por profundos questionamentos sobre conceitos como nacionalidade e miscigenação; neste conturbado período em que se configura uma sociedade de massas no Brasil, músicos populares teriam se articulado “com muito espírito de oportunidade em torno da invenção de uma tradição artística” que viabilizasse a música urbana como fator identitário da nação. Este processo envolvia, obviamente, tensões com outros setores da sociedade, como, por exemplo, as instâncias de criação “erudita”. Dividida em quatro capítulos, a tese apresenta de início uma reflexão sobre o impacto das inovações técnicas sobre a criação artística do período, incluindo em especial o processo de radiodifusão que possibilitou pela primeira vez a formação de uma sociedade de massas. O segundo capítulo é dedicado ao estudo da mediação cultural, que o autor identifica como “indispensável a todo o estudo de cultura popular”: são enfatizadas as relações de intertextualidade, e ao mesmo tempo as tensões, entre a intelectualidade brasileira, a criação “erudita” (representada por compositores como Luciano Gallet e Villa-Lobos) e a música popular urbana. O terceiro capítulo, dedicado à memória da música popular urbana do Rio de Janeiro, é o que mais nos interessa para o presente estudo: através de uma análise das obras de Francisco Vagalume, Orestes Barbosa e Alexandre Gonçalves Pinto, Braga procura salientar de que forma cada um destes três autores procurou “moldar” uma construção sobre memória privilegiando “explícita e cuidadosamente determinadas imagens em detrimento de outras”, em um 62 processo que envolvia escolhas que evidenciavam os “valores de época em relação aos autores e músicos dessa música urbana de que falam.” (Braga, 2002: 165). A análise da obra de Gonçalves Pinto aborda diversos aspectos como a questão da circularidade cultural no ambiente das práticas musicais do choro, apontada como resultado das aproximações entre diversos níveis de mediação intelectual e de estratos sociais distintos (id. 199); a relação aparentemente ambígua do carteiro com a indústria da rádio e do disco, por um lado pranteando um relativo “esquecimento” do choro, e por outro não perdendo a oportunidade de louvar suas aparições nos novos ambientes de mídia (id. 200); a discussão sobre as origens da música, presente no verbete “Alvorada da música”, que Braga identifica como uma filiação que o carteiro estabelece entre o choro e as tradições de festas populares animadas em grande parte por bandas formadas por escravos negros (id. 211-212); e finalmente, e talvez mais importante, o aspecto de construção e resgate da memória de instrumentistas populares que seriam a finalidade principal do livro (id. 196). Por todos estes aspectos, trata-se de um texto de grande importância, com o qual procurarei dialogar com mais intensidade ao longo do trabalho, e mais especificamente nos capítulos dois e três, dedicados à análise da estrutura do livro e às possíveis comparações com outras fontes de época. 2) Música, cultura e sociedade: questões metodológicas Neste tópico discutirei questões metodológicas que servirão como ferramentas teóricas para uma análise do livro de Gonçalves Pinto que nos leve além das discussões tradicionais sobre etnogêneses e transformações do choro e de uma sócio-história do gênero (ainda que, como se verá, estas discussões não deixem de ser abordadas ao longo 63 do trabalho). Como ponto de partida, parte-se da dupla premissa etnomusicológica da compreensão plural de música como “resultado das práticas que um grupo social particular define como ‘musicais’” por um lado, e pela aposta na inteligibilidade entre signos musicais e linguagem escrita, em que pese as “limitações inerentes à dupla tradução: entre culturas e entre os sistemas semíóticos sonoro-corporal, de um lado, e verbal, de outro” (Travassos; 2006). Este quadro se torna ainda mais complexo pela adição de uma perspectiva diacrônica, com todos os problemas metodológicos inerentes a uma análise que se desenvolve em períodos de tempos mais largos, como apontado por estudos da história cultural (Burke, 1998), sociológicos (Martins 2008) e antropológicos (v. por ex. Sahlins, 2008). Voltaremos a este tópico posteriormente. A proposta específica é discutir de que modo o livro do “Animal” engloba categorias de discurso de membros de grupos culturais da época reunidos através de signos sonoros específicos (as práticas musicais do choro), demonstrando, ao mesmo tempo, que tais signos não estavam restritos a uma única camada social, como nos quer apontar a história-social. Eles eram reapropriados de diversas formas e estas reapropriações circulavam entre diferentes classes em uma espécie de caleidoscópio cultural7. Não se pode ver, portanto, o livro de Gonçalves Pinto como simplesmente um representante da classe dos carteiros da época; ele o é, sem dúvida, mas seu discurso tem fragmentos de conceitos apropriados de outras classes. Ele formula (e se apropria de) ideias sobre as origens da música, política, nacionalismo, relação entre danças, signos musicais e sociedades, gírias de época, oralidade, relação com a indústria fonográfica, como se verá ao longo deste trabalho. Em todos estes conceitos, suas memórias refletem sua própria visão de mundo, mas também a de outros segmentos da sociedade da época; veremos ao longo dos capítulos dois e três como instâncias 7 Neste sentido este trabalho se insere na linha de estudos sobre cultura popular que utilizam o conceito de circularidade cultural para justificar trocas entre classes sociais como Burke, 1989; Ginzburg, 2006 e Bakhtin, 1987. 64 diversas, como o linguajar dos folhetins, as crônicas publicadas em jornais dos ranchos cariocas (particularmente a do Ameno Resedá, como veremos), conceitos de poetas considerados “semi-eruditos” como Catulo Cearense e intelectuais como Mello Moraes Filho influenciarão a escrita do carteiro. Para fundamentar esta análise faremos neste tópico uma breve revisão bibliográfica de textos sobre: a) nexos entre signos culturais e sociais; b) abordagens da memória social; c) questão da etnografia sob uma perspectiva diacrônica e; d) questão da circularidade cultural. 2.1) Signos musicais e sociais: a “eterna paralela” Como relacionar música, cultura e sociedade? Este é sem dúvida um dos temas principais da (etno) musicologia e dos estudos interdisciplinares entre música (e “artes” de uma forma mais ampla), história, sociologia e antropologia. Para De Nora (2000), a primeira tentativa de se estabelecer um “sistema geral”, que estabelecia nexos entre música e sociedade foi feita por Theodor Adorno. Dedicado a explorar a hipótese de que a organização musical é um simulacro da organização social, a obra de Adorno concebe a música como formativa de uma consciência social. Neste sentido, sua obra representaria o mais significativo desenvolvimento, no século XX, da ideia de que música é uma ‘força’ na vida social, um material de consciência e de estrutura social (op. cit. 2). Sem dúvida esta ideia teve reflexos em estudos musicológicos e etnomusicológicos que procuraram estabelecer “grandes nexos” ou “sistemas gerais” (que De Nora denomina “grand approachs”) que procurassem englobar em larga escala a relação entre músicas e sociedades. 65 Um exemplo claro na etnomusicologia seria dado por John Blacking que cunhou o termo “grupos sonoros” (sound groups) para designar um grupo de pessoas que compartilham uma linguagem musical comum, assim como ideias comuns sobre a música e seus usos. Tais “grupos sonoros” independeriam de fatores como constituição social, nacionalidade, idioma para a obtenção de uma identidade. (Blacking, 1995). Este conceito pode ser considerado um pouco vago em sua estrutura, particularmente num contexto de pós-modernidade em que a produção massiva faz com que as pessoas estejam expostas a uma diversidade imensa de gêneros musicais. Na base deste preceito está a ideia do símbolo musical como constituidor de uma estrutura social, no sentido de uma “musico-sociologia” ao invés de uma “sociomusicologia”: Se a música pode ser uma força ativa na constituição social, devemos procurar as evidências que mostrem como o uso de símbolos musicais ajudam a construir, assim como refletir, padrões culturais e sociais. Isso deve ser feito, entretanto, sem que se caia no simplismo da relação causa e efeito e levando-se em conta a possibilidade de que símbolos musicais podem ser transformados em outros símbolos, e vice-versa, sem a mediação da convenção social (Blacking, 1995). A grande questão apontada por De Nora, entretanto, reside em identificar de modo preciso o processo pelo qual signos musicais podem formatar estruturas sociais, sem que se caia em conceitos reificados como “cultura” e “sociedade” (op. cit. pg 3). Em outras palavras, se a demonstração clara do processo que cria nexos entre práticas sonoras e sociais não pode ser feita, então a análise periga, nas palavras da autora, “fundir-se à fantasia acadêmica e o nexo música-sociedade se torna ‘visionário’ ao invés de ‘visível’” (id. Ib). Dessa forma, a sociologia da música muitas vezes estaria vagando em uma espécie de espaço vazio entre duas paralelas: símbolos sonoros versus símbolos sociais. 66 De que modo, então, poder-se-ia estabelecer uma análise focada no processo que forneça nexos palpáveis entre estas duas paralelas? Richard Middleton, a partir uma releitura de Gramsci, utiliza o que ele denomina “princípio da articulação”. Neste princípio elementos sonoros estariam continuamente se articulando em diferentes contextos sociais, basicamente de duas maneiras: através da combinação de elementos sonoros já existentes em novos “modelos” e através da formulação de conotações diferentes para os mesmos elementos (Middleton, 1990). Como afirma Pablo Vila, “a teoria da articulação preserva a ideia da autonomia relativa dos elementos culturais e ideológicos, mas também insiste que os padrões combinatórios mediatizam padrões que existiriam na formação sócio-econômica através de uma luta contínua pela conformação do sentido.” (Vila, 1995). Ou seja, haveria uma via de mão dupla em que elementos sonoros podem gerar identidades sociais, mas fatores sociais também moldam identidades sonoras, num processo de “luta continua”, ou de “articulação contínua”. Sem querer negar a validade do princípio de articulação, Pablo Vila sugere que a discussão sobre identidades sonoras passa necessariamente por uma instância na qual o enfoque narrativo é primordial. Segundo ele a narrativa constitui uma categoria epistemológica que foi tradicionalmente confundida com um gênero literário, mas que seria um dos esquemas cognoscitivos mais importantes do ser humano (Vila, 1995). Através dela “moldamos” identidades utilizando uma série de argumentos (trama argumental, como ele a chama) para selecionar as características de nossa identidade sonora. Além disso, Vila chama a atenção para o fato de que a música popular não se expressa somente através do som, mas também através do que se diz a respeito dela. Citando também Middleton: É certamente claro que palavras sobre música — não apenas a descrição analítica, mas também a crítica, o comentário jornalístico e mesmo a conversa casual — 67 afetam seu significado. Os significados sobre ragtime, rock’n’roll ou punk rock não podem ser separados dos discursos que os rodeiam (Middleton, 1990:221) Desta forma, a posição de vários “eus discursivos” gerando tramas narrativas, muitas vezes contraditórias, sobre determinada prática musical, estaria na base desta “célula orgânica” que seria a identidade sonora. Esta definição parece bastante interessante por abrigar também as diferenças na constituição das identidades. Aquilo que chamamos “gênero” musical seria mais propriamente um feixe de discursos e muitas vezes de contradições sobre determinada práxis musical do que um conceito “fechado” e rígido que não abriga diferenças. Para além da relação entre gêneros musicais e identidades, Vila chama a atenção para o fato de que a narrativa representa também uma forma de ordenamento e construção de mundo: através da narrativa “o sujeito extrairia da infinitude de eventos que habitualmente envolvem toda a atividade humana aqueles que contribuem significativamente à história que está sendo construída.” (Vila, 1995) Este processo seria ao mesmo tempo sincrônico e diacrônico: para conferir sentido a uma situação do presente, é necessário que se lance mão de uma narrativa que explique o percurso pelo qual o sentido atual se formou: ...we repeatedly rehistoricize ourselves by telling a story; we relocate ourselves in the present historical moment by reconfiguring our identities relationally, understanding that identity is always a relational category and that there is no subject who pre-exist the encounters that construct that subject. Identity is an effect of those encounters — identity is that set of effects which develop from the collision of histories. It is not an abstraction. It’s an extraordinarily complex kind of sedimentation, and we rehistoricize our identities all the time through elaborate story-telling practices… And those story telling practices themselves are ways of trying to interrogate, get at, the kinds of encounters, historical moments, the finds of key moments of transition for us — both individually and collectively (Bhavnani and Haraway apud Villa 1995) É evidente que na base destas tramas narrativas e destes processos de “rehistorização” estão tentativas de se legitimar e validar discursos e práxis; é desta forma 68 que se deve, a meu ver, interpretar um texto como o de Alexandre Gonçalves Pinto, análise que comporta duas instâncias: em um primeiro momento temos o próprio autor “reordenando” suas memórias e dando sua visão pessoal sobre a música que se fazia no Rio de Janeiro nas últimas décadas do século XIX e início do XX. Tal visão, como já demonstrado no trabalho de Carvalho (Carvalho, 2006) abarca contradições e ambigüidades com outros relatos importantes da época; neste sentido a narrativa de Pinto deve ser entendida como uma das vozes que formam uma polifonia de discursos da época, cada qual procurando legitimar e validar uma visão pessoal. Na outra ponta desta história temos uma teia de personagens sociais (pesquisadores, jornalistas, acadêmicos, músicos, etc) que “reconfiguram” tal narrativa sob diferentes perspectivas, recorrendo a ela para “rehistoricizar” o passado, conforme demonstrado em tópicos anteriores. Voltando à discussão sobre signos sociais e musicais, trabalhos como os De Nora (2000) e Hennion (2002) apontam (de forma bastante congruente com o pensamento de Vila), para análises em que os próprios atores sociais definem e conceituam a música em sua vida social. Assim, ao invés de estudos que estabeleçam “grandes nexos” e teorizações sobre cultura e sociedade, a ênfase é dada na percepção do que os próprios atores sociais definem como nexo entre significações musicais e sociais. Isso significa uma mudança de foco dos objetos estéticos e seus conteúdos (processo estático) para as práticas culturais através das quais materiais estéticos são apropriados e usados para produzir vida social (processo dinâmico) (De Nora, 2000). Desta forma, a etnografia teria papel chave neste processo: aplicado ao nosso objeto de estudos o desafio é estabelecer uma metodologia que “não esmague a 69 realidade analisada com os instrumentos de análise” (Hennion, 2002); em outras palavras, o desafio é analisar o livro de Gonçalves Pinto respeitando suas próprias mediações, sem convertê-lo por um lado em mera história social e sem, por outro lado, cair na tentação de estabelecer conexões que vão além do que o texto quer nos dizer, como numa espécie de “truque divino” acadêmico (De Nora, 2000: 3). Ou seja, é preciso ouvir as diferentes vozes que emergem do texto do “Animal” sob uma perspectiva polifônica e não unívoca; é preciso ir além da visão “histórico-social” que o trata como um “bom primitivo” - e ao mesmo tempo sem cair no extremo oposto de idealizá-lo como um intelectual da música popular. Ouvir as diferentes vozes que emergem do seu texto implica em considerá-lo sob um duplo prisma: o de um documento de memória social e o de uma etnografia; é neste aparato metodológico que este trabalho se baseia. Veremos as implicações desta assertiva no próximo tópico. 2.2) Memória e etnografia como ferramentas metodológicas Neste tópico procuro analisar de que forma os estudos de memória social e a perspectiva da etnografia podem servir como ferramentas para uma análise do livro de Gonçalves Pinto que não o transforme em um mero apanhado de fontes primárias e nem o reduza a uma coletânea de fatos bases para uma história social, como já suficientemente apontado. Um primeiro conceito extremamente útil será o de “memória coletiva”, de Halbwachs (2006). Como o ato de recordar pressupõe uma atividade essencialmente individual, será Halbwachs o primeiro intelectual a conceber a memória como construção coletiva, e, portanto, como objeto de estudos das ciências sociais (Peralta, 2007). Na raiz do conceito está a ideia de que a função primordial da memória, enquanto imagem compartilhada do passado é a de 70 promover um laço de filiação entre os membros de um grupo com base no seu passado coletivo, conferindo-lhes uma ilusão de imutabilidade, ao mesmo tempo em que cristaliza os valores e as acepções predominantes do grupo ao qual as memórias se referem. (...) Holbwachs considera, assim, que a memória coletiva é o locus de ancoragem de identidade do grupo, assegurando a sua continuidade no tempo e no espaço (op. cit.). Este é sem dúvida um conceito chave para entendermos a obra de Gonçalves Pinto: a escrita do carteiro estabelece uma coletividade. Suas memórias se baseiam em parte em sua própria experiência e conhecimento do grupo de músicos ligados ao choro, mas também em grande parte na memória coletiva que se formou entre estes músicos. Isso fica claro nas referências que Pinto faz a músicos que ele não conheceu, mas cuja importância já estava assentada na memória de seus contemporâneos mais antigos: é o caso de Joaquim Callado, por exemplo. A descrição sobre Callado é inteiramente feita através da memória coletiva que se tinha dele, e é baseada em assertivas como: “Contavam alguns daquelles tempos que tambem já dormem o somno dos justos, que Callado foi chamado para um concerto (...)”, ou “Diziam os musicos daquelle tempo que Callado, na sua maviosa flauta (...)” (Pinto, 1978: 12, 87). Callado talvez seja o exemplo extremo de construção de memória coletiva da história do choro: suas composições se tornaram extremamente populares, conforme se atesta pela quantidade de cópias presentes nos arquivos de partituras do início de século XX (conforme veremos com mais detalhes no capítulo quatro). A partir da segunda metade do século XX suas composições caem em um quase completo ostracismo (exceto pela polca “Flor Amorosa” que vai se tornar uma espécie de símbolo de antiguidade do choro): sua memória, entretanto, será continuamente citada a ponto de torná-lo uma espécie de “mito” do choro. Esta é uma construção coletiva baseada em uma cadeia de mediadores: para boa parte da geração de Gonçalves Pinto, que não conviveu com Callado, sua popularidade devia-se ainda às suas composições: esta popularidade devia-se também a histórias míticas de sua habilidade como instrumentista, histórias que eram recontadas 71 certamente através da tradição oral e escrita (como é o caso da própria descrição que Gonçalves Pinto faz de Callado em seu livro). Para as gerações de músicos atuantes na segunda metade do século XX a obra de Callado passou a ser praticamente desconhecida, mas sua memória permaneceu e seus feitos se incorporaram a uma espécie de narrativa mítica de origem do choro. Há outros exemplos que demonstram como Gonçalves Pinto recorria à memória coletiva para redigir alguns dos perfis biográficos do livro. É o caso do flautista Arthur Fluminense: De saudosa memória foi carteiro, flautista dos bons. Dizia o que sentia em seu instrumento. Apesar de não o ter conhecido pessoalmente pude pegar algumas pequenas informações, sabendo que elle privou com os grandes flautas da antiguidade; sua morte causou grande claro entre seus amigos daquella época.(op. cit. 17, grifo meu). A repetida alusão, como na citação acima, aos “grandes flautas da antiguidade”, ou seja, aos flautistas da geração de Callado e Viriato, indica remissão a um passado que o carteiro não conheceu pessoalmente, mas que vivia ainda na memória de vários dos músicos de sua época. Assim, em alguns casos, não é possível estabelecer com precisão se o carteiro descreve seu biografado com base no seu conhecimento pessoal ou na memória de outros músicos. Um exemplo disso é o perfil de Bacury: Tambem flauta respeitado da antiguidade, grande compositor de Chôros. Era Bacury, guarda-fiscal da Prefeitura, que já dorme o somno derradeiro ha mais de cincoenta annos, tendo as suas ricas producções cahido no esquecimento no correr de tantos annos. Elle privou com os antigos chorões do seu tempo, que tantos prodigios conquistaram (op. cit. 23) Mais uma vez a menção aos “antigos chorões do seu tempo” parece indicar que Gonçalves Pinto não conheceu Bacury pessoalmente, mas que o descreve com base na lembrança de outros, embora isso não fique completamente claro na passagem citada. 72 Ainda que a percepção de que lembranças individuais e coletivas se fundem na redação de Gonçalves Pinto seja importante, o cerne da questão a ser apontado no uso do conceito de “memória coletiva” é justamente a configuração de identidade de um grupo a partir de um passado comum. Esta construção de identidade implica em valorização das semelhanças em detrimento das diferenças: “(...) na memória [coletiva], as semelhanças passam para o primeiro plano. No momento em que examina seu passado, o grupo nota que continua o mesmo e toma consciência de sua identidade através do tempo.” (Halbwachs, 2006: 108). Apresentar o grupo social do choro como um grupo homogêneo será sem dúvida um dos objetivos mais importantes do livro de Gonçalves Pinto, conforme veremos com mais detalhes nos capítulos dois e três. Através do conceito de Halbwachs poderíamos afirmar que a consciência de identidade entre os músicos e apreciadores das práticas musicais que depois se identificariam como “choro” da geração de Gonçalves Pinto seria intensificada na medida em que: 1) os membros do grupo envelheciam e morriam; 2) paradoxalmente, as condições em que estas práticas musicais se davam socialmente eram submetidas a mudanças (como o advento do disco e do rádio tão bem demonstrados por Tinhorão). Isso implica dizer que a percepção de identidade do grupo que se denominava “choro” se consolidou nas duas primeiras décadas do século – e seguramente o livro de Gonçalves Pinto é um dos fatores (mas não o único) que contribui para esta consolidação. Dessa forma, quando se pensa em nosso objeto de estudos, poder-se-ia afirmar com relativa facilidade que Gonçalves Pinto teria contribuído de forma decisiva para a construção do choro como gênero nacional; mas há que se fazer certas ressalvas para que fique claro que ele não foi, obviamente, a única instância deste processo. Não há nenhuma dúvida no fato de que um dos objetivos do livro de Gonçalves Pinto é o de conferir legitimidade às práticas musicais do choro em um momento em que o samba se 73 consolidava como música-símbolo nacional. No entanto ele é apenas um elemento em uma cadeia de mediadores que procurarão moldar, cada qual à sua maneira, sua representação histórica do gênero; além disso, seu discurso é em última análise uma mediação de visões de mundo da época. É por isso que ao longo do livro há, ao mesmo tempo, críticas e elogios aos novos meios de comunicação como o rádio, de acordo com o perfil do “personagem” biografado por seu autor; alguns dos retratados espelham visões críticas a respeito dos “novos” instrumentistas e gêneros musicais enquanto o próprio Alexandre tece elogios entusiásticos a estes mesmos instrumentistas e gêneros (é o caso do samba, por exemplo. Conforme veremos no terceiro capítulo, Gonçalves Pinto critica o samba no verbete em que descreve Catulo, mas tece elogios gerais ao gênero quando trata de Donga, por exemplo). Em suma, há uma escrita polifônica com objetivos vários, um dos quais (mas não o único), o de legitimar o choro como prática musical nacional no contexto da década de 1930 Aliás, o fato de Gonçalves Pinto escrever seu livro em um contexto em que o samba se delineava como música nacional, ganhando cada vez mais espaço no rádio, no disco e na imprensa (sem contar os livros “inaugurais” sobre a música popular urbana brasileira, os já citados Samba de Orestes Barbosa e Na roda de samba de Francisco Vagalume), o coloca em uma espécie de “contracorrente” cultural. Neste sentido seu discurso poderia ser lido através do conceito de “contra-memória” de Foucault (1977), por incorporar em sua representação do passado a voz daqueles que foram silenciados ou marginalizados pelo discurso dominante. Ao escrever seu livro três anos após o lançamento das obras de Barbosa e Vagalume, Gonçalves Pinto se coloca de certa forma em uma posição “contra-hegemônica” ao dar voz a centenas de instrumentistas populares para quem as práticas musicais do choro poderiam ser caracterizadas, tanto como o samba, como música nacional. “A polca é como o samba, uma tradição 74 brasileira”, dirá o carteiro em meio ao livro. (Esta é outra frase fundamental para nossa análise e será desenvolvida no segundo capítulo deste trabalho). Classificar o livro de Pinto como “contra-memória” implica perceber que “a análise das representações do passado deve incluir a relação existente entre a ordem hegemônica e as memórias vernáculas dos grupos sociais” (Peralta, 2007). Ou seja, em meio à construção de um discurso hegemônico do samba por parte da imprensa, do rádio e do disco, (e de forma ainda incipiente, mas com cada vez mais força, de instâncias governamentais), a obra do carteiro irá representar a memória vernácula do grupo social dos instrumentistas e apreciadores do choro, em uma espécie de contracorrente à ideologia dominante. Na contramão das bibliografias históricomusicais (tanto da “alta cultura” – os livros sobre a “grande música” européia – quanto da “baixa cultura” – os livros de Barbosa e Vagalume, por exemplo) que procuram destacar somente os pontos culminantes de cada gênero ou estilo (os grandes compositores e instrumentistas) este será certamente o primeiro livro em que se retratam, sem distinção, tanto os melhores quanto os piores instrumentistas; tanto amadores quanto profissionais; tanto instrumentistas quanto não instrumentistas (ou seja, apreciadores do gênero); tanto intelectuais e músicos ligados a “alta cultura” (como Mello Moraes Filho, Visconde de Ouro Preto e Villa Lobos) quanto músicos ligados a classes operárias (como Benigno Lustrador e Leopoldo Pé de Mesa). Isso nos leva ao segundo tema deste tópico, o de considerarmos a obra de Gonçalves Pinto como uma narrativa etnográfica. No entanto é preciso ainda fazer uma observação importante a respeito da questão da “contra-memória”. A aplicabilidade do conceito ao nosso objeto de estudo é realçada (como já sugerimos anteriormente) quando observamos que o livro teve aparentemente pouca ou nenhuma repercussão nos grandes meios de comunicação da época – o que não é de se estranhar quando se leva 75 em conta o fato de que Alexandre Gonçalves Pinto era um completo anônimo quando comparado a outras “personalidades” que também editaram livros sobre música, como Vagalume e Orestes Barbosa (renomados jornalistas) e Catulo da Paixão Cearense, celebridade da poesia nacional. Pesquisa realizada por mim em periódicos importantes de 1936, como O Jornal do Brasil e O Globo8, não encontrou nenhuma referência ao lançamento do livro; também não foi possível encontrar nenhuma referência a ele nas décadas de 1940 e 1950, o que indica que a obra teria permanecido no esquecimento até pelo menos a década de 1960, quando foi alvo do fichamento elaborado por Jacob do Bandolim descrito em tópico anterior. É a partir do relançamento da obra em 1978 por Ary Vasconcelos, que se dará uma mudança significativa de perspectiva: de “contramemória” o livro se tornará, através da cadeia de mediadores que o adotarão como fonte de pesquisa sobre compositores, obras ou história social, “memória oficial”. Analisaremos este processo com maiores detalhes ao longo da tese; por ora cumpre apenas enfatizar que o livro permaneceu como “contra-memória” até pelo menos a década de 1970. Entramos agora no segundo tema deste tópico, a perspectiva etnográfica. Cumpre de início discernir a etnografia como constituição “científica”, elaborada por acadêmicos ligados à antropologia e às ciências sociais a partir da década de 1920 (Clifford, 1998) da ideia de etnografia como conceito mais amplo (e mais antigo historicamente) de descrição verbal de práticas sociais não necessariamente ligadas à academia. A ideia de etnografia como atividade ligada essencialmente ao campo das ciências sociais e, particularmente, da antropologia, é historicamente recente: conforme afirma Clifford (1998:26), em termos esquemáticos, “antes do final do século XIX, o 8 A pesquisa é dificultada pelo fato de não termos a referência exata do mês em que a obra foi lançada. Na parte final do livro, Gonçalves Pinto afirma que o livro deveria ter sido lançado “muito antes do carnaval”, mas que problemas na gráfica onde ia ser impresso o levaram a lançá-lo “só agora”. Este “só agora” implica sem dúvida uma data depois do carnaval, mas não há mais nenhuma informação concreta que nos indique o mês exato. 76 etnógrafo e o antropólogo, aquele que descrevia e traduzia os costumes, e aquele que era o construtor das teorias gerais sobre a humanidade, eram personagens distintos”. Esta perspectiva é corroborada por Seeger para quem a etnografia musical não corresponderia necessariamente a uma antropologia da música, uma vez que a etnografia não é definida por linhas disciplinares ou perspectivas teóricas, mas por uma abordagem descritiva da música que vai além da transcrição musical dos sons para uma escrita de como os sons são concebidos, gerados, apreciados e influenciam outros indivíduos, grupos e processos sociais e musicais (Seeger, 1992: 89, tradução minha). A ausência de definição de perspectivas teóricas e a caracterização de etnografia da música como uma descrição verbal daquilo que um grupo social define como “musical” não implica em ausência de caráter interpretativo, uma vez que qualquer descrição redunda necessariamente em análise e interpretação (Seeger, 1992, Travassos, 2007). Em outras palavras, o movimento de “textualização” subjacente à ideia de etnografia implica necessariamente em um processo de escolha e interpretação: como o mundo não pode ser apreendido diretamente, ele é sempre inferido a partir de suas partes, que são apreendidas e descritas através do trinômio experiênciainterpretação-textualização (Clifford, 1998: 40). Chegamos assim a outro pressuposto básico da etnografia clássica: a observação participante. No modelo antropológico de etnografia surgido a partir da década de 1920, a observação participante será, ao lado das premissas científicas de análise da estrutura do “todo cultural” através das suas partes, uma das condições fundamentais para a legitimação da autoridade etnográfica: A observação participante serve como uma fórmula para o contínuo vaivém entre o ‘interior’ e o ‘exterior’ dos acontecimentos: de um lado, captando o sentido de ocorrências e gestos específicos, através da empatia; de outro, dá um passo atrás, para situar esses significados em contextos mais amplos. Acontecimentos singulares, assim, adquirem uma significação mais profunda, ou mais geral, regras estruturais, e assim por diante. (op. cit., 33 e 34) 77 Do que se viu até aqui, fica claro que o livro de Gonçalves Pinto pertence à categoria de etnografia “não acadêmica”, o que não implica em afirmar que sua obra tenha um papel meramente descritivo. Ela é sem dúvida resultado não apenas de uma observação participante, mas do ponto de vista de um nativo. Cumpre ressaltar apenas que o “passo atrás” da etnografia escrita pelo carteiro é dada não pelo afastamento físico do “campo”, mas pela passagem do tempo. Rememorando as relações entre práticas musicais e sociais do passado é que o autor restabelece biografias, eventos, situações, gírias, oralidades, etc; sem dúvida é a passagem do tempo, e a transformação dos costumes que permite ao autor definir com precisão grupos sociais que se unem em torno de determinadas práticas musicais: “Foi por isso bom amigo leitor, que pertencendo e convivendo no meio desses vencedores da arte musical, é que me veio ao pensamento escrever algo sobre os chorões da antiga e nova guarda” (207, grifo meu). Neste sentido, a obra de Gonçalves Pinto pode ser entendida em parte como uma “etnografia histórica”, já que o autor não escreve apenas sobre o “presente etnográfico”, mas sobre acontecimentos que remontavam há quarenta anos. Esta significativa passagem de tempo confere distanciamento ao nosso etnógrafo do choro, que passa a identificar seus colegas como um grupo coeso: os “chorões”. Cumpre agora aprofundarmos a relação entre etnografia e história. Estes dois termos, aparentemente antagônicos, uma vez que a etnografia clássica tradicionalmente implicou na construção de um “presente etnográfico” (Clifford, 1998: 26; Fabian: 1983), têm sido cada vez mais utilizados em trabalhos recentes nos campos das ciências sociais. Conforme assinalado por Castro e Cunha (2005), ainda que exista entre o senso comum (e na própria academia) a ideia de que o trabalho antropológico implica necessariamente na pesquisa de campo, percebe-se com cada vez mais intensidade o fato de que antropólogos têm realizado trabalhos de pesquisa baseados em arquivos 78 vários, enfoque normalmente associado ao historiador ou ao arquivista. Desta forma, o “campo” se transforma no arquivo, e perspectivas e metodologias antropológicas são utilizados como ferramentas teóricas para análises de documentos, periódicos, e todo o vasto arsenal de objetos do passado preservados em museus e coleções. É esta também a perspectiva adotada por Coelho (2009:182) em sua tese sobre as viagens dos Oito Batutas à América Latina na década de 1920. Para o autor, a relação entre a antropologia e a questão dos arquivos pode ser vista sob um duplo aspecto: na indagação sobre qual o estatuto dos arquivos como fontes de dados para o trabalho antropológico ou, ainda, em quais implicações são assumidas ao se tomar fontes arquivísticas como discursos nativos, de um lado, e na apropriação dos mesmos arquivos pelos nativos em um contexto de pós-modernidade, por outro. Este último aspecto estaria ligado à crise no interior da disciplina surgida a partir da década de 1980, quando críticas cada vez mais contundentes colocaram em xeque diversas premissas da antropologia clássica, a começar pelo questionamento sobre a autoridade etnográfica do antropólogo (cf. Clifford, 1998:17-59). Não creio que seja preciso, no âmbito deste trabalho, aprofundar este ponto já bastante repisado por estudos recentes: no entanto, ele nos interessa na medida em que coloca em evidência a importância de etnografias nativas, como é o caso do nosso objeto de estudos (idem: 58). No primeiro aspecto, Coelho procura explicitar as premissas metodológicas de uma pesquisa de campo onde os “nativos” são habitantes de “aldeias-arquivos” e estão irremediavelmente aprisionados no passado. Estes “trobriands de papel”, para usar a expressão do autor, estariam completamente infensos às invectivas do antropólogo, cuja única esperança seria a de “tentar fazer-lhes as perguntas certas” (Coelho, 2009:184). Na prática, o que se coloca em questão é: de que maneiras se devem interpretar informações e narrativas que nos chegam do passado sob um viés antropológico? Para 79 Coelho, fontes primárias como jornais e periódicos não podem ser lidos apenas como simples suportes para transmissão de um conteúdo a ser transmitido. Pelo contrário, uma simples página de jornal do passado representaria um campo de forças regido por uma relação dialética entre vários “personagens” e instituições9. Desta forma a trajetória dos Oito Batutas na Argentina e no sul do Brasil é recomposta através da perspectiva polifônica das notícias de jornal que nem sempre apresentavam visões unívocas sobre o conjunto. Visão bastante semelhante é apresentada por Renata Gonçalves (2007) em seu estudo sobre os ranchos cariocas, pesquisa baseada, nas palavras da própria autora, em uma “etnografia retrospectiva dos ranchos” a partir de textos publicados no Jornal do Brasil. O jornal é aqui também analisado como um espaço de mediação entre diversas instâncias que muitas vezes atribuíam diferentes significações às práticas dos ranchos de carnaval: A partir das narrativas ‘interessadas’ de divulgação de boletins policiais, dos licenciamentos para o funcionamento e desfile das sociedades carnavalescas, das crônicas menos ou mais elogiosas, dos anúncios de aluguel de janelas no carnaval, da venda de fantasias ou da confecção de estandartes por artistas publicados no Jornal do Brasil, chega-se aos indícios das negociações e relações aí presentes. Esses ‘interesses’, conflitos, presenças e ausências de determinados atores convergem para a constituição do que vem a ser os ‘ranchos’, sendo uma forma privilegiada de problematizar as fontes e de torná-las reveladoras de um determinado conjunto de relações sociais e de significações culturais (Gonçalves 2007: 75). O estudo de Gonçalves será de grande utilidade não apenas pelo fato de se constituir como uma “etnografia histórica”, mas porque, conforme mostraremos no segundo capítulo, havia uma intensa ligação entre os ranchos carnavalescos e os chorões retratados pelo “Animal”, sendo ele mesmo diretor de um rancho de nome Pragas do Egito. Neste sentido, apontaremos empréstimos e influências das linguagens utilizadas por cronistas carnavalescos e pelos jornais editados pelos próprios ranchos (como era o 9 Coelho inspira-se no pensamento do teórico francês Maurice Moulliaud, para quem o jornal pertenceria a uma rede de informações em perpétua modificação. Neste sentido, o jornal seria parte de uma rede que não impõe ao mundo “apenas uma interpretação hegemônica dos acontecimentos, mas a própria forma do acontecimento” (Moulliaud apud Coelho, 2009: 185) 80 caso do Ameno Resedá, um dos ranchos mais importantes da época) na linguagem de Gonçalves Pinto. No âmbito da sociologia também podemos apontar pelo menos um estudo recente que traz como foco a questão da etnografia histórica: o livro do sociólogo José de Souza Martins, A aparição do demônio na fábrica (2008). O estudo é baseado no que o próprio autor denomina “sociologia retrospectiva”: tendo iniciado sua carreira profissional como contínuo em uma fábrica do ABC paulista em meados da década de 1950, Martins rememora, a partir de suas lembranças pessoais e do cotejo com o depoimento de outros funcionários colhidos cerca de trinta anos depois, um acontecimento marcante ocorrido em uma manhã de 1956 – a aparição do demônio para um grupo de operárias. No cerne desta sociologia retrospectiva estaria o uso crítico das lembranças do autor como uma espécie de banco de dados de memórias catalogadas sociologicamente a posteriori. Em outras palavras, seria como se o autor fizesse uso retrospectivo da observação participante: “Recupero e interpreto os dados, portanto, como membro dos grupos sociais de referência nesta análise, grupos vicinais e de trabalho, dos quais fiz parte, e não como estranho, que é o que normalmente ocorre com o pesquisador” (Martins, 2008: 63). As condições de cientificidade desta dupla condição de nativo e etnográfo seriam dadas, segundo Martins, por dois fatores: o primeiro seria o de que sua função de contínuo, uma dos cargos menos importantes na hierarquia da fábrica, o colocava em uma posição de quase “invisibilidade social”, ao mesmo tempo em que possibilitava seu acesso a praticamente todas as seções da fábrica. O segundo seria o fato de que a passagem do tempo entre os acontecimentos rememorados e a escrita do estudo (cerca de trinta anos) conferiria não apenas um simples distanciamento, mas uma 81 verdadeira “alternação biográfica”10: o autor deixara há muito de pertencer às esferas sociais da qual fora parte na juventude. Dessa forma: Esse deslocamento biográfico nos põe diante de momentos de nossa história pessoal que se tornaram distantes e ‘externos’ para nós, numa relação de certo modo objetiva, como a de um etnógrafo em relação ao grupo que o estuda. Nessa relação de ‘exterioridade’ no tempo biográfico (...), uma ocorrência como a que examino neste estudo pode então ser relembrada e interpretada pelo próprio protagonista, ou pela própria testemunha, a partir de um sistema de significados diverso daquele que deu sentido às relações sociais e aos acontecimentos no momento em que foram vividos. (...) De certo modo, o homem comum está continuamente na situação de etnógrafo amador de suas próprias experiências sociais. (Martins, 2008: 148, grifo meu) Voltando ao nosso objeto de estudos, poderíamos dizer que sem dúvida nosso carteiro pode ser enquadrado na categoria de “homem comum em situação de etnógrafo amador” das experiências sociais do seu tempo, como na citação acima. Mas seria temerário elaborarmos afirmações conclusivas sobre a aplicabilidade dos dois pressupostos que validariam a “observação participante retrospectiva” do trabalho de Martins ao nosso objeto de estudos. Por um lado, a “invisibilidade social” da função de um contínuo em uma fábrica de cerâmicas da década de 1950 pode ser aplicada a um carteiro das primeiras décadas do século XX? Não nos é possível saber com certeza: mas podemos obviamente afirmar que, pelo próprio caráter da profissão, um carteiro tem grande mobilidade pelas diferentes “regiões sociais” da cidade; e Gonçalves Pinto certamente se vale desta mobilidade como ferramenta para a sua narrativa etnográfica. Há várias menções, ao longo do livro, ao fato de que a profissão de carteiro permitiu o conhecimento de pessoas e situações sociais descritas. Assim, para citar apenas dois exemplos, Pinto conhece o violonista Vicente Sabonete e sua “distincta família” graças ao seu trabalho “como carteiro na Rua Lavradio” onde a família residia (pg. 129); sobre 10 O termo “alternação biográfica” é do sociólogo Peter Berger, e refere-se às alterações de contextos sociais através do tempo de vida de um indivíduo. 82 a viúva de Carlos Espíndola ele rememora: “Não sei de certo, se a sua viúva ainda existe, o que faço votos que sim, pois, quando carteiro que fazia entrega na rua do Lavradio encontrei-a, uma ocasião, morando no Hotel Nacional” (pg. 22). Por outro lado, também não creio ser possível falar em “alternação biográfica” no caso de Gonçalves Pinto: ainda que as condições sociais da época em que ele escrevia fossem já muito diferentes daquelas descritas em sua narrativa, não há como inferir que sua própria condição social tenha mudado significativamente. De qualquer forma, o que nos importa é salientar que o livro de Gonçalves Pinto pode ser analisado como uma etnografia “nativa”, na medida em que temos pela primeira vez na história da música popular urbana um depoimento escrito por um insider. Ao mesmo tempo, sua escrita nos permite “ouvir” a polifonia de discursos da época, as relações de sociabilidade criadas pelas práticas musicais, as memórias vernáculas de músicos populares, bem como gírias, oralidades, fragmentos de discursos, etc. (veremos com mais detalhes estes aspectos no capítulo dois). Feita esta constatação passamos a outra questão: como analisar um texto etnográfico do passado sob uma perspectiva etnográfica? Como realizar uma “pesquisa de campo” pelo mundo descortinado por nosso carteiro? Obviamente, para desespero do autor destas linhas, o “Animal” está completamente surdo aos meus questionamentos; entretanto, seu texto restitui em parte sua própria voz e as daqueles que ele descreve. Um trabalho comparativo entre fontes de época também nos permite evocar e “entrevistar” outras vozes do passado que por vezes apóiam, por vezes se contrapõem ao discurso de Gonçalves Pinto. Além de livros como os dos citados Catulo, Vagalume, Orestes Barbosa e Mello Moraes Filho, os periódicos do rancho Ameno Resedá (que serão analisados no capítulo dois) e os acervos manuscritos de partituras da época (alvos de 83 nossos estudos no capítulo quatro) foram valiosos elementos que nos ajudaram neste trabalho de “reconhecimento topográfico” de nosso campo. Por outro lado, entrevistas com músicos de choro mais antigos, que iniciaram suas trajetórias musicais na década de 1950, nos permitem realizar uma espécie de “abordagem indireta” com o universo descrito por Pinto. Alguns destes músicos, como é o caso do bandolinista Déo Rian, conheceram em sua juventude músicos descritos pelo “Animal” e viveram situações de sociabilidade em torno das práticas musicais do choro que se assemelham às descritas no livro. Ao longo do processo de pesquisa nos foi possível também conhecer e entrevistar uma neta de Alexandre Gonçalves Pinto, que pôde fornecer elementos importantes para nossa análise. Todos estes elementos serão analisados com maior profundidade ao longo dos próximos capítulos. E, por fim, e talvez mais importante, nossa etnografia nos conduz a músicos e amantes do choro da atualidade que tiveram suas relações com esta(s) música(s) modificada(s) pela leitura do livro. De que forma uma narrativa do passado altera nossa concepção do presente é a questão que se coloca no quinto capítulo desta tese. 2.3) Bakhtin, polifonia, heteroglossia e circularidade cultural Finalmente, cumpre analisar agora conceitos fornecidos pela teoria e os estudos da linguagem, particularmente aqueles propostos pelo intelectual e lingüista russo Mikhail Bakhtin. Estes conceitos nos serão úteis em nossa análise do texto de Gonçalves Pinto e de outros textos de época que utilizaremos como forma de comparação. Por outro lado, Bakhtin também nos fornecerá a chave de uma das questões centrais do livro, que pode ser resumida da seguinte forma: como analisar um texto considerado, como vimos anteriormente, como “literatura menor” ou 84 linguisticamente “impuro”, advindo de um membro das classes populares do Rio de Janeiro das primeiras décadas do século XX? Para responder a esta questão utilizaremos os conceitos de carnavalização e circularidade cultural de Bakthin e Ginzburg, respectivamente. Começaremos discutindo alguns conceitos chave sobre teoria da linguagem em Bakhtin tais como enunciação, dialogismo, polifonia e heteroglossia, para depois aplicá-los ao nosso objeto de estudo. Obviamente fugiria aos limites desta tese realizar uma análise exaustiva do complexo e poliédrico pensamento de Bakhtin: o que se fará aqui é apenas delinear os principais conceitos que podem ser utilizados como ferramentas para nossa análise. Comecemos com o conceito de enunciação: para Bakhtin (1992), a enunciação seria resultado da interação entre pelo menos dois indivíduos socialmente organizados; ela não existiria fora de um contexto sócioideológico organizado; pelo contrário estaria imersa em um campo de significados dependentes da posição social dos locutores, onde cada um deles teria “um horizonte social bem definido, pensado e dirigido a um auditório social também definido”. (Rechdan, 2003). Desta forma “a enunciação procede de alguém e se destina a alguém. Qualquer enunciação propõe uma réplica, uma reação” (id. ib.) Desta forma, o sentido da enunciação não se resume ao indivíduo que a formula, e nem tampouco ao receptor da mensagem e ao conteúdo sintático do texto a ser passado. O sentido da enunciação estaria justamente no efeito entre locutores e receptores socialmente posicionados11: 11 Este, aliás, é um dos primeiros aspectos da “descoberta” do pensamento de Bakhtin pelo mundo ocidental, particularmente por pensadores franceses da década de 1960. Em um contexto dominado pelo pensamento estruturalista, os estudos da lingüística (particulamente aqueles ligados ao pensamento de Ferdinand Saussure) eram vistos como “fatos lingüísticos” dominados por antíteses – língua e palavra, denotação e conotação, signo e significado – sempre anteriores ao sujeito e ao contexto histórico e social em que se davam. O pensamento de Bakthin surge, portanto, como um contraponto ao pensamento estruturalista: a partir dele a linguagem passa a ser entendida como algo imanentemente social, imersa no sujeito e na história, “nas práticas cotidianas, nas ações intersubjetivas, ou seja, na inexorabilidade 85 Assim, nas enunciações, há tantos sentidos quanto os diversos contextos em que elas aparecem. Por isso, o sentido ou tema pode ser investigado nas formas lingüísticas e nos elementos não verbais da enunciação, ou seja, a apreciação, a entonação, o contexto, o conteúdo ideológico etc. (Rachdan, 2003) O conceito de dialogismo estaria diretamente ligado ao de enunciação. Como qualquer enunciação pressupõe um “território de negociações” entre locutor e receptor, pressupõe-se que qualquer emissor de mensagem já projeta em sua enunciação atitudes responsivas, antecipando a posição do receptor, isto é “experimentando ou projetando o lugar de seu ouvinte.” (id, ib.). Assim, o conceito de diálogo amplia-se de forma muita mais complexa do que o tradicional conceito de interação verbal entre duas pessoas (Bakhtin, 1992: 123). De forma geral todo o discurso seria dialógico, mesmo quando construído sobre uma aparência aparentemente monológica. Um livro, por exemplo, é objeto de discussões ativas sob a forma de diálogo e, além disso, é feito para ser apreendido de maneira ativa, para ser estudado a fundo, comentado e criticado no quadro do discurso interior, sem contar as reações impressas, institucionalizadas, que se encontram nas diferentes esferas da comunicação verbal (críticas, resenhas, que exercem influência sobre trabalhos posteriores, etc.). Além disso, o ato de fala sob a forma de livro é sempre orientado em função das intervenções anteriores na mesma esfera de atividade, tanto as do próprio autor como as de outros autores: ele decorre portanto da situação particular de um problema científico ou de um estilo de produção literária. Assim, o discurso escrito é de certa maneira parte integrante de uma discussão ideológica em grande escala: ele responde a alguma coisa, refuta, confirma, antecipa as respostas e objeções potenciais, procura apoio, etc. (Bakhtin, 1992: 127, grifo meu). Desta forma, qualquer discurso - esteja ele contido apenas na consciência do receptor, emitido em forma de discurso verbal ou impresso em livro - é necessariamente dialógico, espelhando sempre “relações que ocorrem entre interlocutores, em uma ação histórica compartilhada socialmente, isto é, que se realiza em um tempo e local específicos, mas sempre mutável, devido às variações do contexto” (Rechdan, 2003) (ontológica) da constituição dialógica do sujeito e da sociedade. O filósofo russo introduziu, portanto, a situacionalidade de todo fenômeno linguístico, seja literário ou conversacional, mostrando precisamente que a linguagem só existe socialmente. (Ribeiro e Sacramento, 2010: 10-11) 86 O conceito de polifonia não deve ser confundido com o de dialogismo. Se o dialogismo é inerente a todos os tipos de discurso, o conceito de polifonia bakhtiniano é aplicado aos discursos que contém “uma multiplicidade de vozes e de consciências independentes” (Bakthin, 1981:02), normalmente de caráter antagônico que acabam não sendo “resolvidas” pelo emissor do discurso. Originalmente o conceito foi aplicado por Bakhtin na análise da obra de Dostoievski, a partir da constatação de que, ao contrário de outros romances da literatura européia, que apresentariam uma perspectiva dialógica (ou seja, embora os vários personagens destes romances pudessem apresentar posições ideológicas diferentes, eles estariam todos subordinados a uma visão unívoca do autor) os romances de Dostoievski seriam os primeiros a se apresentarem sob um ponto de vista polifônico, onde “centros de consciência” não poderiam ser reduzidos a um “denominador ideológico” (id.: 03). Em outras palavras, os discursos são apresentados ao longo do texto de forma que os personagens aparentam não reproduzir o pensamento de um único autor: seria como se o romance apresentasse vários autores “cada qual apresentando sua visão de mundo” (Soerensen, 2009). Como o texto não é “fechado”, o leitor se vê diante de múltiplas possibilidades de interpretação da obra. O conceito de heteroglossia, por sua vez, amplia as possibilidades da polifonia ao admitir que toda a linguagem traz em seu bojo, em uma espécie de jogo dialético, estratificações de linguagens “não-oficiais”, características de classes e situações sociais, profissões, etc. Assim, toda a linguagem “oficial” seria o resultado de uma mediação entre forças “centrípetas” e “centrífugas”, que atrairiam e repeliriam estes extratos “não-oficiais” à linguagem culta, em uma construção contínua de significação. Para Ribeiro e Sacramento (2010: 19) o conceito de heteroglossia sugerido por Bakhtin seria uma forma de contestação ao binômio estruturalista de Saussure representado pela dicotomia langue e parole: através da heteroglossia a linguagem estaria continuamente 87 se referenciando histórica e socialmente; para usar os termos de Saussure, a langue seria então formada por um conjunto de usos da parole que seriam dialogicamente interrelacionados e possíveis de serem acionados a qualquer momento. Se tais conceitos serão úteis na nossa análise da linguagem utilizada por Gonçalves Pinto, os conceitos que nos serão chaves na obra de Bakhtin para o entendimento de como ler um livro considerado “impuro” – escrito por um “primitivo ingênuo” como nos quer fazer ver a história social – serão os de intertextualidade e o de carnavalização (Bakhtin, 1984). Ambos os conceitos estão ligados à ideia de “diálogo, interpenetração e ressignificação entre formas de expressão populares e de elite” (Araújo, 2005). Retrabalhado pelo historiador Carlo Ginzburg (um dos pioneiros da corrente de estudos conhecida como micro-história) sob a denominação “circularidade cultural” a expressão designa uma categoria de análise aplicável a determinados processos de reapropriação e trocas entre diferentes classes sociais (id. ib). Vejamos agora com mais detalhes estes conceitos. Em seu estudo O queijo e os vermes Ginzburg procura compreender e analisar as ideias de um moleiro da Idade Média condenado pela Inquisição. Para este autor, o estudo das “camadas subalternas” da sociedade é um fenômeno historicamente recente, e que frequentemente esbarra em problemas metodológicos como a escassez de testemunhos sobre o comportamento e as atitudes destas classes e na maneira como se lê e se interpreta os poucos documentos remanescentes delas. Segundo Ginzburg, só através do termo “cultura primitiva” cunhado pelo folclore e pela antropologia social é que “se chegou de fato a se reconhecer que aqueles indivíduos outrora definidos de forma paternalista como ‘camadas inferiores dos povos civilizados’ possuíam cultura.” (Ginzburg, 1976) Mesmo assim, ainda segundo este autor, durante boa parte do século XX ainda haveria prevalecido a concepção de que as “ideias, crenças, visões de mundo 88 das classes subalternas” nada mais seriam do que “um acúmulo inorgânico de fragmentos de ideias, crenças e visões de mundo elaboradas pelas classes dominantes” e que teriam sido “mal digeridas” pelas ditas classes inferiores (idem). A partir daí surgiria a questão da dualidade e da relação entre a cultura das classes subalternas e das classes dominantes, tema abordado por Bakhtin em A cultura popular na Idade Média. Analisando o clássico Gargantua e Pantagruel de Rabelais, Bakhtin analisa os fundamentos da cultura popular na Idade Média tendo como ponto central o carnaval como contraponto ao dogmatismo e à seriedade da cultura da classe dominantes. No carnaval estariam o mito e o rito no qual “confluem a exaltação da fertilidade e da abundância, a inversão brincalhona de todos os valores e hierarquias constituídas, o sentido cósmico do fluir destruidor e regenerador do tempo” (Bakhtin, 1987). Somente através do entendimento desta visão de mundo, aparentemente sem nexo e sem “ordem”, seria possível o entendimento do livro de Rabelais. Desta forma, se por um lado haveria uma dicotomia entre as culturas das classes dominantes e subalternas na Idade Média, por outro haveria também intertextualidade, ou seja, influxo recíproco entre tais classes, que faria com que camponeses e artesãos nos “falem” através das palavras de um autor “culto” como Rabelais (idem). A carnavalização funcionaria então como uma forma de suspensão temporária das hierarquias constituídas: através dos elementos ligados ao satírico, ao burlesco, à valorização de símbolos escatológicos (os órgãos sexuais, os excrementos, a linguagem de baixo calão), ao grotesco enfim, sustava-se em determinados períodos e determinadas comunidades da Idade Média as relações sociais comuns, calcadas na estratificação entre as diferentes classes da época (o clero, o campesinato, a nobreza, etc). Este “riso festivo” tinha algumas características específicas, entretanto. Em primeiro lugar seria “universal” por atingir todas as pessoas da comunidade: “o mundo 89 inteiro parece cômico e é percebido e considerado no seu aspecto jocoso, no seu alegre relativismo” (Bakhtin, 1987: 10). Esta é a razão pela qual mesmo os clérigos (incluindo os mais altos eclesiásticos), permitiam-se “alegres distrações” durante este período, escrevendo “tratados mais ou menos paródicos e obras cômicas em latim”12 (id. 11). Em segundo lugar seria “ambivalente” pelo fato de que sua finalidade não é apenas cômica, mas também de renovação. Ao se troçar de símbolos sagrados em festas específicas por meio de blasfêmias, estas, conquanto “degradassem e mortificassem, simultaneamente regeneravam e renovavam” (id. 15). Neste processo as “linguagens não oficiais” tinham fundamental importância: termos de baixo calão, obscenidades, paródias, duplos sentidos, etc. A palavra de dupla tonalidade permitiu ao povo que ria, e que não tinha o menor interesse em que se estabilizassem o regime existente e o quadro do mundo dominante (impostos pela verdade oficial), captar o todo do mundo em devir, a alegre relatividade de todas essas verdades limitadas de classe, o estado de não-acabamento constante do mundo, a fusão permanente da mentira e da verdade, do mal e do bem, das trevas e da claridade, da maldade e da gentileza, da morte e da vida (Bakhtin, 1987: 380). Da mesma forma, o “riso festivo” estava associado a uma “vida paralela” à oficial, ligada à fartura, à satisfação das necessidades vitais básicas como o comer, o beber e cópula. Diferentemente da vida cotidiana em que o comer era frugal, no período de riso festivo a abundância de alimento e de bebida funcionava como uma espécie de passaporte para a vida festiva. A partir destes conceitos podemos entender de forma mais profunda o caráter multifacetado da aparentemente confusa prosa de nosso carteiro. Ela é povoada de heteroglossias, linguagens não oficiais: à maneira dos folhetins da época e da literatura carnavalesca, ela traz em seu bojo o satírico popular (que ironiza a todos, sem excluir o 12 O exemplo talvez mais importante de uma destas obras, citadas por Bakhtin, é O Elogio da Loucura do clérigo Erasmo de Rotterdan, obra satírica onde a “deusa Loucura” tece, em linguagem burlesca, críticas severas a diversas camadas da sociedade da época, incluindo a Igreja. A obra funcionou como estopim para a reforma protestante de Martinho Lutero. 90 próprio autor), a gíria, fórmulas de oralidade, inúmeras referências ao comer e ao beber (as descrições dos banquetes beiram o pantagruélico) associadas às festas, tudo isso misturado a conceitos “cultos” como explicações sobre a origem da música e a questão da nacionalidade. Nosso trabalho a partir do segundo capítulo será tentar identificar estas fontes que servirão de “empréstimo” para a linguagem do Animal: neste sentido será particularmente importante a análise da literatura sobre os ranchos carnavalescos da época, manifestações que congregavam grande quantidade de chorões. Como veremos no próximo capítulo, ao longo de meu processo de pesquisa consegui localizar jornais publicados pelo Ameno Resedá que constituíram fontes preciosas para minha análise: eles contêm, à maneira da linguagem do Animal elementos heterogêneos ligados ao “popular”, à sátira e obviamente ao carnavalesco. 91 Capítulo 2 Vida festiva, malandragem e folhetim Neste capítulo iniciaremos nossa análise da obra de Alexandre Gonçalves Pinto. Munido das ferramentas teóricas analisadas no primeiro capítulo meus objetivos são vários: entender a estrutura do livro, analisar sua linguagem multifacetada, entender as diferentes concepções da palavra “choro” ao longo da obra, estudar o caráter “etnográfico” dos trezentos e cinqüenta “perfis biográficos” que aparecem na forma de verbetes ao longo do livro, e principalmente, problematizar a questão da dualidade entre a vida cotidiana (representada pelas relações de família tão presentes no livro) e a vida “festiva” – representada pelos “heróis do choro”, como Gonçalves Pinto os chama. Como pano de fundo de todo o capítulo utilizarei os conceitos bakhtinianos de intertextualidade e carnavalização, sempre apoiado pelo binômio memória-etnografia em que se baseia este trabalho. Para que fique mais claro o modo como congrego meu referencial teórico, creio que seja de bom alvitre explicar um pouco do processo de pesquisa que norteou este capítulo. Desde o início compreendi que precisaria encontrar outras fontes que funcionassem como base de comparação para minha análise do texto de Gonçalves Pinto: neste sentido iniciei meus trabalhos procurando fontes populares de época que pudessem me fornecer parâmetros. Dentro deste panorama, um dos possíveis itens a serem analisados seria o das literaturas de folhetins. Uma escolha natural foi o romance Memórias de um sargento de milícias de Manuel Antônio de Macedo, que será abordado ao longo do capítulo. Amparado pela notável análise de Antonio Cândido sobre esta obra, pude fazer relações entre as diferentes “ordens” do legal e do ilegal, do cotidiano e do festivo que de certa forma são comuns às duas obras. Embora importante, este material ainda era claramente insuficiente: era preciso encontrar referências mais concretas sobre o tipo de leitura que o carteiro tinha à mão e sobre as linguagens que o circundavam. Uma outra escolha mais ou menos óbvia era a literatura sobre os ranchos carnavalescos, pelo fato de que, como ressaltado ao final do primeiro capítulo, muitos chorões da época pertenciam a este meio e o próprio Pinto mencione de forma recorrente esta manifestação ao longo de seu livro. Neste sentido foram fundamentais os estudos de Araújo (2005) e Gonçalves (2007), sendo que este último era particularmente útil por se utilizar das matérias de jornal da época sobre os ranchos. Mesmo assim eu precisava me aproximar ainda mais das vozes que emanavam destas manifestações carnavalescas – e não apenas vislumbrá-las através da visão da imprensa do início do século – para poder compará-las ao meu objeto de estudos. Partindo do ponto de vista da pesquisa etnográfica procurei por um lado entrevistar pessoas que pudessem ter tido contato com Gonçalves Pinto, como músicos de choro mais antigos e possíveis membros da família, como expliquei no capítulo anterior. Esperava que estes contatos me fornecessem elementos que me permitissem estabelecer conexões ou apontassem documentações ou arquivos onde eu pudesse de alguma forma “entrevistar” aquelas figuras biografadas pelo “Animal”. Um desses contatos foi o pesquisador Humberto Francheschi, fotógrafo e um dos mais importantes colecionadores de disco do Brasil. Conheci-o na época do meu mestrado, quando, em companhia de meu então orientador Samuel Araújo, estive em sua casa assistindo ao processo de digitalização dos discos 78 rpm do acervo Dulce Lamas, integrante do Laboratório de Etnomusicologia da UFRJ. Consultando-o a respeito do livro em uma conversa informal, Francheschi me afirmou ter conhecido um filho de Alexandre Gonçalves Pinto, àquela época também já falecido, conhecido pela alcunha de Xandico. Morador de Botafogo e tocador de cavaquinho como o pai, Xandico teria afirmado a Francheschi que o acervo de partituras de seu pai teria sido 93 doado a Jacob do Bandolim; entretanto Francheschi não tinha informações mais precisas a este respeito. Como a análise dos acervos de partitura de choro já fazia parte do meu objeto de estudos, rumei para o Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro, onde está atualmente depositado o acervo Jacob do Bandolim para uma verdadeira “pesquisa de campo” que durou alguns meses. O foco eram as partituras que pudessem ser identificadas como parte do acervo de Gonçalves Pinto e o resultado deste processo de pesquisa será tema do quarto capítulo deste trabalho. Entretanto ao longo da pesquisa encontrei outros materiais que me foram de extrema valia, como o fichamento sobre o livro “O Choro” elaborado por Jacob, visto em parte no primeiro capítulo. Já nos últimos meses de trabalho da tese, em uma das minhas últimas visitas ao Museu, deparei-me com uma pasta intitulada “Ameno Resedá”, também parte integrante do acervo Jacob do Bandolim. Nela encontrei exemplares do jornal editado por este rancho entre os anos de 1912 e 1920. Embora soubesse pela literatura acadêmica (principalmente por Efegê, 1965) que existiram de fato publicações editadas por estas agremiações carnavalescas eu jamais havia tido contato com elas, e nem sabia de qualquer escrito que as citassem. Esta descoberta foi um elo fundamental para minha pesquisa: os jornais editados pelo Ameno Resedá eram elaborados por diversos colaboradores, todos naturalmente pertencentes ao rancho. Continham editoriais que salientavam a “tradição” e a “história” da agremiação, descrições pormenorizadas dos cortejos de carnaval, caricaturas, sátiras aos integrantes do rancho, “causos” engraçados, tudo isso em uma linguagem “carnavalesca” que remetia diretamente ao livro de Gonçalves Pinto. Mais ainda, vários dos “biografados” pelo carteiro estavam lá, vistos sob outros prismas. 94 Desta forma, os jornais do Ameno Resedá me forneceram a chave para o entendimento de uma parte importante da linguagem utilizada por Gonçalves Pinto em seu livro. Em ambos os casos esta linguagem pode ser definida no dizer de Tinhorão (2000:15): Com seu comedido espírito de crítica, sua jeitosa irreverência, seu leve tom fescenino e, muitas vezes, com a tendência à grosseria e à chulice disfarçadas por recursos como o do jogo de palavras, a linguagem dos jornais carnavalescos brasileiros viria a revelar, em sua tradição de mais de um século, um curioso exemplo de conciliação literária entre a desbragada liberdade da fala popular das ruas e o sentido da boa moral das camadas burguesas urbanas1 Para este autor, muito embora as criações da imprensa carnavalesca brasileira não acrescentem muito aos modelos clássicos de formas cômicas de expressão escrita da literatura da antiguidade e Idade Média (calcada em fórmulas literárias cômicas como adinata, impossibilia, fatrasies, blasons, sermons joyeux, etc.), seria inegável, entretanto, atribuir a elas “uma inesperada prioridade criativa: a da invenção do nome e do conceito de carnavalização, tão em voga desde seu lançamento pelo russo Mikhail Bakhtin, em 1965.” (id., ib.). Em outras palavras, para Tinhorão a imprensa carnavalesca teria, já em finais do século XIX, inaugurado o conceito de “carnavalização” ao adotar o lema, presente em centenas de jornais carnavalescos da época, do ridendo castigat mores (“castiga os costumes rindo”, na tradução de Tinhorão). O autor cita alguns exemplos que comprovam a sua tese, como a do O philomono, do Recife, que, em 1904 “já propunha em inequívoca antecipação ao futuro 1 É curioso observar que o próprio Tinhorão, autor de um estudo fundamental sobre a linguagem cômica na imprensa carnavalesca de meados do século XIX e início do XX (Tinhorão, 2000), de onde foi tirada esta citação, não tenha aplicado o mesmo conceito de carnavalização em sua análise do livro de Gonçalves Pinto, como visto no primeiro capítulo. No entanto, a aproximação é evidente, como espero mostrar ao longo deste capítulo: Alexandre Gonçalves Pinto era ele mesmo diretor de um rancho carnavalesco, o Pragas do Egipto, e descreve em seu livro diversos membros de outros ranchos, como vimos no primeiro capítulo. 95 achado conceitual de Bakhtin: ‘Descarnavalizemos a República e Republicanizemos o carnaval’” (id.: 12). Muito embora Tinhorão não cite em seu estudo os jornais do rancho Ameno Resedá, também neles encontramos motes verdadeiramente “bakhtinianos”: assim, uma coluna publicada em um jornal de 1920, ao traçar um breve histórico do carnaval “desde os tempos da antiguidade” salienta: “Já houve tempo em que os papas se viram forçados a advertir os clérigos e o restante do pessoal das igrejas para que não se metessem em mascaradas, tanto era o empenho deles em rir e troçar nas vésperas do jejum quaresmal” (Jornal Ameno Resedá, 1920). Da mesma forma, como veremos ao longo do capítulo, encontramos em quase todos os periódicos do Ameno colunas satíricas que tinham por fito o “riso popular e coletivo” bakhtiniano, onde o próprio autor da sátira estava imerso na mesma. Assim, a descoberta dos jornais do rancho Ameno Resedá foi de fundamental importância para este capítulo: ela funcionou por um lado como elemento comparativo para a análise do texto do “Animal” e por outro como mais um dos campos por onde podemos vislumbrar outras tramas de discursos sobre as práticas musicais da época. Se o estudo de Gonçalves (2007) sobre os ranchos carnavalescos a partir dos jornais do início do século XX permite entrever “conflitos, presenças e ausências de determinados atores” que convergiriam para a constituição de uma ideia geral do conceito de “rancho”, a análise dos jornais do Ameno nos restitui em parte as vozes dos próprios componentes deste rancho, muitos dos quais pertenciam ao mesmo grupo de biografados por Gonçalves Pinto. É por esta razão que as citações destes jornais serão abundantes ao longo do capítulo: elas funcionam como mais um corpo de vozes que compõem nossa etnografia histórica. Feitas estas considerações, iniciamos nossa análise no próximo tópico com um pequeno estudo sobre a estrutura geral do livro. 96 2.1) Estrutura do livro Comecemos pelo título: O Choro – reminiscências dos chorões antigos. Uma segunda capa acrescenta um adendo importante, espécie de resumo da obra: Contendo: o perfil de todos os chorões da velha guarda, e grande parte dos chorões d’agora, factos e costumes dos antigos pagodes, este livro faz reviver grandes artistas musicistas que estavam no esquecimento. Duas constatações fundamentais emergem logo de início. A primeira é a de que título e subtítulo já mostram ao leitor o objetivo principal da obra: a construção da memória. Os termos “reminiscências”, “velha-guarda”, “reviver” e “esquecimento” já indicam este caminho. A segunda é a de que Gonçalves Pinto já nos apresenta os “chorões” como uma coletividade que se desdobra através do tempo: assim, o autor deixa claro que descreverá tanto os chorões da velha guarda como “grande parte dos chorões d’agora”. Veremos adiante como o autor conceitua o termo “velha-guarda” que aparecerá diversas vezes ao longo do livro. A segunda capa ainda nos apresenta as indicações de local e data – “Rio de Janeiro, 1936” –, o preço da obra – “quatro mil réis” – e a informação da tiragem da primeira edição – “10.000 exemplares”. Este foi um dado que sempre me intrigou, desde o início do processo de pesquisa. Procurando dados sobre o movimento editorial na década de 1930 verifiquei que uma tiragem de dez mil exemplares nesta época era destinada apenas aos livros de excepcional popularidade ou a livros didáticos adotados pela rede pública de ensino (Hallewell, 2005). Além disso, um escritor de grande popularidade na década de 1930 como Monteiro Lobato, tinha uma tiragem média de oito mil livros por edição2. A indicação dos dez mil exemplares no início da obra era 2 Fonte: Cruz, Maria Alice da. “Fábulas Fabulosas”, Jornal da UNICAMP, Ano XXIV, n. 468. Campinas, 12 de julho a 1º de agosto de 2010. 97 realmente uma informação correta ou teria havido um erro tipográfico? Minha primeira hipótese foi a de que por erro tipográfico (aliás muito abundantes no livro) acrescentouse mais um zero à cifra. Se uma tiragem de dez mil exemplares era algo relativamente raro na época, presumi que os custos financeiros para realizá-la seriam naturalmente elevados, e dificilmente estariam ao alcance de um carteiro aposentado. Embora Tinhorão (1998B) apontasse para o fato de que o livro traz em sua última página um anúncio publicitário - o das “Balas Busi” -, não acreditava que apenas aquela publicidade pudesse ter dado conta de todos os custos da impressão. Também não consegui encontrar qualquer dado sobre a tipografia Glória, onde o livro foi impresso. Desta forma, deixei este problema “congelado” e prossegui minha análise. Logo após a segunda capa o autor nos apresenta, como uma espécie de credencial que o identificará e mesmo o validará perante os leitores, a transcrição de uma carta e de um poema de Catullo da Paixão Cearense e dois “perfis” poéticos em forma de soneto, de autoria de um certo Max-Mar, de quem falaremos mais adiante: o primeiro retrata o próprio Gonçalves Pinto e o segundo tem como alvo “os chorões”, reforçando a ideia da coletividade. Detenhamo-nos agora na análise destes elementos. Catulo da Paixão Cearense, nascido em 1863 no Ceará, foi reconhecido pelos intelectuais da época como autêntico “poeta popular”, tendo publicado diversos livros com coletâneas de modinhas e canções da época, sempre com a preocupação de “corrigir” e adaptar as letras das poesias de modo a inserí-las na norma culta e no “padrão” exigido pela incipiente indústria cultural da época (Carvalho, 2006: 6). Chegado ao Rio de Janeiro em 1880, logo travou contato com o ambiente musical, aprendendo a tocar violão e compondo letras para músicas de inúmeros chorões, como Anacleto de Medeiros, Irineu de Almeida, entre outros. É sem dúvida uma referência para o carteiro que era, além de amigo pessoal, um leitor entusiasta da obra de Catulo, 98 da qual cita em O Choro pelo menos um livro, Mata Iluminada. Este livro de poesias traz uma descrição de chorões das últimas décadas do século XX e foi uma influência clara na obra de Gonçalves Pinto. Portanto nada mais natural que este solicitasse a Catulo um prefácio para seu livro. Em sua resposta, entretanto, Catulo se recusa a escrever o prefácio pedido, alegando não poder ser útil na “correção dos erros, porque só uma revisão geral poderia melhorá-lo”. Entretanto, incentiva Gonçalves Pinto a publicar o livro mesmo assim, afirmando que os leitores se “deliciariam com sua leitura, fechando os olhos aos desmantelos gramaticais”; ao mesmo tempo promete ajudá-lo nas correções para uma segunda edição. Como salienta Braga (2002: 195) trata-se sem dúvida de uma resposta carinhosa, motivada pelo real interesse em ver o livro publicado: “Só mesmo tu, com o seu grande coração, seria capaz de uma obra tão saudosa para os que, como eu, viveram aqueles tempos de imarcescíveis recordações”. Com a recusa de Catulo, Gonçalves Pinto resolve escrever ele mesmo um prefácio para sua obra: entretanto, a título de preâmbulo, publica a carta de Catulo na íntegra. Este fato, classificado por Tinhorão (1998b: 94) como mais uma prova da “ingenuidade” do carteiro, é bastante significativo, a meu ver, e reforça o caráter dialógico do livro. Longe de se constituir como algo ingênuo, interpreto o ato como uma estratégia de validação da obra. Abrir o livro com uma carta de Catulo da Paixão Cearense, um dos mais populares poetas da década de 1930 era uma forma de credenciar o autor, mero carteiro anônimo, perante o grande público. Ainda que houvesse críticas aos “desmantelos gramaticais”, a carta era em essência congratulatória e apresentava Gonçalves Pinto como parte do círculo de chorões, que lhe ficariam “devendo eternamente o serviço que lhes presta[va], tirando-os do esquecimento”. Mais importante, a carta apresentava Pinto como parte do círculo de amizade pessoal de 99 Catulo, como se depreende do final do documento: “E, para terminar, recebe o abraço do amigo velho, que não se cansará de felicitar-te pela lembrança feliz deste formoso, carinhoso e saudoso breviário dos dias da nossa festiva, alegre e rumorosa mocidade.” (grifos meus). A menção a “nossa festiva mocidade” colocava o carteiro em posição de cumplicidade com Catulo, por indicar um passado comum. Portanto, apresentar a carta como preâmbulo do livro funcionava como uma espécie de chancela por parte de um escritor reconhecido para com um autor anônimo: ainda que apontasse as falhas gramaticais, o poeta assegurava, por assim dizer, a importância da obra. Falamos no capítulo anterior sobre o caráter dialógico inerente a todo o livro impresso: no caso do Animal, o importante a ser ressaltado é o fato de que ele sabia exatamente qual seria o seu público leitor, e antevê, ao longo do livro, possíveis críticas ao seu trabalho: o uso da carta, portanto, era uma forma de resguardo às críticas. Logo após a carta de Catulo, seguem-se dois perfis poéticos, assinados por certo Max-Mar. O primeiro e mais importante é sem dúvida o “Perfil do Animal”, um dos poucos documentos que nos permitem vislumbrar a personalidade de nosso autor – Pinto pouco fala, ao longo do livro, sobre sua trajetória pessoal ou detalhes de sua própria biografia –, razão pelo qual este soneto sempre citado nos poucos estudos que abordam a obra de Gonçalves Pinto (Tinhorão 1998b, Braga, 2002): Alto, já bem grisalho e urucungado, Physionomia alegre, e sempre brincalhão; E' sincero e leal, e por todos estimado, Governa a sua vida, com o proprio coração. Bom chefe de familia, funccionario honrado Tocador de Cavaquinho, e cuéra Violão: Ser politico sempre foi seu maior predicado E por varias vezes já tem sido pistolão. Tendo o dom da palavra é intelligente, Anda sempre sem dinheiro mas... contente... P'ra comer e beber é grande General, 100 Conhecedor de toda gyria da cidade E' o prototypo extremo da bondade: Eis aqui traçado o perfil do "ANIMAL". Este soneto “de pé quebrado”, conforme afirma Tinhorão (1998b: 94), nos dá uma amostra do “tipo de humor que presidia as relações entre elementos da baixa classe média” (idem) e ao mesmo tempo nos fornece alguns elementos da personalidade do “Animal”. Através do perfil poético de Max-Mar, ficamos sabendo que Gonçalves Pinto tocava violão e cavaquinho, era um dedicado chefe de família, apesar das inclinações boêmias de que o próprio autor nos dá testemunho ao longo de diversas passagens do livro – veremos em um tópico posterior que a dualidade entre a vida familiar e a “vida festiva” era uma característica dos instrumentistas classificados por ele como “heróis do choro” – além de ser “estimado por todos”. A alcunha “Animal” certamente deve ser creditada ao fato de que Gonçalves Pinto seria um “grande general” para comer e beber, como, aliás, boa parte dos seus biografados. Outro dado digno de nota no soneto é a menção ao fato Gonçalves Pinto ser “conhecedor de toda a gíria da cidade”. Este é um fato comprovado ao longo do livro: Pinto se utiliza de diversas gírias e fórmulas de oralidade da época para escrever seu relato. Veremos em um tópico posterior neste capítulo de que forma seu discurso é permeado por gírias e fórmulas da oralidade da época e de que forma estes elementos também são colocados, por assim dizer, na “boca” de seus biografados. Após o “Perfil do Animal”, o livro apresenta outro poema intitulado “Perfil dos Chorões”, de autoria do mesmo Max-Mar. Composto por “seis quartetos em decassíbalos medíocres” no dizer de Tinhorão (1998b: 95), o poema tem a virtude de reforçar o fator identitário do grupo sobre o qual o autor procura construir uma memória social. Ele se inicia reforçando a ideia de tradição, apontando para um passado comum característico da construção de uma memória coletiva, como vimos no capítulo anterior: 101 Conjuncto de flautas maviosas, Chorões de cavaquinhos e violões ! Tereis neste livro as vossas rosas E do antigo tempo: as tradições. (8, grifo meu) Ao mesmo tempo perpassa pelo poema uma tentativa de “glorificação épica” dos grandes instrumentistas que compunham o universo do choro e uma espécie de lamento pela perda da geração dos chorões mais antigos. Estes dois fatores são recorrentes na prosa de Alexandre. Fórmulas como “Fulano era como um cometa que passa de cem em cem anos”, e “fulano ainda hoje é lembrado e chorado no círculo dos chorões”, serão muito repetidas ao longo do livro, como a reforçar continuamente ao leitor a ideia de um grupo unido por um passado comum (não por acaso ambas as fórmulas aparecem, com pequenas variações, logo no primeiro “verbete” do livro, que versa sobre Callado). No poema estes dois elementos também aparecem, como pode ser exemplificado nos quartetos abaixo. O primeiro cita os chorões como “astros fulgentes” e o segundo funciona como uma evocação: Grandes astros fulgentes se sumiram, Rebrilharam nos antigos ambientes, E as alegrias comnosco repartiram Evocando melodias refulgentes. Em cada chorão, findou-se um baluarte, Que deixou em nosso peito uma saudade, Que a germinar, corróe por toda a parte Desde o momento que subiram a eternidade. No último quarteto o poeta Max-mar evoca o próprio autor do livro, como se falasse por ele, e acaba por fazer um retrato da essência da obra: Vou tentar reviver celebridades, Fazer dos bons artistas allusões, Distinguindo em cada um a qualidade E demonstrando o perfil dos bons chorões 102 Ora, distinguir “em cada um a qualidade” de modo a compor um cenário positivo do grupo descrito, e ao mesmo tempo salientar as características de união entre os chorões é exatamente o que o autor procurará fazer ao longo de todo o livro. Desta forma os dois poemas funcionam como uma espécie de pórtico da obra, descrevendo seu autor e o grupo sobre o qual ele escreve. A linguagem e o estilo utilizados refletem um misto do arroubo parnasiano e do estilo “empolado” que estão em total acordo com os que eram veiculados em jornais, revistas e folhetins populares da época. Resta, entretanto, uma pergunta a ser respondida: quem seria este Max-Mar, colocado por Gonçalves Pinto como espécie de “apresentador”, ao lado de Catulo, do livro e de seu autor? Braga (2002: 196), mostrou que com toda a probabilidade este pseudônimo esconde o nome de um certo Maximiano Martins, um dos biografados por Gonçalves Pinto ao longo do livro. Conhecido pela alcunha de “Seu Velho”, Maximiano é citado como intermediário em um episódio onde Pinto tenta arrumar emprego para um boêmio chamado Leite Alves (daí o fato de Maximiano classificar Pinto como “pistolão” em seu “Perfil do Animal”). Entretanto não há no livro nenhuma outra menção a este Maximiano. Este foi um dos pontos que consegui desvendar graças aos jornais publicados pelo rancho Ameno Resedá. Analisando alguns exemplares constatei que o nome de Maximiano Martins aparecia diversas vezes como componente da “Comissão Carnavalesca” do rancho; mais do que isso, Maximiano Martins era editor do jornal e uma das figuras principais do rancho, conforme deixam entrever as várias descrições sobre ele em exemplares diversos. Conhecido também pela alcunha de “Lord Fita”, seu retrato aparece na capa da edição de 1917 como “presidente de honra” da agremiação. 103 Fig. 2 - Maximiano Martins (“Max-Mar”), editor e fundador do jornal do Ameno Resedá No editorial deste jornal de 1917 há um pequeno histórico sobre o nascimento do jornal e o papel de Maximiano neste processo: “Em 1911 saiu o 1º número do “Ameno Resedá”, jornal de propriedade exclusiva desta Sociedade e fundado pelo incansável carnavalesco Maximiano Martins (“Lord Fita”) Distribuído gratuitamente ao Povo Carioca, foi condignamente recebido por ter desta forma as pequenas Sociedades dado início ao desenvolvimento literário no seio dos ranchos carnavalescos, que até então eram 104 tidos como simples agrupamentos de indivíduos, sem o culto necessário a apresentação social, pela maneira exótica com que se apresentavam, a rufarem ensurdecedoramente os tamborins, (...) (Jornal “Ameno Resedá”, 1917, grifo meu) Neste mesmo exemplar de 1917, em uma coluna intitulada “O Resedá na intimidade”, onde os membros da diretoria eram descritos de forma satírica, o papel preponderante de Maximiano é descrito da seguinte forma: O seu velho, o Lord Fita, é o mesmo Pau Ferro de todos os carnavais rijo, de uma têmpera especial de aço e bronze, resistindo a todas as intempéries, inclusive a intempérie política! Fala, grita, gesticula, desespera-se, unicamente para cumprir à risca o grito de carnaval na rua! É o Cacique, é o Aymoré da tribo! (Jornal do Ameno Resedá, 1917) Além disso, podemos acrescentar mais um dado biográfico a este “cacique” do Ameno Resedá: em diversos exemplares do jornal aparecem anúncios publicitários de uma certa “Papelaria e Typographia Sportiva”, especializada na “Boa execução de trabalhos comerciais”, de propriedade de Maximiano Martins. Ora, se Martins era dono de uma tipografia e diretor do rancho, o mais provável é que o jornal tenha sido impresso em sua tipografia. Interessante é também notar que as edições saíam com tiragem de 10.000 exemplares, certamente custeadas pelas diversas propagandas comerciais abundantes no jornal. Já se sabe aonde pretendemos chegar: sendo amigo pessoal de Alexandre Gonçalves Pinto e tipógrafo, é possível que Maximiano Martins tenha sido o editor e impressor de “O Choro”. O nome da tipografia que consta no livro “Tipografia Glória” não corresponde ao anunciado no jornal, “Tipografia Sportiva”; entretanto há que se levar em conta que os jornais foram publicados entre 1912 e 1920 e o livro do “Animal” é de 1936, como sabemos. Neste meio tempo Maximiano pode ter trocado de tipografia; ou ainda pode ter indicado alguma outra tipografia a seu amigo Gonçalves Pinto. São fatos dos quais não podemos ter certeza, mas que acrescentam mais informações ao problema de como identificar o editor/impressor da obra. 105 Mais importante do que isso é a constatação de que, de modo semelhante a “O Choro”, todos os jornais do Ameno Resedá traziam, logo em sua primeira parte, poesias de autoria de seus associados e admiradores, todas ao estilo de Max-mar (alguns inclusive assinados pelo próprio), normalmente retratando de forma satírica alguns dos membros do rancho. Veja-se, por exemplo, o soneto abaixo, de autoria de um certo Krapeta: Cheio, pançudo, comodista e frio Ei-lo a figura, exata tal qual é Faz tudo e sem o mínimo arrepio É qual um peixe no vazante da maré Carnavalesco, da têmpera e macio No Resedá é figura que faz fé Briga, discute e fala (em desafio) É o mentor de tudo, isso é que é Para tudo dizer, aqui não devo Nem mesmo a tal couza me atrevo Pois fora disto, indômita franqueza Porém se me permitem, lhes direi Se é falso ou verdadeiro, nem eu sei É o tipo supremo da alta fidalguia (Jornal do Ameno Resedá, 1917) Como se vê, o estilo é “joco-sério”, calcado na caricatura, de modo a fazer com que os leitores reconhecessem o “personagem” sem que fosse preciso citar seu nome. Como este aparecem dezenas de perfis nos jornais do Ameno: eles constituem uma espécie de “riso coletivo” a que estavam submetidos todos os que se afiliavam às entidades carnavalescas: certamente havia uma espécie de “embate” satírico entre os componentes, manifestos em forma de poemas ou em colunas específicas, como a que citamos anteriormente, intitulada “O Resedá na intimidade”: esta era composta por pequenos parágrafos onde se descreviam os membros mais importantes ou queridos do rancho – e sem dúvida foi um modelo para nosso carteiro, razão pela qual nos 106 ocuparemos dela com mais vagar em um tópico adiante –, salientando sempre as características mais grotescas de cada um. Normalmente assinada sob pseudônimo, a linguagem é permeada de gírias da época, a ponto de termos a legibilidade do texto comprometida hoje em dia (exatamente como no caso do “Animal”). Em uma das colunas, antes das descrições satíricas dos membros, o autor afirma: De rapares e mesuras, tenho esgotado o espaço e se vou assim ternura, o que eu quero não faço, portanto... lá vai do saco! (o fim só é um: brincar!) não vale dar o cavaco e muito menos zangar. Benfeitor ou contribuinte, sabido, arara ou turuna, fundador ou mesmo ouvinte, tudo entra na borduna! (Jornal do Ameno Resedá, 1917) Em outras palavras, não importava a hierarquia ou posição social do associado, fosse ele “benfeitor ou contribuinte”, “arara ou turuna” (estas duas gírias parecem indicar “boçais” ou “valentes”, respectivamente), todos (inclusive o próprio colunista) seriam alvo da descrição satírica (ou a borduna, no dizer do autor) da coluna. O fim era uma espécie de “riso coletivo” como afirmamos anteriormente, que se aproxima bastante do conceito de Bakthin (1984:10-11) do riso popular: “Uma qualidade importante do riso na festa popular é que escarnece dos próprios burladores. O povo não se exclui do mundo em evolução”. Assim, se o riso é coletivo, “não vale dar o cavaco ou muito menos zangar”, como afirma o colunista: todos estariam imersos no mesmo processo. À luz das informações acima as poesias que abrem o texto de Alexandre Gonçalves Pinto adquirem nova significação. Elas introduzem, por assim dizer, o caráter popular-carnavalesco do livro. A finalidade principal do livro é a construção da memória do choro, mas esta só é possível através do uso destas linguagens heteroglóssicas (que beiram por vezes o dialetal, com gírias, sátiras, e fórmulas específicas de oralidade) que faziam parte do universo dos leitores do “Animal”. Diversas das crônicas que Pinto apresenta em seu livro dir-se-iam tiradas das colunas 107 satíricas do jornal do Ameno Resedá: algumas delas até se confundem realmente. Reutilizo aqui o conceito de dialogismo: embora tenha escrito seu livro também para que a “posteridade” não olvidasse aquela “plêiade de chorões” (275), Gonçalves Pinto escreve também para um público específico, o grupo de chorões que ainda permanecia vivo e que falavam uma linguagem comum: a língua satírica e popular presente não apenas nos jornais dos ranchos, mas nos folhetins e revistas populares e no cotidiano geral. De certa forma, ao escrever seu texto povoado de gírias, sátiras e fórmulas de oralidade ele antevê a leitura e o riso de seus pares, assim como o colunista satírico do jornal do Ameno Resedá antevia o riso dos que o leriam. E, não por acaso, os dois poemas de Max-Mar colocados na abertura do livro funcionavam como uma forma de identificação imediata desta linguagem para estes leitores específicos. Continuemos nossa análise da estrutura do livro: logo após os dois poemas temos o “Prefácio”. Aqui importa notar mais uma vez a questão da linguagem: ao receber a recusa de Catulo, Gonçalves Pinto vê-se na contingência de ter que redigi-lo, e nosso desafio é tentar imaginar em que modelo nosso carteiro se baseou para realizar esta tarefa. Porque o que se percebe é que a linguagem utilizada em parte do prefácio é diferente da usada no resto do livro: nota-se uma tentativa de intertextualidade com conceitos pertencentes a um universo “erudito”, que surgem muitas vezes sem qualquer conexão com o que será apresentado ao longo do livro – talvez pelo fato de que para o carteiro o prefácio deveria ser algo mais “formal”, daí outra razão para que ele tivesse convidado originalmente o “erudito” Catulo para a tarefa. Detenhamo-nos agora na sua análise. Cumpre de início entender que o prefácio pode ser dividido em duas partes: o primeiro parágrafo, que é praticamente uma justificativa ao leitor pelo que Alexandre, certamente já influenciado pelas críticas de Catulo, considera o caráter “despretensioso” da obra: “cada um escreve o que pode ou o que sabe”. Ao mesmo tempo ele tenta 108 cooptar o leitor para que este entenda o “ambiente agradável e espontâneo” com que a obra foi escrita: Ao dar publicidade a um livro encontramo-nos sempre na duvida de um facto auspicioso para os leitores, emfim cada um escreve o que póde ou o que sabe. Estas linhas não tem a pretenção de mostrar erudição nem é commercial nem expositiva; é tão simplesmente em linguagem dispretenciosa, ao alcance de todas as Intelligencias, assim como da pessoa que escreveu que communga no mesmo credo, escrevendo de bôa fé, se sentindo num ambiente agradavel, expontaneo, não tendo ao menos a intenção de instruir, quer seja para o bem ou para o mal. (9) A partir daí, entretanto, a linguagem muda e o que se tem é uma verdadeira miscelânea de conceitos e ideias: Factos occoridos de 1870 para cá. São chronicas do que se respirava no Rio de Janeiro neste periodo desde o tempo do João Minhoca, da Lanterna Mágica do Chafariz do Lagarto, dos Guardas Urbanos, dos pedrestes até hoje, com as policias mais adeantadas actualmente, o autor só teve por fito recordar, que é um novo sentir e tornar a viver conforme a phrase do poeta, trazendo ao scenario do ambiente actual a comparação do que foi e do que é actualmente, a Maria Cachucha, Moquécas Bahianas e os Trinta Botões do theatro antigo até a Cidade Maravilhosa de hoje, assim como são comparadas as religiões, as sciencias e o credo politico; são comparados os costumes na vida dos pobres de accôrdo com a evolução, tivemos por tradição os costumes bahianos que foram trazidos da Africa pelos nossos queridos antepassados e firmaram os costumes no Brasil, naquilo que é nosso e que aqui guardamos com a maior veneração dentro de nossos corações. (9) Como se nota, este trecho apresenta somente duas frases: uma muito curta (que define todo o tempo histórico do livro: “de 1870 para cá” ou seja de 1870 a 1936) e outra enorme, com um verdadeiro novelo de citações embaralhadas, que incluem referências a lugares, fatos culturais da época e conceitos difusos sobre origens, nacionalidade e evolução. Tentaremos agora desvendar este novelo, começando com as citações históricas: o “João Minhoca” era um personagem de teatro de bonecos que se tornou muito famoso no Rio de Janeiro na década de 1880, e que inclusive é citado por João do Rio em uma crônica na Revista Kosmos de 1905. Criado por um tipógrafo negro chamado João Baptista, a estréia do personagem teria sido feita em um teatro improvisado nos jardins da Cervejaria Guarda Velha, situada na rua da Guarda Velha, atual Treze de Maio. Com o sucesso do personagem, Baptista chegou a excursionar por 109 diversas cidades do Brasil e a se apresentar para o imperador D. Pedro II: a história da Companhia de Teatro João Minhoca foi alvo de estudo da historiadora Susanita Freire (Freire, 2000). A “Lanterna Mágica” era um aparelho ótico, espécie de antecessor do cinema, constituído por uma caixa óptica de madeira, folha de ferro, cobre ou cartão, de forma cúbica, esférica ou cilíndrica, que projeta sobre uma tela branca (tecido, parede caiada, ou mesmo couro branco, no século XVIII), numa sala escurecida, imagens pintadas sobre uma placa de vidro (Mannoni, Laurent. 2003 apud Miranda, 2008) . Tal tipo de divertimento era comum na metade do século XIX principalmente entre as classes populares, sendo freqüente sua exibição em lugares públicos, como o citado Chafariz do Lagarto, situado na rua Frei Caneca, centro do Rio (Miranda, 2008) Os “Trinta botões do theatro antigo” parece ser uma referência a uma peça teatral de grande sucesso na época intitulada “Os trinta botões”, de autoria do português Eduardo Garrido (1842-1912). A “Maria Cachucha”, ou simplesmente “cachucha” segundo a Enciclopédia da Música Brasileira, seria uma “dança espanhola, cantada e sapateada, que se difundiu nas cidades e vilas do Brasil desde a segunda década do século XIX” (EMB, 2000). Estas citações parecem ter a única função de mostrar algumas das referências culturais do passado, em uma espécie de ambiência histórica e afetiva do Rio de Janeiro das últimas décadas do século XIX, já que não há, ao longo do livro, qualquer outra referência a estes mesmos fatos — João Minhoca, Maria Cachucha, etc. No entanto, eles são aqui citados, para que, segundo o autor, fossem comparados com os tempos atuais (a “Cidade Maravilhosa de atualmente”), assim como são comparados as religiões, as sciencias e o credo politico; são comparados os costumes na vida dos pobres de accôrdo com a evolução, tivemos por tradição os costumes bahianos que foram trazidos da Africa pelos nossos queridos antepassados e firmaram os costumes no Brasil, naquilo que é nosso e que aqui guardamos com a maior veneração dentro de nossos corações (id., ib., grifo meu) 110 Tal como Ginzburg em seu já citado estudo sobre o moleiro Menoccio, poderíamos nos perguntar de onde o carteiro Alexandre Gonçalves Pinto teria tirado estas ideias a respeito de “ancestralidade” e “origem” das tradições. A referência de nossas tradições, segundo Pinto, seriam os “costumes baianos” que teriam sido trazidos pelos nossos “queridos antepassados africanos”. Esta confusa relação entre Bahia e África como “fontes” e “origens” das tradições brasileiras sem dúvida já estava presente no imaginário popular e também nas ideias de intelectuais desde o século XIX. Conforme demonstram Abreu e Dantas (2007), ao lado das ideias de branqueamento e de teorias sobre a inferioridade de populações miscigenadas, a produção de folcloristas sobre a música brasileira e a canção popular, entre o final do século XIX e o XX, também criou um espaço que reconhecia e valorizava a presença ativa dos descendentes de africanos na nação projetada. (...), o folclore nacional, a poesia e a música popular, em especial, tornaram-se bandeiras de intelectuais que investiam na descoberta e na divulgação de manifestações culturais mestiças. Mesmo que reproduzindo algumas máximas apregoadas sobre a “raça negra”, mesmo que investindo na certeza da transformação dos traços musicais africanos e na escolha de determinados gêneros como os mais nacionais, não desprezaram a contribuição dos seus descendentes para o que definiam como traço original da cultura brasileira. (Abreu e Dantas, 2007: 129) Tais ideias, ainda segundo a autora, não ficavam restritas ao ambiente intelectual, mas estavam em permanentes diálogos (e também conflitos) com a cultura das ruas — a música e a poesia populares, por exemplo —, repleta de influência de artistas negros ou mulatos, como Anacleto de Medeiros, Eduardo das Neves, Baiano, entre outros (id, Ib.). É neste contexto de intensa troca entre o pensamento de folcloristas/intelectuais e os artistas urbanos que devem ser entendidas as ideias de Pinto sobre as origens e sobre a tradição. Um exemplo muito importante que ilustra esta relação é a citação, no livro O Choro, do escritor e intelectual Mello Moraes Filho como um dos “personagens” ativos das rodas de choro da época, conforme assinalado por Carvalho (2006: 27). Veremos com maior profundidade as possíveis relações de 111 intertextualidade entre as obras de Mello Moraes e o texto Gonçalves Pinto no capítulo três. Finalmente o leitor é apresentado ao que será o alicerce do livro: os verbetes biográficos e temáticos que compõem a obra. São ao todo 350 “entradas” de verbetes biográficos (sendo que em alguns casos um único verbete funciona como mote para que o autor discorra sobre vários “biografados”) e 25 “não biográficos”. A ordem com que estes verbetes são escritos não segue qualquer lógica aparente: o “Animal” escrevia “à proporção que vou [ia] lembrando”, sempre reiterando que o fazia “com muita dificuldade”, já que pelo “peso dos anos” era difícil conservar “a mesma memória de 40 anos passados” (15). Os 25 verbetes “não biográficos” têm diferentes funções: eles são por vezes narrações de “causos” satíricos referentes às rodas de choro, escritos na referida linguagem “carnavalesca” dos jornais dos ranchos; mencionam lugares, pontos de encontros entre músicos, pessoas gratas ao ambiente do choro; descrevem gêneros musicais da época; tecem informações sobre eventuais fatos políticos ou acontecimentos relevantes da época; e finalmente indicam ideias mais amplas sobre as práticas musicais, conceitos sobre nacionalismo etc. Analisaremos com maior profundidade os verbetes biográficos e não biográficos no item 2.3 (“O etnógrafo do choro”) deste capítulo. Por ora, o que nos interessa é traçar um panorama geral da estrutura da obra, apontando para empréstimos e influências utilizadas pelo carteiro em seu processo de escrita. A tabela abaixo nos permite sintetizar esta estrutura: 112 Tabela 2 – Estrutura Geral do Livro Texto Observações Carta de Catulo Espécie de “chancela” escrita por uma “personalidade” da época, apresentando um autor praticamente anônimo Escrito por Maximiano Martins, um dos diretores do rancho Ameno Resedá: escrito ao estilo das publicações do rancho, apresenta ao leitor o caráter popular-satírico da obra. Idem ao anterior, reforça o caráter de identidade que Gonçalves Pinto procurará imprimir ao grupo de instrumentistas e admiradores do choro Escrito por Alexandre G. Pinto, sua linguagem difere do resto do livro. Notase claramente uma tentativa de intertextualidade com um universo “erudito”: ideias sobre ancestralidade, religião e política. Apresentados sem qualquer ordem aparente, seja cronológica ou outra (por instrumentos, por exemplo). Escrito também sob influência do estilo folhetinesco dos periódicos dos ranchos Perfil do Animal Perfil dos Chorões Prefácio 375 verbetes biográficos ou temáticos Epílogo Para finalizar este tópico, só nos resta analisar o epílogo do livro. Sua linguagem também é permeada por discursos diversos: sente-se a influência da crônica jornalística da época (principalmente a de Vagalume, conforme veremos no próximo capítulo), a nítida presença de fórmulas e frases feitas presentes na linguagem dos periódicos dos ranchos como o do Ameno Resedá e finalmente a procura por certo tom grandiloqüente, certamente fruto de uma ideia pré-concebida de epílogo como algo que fazia parte da estrutura “erudita” de um livro. Além disso, ele nos traz mais uma vez a ideia de construção de memória, vista agora como resultado de uma “imposição divina”, não obstante as diversas dificuldades encontradas pelo carteiro no processo de escrita: 113 Ao finalizar este livro que era os meus sonhos dourados, perpetúo estes musicistas descritos, mal ou bem de acordo com os meus obscuros conhecimentos. Mas o que fazer bons leitores? Agi como se fosse impulsionado por uma missão que me parecia ser ditada pelo poder Supremo de todas as cousas, que muitas vezes faz-nos esmorecer quando temos uma vontade unida a fé (...) Não foi fácil a minha tarefa, lutei como um náufrago que agarrado ao batel da Esperança, luta sulcando o mar revolto da descrença. (207) Ora, o uso da imagem do náufrago como símbolo de superação das dificuldades também era bastante comum nas publicações carnavalescas da época. Batel, esperança, esforço, descrença, bonança: todos estes termos faziam parte do universo de metáforas que estavam ligadas, na linguagem popular carnavalesca, à ideia de superação de dificuldades em condições adversas. Compare-se, por exemplo, o trecho acima com um soneto publicado no jornal do rancho Ameno Resedá de 1914 assinado por Lord Colibri: Nautas do mar ao porto da esperança Marchamos no batel do esforço e do labor Que importa que nem sempre olhemos a bonança Se temos sempre o riso a mitigar a dor De sorte o vento atroz, de todo não nos cansa Nem mesmo o mais horrendo espectro do terror No peito temos fé porque a nossa Águia alcança O vôo mais veloz, mais alto do que o Condor Devemos resistir a vaga resoluta Que impele a mocidade às plagas do descrer Avante pois amigo! Irmão da mesma luta Que importa a mágoa a nós. Cumpramos o dever De Momo aí está, feliz, a festa alegre e astuta Heia! Tristeza fora! Sigamos pra vencer! (Jornal Ameno Resedá, 1914) O fator mais importante a ser ressaltado em nossa análise sobre o epílogo, entretanto, é o caráter de missão do livro, que o autor identifica agora como uma 114 imposição “ditada pelo Ser Supremo”. Como apontado no primeiro capítulo, um dos desafios desta tese é o de tentar “ouvir” as vozes que emergem do texto de Gonçalves Pinto e, na medida do possível, tentar extrair de seu texto o maior número de respostas às questões que me surgiam à medida que o trabalho avançava. Neste sentido, o epílogo da obra é precioso, por nos fornecer elementos chaves que nos auxiliam a responder a uma questão fundamental: o que levou o carteiro a escrever este livro? O epílogo é um dos poucos trechos do livro em que o autor não é porta voz de outros personagens; sua função agora é não mais a de descrever e fazer ressoar as vozes de seus biografados, mas a de refletir sobre o ato, as dificuldades e as funções de sua escrita. As dificuldades são muitas e Gonçalves Pinto está cônscio de ter escrito “um livro pobre de literatura, cheio de erros gramaticais” (207), que o fazem sentir “como um náufrago”, na linguagem popular dos periódicos dos ranchos. Apesar disso, entrevêse o prazer da escrita, que o faz criar em seu cérebro “extraordinarios castellos de fantasias que com o correr dos tempos se desmoronavam como as bolhas de sabão” (idem); estes castelos de memória, “ricos na extensão da palavra”, apesar da não utilização da norma culta, tinham o poder de fazer “ressurgir das trevas uma grande parte das celebridades que dormiam no esquecimento”. Esquecimento que não era apenas decorrente da passagem do tempo, mas também do fato de que a maior parte destas “celebridades” era praticamente anônima: Leopoldo Pé-de-Mesa, Benigno Lustrador, Gonzaga da E.F.C.B, Luiz Caixeirinho, e tantos outros conhecidos apenas por seus apelidos. Assim, é o epílogo o trecho em que ficam mais visíveis as intenções do autor: a construção de memória para que as gerações d'agora e futuras saibam que existiu essa grande phalange de chorões que elevaram e inalteceram as musicas genuinamente Brasileiras, muzicas essas que jamais poderão desapparecer dos grandes ou pequenos archivos dos bons collecionadores 115 2.2) O “choro”, a “roda” e a “velha-guarda” Antes de abordarmos com mais profundidade os “biografados” de nosso carteiro, cumpre agora analisarmos de forma mais específica o conceito de “choro” utilizado no livro. De forma geral a bibliografia (como Tinhorão 1998b) salienta o fato de que Gonçalves Pinto designa como “choro” o agrupamento instrumental formado por instrumentos populares que tocavam gêneros como polcas, valsas, schottichs, etc. Para comprovar esta afirmativa realizei um fichamento de todas as aparições da palavra “choro” ao longo do livro, e pude verificar que há na realidade pelo menos três acepções utilizadas pelo autor para designar a palavra: 1) choro como agrupamento instrumental; 2) choro como sinônimo de festa ou do lugar físico onde se praticava esta música e 3) choro como uma “peça” ou um “gênero” musical. As duas primeiras acepções são mais comuns, mas a terceira também aparece de forma significativa, ao contrário do que nos dá a entender a bibliografia. Também aparecem mais duas designações que merecem nossa atenção: “choros moles” (12, 37,47,68, 142, 189) e “choros americanos” (194). Como vimos, logo após o prefácio Gonçalves Pinto escreve um pequeno texto intitulado “Os choros”. Vejamos agora o que podemos extrair do seu texto: Quem não conhece este nome? [ou seja, “os choros”] Só mesmo quem nunca deu naqueles tempos uma festa em casa. Hoje ainda este nome não perdeu de todo o seu prestigio, apesar de os chôros de hoje não serem como os de antigamente, pois os verdadeiros choros eram constituidos de flauta, violões e cavaquinhos, entrando muitas vezes o sempre lembrado ophicleide e trombone, o que constituía o verdadeiro choro dos antigos chorões. (11) Em todo este trecho o autor parece se referir ao choro como sinônimo de agrupamento instrumental; ele ressalta a popularidade do termo e o fato, tão bem apontado por Tinhorão, de que este agrupamento instrumental tinha uma função social fundamental para as classes sociais médias-baixas da sociedade carioca da época – a de fornecer música para festas e ocasiões especiais. A menção ao fato de que o termo choro “ainda hoje” (ou seja, na década de 1930) não perdera “de todo o seu prestígio” sinaliza 116 que de alguma forma a “função social” cumprida por este agrupamento já não cumpria o mesmo papel, sem dúvida pelo aparecimento de outras formas cada vez mais populares de diversão, como o disco e o rádio. Ressalta-se também no trecho a questão da instrumentação: os “verdadeiros choros” eram constituídos de flauta (que cumpria a função melódica), violão e cavaquinho (que cumpriam as funções rítmicas e harmônicas); trombone e oficleide, que entravam com a função de fornecer os contracantos graves tão característicos do choro (função que posteriormente, a partir da década de 1950 passaria ao violão de sete cordas). Ao lado da utilização do termo como sinônimo de agrupamento instrumental, abundam no livro citações do mesmo como sinônimo de festas ou de lugares onde esta música se dava. Assim, “Pedrinho [o flautista Pedro Galdino] raras vezes dizia não aos seus camaradas fosse onde fosse o choro” (20); o também flautista Jupyaçara “apesar dos seus janeiros ainda não deixa de ir ás festas, chôros e reuniões de amigos com a sua linda flauta toda de prata” (23). Guilherme Dias, na sua flauta, “sabia dizer o que sentia e assim tocamos muito nestes chôros na cidade nova e no morro do Pinto” (29); Léo Vianna, irmão de Pixinguinha dava “choros em sua casa” que eram de “arrepiar os cabelos” (44). Junto com estas duas acepções aparece uma terceira: “choro” como sinônimo de uma “peça” ou “gênero” musical. Assim, “nenhum dos antigos musicos escreveu tanta quantidade de chôros como Candinho Silva tem escripto” (16); Bacury era “flauta respeitado da antiguidade, grande compositor de Chôros” (23); “Callado não era só músico para tocar de primeira vista, como também para compor qualquer chôro de improviso (12); “a belleza e os sentimentos dos chôros que elle escreveu [refere-se ao flautista Juca Kallut], com arte e bom gosto que tinha pela musica, muito o elevaram no conceito de outros grandes músicos e professores”; [sobre Chiquinha Gonzaga] 117 “Quando pedia-se para tocar um chôro, não se fazia de rogada” (42); “Lá pelas tantas da madrugada depois de muitos chôros tocar, puzemos a cantar modinhas” (26) Sobre esta última acepção o questionamento que se impõe é: a designação “choro” como sinônimo de “peça” ou “gênero” musical seria uma característica da década de 1930 que o carteiro estaria usando retrospectivamente para descrever situações mais antigas? Em outras palavras, o fato de Gonçalves Pinto afirmar que Callado compunha “choros de improviso” indica que o próprio designava assim suas composições ou trata-se de uma apropriação do termo pelo carteiro? Ora, sabemos pela análise de cadernos manuscritos de partituras de fins do século XIX e inícios do XX que as composições dos chorões mais antigos eram designadas como polcas, schottischs, valsas, mazurcas e quadrilhas. Entretanto parece razoável supormos que já se utilizava, pelo menos desde a primeira década do século XX, o termo “choro” como designação geral para estes gêneros originalmente europeus tocados por instrumentistas populares e que essa tendência se acentuou a partir da década de 1920. Tal afirmativa é respaldada pela mais antiga fonte que pude encontrar a respeito, o livro Lyra Brasileira, de Catulo da Paixão Cearense, escrito em 1908. Na introdução do livro, ao descrever alguns dos instrumentistas da época, o autor afirma: Vamos agora aos acompanhadores de choros, capazes de emocionarem os mais refratários à música, os mais gelados corações. Não quero referir-me a eles sem falar de um excelente e soberbo solista, a quem perdôo o crime, por abraçar fervorosamente o repertório das polcas e valsas brasileiras, principalmente o que se diz choro. É o Manduca Catumby. Sem contestação sola bem, conquanto seja fraco acompanhador. (Catulo, 1908, grifo meu) “O repertório de polcas e valsas brasileiras, principalmente o que se diz choro”: esta afirmação de 1908 sugere que já se usava coloquialmente o termo para abarcar as músicas tocadas pelos chorões. Este fragmento de discurso ecoa também no texto do carteiro, como uma manifestação coloquial vinda do passado, que se confunde 118 com a tendência cada vez mais acentuada a partir das décadas de 1920 e 1930 de nomear aquelas práticas musicais como “choro” – algo que será utilizado de forma corriqueira pela indústria do disco. Estas três acepções por vezes se misturam em uma mesma frase do texto de Gonçalves Pinto. Ao descrever o flautista Alberto Martins, por exemplo, ele afirma: “No choro em que às vezes toca encanta com a sua melodia, dando o maior prazer aos circunstantes. Conhece todos os chôros dos seus collegas musicos como elle antigos e modernos” (40). Na primeira frase o termo “choro” se refere aos lugares ou às festas onde o flautista tocava; na segunda o termo designa as peças musicais que compunham seu repertório. Da mesma forma, sobre o chorão Olavo Pinheiro, que residia em Niterói com seu pai, Gonçalves Pinto afirma: “O seu pae era um distincto advogado, que dava em sua casa chôros agradabilíssimos. Indo daqui da Capital, o competente chôro, que eram: Henriquinho, de flautim; Lica, de bombardão (...)”. Na primeira frase “dar choros em casa” significava “dar festas” onde a música do choro era tocada. Na segunda frase, o “competente choro” era o grupo instrumental responsável pela música, formado, no caso por Henriquinho, Lica e outros músicos. Por vezes aparecem as designações “choros moles”, como na citação abaixo: Tambem foram grandes flautas nesta época os irmãos Marreco e Jorge, que faziam suas serenatas em São Christovão quasi sempre na Quinta Imperial, em casa de Maria Prata, que dava pagodes quasi todas as semanas alegrando os seus habitantes com os chôros moles deste tempo (12). O que seriam estes “choros moles”? Trata-se de mais um fragmento de oralidade da época que temos que tentar desvendar. Aparentemente o termo “mole” indicava uma ocasião festiva do choro onde a música era particularmente “malemolente” ou propícia aos requebros da dança. Veja-se por exemplo, este outro trecho com a descrição do flautista Benedito Bahia: 119 quasi todo Botafogo conhece-o como chorão de facto, pois quando melodiava na sua flauta naquelles choros molles que é commum nelle, as mulatas ficavam todas dengosas, dizendo bravo, seu Bahia (37, grifo meu) Ou ainda esta descrição do “Alma de Maçon”, espécie de “penetra” das festas do choro: Em uma occasião, [Alma de Maçon] foi convidado para um chôro lá para as bandas da Terra Nova, mas como era distante da cidade teve mêdo de ir sózinho, e por sua alta recreação, convidou um penetra-mór, de sua tempera e ás paginas tantas seguiram elles para o chôro depois de terem bebericado bastante. Quando chegaram, o baile estava molle, em ponto de bala (68, grifo meu) A indicação de que o baile estava “mole”, portanto indicava que o mesmo estaria no ápice, em seu momento de maior animação. Finalmente, temos no texto uma única e estranha citação ao termo “choros americanos”. Ao descrever o saxofonista Ricardo de Almeida, presença constante nas “Sociedades Musicais e dançantes” do Rio de Janeiro, Gonçalves Pinto afirma: “toca muitos choros americanos e também os nossos com grande facilidade” (194). Estaria o carteiro se referindo ao repertório típico do “jazz-band” ao citar os “choros americanos”? É difícil precisar com exatidão. De toda a forma, nosso objetivo ao realizar este fichamento das diferentes acepções e situações em que a palavra “choro” é utilizada no texto de Gonçalves Pinto é menos o de tentar cercear definições “fechadas” do termo e mais o de procurar compreender de que forma discursos sobre práticas sonoras e práticas sociais se interrelacionam e se constituem como entidades indissociáveis em perpétua produção de significados (Middleton, 1990). Um outro termo importante a ser analisado, e que, tal como o “choro” também pode ser considerado “polifônico” é o conceito de “roda”. Para tal realizamos mais uma vez um fichamento extensivo das situações em que a palavra aparece no livro e suas acepções. Cumpre de início uma explicação: o termo “roda de choro” é utilizado nos 120 dias atuais para designar o momento de encontro dos instrumentistas de choro: ir para a “roda de choro”, portanto, significa ir para o lugar onde os músicos se reunirão para praticar esta música. Ora, vimos que, nos tempos de Gonçalves Pinto, a própria palavra “choro” servia para designar também o lugar onde este encontro se daria. Assim, veremos que, na maioria dos casos, o termo “roda” é utilizado no livro com um viés diferente do atual. A palavra “roda” aparece 39 vezes ao longo do livro, e na maior parte dos casos (34 ocorrências) ela é utilizada para se referir à comunidade dos instrumentistas e não ao lugar onde tocavam. Desta forma, o que aparece com muito mais freqüência é a menção à “roda dos chorões” (ou “roda dos tocadores”), como forma de designação da(s) comunidade(s) de músicos. Assim, Geraldo dos Santos era um “imensurável flauta”, “conhecido na roda dos chorões por ‘Bico de Ferro’" (19). Quintiliano Pinto, irmão de Alexandre, era um chorão “de nome na roda dos que tocavam ou não”. Lulu Cavaquinho “foi da turma dos bons, ainda hoje o seu nome é lembrado e commentado na roda dos chorões” (158). Reforce-se aqui a ideia de identidade entre o grupo de instrumentistas do choro e o fato de que para Gonçalves Pinto e seus contemporâneos, esta identidade estava diretamente ligada a uma espécie de “dinastia” e “tradicionalidade” que provinha dos chorões da “velha-guarda”. Embora tenhamos afirmado que Gonçalves Pinto enumerava seus biografados sem nenhuma ordem aparente, é bastante nítido que a escolha de Callado como primeiro “retratado” do livro foi intencional, já que este personificava a “ancestralidade” dos instrumentistas: Callado é visto como uma espécie de “pai” dos flautistas, conforme já assinalamos. Da mesma forma, um nome “ilustre” (mesmo para o leitor de meados da década de 1930) como Pixinguinha é descrito mais em função de seu pai, o também flautista Afredo da Rocha 121 Vianna, do que de seus próprios feitos: “é um filho que sabe honrar a tradição de seu pae no circulo dos Chorões” (Pinto, 22). Desta forma, o termo “roda” era utilizado como sinônimo da comunidade de instrumentistas e apreciadores do choro. Esta comunidade, segundo o discurso do carteiro, estava ligada através de um senso de identidade fornecido por determinadas práticas sonoras e sociais e também por um passado, uma tradição em comum: assim, há no texto uma grande ênfase aos instrumentistas nominados como pertencentes à “velha-guarda”. Já mencionamos este termo anteriormente neste capítulo e cumpre agora analisá-lo com maior profundidade. Qual a origem da expressão “velha-guarda”? O radialista Almirante, na estréia de seu programa intitulado justamente “O Pessoal da Velha Guarda”, assim explica a origem do termo: Sei que muitos de vocês andaram fazendo conjecturas sobre o que poderia eu vir a apresentar com esse título. É uma coisa muito simples: a expressão “velha guarda” que é, pode-se dizer, tradicional, no Brasil, indica imediatamente que aqui serão tratadas coisas dos tempos passados. É lógico. A expressão, porém, tem uma origem curiosa: ela – vê-se logo – é a inversão de um nome que foi muito popular nesta cidade há muitos e muitos anos: Guarda Velha. Guarda Velha foi o antigo nome da atual rua 13 de Maio. Antigamente, aquela rua vinha até a esquina da rua de São José. E justamente ali, na esquina, onde hoje existe um refúgio triangular onde os passageiros da Tijuca têm um ponto de ônibus, havia um quartel, instalado no tempo da Bobadela. Era o quartel onde ficava a guarda encarregada de manter a ordem entre os escravos e galós que iam buscar água no famoso chafariz da Carioca, que era defronte. Aquele quartel se chamava Guarda Velha. Com o tempo, o título foi se invertendo, passando a designar coisas do passado. E, curiosamente, foi-se chegando aos assuntos musicais, especialmente àqueles que tratavam da nossa música popular e dos seus intérpretes, cantores ou instrumentistas (apud Anna Paes, 2010) O livro de Gonçalves Pinto nos dá outro dado que de certa forma complementa as informações de Almirante: nas variadas e fartas descrições de festas e banquetes tão presentes ao longo do livro, o carteiro nos fala da popularidade de uma cerveja intitulada Guarda-Velha. Provavelmente surgida na década de 1870, a cerveja era 122 fabricada justamente na rua da Guarda-Velha3 e tinha como proprietário um certo Bartholomeu Correa da Silva. Se a expressão ganhou popularidade devido ao nome da rua, do quartel ou da cerveja é coisa que não podemos aferir com total certeza: de toda a forma, como diz Almirante, sua inversão (“velha-guarda”) passou a ser utilizada para designar acontecimentos ou personagens musicais do passado. Ora, o termo “velha-guarda” tem uma importância capital no livro de Gonçalves Pinto, e já aparece, como vimos, no subtítulo, onde o autor explicita que a obra conteria “o perfil de todos os chorões da velha-guarda e grande parte dos chorões de agora”. Mais uma vez recorremos a um trabalho de fichamento extensivo para identificarmos em que acepções o carteiro se utiliza do termo e o resultado nos mostra duas utilizações básicas: a primeira seria para nominar todos aqueles instrumentistas de gerações anteriores a Gonçalves Pinto, muitos dos quais ele não conheceu, mas cuja memória permanecia viva. É o caso de Callado, como vimos no primeiro capítulo, e de outros flautistas igualmente “famosos” por suas composições: Viriato Figueira da Silva, Capitão Rangel, entre outros. Boa parte destes instrumentistas já havia falecido no começo do século XX, embora suas composições ainda circulassem no meio dos instrumentistas de choro (conforme veremos com mais detalhes no capítulo quatro). A segunda utilização do termo “velha-guarda” servia para designar os instrumentistas da geração do próprio Animal (ou um pouco mais velhos do que ele apenas), que, assim como ele, estavam no final da vida em meados da década de 1930. Em alguns casos nem o próprio autor sabia se os biografados ainda viviam: [Sobre o flautista Porto Cascata] “Qual o chorão da Velha Guarda, que o não conheceu ? (...) A muito não o vejo, nem noticia tenho, não sabendo se será vivo ou não” [Pinto, 39]; 3 O Almanak Laemmert de 1873 trazia a seguinte observação: “A Fábrica de Cerveja Guarda Velha, de Bartholomeu Correa da Silva, situada na Rua da Guarda Velha junto ao Circo Olímpico, passa a ter como responsável Joaquim José Rodrigues Machado” (fonte: http://www.crl.edu/content/almanak2.htm. Consulta realizada em 2 de outubro de 2009) 123 [Sobre Aníbal, professor, músico, amigo de Mello Morais e ensaiador do bumba-meuboi organizado por este]: “Tambem grande professor de musica. Não sei se ainda vive pois a muitos annos que não tenho delle noticias” (89). Há casos em que as duas acepções estão reunidas em um só biografado: Benigno Lustrador, por exemplo, era violonista e lustrador de móveis: fora acompanhador de Callado e Viriato e ainda vivia em 1936, segundo a indicação do autor (44). Esta categorização, entretanto, deve ser relativizada em muitos casos: de forma geral o carteiro não se preocupa em estabelecer cronologias nem muito menos em fixar datas. Assim, para a maior parte dos biografados listados como pertencentes a “velha guarda” é impossível estabelecermos com precisão suas datas de nascimento e morte. Mais importante do que a cronologia, entretanto, parece ser o fato de que, mais do que uma referência a idade, o estabelecimento da categoria “velha-guarda” fazia parte de um processo de historicização e mesmo de canonização dos membros do grupo. 2.3) O etnógrafo do choro Cumpre agora nos deteremos na análise dos verbetes biográficos e não biográficos que constituem, como apontamos anteriormente, o cerne da obra de Gonçalves Pinto. Para isso nos valeremos em grande parte do fichamento elaborado por Jacob do Bandolim, visto superficialmente no primeiro capítulo. O objetivo principal é identificar de que forma o livro pode ser lido como um discurso etnográfico: partindo-se da premissa de que a etnografia musical não se estabelece necessariamente através de perspectivas teóricas, mas por uma abordagem descritiva que “vai além da transcrição musical dos sons para uma escrita de como os sons são concebidos, gerados, apreciados e influenciam outros indivíduos, grupos e processos sociais e musicais” (Seeger, 124 1992:89), como visto no primeiro capítulo, procuraremos entender de que forma o discurso aparentemente fragmentado de Gonçalves Pinto “reflete” diversas visões de mundo da época. Ao retratar cerca de quatrocentos “personagens” da época, o autor não só nos apresenta uma descrição pormenorizada de como as práticas sonoras estavam imbricadas nas teias de relações sociais (e ao mesmo tempo eram responsáveis por elas), como nos apresenta uma diversidade de discursos, fragmentos de concepções de época, gírias, fórmulas de oralidades, enfim, um verdadeiro caleidoscópio que, a nosso ver, só pode ser lida a partir de uma perspectiva polifônica. Comecemos nossa análise desta etnografia pelo fichamento elaborado por Jacob do Bandolim: ele servirá como ponto de partida para que possamos ter uma visão ampla deste mosaico etnográfico. Partiremos de aspectos gerais: vimos anteriormente que há cerca de quatrocentos nomes citados ao longo do livro: são em sua maioria instrumentistas, mas também apreciadores e “personagens” do ambiente do choro. Boa parte é citada apenas pelo apelido: Benigno Lustrador, Capitão Braguinha, Leopoldo Pé-de-Mesa, Gonzaga da E.F.C.B., Arthur Virou Bode. Estes são em sua maioria instrumentistas das classes populares e o mais provável é que nem o próprio Alexandre soubesse seus nomes completos. Por outro lado, “personalidades” das classes mais altas (intelectuais, músicos famosos, políticos e até mesmo nobres) são citadas pelo sobrenome ou pelo título: Mello Moraes, Villa-Lobos, Visconde de Ouro Preto, Floriano Peixoto, etc. Destes quatrocentos nomes, cerca de cento e setenta tem a profissão identificada pelo carteiro. São em sua maioria baixos funcionários públicos como já indicado por Tinhorão (1998b). As duas tabelas abaixo, extraídas do fichamento de Jacob do Bandolim, nos mostram com precisão este “painel profissional” dos biografados do livro. A tabela três lista os locais de trabalho, em sua maioria instâncias 125 públicas como repartições federais (Correios, Telégrafos, Ministérios, Casa da Moeda, etc.) e forças armadas, mas também aparecem, em número bem menor, entidades particulares como fábricas e jornais. Tabela 3: Locais de Trabalho (extraído do Fichamento de Jacob do Bandolim) Alfândega Ademar Vieira - violão Antonio Grey - violão Braguinha (Capitão Braguinha) - flauta Gaudêncio “Carne Ensopada” Idomineu Reis João Ripper – cavaco, violão Luiz Brandão – cavaco, canto, violão Machadinho (Machado Breguedim) flauta Olavo Pinheiro - violão Pimenta - bombardão Raimundo - flauta Arsenal de Guerra Cecílio – flautim, flauta João Salgado – flauta, oficleide, fagote Santos Bocot – regente, requinta Vitor Vale - piston Arsenal de Marinha Antenor de Oliveira – canto, violão, poeta Barnabé Guiomar Bois - canto Gonzaga da Hora (Luiz)- bombardão João dos Santos - clarinete Luiz Brandão – cavaco, canto, violão Brigada Policial Camargo - flauta Casa da Moeda Alvaro Nunes - canto Henrique - cavaquinho Jorge Seixas – violão - bando José Bahianinho - clarinete Comissão Rondon São João – canto, violão Corpo de Marinheiros Malaquias - clarinete Correios Alberto Martins – flauta, sax Angelo Pinto – violão, canto Animal – violão, cavaco, canto Artur Fluminense - flauta 126 Artur Martins - clarinete Binoca (Sabino Malaquias de Siqueira) – violão, canto, trombone Capitão Alamiro Cabral - violão Carlinhos - flauta Chico Borges – violão, cavaco Deodato Mata - trombone Desidério Pinto Machado – violão, canto Estanislau Costa - piston Ferreira Dias “Sinfonia” - violino Geraldo dos Santos “Bico de Ferro” flauta Guilherme Candido Dias - flauta Heitor Ribeiro - violão Hernandes de Figueiredo - violão Horacio Theberge – violão, canto Ismael Brasil “Banza” – trombone, bombardino João Bruno - flauta João Hilário Xavier - flauta João Salgado – flauta, oficleide e fagote Josino Facão - oficleide Juca Kallut - flauta Leonardo de Menezes - canto Lobinho (Carlos de Souza Lobo) - piano Luiz Brandão – cavaco, canto, violão Mondego – bombardino, regente Olegário - flauta Olimpio de Oliveira “Conde de Leopoldina” – canto, violão Oscar de Almeida – violão, canto, poeta Paula Freire – clarinete, contramestre Paulo Esteves – flauta, oficleide Pedro Itaboraí - violão Porto Cascata - flauta Quincas Freire - canto Ricardo de Almeida - sax Salustiano - trombone Salvador Marins - flauta Verçoza – violão, canto Vicente Sabonete – violão, canto, ocarina EFCB Benildo Costinha - piano Escobar – piano, declamador Gonzaga (carregador) – oficleide, piston Guerra – canto, violão João Lima - canto João Tomaz – violão, canto 127 José Celestino - violão Luiz Brandão – cavaco, canto, violão Samuel Leite – violão, canto Sátiro Bilhar – violão, piano, canto Uriel Lourival “Casa Cheia” – canto, poesia Veloso – violão, canto Venancinho - flauta Fábrica de Tecidos Vila Isabel Macario - requinta Pedrinho (Pedro Galdino) - flauta Fazenda Caninha (José Morais) – canto, violão Frederico Rocha - canto Guilherme “Manguinho” - canto Honório - flauta Leite Alves - flauta Romeu – violão, canto Guarda Nacional Braguinha (Capitão Braguinha)- flauta Coelho Grey – sax, violão, regente Raimundo Conceição – violão Imprensa Nacional Alma de Maçon André Corrêa “Periquito” – clarinete, sax Bahia - canto Lúcio Reis - canto Jornal do Comércio Bilu (Elpídio Borges) – violão, canto Chico Careca (Francisco Galvão) – trombone, oboé Justiça Carneiro - violão João Pinheiro “Zinho” - flauta João dos Santos – canto, violão, poeta Olegário - flauta Light Crispim - Oficleide Juca Tenente - flauta Loló - Flauta Marinha Tomazinho - flauta Ministério da Agricultura José Cavaquinho (José Rabelo da Silva) – cavaco, flauta, violão Ministério da Guerra Suntum Alves - oficleide Oeste (?) Camas - canto 128 Polícia Henrique Rosa “Casaquinha” - violão José Conceição - violão Macário - requinta Nenê Mário – violão, cavaco, canto Prefeitura Bacury - flauta Cabral - violão Carlos Espíndola - flauta Coelho Grey – sax, violão, regente Eduardo de Castro – violão Gracinha – canto, violão João Carlos Cabral Narciso Gomes Barcelos – violão, cavaco Neco – violão, canto Paulino - canto Quincas Laranjeiras - violão Torres - oficleide Saúde Pública Agenor - flauta Telégrafos Antonico - oficleide Chico Borges – violão, cavaco Chico Neto – bandolim, violão, violino, cavaco Cícero Teles de Menezes - flauta Ismael Brail “Banza” – trombone, bombardino Madeira - flauta Menezes – cavaco, violão Souto Teotônio Machado - oficleide Tribunal de Contas Ademar Vieira - violão Do total de cento e trinta e sete nomes arrolados, a grande maioria4 – cento e dez – pertencia a órgãos públicos (Alfândega, Casa da Moeda, Correios, EFCB, Fazenda, Imprensa Nacional, Justiça, Ministério da Agricultura, Ministério da Guerra, 4 Em números exatos temos 11 funcionários da Alfândega, 4 do Arsenal de Guerra, 5 do Arsenal da Marinha, 1da Brigada Policial, 4 da Casa da Moeda, 1 da Comissão Rondon, 1 do Corpo de Marinheiros, 41 dos Correios, 14 da EFCB, 2 da Fábrica de Tecidos Vila Isabel, 6 da Fazenda, 3 da Guarda Nacional, 4 da Imprensa Nacional, 2 do Jornal do Commércio, 4 da Justiça, 3 da Light, 1 da Marinha, 1 do Ministério da Agricultura, 1do Ministério da Guerra, 1 do Oeste, 4 da Polícia, 12 da Prefeitura, 1 da Saúde Pública, 9 dos Telégrafos, 1 do Tribunal de Contas. 129 Prefeitura, Saúde Pública, Telégrafos e Tribunal de Contas). Destas, os Correios aparecem com o maior número de funcionários, fato natural quando se leva em conta que o autor do livro era ele mesmo um carteiro. As Forças Armadas (Marinha, Exército, Guarda Nacional) respondiam por dezenove listados e instâncias particulares empregavam sete nomes (Fábrica de Tecidos Vila Isabel, Jornal do Commércio, Light). Note-se que na lista não aparecem músicos por profissão: estes eram em sua maioria ligados a bandas militares e no fichamento elaborado por Jacob do Bandolim foram alvo de uma categoria à parte: Tabela 4: Músicos Militares (Extraído do Fichamento de Jacob do Bandolim) Arsenal da Guerra João Salgado – flauta, oficleide, fagote João dos Santos - clarinete Justiniano - flauta Santos Bocot – regente, requinta Brigada Policial Camargo - flauta Major Rocha – oficleide e regente Pedro da Mota - bombardino Corpo de Bombeiros Anacleto de Medeiros – sax, mestre Carramona – piston – c/ mestre, 2º tenente Geraldino - bombardino Irineu de Almeida – bombardino, oficleide, trombone, regente Irineu Pianinho - flauta João Mulatinho – bombardino – c/ mestre Lica – bombardão, flauta Luiz de Souza – piston, regente Nhonhô Soares - bombardino Pedro Augusto – clarinete, contramestre Tuti – pratos, violão, bandolim Corpo de Fuzileiros Navais Gonzaga da Hora - bombardão Corpo de Marinheiros Malaquias - bombardão Corpo Militar de Polícia da Corte Godinho – flautim, mestre Alferes Major Rocha – oficleide- mestre 130 Corpo Policial da Província do Rio de Janeiro Damasio Porcino de Oliveira Gil João Elias da Cunha Juca Marques Juca Rezende 7ª infantaria Salustiano – 1º trombone 10ª infantaria Paula Freire – contramestre, clarinete 23ª infantaria Luiz de Souza – piston, regente Quando se comparam as tabelas 3 e 4 vê-se que a maior parte dos listados na primeira tocava instrumentos que não pertenciam, via de regra, às bandas militares, como violão, cavaquinho e flauta (esta última era na maioria das vezes preterida pelo flautim nas bandas). Finalmente, nosso “painel” das profissões arroladas no livro se completa com a mais uma tabela, ligada a ocupações relacionadas a profissionais liberais diversas, como médicos, engenheiros, cocheiros, tipógrafos, etc: Tabela 5 – Profissões (Extraída do Fichamento de Jacob do Bandolim) Cocheiro João Quadros José Sinhá Engenheiro Júlio Barbosa Industrial João de Oliveira - flauta Jornalista Francisco Guimarãs – “Vagalume” Médico Francisco Magalhães Militar Antonio Madeira Ernesto Pestana Godinho General Gasparino 131 João Flautim Marques Porto Major Mascarenhas Major Rocha Sargento Veloso Tomazinho –f lauta Tenente Castro Vicente Franco Camargo Flauta Major Santana Alferes Cecílio de Santana Operários Benigno Lustrador Leal Careca Lica Bombardão Manduca de Catumbi Menezes Neco Violão Pedrinho Pedro da Harmônica Raimundo Conceição Raul Flautim Videira João dos Santos - clarineta Antenor de Oliveira João de Brito José Celestio Benildo Palhaço Júlio de Assunção Polidoro Tipógrafo João Capelani João Carlos Cabral O que se pode tirar destas listagens? Em primeiro lugar é preciso relativizá-las: obviamente não podemos considerá-las como resultado de um censo formal da época. Todas as tabelas derivam de uma “rede” específica: a de amigos, colegas ou simples conhecidos de Alexandre Gonçalves Pinto. Assim, é claro que se há mais carteiros citados entre os funcionários públicos isto se deve mais ao fato de ser ele mesmo um carteiro do que à constatação haveria mais instrumentistas entre esta classe e não nas outras. Apesar disso, quando consideramos as listagens sob este prisma específico – a 132 de um retrato de uma “rede social” estabelecida por um carteiro das primeiras décadas do século XX – elas adquirem outro peso e creio que podemos utilizá-las para tirar algumas conclusões, ainda que com ressalvas. Em primeiro lugar as listagens corroboram os escritos de Tinhorão (1998a e b) ao mostrar o grande número de baixos funcionários públicos que eram também instrumentistas; por outro lado elas também nos mostram um número não desprezível (embora muito menor proporcionalmente aos funcionários públicos) de operários-músicos: muitos deles eram apontados como mestres de seus instrumentos. Videira, por exemplo, cigarreiro de uma tabacaria da rua do Ouvidor, foi um dos mestres de Alexandre Gonçalves Pinto (veremos com mais detalhes as relações de mestre e discípulo no quarto capítulo); Benigno Lustrador, que como o nome indica era lustrador de móveis, era um “eximio acompanhador de violão” da “velha guarda”, sendo um dos acompanhadores mais freqüentes de Callado, como já visto. Este também era o caso de Leal Careca, sapateiro e oficleidista residente no bairro de Estácio de Sá, “amigo e companheiro de Callado, Videira, Luizinho” e outros nomes da “velha guarda”. Manduca do Catumby, violonista que trabalhava em uma litografia na rua da Assembléia, notabilizou-se como “chorão solista”: além disso usava a “cabeleira partida ao meio e a tradicional sobrecasaca” bem como vários anéis de latão nos dedos, de modo que quando tocava “chamava a attenção dos assistentes pelo brilho das pedras falsas focalizadas pelo reflexo da luz do lampeão” (53). Entretanto, talvez o mais importante músico-operário da época tenha sido o flautista Pedro Galdino, operário da Fábrica de Tecidos Vila Isabel: além de instrumentista foi compositor de várias músicas de muito sucesso na época, algumas recebendo letras de “personalidades” como Catulo e Gutemberg Cruz. Chegou a gravar na década de 1910 na Casa Edison, junto com o seu grupo intitulado “O Pessoal do Bloco”, ligado ao bloco de carnaval de Vila Isabel. 133 Também é digno de nota que as listagens de profissão do fichamento elaborado por Jacob do Bandolim contenham pouquíssimas referências a profissões tidas como “nobres” como engenheiros, advogados, médicos etc. Entre estes se encontram nomes como Júlio Barbosa, descrito como “intelectual da engenharia” e pianista especialista nos tangos do “inesquecível Ernesto Nazareth”, bem como em “valsas lentas de escritores alemães”; João Pinheiro, flautista e dono de uma pequena fábrica de charutos na rua do Ouvidor “que lhe dava o necessário para viver” (89) – e por isso classificado por Jacob do Bandolim como “industrial” – e finalmente apenas um médico – um certo Francisco Magalhães morador de Vila Isabel – e um jornalista, o já citado Francisco Vagalume. Este último dado pode nos levar ao pensamento errôneo de que as práticas musicais e sociais em torno do choro estavam restritas a camadas sociais específicas e, por conseguinte, a determinadas regiões da cidade. Entretanto um outro tópico do fichamento de Jacob nos permite relativizar este pensamento: a listagem dos bairros em que os biografados moravam. Como visto no primeiro capítulo, o panorama de regiões citadas no livro é bastante amplo, conforme se vê na tabela 6: Tabela 6: Bairros citados no livro (Extraído do Fichamento Jacob do Bandolim) Aldeia Campista Agenor - flauta João Sampaio - flauta Juca - piston Andaraí João Maia – clarinete- regente Julio de Assunção – violão – canto - palhaço Bonsucesso Luiz Brandão – cavaco – canto - violão Botafogo Ademar Casaca – violão – trombone- canto Animal – violão –cavaco - canto Benedito Bahia - flauta Menezes – cavaco - violão 134 Ricardo de Almeida - sax Salvador Marins - flauta Catete Ismael Brasil “Banza” – trombone – bombardino João Bruno - flauta Catumbi (Bairro do Agrião) Felipe – trombone - bombardino Manduca do Catumbi - violão Centro Frutuoso - harmônio Vicente Sabonete – violão, canto, ocarina Videira - flauta Cidade Nova Geraldo dos Santos “Bico de Ferro” - flauta Guilherme Candido Dias - flauta Júlio Barbosa - piano Sociedade Dansante Adamastor Engenho de Dentro José Celestino - violão José Monteiro – canto, cavaco Romeu – violão, canto Engenho Velho Jorge Guerreiro – violão, canto Estácio Alberto Leão - violão Animal – violão- canto-cavaco Bailly Benildo Manoel dos Santos Carlos Espíndola - flauta Club Independencia Musical Coimbra - trombone Cupertino - flauta Cupido (Manoel Teixeira) - flauta Gedeão - flauta Gelo João Maia – clarinete - regente João Quadros – canto, violão José Sinhá Juca Flauta Juca Mãosinha – violão, canto, cavaco Juca Mulatinho – violão, canto, cavaco Leal Careca - oficleide Mário do Estácio – violão, canto, cavaco Nascimento Nenem Mário – violão, canto, cavaco Porfirio Lefever - bombardão Gávea Edgard Bulhões de Freitas - flauta 135 Henrique - flauta Sociedade Flor da Gávea Zé Russinho ou Zé da Gávea – violão, canto Ilha do Governador Julinho Ferramenta - violão Jacarepaguá Barão da Taquara Juca Kallut - flauta Capitão Alamiro Cabral - violão Grey (Família...) Juca Gonçalves “Bita” - flauta Mauricio – violão, canto Pimenta - bombardão Jardim Botânico Antonio Xavier – violão - viola Chiquinho Lapa Eldorado Plácida dos Santos - canto Meier Carneiro - violão João Carlos Cabral Lobinho - piano Morro do Pinto Juca Gonçalves “Bita” - flauta Leopoldo Pé de Mesa - flauta Niterói Artur Martins - clarinete Benedito Monte – piano, regente Cipriano - violão João Capelani - cavaco João Pinheiro “Zinho” - flauta João dos Santos – canto, violão, poeta José Aimoré – cavaco, flauta Juca Marques – oficleide, bombardino, regente Justiniano - flauta Justo Vargas - flauta Olavo Pinheiro - violão Salustiano - trombone Tabacão – violão, canto Paquetá Anacleto de Medeiros Freire Júnior Hermes Fontes Piedade Álvaro Nunes – canto Juca Mamede Leandro Ferreira “Rouxinol” – canto, violão 136 Lica – bombardão, flauta Luiz Caixeirinho - pandeiro Manoel Viana - violão Mário Ramos Oscar Cabral - flauta Tabacão – violão, canto Praça Onze João da Harmônica – harmônica, violão Raimundo Conceição - violão Ramos Corte Real Rocha Machadinho (Machado Breguedim)- flauta São Cristóvão Candinho Ramos - violão Desidério Pinto Machado – violão, canto Jorge - flauta Juca Tenente - flauta Maria Prata Mariquinhas Duas Covas Marreco - flauta Mello Morais Filho Saúde Juca Flauta Tijuca Bilau - cavaco Gilberto - bombardino Juca Afonso – requinta, poeta Juca Mamede Major Mascarenhas – canto, violão Maria da Piedade Marques Porto – flauta, violão, piano, órgão, canto Loló - flauta Paulo Vieira da Costa - flauta Romualdo Caboclo - violão Sociedade Dansante Carnavalesca Pragas do Egito Sociedade Musical Santa Cecília Todos os Santos Zé Russinho ou Zé da Gávea Vila Isabel Artur Pequeno - violão Carlinhos - flauta Carlos Furtado – flauta, trombone Eurico – cavaco - trombone Francisco Magalhães Honório - flauta Sociedade Musical Dansante “Os Africanos” 137 No total 28 bairros (afora a cidade de Niterói), sendo 18 da zona norte da cidade, 4 da zona sul (Botafogo, Catete, Gávea e Jardim Botânico), 1 da zona oeste (Jacarepaguá), 4 da região central (Centro, Lapa, Cidade Nova e Praça Onze) e finalmente a ilha de Paquetá. O bairro de Copacabana, ainda que não apareça no fichamento, é citado duas vezes ao longo do livro como lugar onde aconteciam esporadicamente reuniões de choro. Há que se levar em conta dois fatores importantes nesta listagem de regiões da cidade. O primeiro é o de que ele remete ao Rio de Janeiro do Império e das primeiras décadas da República, quando a ocupação da cidade era diversa da que se estabeleceu a partir da década de 1930. Assim, regiões que hoje seriam consideradas “nobres”, como, por exemplo, o Jardim Botânico e a Gávea, eram muito pouco habitadas à época do final do Império. Este último bairro, por exemplo, se converteria ao longo das duas primeiras décadas do século XX em uma das regiões mais industriais do Rio pela presença de diversas fábricas de tecido e, portanto, “de população operária mais densa” (Gerson, 2000: 308). O segundo fator importante a ser levado em conta é o de que a associação entre classes sociais, bairros e práticas musicais é sempre mais complexa do que podemos supor; apesar disso este enfoque sempre fez parte da historiografia musical da cidade e mesmo da imprensa da época. Veja-se, por exemplo, a conhecida caricatura de Raul Pederneiras de inícios do século XX, intitulada “Dize-me o que cantas e direi de que bairro és” (Figura 3). Três classes sociais são representadas no desenho: na primeira vêem-se pessoas modestamente vestidas ouvindo uma mulher cantando acompanhada de violões e cavaquinhos – este quadro corresponde ao “retrato musical” das camadas mais modestas da população moradoras dos bairros da Gamboa, Cidade Nova, Saúde e adjacências. Na segunda, uma mulher canta já com acompanhamento de piano e percebe-se maior apuro nas vestimentas dos ouvintes: esta 138 seria a representação da classe média moradora de “São Cristóvão, Vila Isabel e vizinhanças”. E finalmente a terceira representaria a elite, moradora de palacetes em “Botafogo, Copacabana, Gávea e outras babéis”, acostumada ao trajar mais fino (fraques e vestidos longos) e a ouvir árias de ópera cantadas em italiano. Figura 3 – Caricatura de Raul Pederneiras Esta abordagem que dividiria as práticas musicais de acordo com os bairros e regiões da cidade se inicia na historiografia da música popular carioca com o próprio trabalho de Francisco Vagalume, - que em seu livro Na roda de samba traça uma descrição pormenorizada dos morros cariocas que seriam o “berço do samba” - e se propaga de forma geral pela segunda metade do século XX, em estudos de variados autores importantes como Tinhorão (1998a), Máximo e Didier (1990), e Silva e Oliveira (1979), entre outros. Particularmente na discussão sobre as diferenças entre o samba “amaxixado” característico das duas primeiras décadas do século XX e o “samba do Estácio” surgido a partir de 1928, esta abordagem é utilizada por alguns textos de forma 139 bastante incisiva, calcada em uma polarização entre as práticas musicais da Cidade Nova versus o bairro do Estácio. Máximo e Didier (1990), por exemplo, apontam o acompanhamento do Estácio como sendo feito basicamente por instrumentos de percussão, na maioria fabricados pelos próprios ritmistas ou por eles inventados. Se na Cidade Nova as festas são animadas por músicos treinados, bom tocadores de piano, flauta, clarineta, cordas e metais, no Estácio de Sá, salvo por um ou outro violão ou cavaquinho em mãos desajeitadas, tudo é tamborim, surdo, cuíca e pandeiro. Ou acompanhamento ainda mais rudimentar, palmas cadenciadas ou batidas em mesas, cadeiras, copos, garrafas (apud Sandroni, 2001: 138). Em outras palavras, a Cidade Nova estaria ligada ao samba amaxixado pelo fato de existirem ali “músicos treinados” aptos a tocarem este gênero derivado em grande parte da polca européia; por oposição, o Estácio de Sá não teria estes mesmos instrumentistas e as práticas musicais ali realizadas seriam calcadas somente na percussão e no máximo por um “violão ou cavaquinho em mãos desajeitadas”. Tal abordagem, criticada por Sandroni (2001: 139) como reducionista, não se restringe a este texto, e fez parte do imaginário da população desde as primeiras décadas do século XX refletidas em textos jornalísticos e caricaturas da época5. O próprio Alexandre Gonçalves Pinto reproduz esta abordagem ao descrever as diferenças da quadrilha dançada em diferentes regiões da cidade, conforme veremos adiante. Entretanto, o fichamento de seu livro nos mostra mais uma vez o quão problemática é a associação entre práticas musicais, regiões da cidade e classes sociais sem que se façam reflexões mais aprofundadas sobre o tema. Vemos na listagem exemplos claros de instrumentistas identificados por ele como “chorões” moradores do bairro do Estácio desde o início do século, o que já nos leva a questionar a polarização 5 Podemos citar como outros exemplos a caricatura de Kalixto Cordeiro datada de 1910 e retratando a diferença entre bailes realizados em áreas “nobres” como Botafogo e “áreas populares” como a Cidade Nova e os Folhetins de França Jr., onde o autor traz um perfil dos bailes de “primeira, segunda e terceira classes” no Rio de Janeiro (citado por Sandroni, 2001: 69). 140 proposta por Máximo e Didier. O “Animal” indica com precisão “sociedades dançantes” deste bairro, como o “Club Independência Musical” do qual era regente o clarinetista João Maia e casas de chorões, como o violonista Gedeão, que funcionavam como “verdadeiras escolas de aprendizado” de violão e cavaquinho (17). Um outro aspecto problemático destas tentativas de “mapeamento musical” das áreas da cidade é o de que ele não leva em conta a mobilidade das práticas musicais, mobilidade que se mostra muito presente no livro. São freqüentes as menções a instrumentistas que iriam a qualquer lugar em busca de um choro: [Sobre o flautista Pedro Galdino] “Pedrinho, raras vezes dizia não aos seus camaradas fosse onde fosse o choro” [20, grifo meu]; [Sobre Lica, tocador de bombardão] “Elle ia longe à procura de seus companheiros de "chôro" com um bombardão velho e enzinhavrado” [55]; [Sobre o “Alma de Maçon”]: “farejava um chôro como quem num sabbado do meiado do mez corre atraz dos dinheiros para o ‘Boi com abobora’ do domingo” [67]. O próprio Gonçalves Pinto nos dá alguns saborosos relatos pessoais de seus deslocamentos pela cidade em busca dos choros. Em um deles ele já mostra a dificuldade de locomoção por transportes públicos que sempre fez parte das mazelas dos habitantes da cidade: Fui convidado pelo grande Professor Cupertino, para assistir um conjuncto de chorões lá para as bandas de Agua Santa. Tomando um trem de suburbios, saltei no Engenho de Dentro, onde esperei um omnibus para aquellas bandas. Depois de muito esperar, emfim, chegou o tal omnibus, onde me foi impossivel embarcar, tal o assalto da grande população que alli tambem esperava. Emfim, pacientemente esperei outro, porque no primeiro fui completamente barrado, pisado, e com a roupa toda amassada. Na chegada do segundo, tomei coragem, e consegui entrar, não sem grande custo. E lá fui no tal vehiculo que cahe daqui, cahe para acolá, lá cheguei com os orgãos internos todos soltos de seu competente lugar. [50] As dificuldades de locomoção através do precário sistema de transportes públicos, entretanto, não eram o único empecilho para os músicos do choro: havia também divisões da cidade em regiões dominadas por maltas de capoeiras, à maneira de 141 “facções” criminosas ligadas ao tráfico de drogas da atualidade. Abordaremos este tópico com mais detalhes no capítulo três. Em que pesem as dificuldades, esta relativa mobilidade dos chorões por diversas regiões da cidade era também de uma forma de mobilidade social: o livro também nos mostra que os lugares de sociabilidade do choro, as festas “regadas a comida e bebida” podiam se dar tanto em ambientes aristocráticos como as casas do Visconde de Ouro Preto (13) e o Barão da Taquara (94-95), em ambientes ligados aos intelectuais da época, como a casa de Mello Morais Filho (89) e finalmente em ambientes típicos da baixa classe média da época, como as casas da mulatas Durvalina (78) e “Mariquinhas Duas Covas” (122), figuras muitos populares pela hospitalidade e fartura com que recebiam os chorões (“na sua casa os chorões eram aos cardumes, pois nunca o gato estava no fogão”, ou seja, não havia falta de comida e bebida, nos diz Pinto a respeito da casa de Mariquinhas). Até agora, amparados pelo fichamento elaborado por Jacob do Bandolim, vimos como informações aparentemente dispersas ao longo do livro nos apontam para um mapeamento, ainda que relativo, das situações de sociabilidade das práticas musicais do choro: analisamos assim como estas práticas se relacionam com aspectos da vida profissional dos biografados e com a complexa relação entre regiões da cidade, classes sociais e “gêneros” musicais. Cumpre agora nos determos nos próprios verbetes biográficos, analisando com maior profundidade um aspecto sobre o qual já chamamos a atenção ao longo do trabalho e que será agora desenvolvido: o caráter polifônico e multifacetado com que o carteiro “dava voz” aos seus descritos. Para isso é necessário que retornemos à questão da linguagem do livro. Vimos no primeiro tópico deste capítulo que a construção da memória do choro passava necessariamente pela utilização de heteroglossias – ou seja, estratificações de 142 linguagens “não-oficiais”, características de classes e situações sociais, profissões, etc., que a “linguagem oficial” traria em seu bojo, em uma espécie de jogo dialético. Também no primeiro tópico vimos como a linguagem “carnavalesca-popular” dos periódicos do rancho Ameno Resedá nos dava as chaves para o entendimento dos sonetos que abrem o livro. Muito mais do que a definição de dados biográficos precisos – nomes completos, datas, etc –, que fizeram com que Ary Vasconcelos lamentasse o fato de Gonçalves Pinto não estar “culturalmente equipado” para a tarefa que se lançou, os verbetes biográficos escritos pelo carteiro são dominados pelos elementos expostos acima. Sua escrita fragmentada registra oralidades, gírias, frases feitas e visões de mundo que faziam parte da linguagem específica dos grupos sociais que se reuniam em torno de determinadas práticas musicais populares. Sendo ele mesmo um nativo do grupo social que descreve, estes elementos estão naturalmente colocados em sua escrita: sendo “conhecedor de toda a gíria da cidade” como nos diz o soneto de Max-mar, os verbetes biográficos do carteiro primam muito mais pelo registro destes elementos heteroglóssicos do que pela procura de dados biográficos “científicos” dos personagens descritos. Mais uma vez há uma correspondência direta com a linguagem satírica – no sentido bakthiniano de “riso popular” que incluía a todos, mesmo os próprios autores das sátiras – presentes nos periódicos dos ranchos. Vimos anteriormente que um exemplo da utilização desta linguagem – e que possivelmente serviu de inspiração para Gonçalves Pinto – era a coluna “O Resedá na intimidade” presente em todas as edições dos jornais a que tivemos acesso (1913, 1914, 1916, 1917 e 1920). Todas as colunas tinham por objetivo a sátira aos membros do rancho, e são exemplos claros da utilização 143 das gírias e fórmulas de oralidade que compunham a linguagem específica desta comunidade. Assim, a coluna de 1917 se inicia da seguinte forma: Salve leitor amigo! Venha de lá o abraço, mais uma vez contigo, enceto a proeza que traço, graças a padroeira do Ameno Resedá, minha pena mesureira, mais uma prosa te dá; mas francamente leitor, com toda a sinceridade, este ano é um horror, a tal de intimidade, por isso deves estranhar o estilo capadócio mas... não me sujeito a apanhar e disfarço mais o negócio, porque d’esta coluna o fim é meter o pau na negrada e quase sempre há chinfrim, quando não dá em barulho; e, no entanto aqui não encaixo, tudo que a mente dita é mão em cima mão em baixo, como diz o Lord Fita, logo!... castigat ridendo mores! É da língua mater o tempero, inda que no íntimo tu cores, não deves dar desespero; mas o fim do ano passado, foi de arrelia e de azar, ainda tem bagre arrancado, mas eu não devo contar, a indiscrição não faz parte da lista dos meus defeitos, e se eu fizer o encarte, quem garante seus efeitos. Por isso leitor caluda! Muito zinho oculto agora, e assim fica a cousa muda e não se sabe cá fora, mas... vamos tratar do assunto, que cultiva esta seção, pode me fugir o bestunto e não dou conta da missão. (Jornal do Ameno Resedá, 1917) O estilo, definido pelo autor como “capadócio” é dominado por uma linguagem quase dialetal, repleta de rimas, fórmulas orais e frases feitas que eram parte do vocabulário daquele grupo específico e que chegam mesmo a comprometer a legibilidade do texto para quem não fazia parte do mesmo. “Mão em cima mão embaixo”, “bagre arrancado”, “zinho oculto”, “fugir o bestunto”, são expressões cujos significados não podemos definir com certeza – podemos apenas inferi-los de maneira geral através do sentido do texto. Estes mesmos elementos apareciam na descrição satírica dos ranchistas, muitas das quais registravam fórmulas de oralidade típicas de cada um: “O Napoleão (Lord Taquara) continua a afirmar que não mente... É sempre o mesmo Ameno serviçal alegre e satisfeito, muito embora seja um apologista dos Sonetos líricos, como aquele que reza que ‘Foi-se a primeira pomba... outra... e outra mais’ Lord Pimenta, apesar de sua firme solidariedade ao Ameno, costuma faltar às sessões, devido ao mau tempo, muito embora morando na sede. Almeida resolve todas as questões assim: “Muito justo! Comigo não tem chichi, meu bem você vem cá” Lorde Leão, tesoureiro da Comissão de Carnaval é o homem do money, e tem um jeito especial para cavá-lo (não confundam o termo). Tem desesperos inúmeros quando a despesa ultrapassa a Receita e as exclamações irrompem-lhe os lábios: ‘Ora faça você ideia, co..mo há.. de, ...se...botar o... Carnaval na... rua, se os sócios não...entram... com... o ... ra...teio?’ 144 Gonzaga da Hora – Toque nesses ossos seu Gonzaga, olhe que o sr. me obrigou a procurar uma palmatória, velho legado de meu pai e um chinelo também com que me castigavam quando eu fazia manha! Adão – É o único Resedá que tem a propriedade da Cordite, por qualquer coisa se aborrece, um dito, uma pilhéria é motivo de zanga! Quem sabe se a pessoa que o propôs, não lhe disse que o Ameno era Associação Funerária ou Beneficente?” (Jornal do Ameno Resedá, 1916 e 1917) Vários dos membros citados também faziam parte da comunidade dos “chorões” descritos por Gonçalves Pinto. Assim, Napoleão de Oliveira é citado como um “chorão de cultura fina nos batedouros carnavalescos”, além de ser um “violão mavioso e científico”. Desta “cultura fina” fazia parte também uma veia poética que é expressa na coluna pela menção ao fato de Napoleão ser “apologista dos sonetos líricos”. O soneto em questão parece ser “As pombas” de Raimundo Correa: é interessante notar que Gonçalves Pinto cita este mesmo poema em seu livro, mais uma prova da circularidade cultural das práticas artísticas da época (conforme salientado por Braga, 2002: 205). Já Gonzaga da Hora era o tocador de bombardino Luiz Gonzaga da Hora, sempre presente nas enumerações de Pinto sobre os instrumentistas da “velhaguarda”. O mais importante a ser notado no exemplo acima, entretanto, é o uso da caricatura e da sátira como os elementos mais importantes no fator de identidade do grupo: era parte fundamental deste processo a fixação dos elementos de oralidade que distinguiam e identificavam cada membro. Assim, Lord Leão, o tesoureiro do rancho, é em várias colunas satirizado pelo seu falar gago; Adão é conhecido pelo seu mauhumor, que leva o cronista a perguntar se ele teria confundido o rancho com uma associação funerária. Em alguns casos não é mais possível precisar qual o sentido satírico da citação: assim, não sabemos exatamente qual o significado da expressão “Comigo não tem chichi, meu bem você vem cá” usado por Almeida para resolver todas as discussões, mas ninguém porá em dúvida a intenção sarcástica. 145 Ora, esse é um dos elementos mais utilizados pelo “Animal” na descrição de seus personagens: o fito, como dissemos, é mais o de recriar o ambiente da época – e principalmente a dimensão festiva e carnavalesca da vida, que era em grande parte proporcionada pelas práticas musicais – do que realizar perfis biográficos com informações precisas sobre dados empíricos (datas, nomes completos, etc) dos personagens. Desta forma, a intenção satírica predomina na maior parte dos verbetes biográficos: Coimbra Trombone, por exemplo, chorão no trombone como o nome indica, foi convidado certo dia para um choro na casa de “um seu compadre, onde se realizava um batizado”. Sendo devoto de Santa Rita, antes de sair para a festa ajoelhouse diante da imagem da santa, “pedindo que não o deixasse beber”, pois quando bebia “ficava impossível de se aturar”. Ao chegar ao “pagode”, verificou que, “como não podia deixar de ser” havia farto banquete e muitas bebidas: não podendo resistir, começou logo a comer e a beber, e “às paginas tantas já não soletrava ‘Cascadura’”; bebeu tanto que, na hora de voltar para casa, seu compadre, “que era Guarda Municipal”, teve que chamar um “carregador para carregá-lo até sua residência”. O final da história deixa ainda mais clara a intenção satírica: Na hora da sahida sua comadre entregou ao dito carregador uma duzia de ovos para sua senhora depois de muito custo chegou em casa o Coimbra, tomando das mãos do carregador a duzia de ovos, foi direito ao quarto onde estava, jogando todos os ovos na Santa, blasfemando por não ter sido attendido no seu pedido (96). Outro exemplo curioso, dos muitos que poderiam ser citados, é o de Ismael Brasil. Ao contrário do “verbete” de Coimbra Trombone, em que Gonçalves Pinto se limita unicamente à descrição de um “causo” cômico, não fornecendo nenhum outro dado sobre o “personagem”, o verbete de Ismael Brasil é esmerado em detalhes sobre sua vida e carreira, ainda que no final predomine a intenção satírica novamente. Ismael 146 Brasil era filho de “D. Antonica, exímia modista das mais distintas famílias do bairro do Catete”; excelente tocador de trombone e bombardino, razão pela qual era “disputado pelos chorões”, iniciou sua carreira profissional como estafeta dos Telégrafos, até ser nomeado carteiro do Correio Geral, “lugar este em que occupou com muito esmero e capricho, pois primava por apresentar-se sempre asseiado” (71). No aspecto físico era de “estatura alta”, tinha no rosto “sinais de bexiga” e um “modo moleirão” – razão pela qual recebeu o apelido de “Banza” entre os colegas do Correio. De natural engraçado, esmerava-se em imitar “todos os animais da zoologia”, além de fazer caricaturas de seus companheiros, aplicar-lhes “peças” e contar casos cômicos, sendo, portanto, “muito estimado na roda dos chorões”. Certa feita, em um “pagode” em Niterói, percebeu que não havia “bóia”. Foi então direto ao quintal sorrateiramente e torceu o pescoço de quatro galinhas, e voltou de novo a tocar, e de vez em quando dizia para os companheiros de chôro: Já matei quatro animaes, mas não garanto a criação podem ser Bhramas ou Mistiças, pretas ou Carijós. Quando o dia rompeu lá estavam as gallinhas mortas debaixo do poleiro. E elle fazendo um grande espanto de ingenuidade pediu uma faca, e foi cortando o pescoço das ditas deixando correr o sangue. Todas as pessôas da casa julgaram tratar se de peste, e assim elle e seus companheiros de chôro tiveram um bom almoço de gallinha (72). Exemplos como estes são abundantes ao longo do livro, e poderíamos citá-los em profusão. Focamos até agora nossa análise nos aspectos satíricos dos verbetes: em boa parte destes casos, fórmulas de oralidade, como gírias e frases feitas, estão presentes, tanto na narrativa de Gonçalves Pinto, quanto na “boca” de seus biografados, sempre com intenção cômica. Cumpre agora analisarmos verbetes onde o carteiro se esmera em fixar frases, ditos e visões de mundo de seus biografados, sem que necessariamente houvesse intenção satírica, ou melhor: sem que a intenção de sátira esteja em evidência principal. 147 Um dos verbetes que pode ser citado como exemplo neste sentido é o do violonista Sátiro Bilhar (1869-1927). Figura das mais populares do choro no período da belle époque, autor da polca “Tira Poeira”, até hoje muito tocada no ambiente das rodas, seu verbete é singular pelo fato de que, em meio à descrição do “personagem”, a prosa de Alexandre é subitamente substituída pelas próprias falas de Bilhar: Parece-me estar ouvindo ainda elle dizer: "Tu és uma estrella de primeira grandeza"! (tá doido Ave Maria) o que palpita lá palpita cá; minha familia é minha vida inteira ! e viva São João p'ro anno, tá errado com o velho Bilhar, gosto de ti porque gosto porque meu gosto é gostar, no rio o caudal da vida que tem por margem a descrença, as ondas são anjos que dormem no mar, porque vejo em teus olhos um luzeiro que me guia, eram estes os dictados e as modinhas do repertorio de 40 annos do velho Bilhar, com o seu tradicional pince-nez, pois os grandes chorões ainda não conseguiram imital-o e reconhecem que Bilhar foi o rei dos accordes [53] Há aqui um amontoado de frases aparentemente desconexas, que fazem pouco sentido para o leitor atual e que é preciso “destrinchar” de alguma forma: as primeiras frases parecem ser parte do repertório de ditados e frases feitas usadas por Bilhar: “Tu és uma estrela de primeira grandeza!”, “Tá doido, Ave Maria”, “O que palpita lá palpita cá”, “Minha família é minha vida inteira!”, “E viva São João pr’o ano”, “Tá errado com o velho Bilhar”. As frases finais fazem parte do repertório de modinhas de autoria de Bilhar, algumas das quais conseguimos identificar: “As ondas são anjos que dormem no mar” e “Gosto por ti porque gosto”, por exemplo, são títulos de modinhas feitas em parceria com Catullo. Ao registrar estas fórmulas de oralidade, Gonçalves Pinto está sem dúvida se dirigindo a um grupo específico: o de seus contemporâneos que reconheceriam estas frases como parte do repertório do violonista. Também é fundamental frisar que, ao misturar ditados, frases feitas e letras de modinhas, o carteiro nos mostra que todos estes elementos estavam imersos em um mesmo “perfil”: em outras palavras, não seria possível fazer uma separação do que Bilhar “falava” e do que “tocava” ou “cantava” – todos estes elementos estavam inextricavelmente ligados a sua 148 memória. Seu repertório de ditados e frases feitas eram fator de identidade tão fortes quanto seu repertório musical, e o carteiro os usa não só para evocar o ambiente afetivo da época como para provocar, naqueles seus contemporâneos que reconheceriam as falas de Bilhar, um senso de pertencimento a um grupo: uma memória coletiva, enfim. Em outros verbetes apreendemos também fragmentos das visões de mundo dos biografados, que nos falam através do “Animal”: tais fragmentos compreendem aspectos diversos como, por exemplo, o modo com que as pessoas estabeleciam significados para as práticas musicais ou relacionavam estas com suas atividades profissionais. Assim, Cantalice, chorão ao violino, dizia que “a música é como a morte, precisa fazer tristeza para ter effeito” (105); Lica, tocador de bombardão e tipógrafo “tinha verdadeiro amor e devotamento à arte musical, nos choros em que fazia parte e dispunha de liberdade pedia sempre a palavra em louvor de Santa Cecília, tal era o seu entusiasmo” (55); Ismael Correa, violonista, chorão e entusiasta do carnaval – fazia parte do rancho Pragas do Egito, assim como Gonçalves Pinto – dizia que “ter juizo, trezentos e sesenta e dois dias, não é pouco, é justo que nos três dias de carnaval se seja louco” (131); Gonzaga da E.F.C.B., era, como o nome diz, funcionário da estrada de ferro, onde trabalhava fazendo carretos. Sendo um excelente tocador de oficleide, muitos lhe perguntavam a razão pela qual, sendo ele um “músico tão afamado”, trabalhava em um “lugar tão baixo”. Ele então respondia então com a maior naturalidade, dizendo que a sua estrella nunca brilhou e por isso vivia no abandono, pois nunca encontrou um amigo que lhe désse a mão. Pois apesar de seu preparo, viu-se obrigado a sugeitar-se a ser carregador, se queria comer e beber (82) Como se nota nos trechos citados, a prosa do carteiro revela, ainda que de forma fragmentada e difusa, parte do pensamento e das vozes destas figuras populares. Veremos ao longo dos capítulos três e quatro, como estas visões de mundo englobavam 149 também pensamentos muitas vezes díspares sobre temas como a relação dos instrumentistas de choro com a indústria do disco e da rádio e aspectos do aprendizado. Finalmente, nossa análise do “etnógrafo do choro” ficaria incompleta se não nos detivéssemos agora nos verbetes em que Gonçalves Pinto se volta para a descrição de “gêneros musicais” específicos como “As Polcas” (115), “A Quadrilha” (112) e “A Modinha” (121). É nestes verbetes que se percebe, de modo ainda mais patente, a relação entre as práticas sonoras definidas como “choro” e as relações de sociabilidade ao seu redor. Como vimos no primeiro capítulo, os significados sobre os discursos sonoros não podem ser separados dos discursos, gestualidades, conceitos e idéias sobre os sons (Middleton, 1990: 221; Vila, 1995). Da mesma forma, aquilo que identificamos usualmente como “gênero musical” seria mais propriamente definido como um feixe de discursos e idéias sobre determinadas práticas do que simplesmente por uma definição “fechada” sobre determinado discurso sonoro. É, assim, bastante significativo observar que os verbetes sobre “polca”, “quadrilha” e “modinha” escritos por nosso carteiro se constituem como verdadeiras descrições etnográficas de como se organizavam aspectos diversos – gestualidades, oralidades, produção de discursos, conceitos sobre nacionalidade, autenticidade, etc. – em torno destas práticas sonoras. Vejamos agora com mais profundidade cada um destes verbetes. Comecemos pela quadrilha: segundo José Ramos Tinhorão esta seria uma dança coletiva de salão baseada em formas de alegres danças populares, surgida na Europa de inícios do século XIX como continuação modificada da contradança (...) Foi chamada de quadrilha por suas figuras lembrarem a formação militar da squadra, cujo diminutivo se vulgarizaria acompanhando o espanhol cuadrilla. A dança e a música da quadrilha fizeram sua entrada no Brasil no tempo da Regência (1830-1841) através do modelo francês de contradança a dois ou quatro pares (quadrilha dupla), de som alegre e movimentado, dividido em cinco partes com diferentes figuras, todas em allegro ou allegretto. E isso obedecendo ao seguinte esquema geral: primeira figura em dois por quatro — ou em seis por oito tal como a terceira — e as três outras (segunda, quarta e quinta) geralmente em dois por quatro (Tinhorão, artigo disponível em www.cliquemusic.com.br, consulta realizada em 9/11/2010). 150 De meados do século XIX até o início do século XX, a quadrilha seria uma dança muito popular nas grandes cidades – e no Rio de Janeiro, particularmente, muito usual entre chorões descritos por Gonçalves Pinto; ao decorrer do século XX, entretanto, cairia em desuso nos grandes centros urbanos, sendo absorvida pelas classes rurais, passando a receber diferentes nomes em todo o país — quadrilha caipira em São Paulo, mana-chica na região de Campos no norte fluminense, etc — e se tornando dança característica do período de festas juninas em todo o país (id. ib.) Ora, o verbete de Gonçalves Pinto sobre a quadrilha é todo baseado na descrição das danças, gestualidades, fórmulas de oralidade e mesmo nas divisões de classes sociais que se observavam em torno de determinadas práticas sonoras. Ele se inicia com uma breve descrição da métrica utilizada na dança e os principais compositores de quadrilha da época: A quadrilha era uma dansa figurada com cadencia de seis por oito e dois por quatro no compasso. Os seus melhores escriptores foram o inesquecível Barata, o sempre lembrado Silveira, o Saudoso Metra o inolvidavel Anacleto, o immortal maestro Mesquita e muitos outros (115) Note-se que, ao começar sua descrição com a frase “a quadrilha era...”, Gonçalves Pinto já aponta para o fato de que, em 1936, data de lançamento do livro, a quadrilha (pelo menos como dança dos grandes centros urbanos, e em particular, dança ligada ao ambiente do choro) já pertencia ao passado. Portanto, sua descrição minuciosa é em grande parte endereçada aos leitores que certamente desconheciam esta dança. Em seguida o carteiro passa a descrever a dança e as fórmulas de oralidade que eram parte indissociável da quadrilha: Esse estylo de dansa, traz saudades das marcações: "Travessê"! "Balancê"! "Tour"! "Anavancatre"! "Marcantes anavan"! "Caminhos da roça"! "Volta gente que está chovendo"! Na quadrilha, era que o dansarino mostrava as suas habilidades e o seu devotamento, a "Terpesychore". Por exemplo: no "Travessê!" muita gente boiava 151 quando um cavalheiro pulava do seu logar e ia figurar ao lado de uma dama que se achava distante. O "tocert", era as vezes obrigado a um "doublé", para a frente ou a retaguarda conforme a vez a "marcante". A função dos “marcantes”, ou seja, daqueles que davam as ordens coreográficas para os pares dançantes, bem como a relação entre os “marcantes” e os músicos do choro que acompanhavam o baile também são alvos de curiosa descrição: Para ser "marcante", era preciso conhecer todas as evoluções da "quadrilha", e estar muito attento ao desenrolar da musica. Os dansarinos sempre gostaram da "quadrilha", porque era a dansa mais divertida e a que mais enthusiasmava, não só pelas suas passagens comicas, como tambem pelas demonstrações de agilidade a que os "pacholas" eram obrigados. E quando o "marchante" se enganava ? Eram um "suicidio-moral"... E quando elle, se descuidava e bradava: "Chê de dama"! e a musica parava ? Era um destes "fiascos" que custava grossas gargalhadas e que ficavam registrados na sua fé de officio (...). Succedia muitas vezes que o "marcante" se enthusiasmava e se esquecia da dar signal para acabar uma parte o "chôro" parava deixando em meio uma evolução. Era motivo de gargalhadas geraes, e de "estrillo" do "marcante". Outras vezes este dava signal para parar, quando a musica não o permittia. Era outros "fiasco". Succedia, ainda, que o "mestre do chôro", por "malha ou tralhas", não gostasse do "marcante": anthipatia, inimizade pessoal, revalidade, "dôr de cotovello" e então sujeitava-o ás mais desconcertantes borracheiras em plena "salão". O “mestre do choro” é certamente o chefe do conjunto que acompanhava o baile: como se vê pela descrição, era necessário que houvesse um perfeito entendimento entre este e o “marcante”: em alguns casos, havendo “antipatia”, “rivalidade” ou “dor de cotovelo”, o “mestre do choro” poderia simplesmente não obedecer às ordens do “marcante”, sujeitando-o então “às mais desconcertantes borracheiras”. Outro aspecto importante do verbete diz respeito ao fato de que ele aponta para um mapeamento das diferenças sociais ao redor da quadrilha em diferentes bairros da cidade: Havia uma grande diferença na quadrilha dançada num rico salão de Botafogo e Tijuca e da que era desengonçada na Cidade Nova e Jacarepaguá. Os ricos, metidos na sua casaca, sobrecasaca, do fraque e as damas de vestidos decotados, observavam rigorosamente a pronúncia francesa e a orquestra só parava quando o ‘marcante’ dava o sinal. Na roda do povo de ‘bongalafumenga’ o pessoal se apresentava como podia e os que melhor trajavam ostentava a calça boca de sino, ou a bombacha, e as damas que se apresentavam com os vestido de merino, eram consideradas de ‘elite’, porque a maioria pegava mesmo o seu vestidinho de chita. A marcação era ‘gosada’ porque sendo feita num francês macarrônico tinha uns enxertos conforme a festividade do marcante. 152 A enorme popularidade da quadrilha no período da belle époque é atestada pelo grande número de músicas classificadas como tal, encontradas em cadernos manuscritos de choros ainda do século XIX e inícios do XX, conforme veremos com maiores detalhes no capítulo quatro. A descrição de Gonçalves Pinto nos mostra que ela fazia, tanto quanto a polca, o schottisch e a valsa, parte do ambiente do choro nas festas populares do período. Curiosamente, ao contrário destes gêneros, que permaneceram de uma forma ou de outra na “tradição oral” do choro durante a segunda metade do século XX, a quadrilha foi praticamente extinta, até ser “redescoberta” nos finais dos anos de 1990 e regravada por músicos ligados a gravadora Acari. Veremos mais sobre este processo no capítulo cinco, dedicado às “re-significações” de O Choro na atualidade. Se a quadrilha já era uma forma coreográfico-musical praticamente extinta na década de 1930, a polca e a modinha ainda gozavam de alguma popularidade nos meios de comunicação da época, como o disco e a incipiente indústria do rádio. Apesar disso, já eram de certa forma “ameaçadas” por outros gêneros musicais nacionais e estrangeiros que começavam a gozar de grande popularidade como o samba e o fox-trot. Neste sentido, os verbetes que Gonçalves Pinto dedica à polca e à modinha são eivados de forte cunho ideológico: o carteiro procura associar estas músicas à “alma nacional”, buscando legitimá-las como representantes máximas da música do país. A modinha, segundo o carteiro, seria: o vehiculo de todas as saudades, e as reminiscencias transitoria, do bom e do bello. E' a repercussora do passado, e a delicia do presente. A modinha é um mimo de maravilhas. é um mundo de harmonias, ella tem a belleza das épocas tradicionaes, evoluindo de geração em geração Esta “evolução de geração em geração” é salientada implicitamente na enumeração dos “grandes cantores de modinha”: dividida em dois períodos distintos, o primeiro dedicado àqueles “já falecidos” e o segundo aos que “ainda estavam em atividade”, a listagem é singular 153 por misturar indistintamente as figuras praticamente anônimas descritas pelo Animal (Vicente Sabonete, Oscar de Almeida, Creoula, etc.) com grandes nomes do rádio, como Francisco Alves, Silvio Caldas, Aurora Miranda e Almirante. Note-se que ao mencionar o nome dos grandes cantores do rádio, Gonçalves Pinto aponta para a aceitação do rádio como grande divulgador da música nacional: como veremos com mais detalhes no capítulo três, onde analisamos a relação de “O Choro” com a indústria fonográfica da época, Gonçalves Pinto salientará a importância dos novos intérpretes do choro que então surgiam neste meio (como Benedito Lacerda, Luperce Miranda, Pixinguinha, por exemplo), identificando-os como uma linha de continuidade nascida dos chorões da “velha-guarda”. O verbete sobre é a polca é bem mais “panfletário” e assume quase um caráter de manifesto dirigido ao leitor. O autor começa por afirmar: A polka é como o samba, – um tradição brasileira. Só nós o que Deus permitiu que nascessem debaixo da constelação do Cruzeiro do Sul, a sabemos dansar, a cultivamos com carinho e amor. A polka é a unica dansa que encerra os nossos costumes, a unica que tem brasilidade. Do mesmo modo que os argentinos cultivam o tango e os portuguezes não deixam morrer a "canna verde", nós os brasileiros havemos de agüentar a polka, havemos de mantel-a atravéz dos seculos, como tradição dos nossos costumes, como recordação dos nossos antepassados e como herança ás gerações vindouras (115) A polca é como o samba – uma tradição brasileira: eis aqui uma afirmativa importante, que demonstra mais uma vez a complexidade e a indissociabilidade entre práticas sonoras e os discursos sobre as mesmas. Dança que tem origem no leste europeu (para muitos dicionários e livros de referência teria surgido mais precisamente na região da Boêmia, Tchecoslováquia), a polca teria chegado ao Brasil por volta de 1840, ganhando logo grande popularidade entre diversas camadas da população. Sua aceitação e adaptação às camadas mais baixas é documentada por diversos textos de época, como, por exemplo, os Folhetins do escritor França Júnior (1838-1890). Ao fazer uma descrição sobre as diferenças entre os bailes de “primeira”, “segunda” e 154 “terceira categorias” no Rio de Janeiro, França Júnior apresenta um retrato bastante vívido da popularidade da polca nas camadas mais populares: Figurem os leitores um sobrado com janelas de peitoril na Prainha, Valongo, rua do Livramento ou em qualquer ponto da Cidade Nova. Entremos por um corredor mal iluminado e vamos direto à sala, onde uma orquestra, composta de oficleide, um piston, uma rabeca e um clarinete manhoso (...). Meia dúzia de crioulas comentam o que se passa: -- ‘Vocês estão vendo como seu Chico está tão prosa hoje? Olhem só como ele se requebra na polca.’ A maneira por que ali se dança é diversa da dos bailes de primeira ordem... Quanto às polcas, consistem em arrastar os pés e dar às cadeiras um certo movimento de fado, que não deixa de ter sua originalidade” (França Jr, Folhetins, 1926,apud Sandroni, 2001) Conforme demonstra Sandroni (2001: 69), já se infere desta descrição uma referência aos “requebros” que seriam mais característicos da dança do maxixe do que da polca. Esta visão do maxixe como uma forma “requebrada” de dançar a polca também aparece no verbete de Gonçalves Pinto. Para o carteiro, a polca seria “música buliçosa, attrahente e às vezes convidativa aos repuchos do maxixe...” (116). A ressalva utilizada – “às vezes” – nos mostra que havia, na verdade, diferentes tipos de polca, que cumpriam finalidades diferentes. Se por um lado havia polcas convidativas “aos repuchos do maxixe”, havia também polcas “cadenciadas”, que eram tocadas ao final das quadrilhas, conforme nos explica o Animal: A quadrilha, sendo uma dansa accelerada, cheia de movimentação, não se prestava aos derriços dos pares de namorados. Após a agitação provocada pela quinta parte [da quadrilha], havia, como especie de premio de consolação, uma polka bem chorosa, bem macia, bem cadenciada e que compensava perfeitamente os esforços empregados na quadrilha. (...) Assim, pois, as polkas escolhidas eram quasi sempre: "Inygma", "Conceição", "Flôr Amorosa", "Só para Moer", "Amor tem Fogo", "Cabocla", "Margarida está chorando" e outras (114). “Macia”, “chorosa”, “cadenciada” são qualificativos que indicam um andamento mais lento, que permitia, ao contrário da agitação da quinta parte da quadrilha, uma dança mais romântica, propícia aos “derriços dos namorados”: “Quantas vezes dois entes que se querem, mas, que se acham separados, aproveitam a 155 cadencia de uma polka, para os segredinhos da pacificação”, também nos aponta o carteiro em meio a seu verbete. Assim como a quadrilha, a popularidade das polcas nos bailes de baixa classe média da época é comprovada pelo grande número de músicas qualificadas sob este gênero encontradas em centenas de partituras e cadernos manuscritos que nos chegaram da época. Como veremos no capítulo quatro, os qualificativos “macia”, “chorosa” e “cadenciada”, assim como outros como “polca-buliçosa”, “polca-maxixe”, “polcaschottisch” também são utilizadas pelos copistas destes cadernos para registrar o que seriam diferenças musicais entre as polcas. O que podemos então concluir do verbete de Gonçalves Pinto sobre a polca? Em primeiro lugar reforçamos o fato de que o conceito por vezes simplificador de “gênero musical” é mais complexo do que podemos supor à primeira vista; o carteiro nos mostra como uma simples palavra, “polca”, pode servir não só para designar práticas sonoras diversas (haveria polcas propícias aos “requebros do maxixe”, polcas propícias aos “derriços dos namorados”, entre outras), como situações sociais específicas (bailes, reconciliações entre namorados, compositores, nomes de músicas) e ainda feixes de discursos e idéias que relacionam este “todo-complexo” da polca com conceitos como nacionalismo, preservação e autenticidade (“a polca é uma tradição brasileira”; “nós os brasileiros havemos de aguentar a polka, havemos de mantel-a atravéz dos seculos, como tradição dos nossos costumes”; “a polka é a unica dansa que encerra os nossos costumes, a unica que tem brasilidade”, são exemplos destes feixes de discursos). Em segundo lugar, nota-se que a comparação com o samba não é gratuita: em uma década em que o samba se consolida como a música nacional, o carteiro será porta-voz de um grande número de instrumentistas populares para quem as formas de acompanhamento da polca continuarão a ser, em detrimento do novo padrão do samba, 156 expressão máxima do que era entendido como “música nacional”. Em outras palavras, mesmo quando boa parte da “nova geração” de instrumentistas do choro – Benedito Lacerda, Pixinguinha, Luiz Americano, Jacob do Bandolim, entre outros –, formada por “músicos profissionais”, isto é, contratados pelas rádios e pelo disco, passará a incorporar ao choro os novos padrões rítmicos do samba nascido no Estácio – veremos este processo com mais detalhes no capítulo três – os chorões “da velha guarda” descritos por Gonçalves Pinto continuarão a eleger os padrões rítmicos da polca como principal veículo de expressão e permanecerão infensos aos “novos padrões”. Alguns poucos membros deste grupo chegarão, octogenários ou nonagenários, à década de 1970, ainda se reunindo em rodas de choro nas quais a polca permaneceria como mainstream do choro e onde os novos padrões do samba incorporados ao choro não tinham vez. Este é o caso, por exemplo, do Retiro da Velha Guarda, reunião semanal de antigos instrumentistas de choro, como Napoleão de Oliveira e Léo Vianna (ambos retratados no livro de Gonçalves Pinto), que perdurou até a década de 1970 – analisaremos com maior profundidade este tópico no capítulo cinco. 2.4) Os “heróis do choro” e a vida festiva Passamos agora a analisar um dos principais aspectos da narrativa de Gonçalves Pinto: o verdadeiro núcleo em torno do qual gravitam todos os demais elementos do livro é que é constituído justamente pela dimensão festiva da vida: festas, rodas de choro e pagodes, como muitas vezes o Animal assinala. É este o verdadeiro leitmotiv da narrativa: através da descrição de festas, movidas a banquetes e bebidas, o autor descreve centenas de “heróis” do choro, como ele próprio os denomina, personagens que, sob um manto de respeitáveis de chefes de família e de honrados 157 funcionários públicos, periodicamente entravam em outra dimensão e “se esqueciam de tudo”, abandonando famílias e empregos por dias e dias por causa de um bom choro. Visto desta forma, os “heróis” do choro se constituem na verdade como “antiheróis” que se mantinham muitas vezes à margem da conduta social esperada e priorizavam a dimensão “festiva” e carnavalesca da vida. Exemplos como estes aparecem em grande quantidade na narrativa: Paulo Esteves, por exemplo “era chorão viciado, não podia ver defunto que não chorasse. Chegava a indagar onde existia um choro, para ele meter os peitos”. Apesar de carteiro por profissão, “acabou sendo exonerado por abandono de emprego, pois o choro fez esquecer os seus deveres” (163). Ou ainda Ernesto Pestana, “praça de polícia” que o autor julgava “nunca ter galgado posto algum”, por ser “de um gênio folgazão e inveterado farrista, andando quase sempre atracado ao seu violão, esquecia-se de ordens e disciplina, levando de vez em quando uma cadeia” (187). De modo similar, Antonio Joaquim Marques Porto, descrito como sendo pertencente a uma “distinta família baiana”, era um soldado do Corpo Militar que também não chegara a galgar posto algum, por ser “de um gênio estourado, metia-se em farras noites e noites”. Apesar disso “era de uma fina educação” e encantava as famílias da “Velha Tijuca” pois “cantava muitas modinhas com uma voz maviosa de fazer encantar” além do que “tocava flauta com grande maestria” e no violão “era sublime”. Por fim, boêmio que era e não ligando à sociedade, acabou o herói do choro (...) em uma enxerga na Santa Casa de Misericórdia. Contava-me ele que sua boníssima mãe mandava-lhe dinheiro para seu regresso à Bahia, porém, com seu espírito boêmio, nunca lá foi, gastando todo [o dinheiro] em farras e patuscadas. E assim lá se foi para vida eterna um herói, que pelo seu saber e cultura podia hoje seu nome estar esculpido em uma estátua para glória do porvir (35, grifos meus). Mas não era apenas por abandono de emprego ou pelo “gênio estourado” que se constituía um “herói” do choro. Outro aspecto dos mais importantes do livro é o devotamento dos personagens ao prazer da comida e da bebida, que gera descrições 158 realmente pantagruélicas. Assim, Salvador Marins é descrito como “um grande flautista” que nunca negava o convite para ir a um choro, mas logo perguntava pelo “pirão, nome que se dava nos pagodes quando tinha boa mesa e bebidas com fartura” (idem: 15). Leopoldo Pé de Meza “não era músico de assombro”, “pois com a sua flauta de cinco chaves já muito velha, presa com elásticos, só tocava músicas fáceis”. Apesar disso “comia como gente grande e bebia melhor”: Gostava de uma abrideira antes de entrar nos pirões, e depois se atolava na cerveja, no vinho ou em qualquer outras bebidas que viesse, era dos tais que cada vez que chimpava um gole da boa estalava a língua, e quando numa mesa via um Qui-Qui (porco) com a competente batata na boca e azeitona nos olhos não tinha mais vontade de levantar-se, e quando isso fazia ia dizendo: hoje comi para um mês, estou empanturrado, já não posso mais. Se pela madrugada vinha um chocolate com biscoitos não rejeitava a parada e tomava mais de uma xícara (18). São diversos os personagens descritos como “heróis da gastronomia”, ou os que o autor julgava já mortos pelo “muito o que comeram e beberam nesta vida”. Singular e satírica é também a lacônica descrição de um certo Macário: “Oficleidista de nome. É morto. Amigo de Irineu. O maior comedor que até hoje veio ao mundo”. Esta completa inversão de expectativas em relação ao que seria um “herói” tradicional e ao que se esperaria como uma postura “civilizada”, se por um lado aproxima a narrativa da dimensão carnavalesca descrita por Bakthin para caracterizar a cultura da Idade Média, por outro nos possibilita uma aproximação com o conceito de malandragem proposta por Antônio Cândido em sua magistral análise sobre o romance Memórias de Um Sargento de Milícias de Manuel Antônio de Almeida. Mais ainda, creio ser possível apontar, ainda que com óbvias ressalvas, algumas associações entre o livro de Pinto e o ambiente “popular” descrito no romance de Almeida. É claro que entre as diversas ressalvas que se impõe a esta última associação, três saltam aos olhos de pronto: primeiro, o fato de as Memórias serem uma obra de ficção, enquanto o Choro é uma obra memorialística. Segundo, o fato dos tempos 159 históricos serem diferentes: um se passa no “tempo do rei”, isto é, nas duas primeiras décadas do século XIX (muito embora tendo sido escrito entre 1852 e 1853), e o outro remonta a fatos de “1870 para cá”. Finalmente, há esta diferença fundamental: as Memórias de um sargento de milícias tem um narrador em terceira pessoa que freqüentemente utiliza um viés irônico em sua narrativa, ressaltando de certo modo características cômicas das camadas populares, o que fez com que inúmeros críticos anteriores a Cândido filiassem o livro de Almeida à tradição do romance pícaro espanhol6. No livro de Gonçalves Pinto esta visão “de fora” não existe: exatamente como no pensamento de Bakhtin, citado no primeiro tópico deste capítulo, não há aqui diferenciação entre o autor da sátira e os satirizados: todos “entravam na borduna” como nos diz a coluna do rancho Ameno Resedá. No entanto, não obstante estas diferenças, creio que o principal ponto de filiação entre os dois livros é o que Antônio Cândido denominou de “dialética da malandragem”. Para este autor, o personagem principal do livro de Almeida, o Leonardo, seria “o primeiro grande malandro que entra na novelística brasileira, vindo de uma tradição quase folclórica e correspondendo, mais do que se costuma dizer, a certa atmosfera cômica e popularesca de seu tempo, no Brasil.” (Cândido, 1970: 78). Ao mesmo tempo em que estaria identificado com uma espécie de “corrente universal” de heróis populares ou tricksters (como o Till Eugenspiegel alemão ou o Pedro Malazarte brasileiro), Leonardo seria fruto de uma condição social muito específica da sociedade brasileira do século XIX, marcada pela relação dialética e difusa entre a ordem e a desordem, entre o lícito e o ilícito: a sociedade que formiga nas Memórias é sugestiva, não tanto por causa das descrições de festejos ou indicações de usos e lugares; mas porque manifesta num 6 O romance picaresco é normalmente entendido como um romance sem enredo geral ou “grande trama”, normalmente tendo como figura principal um personagem que se apresenta como “anti-herói” à margem da sociedade, e que se apresenta em uma série de aventuras e desventuras normalmente ambientadas nas classes mais populares. 160 plano mais fundo e eficiente o referido jogo dialético da ordem e da desordem, funcionando como correlativo do que se manifestava na sociedade daquele tempo. Ordem dificilmente imposta e mantida, cercada de todos os lados por uma desordem vivaz, que antepunha vinte mancebias a cada casamento e mil uniões fortuitas a cada mancebia. Sociedade na qual uns poucos livres trabalhavam e os outros flauteavam ao Deus dará, colhendo as sobras do parasitismo, dos expedientes, das munificiências, da sorte ou do roubo miúdo (...) Ficou o ar de jogo dessa organização bruxuleante fissurada pela anomia, que se traduz na dança dos personagens entre lícito e ilícito, sem que possamos afinal dizer o que é um e o que é o outro, porque todos acabam circulando de um para outro com uma naturalidade que lembra o modo de formação das famílias, dos prestígios, das fortunas, das reputações, no Brasil urbano da primeira metade do século XIX. (id., ib.) Esta “dança” entre o lícito e o ilícito é visível em numerosas passagens do livro. Leonardo-pai, por exemplo, é oficial de justiça, portanto representante da ordem, mas inúmeras vezes “desce” aos círculos da desordem: ao se envolver com a saloia Maria, ao se apaixonar por uma cigana, ao contratar um curandeiro do Mangue, etc. O padrinho, apresentado como pessoa trabalhadora e honrada, só conseguiu arrumar-se na vida graças a um golpe dado em um moribundo. O próprio major Vidigal, ainda segundo Cândido, representante máximo do círculo da ordem, acaba ao final do livro descendo ao nível da desordem ao ceder aos encantos de uma mulher de “vida fácil”, Maria Regalada, em troca do perdão de Leonardo filho (id; ib). Sem dúvida esta mesma tensão entre o lícito e o ilícito permeia a narrativa e os personagens descritos pelo “Animal”. Vimos como diversos “representantes da ordem” descritos por ele — soldados, policiais, funcionários públicos etc, — estavam sempre no limiar entre estes dois hemisférios, sendo freqüentemente repreendidos ou mesmo exonerados pela incompatibilidade da função que exerciam e as tentações da “vida festiva”. Este jogo dialético, onde as hierarquias são freqüentemente embaralhadas, aparece de forma ainda mais nítida em um trecho bastante saboroso de O Choro, facilmente comparável ao caso do Vidigal exposto acima: é o caso do senhor Amaral, chefe de contabilidade de um banco, descrito por Gonçalves Pinto como uma pessoa extremamente “severa no regime do mando” e “autoritário em suas resoluções”. Era um 161 “tigre que fazia tremer de susto” os seus subordinados, entre estes o contínuo José Pavão, tocador de violão e figura popular nas rodas de choro — razão pela qual era sempre advertido pelo senhor Amaral, tendo sido finalmente exonerado de seu cargo. Porém, como reverso da medalha, o senhor Amaral era, em seu ambiente familiar, “um galo capão governado pela sogra D. Catharina”, uma verdadeira megera que “farejava sua roupa e sua papelada, dava-lhe vomitórios, fazia inquéritos constantes” para tentar descobrir qualquer desvio de conduta do genro. A esposa do senhor Amaral era também uma mulher extremamente ciumenta e histérica, que “dava meia dúzia de ataques diários”. Em determinada ocasião, D. Catharina, que “perdia a cabeça quando via um bom choro”, resolveu comemorar seu aniversário chamando diversos chorões para uma festa em sua casa. Passo a palavra ao “Animal”: Foi no auge de uma polka saltitante cheia de passagens e remeleixos maxixados da autoria de Callado, que entrou pela porta principal o seu Amaral. José Pavão, que acompanhava o chôro encostado a uma janella e a perna em cima de uma cadeira, quando avistou o seu ex-chefe pulou pela janella e cahiu em cima de uma mesa cheia de louças de porcelana reduzindo tudo em cacos!... o auditorio foi surprehendido suppondo que o José Pavão tivesse endoidecido. Dona Catharina, também surpresa pelo acontecimento pediu explicações ao José Pavão, que tremendo de medo escondia o rosto para não ser visto pelo Amaral, e explicou à matrona farrista o temor que lhe causava a presença de seu ex-chefe de repartição por ter sido elle um de seus maiores algozes durante os annos em que trabalhou sobre suas ordens no Banco ! D. Catharina esqueceu-se do prejuizo da louça e deu uma formidavel gargalhada e dando o braço ao José Pavão, foi ao encontro de seu Amaral, fazendo uma apresentação de seu excontinuo, ordenando que daquella hora em diante respeitasse o sr. José Pavão, como pessôa grata de sua familia, neste momento Bilhar, pede a palavra, e em bello improviso enaltece as qualidades de José Pavão, reduzindo a expressões mais simples a hyerarchia do sr. Amaral, debaixo dos applausos de dona Catharina sua sogra, e sua esposa dona Bernardina Ramos e de todos que tomavam parte no pagode ! O sr. Amaral humilhado retirouse e o choro continuou dois dias !... (62, grifo meu) Vale salientar que um “causo” extremamente parecido com esse é publicado no jornal do Ameno Resedá do ano de 1917, sob o título de “Você é um bicho” (referência a figura da sogra): os nomes dos personagens são diferentes, mas a história é em essência a mesma. Aliás, o que se percebe de forma geral é a existência de um tipo 162 de crônica satírica, normalmente assinada por pseudônimo, onde a tônica é dada pela inversão da ordem vigente e pela subversão das hierarquias7. Figura 4 – Página do Jornal do Ameno Resedá com a crônica satírica “Vocè é um bicho”, um “causo” similar ao relatado no livro O Choro. No topo da página aparecem as letras das músicas a serem cantadas pelo rancho naquele ano. 7 Esta inversão da ordem abarcava também a esfera sexual: em um dos jornais de 1912 do rancho Ameno Resedá, uma coluna satírica intitulada “O Dominó Amarelo” relata a história de um certo “Juca Trombone”, malandro que vivia de biscates e sempre atrasava o pagamento do aluguel, até que o seu senhorio resolve se travestir de mulher no carnaval para “seduzir” o malandro Juca e arrancar-lhe finalmente o aluguel devido. O efeito cômico é obtido pelo farto uso de gírias e pela revelação, ao final da crônica, de que a “sedutora” senhora fantasiada de “dominó amarelo” é na verdade o senhorio. 163 Assim, vemos como o ambiente de trabalho e o ambiente “festivo” se misturam, as hierarquias se embaralham e o “certo” e o “errado” se diluem. Da mesma forma como o Vidigal, o chefe supremo da polícia, é convencido a perdoar Leonardo graças aos encantos de uma mulher de “vida fácil”, o temido senhor Amaral acaba submetido a uma completa inversão de ordem em sua hierarquia ao ter que aceitar José Pavão como “pessoa grata de sua família”, graças à intervenção enérgica de sua megera sogra. A hierarquia da ordem acaba sucumbindo à hierarquia da roda e da vida festiva, seja nos “causos” relatados no livro de Pinto ou nas crônicas satíricas do rancho. Tutto nel mondo è burla, como diz Cândido em seu artigo, parafraseando Verdi: na complexa sociedade brasileira do século XIX, os círculos da “ordem” e da “desordem” estão constantemente embaralhados e se articulam através de uma série de mediações que incluem, entre outros fatores, as práticas musicais como ferramentas poderosas de persuasão e mobilidade social. 164 Capítulo 3 Gonçalves Pinto e os primeiros memorialistas da música popular urbana carioca 3.1) Influências Mútuas Vistas as influências de publicações populares (como os periódicos do Ameno Resedá) na escrita de Gonçalves Pinto, passamos agora a identificar e analisar outras possíveis influências na obra do carteiro. O presente capítulo terá como foco uma análise comparativa entre o livro de Gonçalves Pinto e os escritos dos primeiros memorialistas da música popular urbana carioca: o objetivo é apontar influências mútuas e também, naturalmente, contradições entre estes discursos. E mais do que tudo, entender de que forma discursos de diferentes esferas – intelectuais, como de Mello Moras Filho; jornalísticas, como de Vagalume e Orestes Barbosa e literárias, como de Catulo da Paixão Cearense – influenciaram a escrita de O Choro. Como já dito, procuro entender a escrita de Gonçalves Pinto sob dois aspectos: como uma das vozes que constituem a polifonia de discursos sobre as práticas musicais da época e como sendo ela mesma um repositório de vozes, conceitos e idéias dos músicos de choro do início do século XX. Sob ambos os aspectos temos que considerar outras narrativas importantes da época: para isto tomarei como base alguns trabalhos de pesquisadores que se dedicaram ao estudo dos primeiros memorialistas da música brasileira, como Sandroni (2001), Moraes (2006), Abreu (1998, 2007) e em especial a análise de Carvalho (Carvalho, 2006) que em sua dissertação de mestrado procura fazer uma interessante comparação entre o livro de Pinto e os escritos de Francisco Guimarães (o “Vagalume”) e Catullo da Paixão Cearense, Orestes Barbosa e Mello Moraes Filho. O foco do trabalho de Carvalho é a análise da obra de Catullo da Paixão Cearense no contexto de sua época e a problematização da diferença de significados sobre práticas musicais nos escritos de Catullo e de seus contemporâneos. Para o autor, identificar nas memórias deixadas por esses sujeitos o confronto entre os diferentes significados, visões e concepções sobre as práticas musicais ditas populares desse período, permite compreender quais eram e como se davam os conflitos no interior das relações sócio-culturais das classes populares da sociedade carioca (Carvalho, 2006:21). Apenas para contextualizar historicamente o leitor, farei a seguir um breve esboço biográfico de cada um destes “sujeitos” autores de narrativas da época. Já traçamos no capítulo anterior uma breve biografia de Catulo da Paixão Cearense. Francisco Guimarães, por alcunha o “Vagalume” era jornalista e cronista especializado em carnaval, tendo lançado em 1933 o seu famoso livro Na Roda de Samba, espécie de reunião de crônicas sobre o samba. O livro tem como foco principal o ataque à crescente industrialização do samba por oposição ao que seria o samba “puro” dos morros cariocas. Nomes como Sinhô, João da Bahiana, Caninha e Eduardo das Neves são vistos como os “catedráticos”, ou seja, aqueles que conheciam realmente a roda de samba, por oposição aos compositores e intérpretes ligados à indústria cultural e, portanto, “falseadores” da tradição, como Francisco Alves (alvo dos maiores ataques), Ary Barroso e Lamartine Babo (Sandroni, 2001:135). Sua narrativa, como afirma Moraes, “transita pelos diversos focos narrativos, isto é, entre as memórias do autor, a crítica musical, a crônica jornalística e avança (...) em direção às afirmações com pretensões ‘científicas’” (Moraes, 2006: 121). Orestes Barbosa, nascido em 1893, foi também jornalista, iniciando sua carreira como revisor do jornal O Mundo. Como afirmam Sandroni (2001:134) e Moraes (2006:122), sua carreira tinha um viés muito mais “intelectual” do que a de Vagalume; autor de vários livros, chegou mesmo a se candidatar para a Academia 166 Brasileira de Letras em 1922. Foi poeta e letrista, parceiro de Noel Rosa e Silvio Caldas em diversas composições ainda hoje clássicas da música popular. Seu livro Samba: sua história, seus poetas, seus músicos e seus cantores de 1933 faz, ainda segundo Sandroni, um contraponto ao de Vagalume ao defender o samba “moderno” e industrializado. Feita esta pequena contextualização biográfica, passamos a analisar de que forma tais autores e textos podem ser relacionados, primeiramente delimitando pontos em comum entre as obras. Começamos por resumir alguns pontos levantados por Moraes (2006), já mencionados na introdução deste trabalho: 1) esta geração de memorialistas da música popular brasileira teria sido a primeira a estabelecer a “fusão entre a prática da construção da memória e a organização, compilação e arquivamento das diversas formas de registros sobre a música urbana, no momento em que ela surgia como fato cultural e social” (Moraes, 2006: 120); 2) por serem tais memorialistas “observadores participantes” (pelo menos no caso de Pinto e Barbosa) ou pelo menos “testemunhas oculares” (como é o caso de Vagalume) dos eventos musicais da época, suas visões parecem, no dizer de Moraes, “ter-lhes concedido uma espécie de credenciamento automático para definir a seleção dos ‘fatos dignos’ de registro, sua veracidade e a ordenação causal e temporal dos eventos (id., 121). Tal grupo de fatores também teria mais dois desdobramentos: o primeiro seria a possibilidade de organização, por parte destes memorialistas, de um “discurso fundador sobre certas ‘origens, características e linha evolutiva’ da música popular (...) nas primeiras décadas do século XX (id, ib.); e o segundo seria o de que, ao realizar um discurso baseado nas vivências de rodas, festas, serestas etc, a narrativa que prevalece entre tais memorialistas é em geral, fragmentada (id, ib). 167 A partir destas características fundamentais, focarei minha análise no livro de Pinto, fazendo paralelos eventuais com os livros de Vagalume, Catulo e Barbosa. Começarei com o último ponto citado: a narrativa fragmentada. Vimos nos capítulos anteriores que o livro de Gonçalves Pinto é composto basicamente por pequenos “verbetes” (que ele intitula “crônicas” em seu prefácio), normalmente tratando de um chorão da época, ou descrevendo alguma situação satírica envolvendo personagens da época. Esta estrutura parece ter sido em parte inspirada pelo livro de Vagalume: no prefácio de ambos os livros os autores definem seus trabalhos como “crônicas”, negando qualquer valor literário às obras. Para Vagalume, seu modestíssimo trabalho, longe de ser uma obra literária, é apenas um punhado de crônicas, que não publiquei, porque os amigos mais íntimos induziram a que as reunisse num volume, à guisa de livro (Guimarães, 22). Da mesma forma, Gonçalves Pinto afirma que sua narrativa “não tem a pretensão de mostrar erudição, nem é comercial nem expositiva” (9), constituindo-se apenas em uma série de “crônicas do que se respirava no Rio de Janeiro [de 1870 para cá]”. Podemos ainda apontar outros pontos em comum entre as duas obras: ambos os autores deixam claro o fato de que, ainda que à custa de imenso esforço (que os colocam quase em posição de mártires do samba e do choro respectivamente), seus livros representam a realização de ideais maiores, que seriam, em última análise, as salvaguardas da memória do choro e do samba nas primeiras décadas do século. Assim, Vagalume afirma em sua epígrafe: Na RODA DO SAMBA, representa um sonho que foi tornado realidade, após muitas promessas, muitas desillusões até chegar ás portas do desanimo. Ahi foi que encontrei o Benedicto de Souza, como o naufrago que encontra salvação. (Vagalume, 1933: 7) Para Gonçalves Pinto a conclusão de seu livro era “seu sonho dourado” (207), apesar das dificuldades que também o levam a se comparar a um náufrago, como vimos 168 no capítulo dois. Além destas imagens metafóricas comuns, é possível encontrar nos dois livros construções de frases bastante parecidas, principalmente no que se refere às descrições apologéticas de músicos e compositores da época: “O Caninha não é um sambestro. Na roda de samba, é um astro de primeira grandeza” (Vagalume, 1933: 42). “Índio das Neves é hoje o maior vulto no gênero de modinhas de alto estilo. Na atualidade, ele é o primus inter-pares da modinha brasileira” (id: 84). “O poeta Catullo da Paixão Cearense é um astro de primeira grandeza, pois suas produções aí estão para nossa admiração” (Pinto, 1978: 132). “João Pernambuco é o violão nortista primus inter-pares dos seus congêneres.” (id. 124). Ainda que tais expressões fossem correntes nos meios jornalísticos da época, creio que podemos afirmar que Gonçalves Pinto foi certamente influenciado pela leitura do livro de Vagalume: ele chega mesmo a descrever o jornalista como um autêntico “chorão” e a citar sua obra, lançada três anos antes de O Choro: Vou aqui fazer uma justa homenagem a este jornalista amigo de todos os chorões, e assim também é um chorão. Este cronista carnavalesco, considerado e respeitado por todos os foliões e colegas do mesmo ofício, tal a sua capacidade intelectual. Guimarães é um boêmio de jaça e autor da roda dos sambas! (190, grifo meu) As finalidades destas “crônicas”, no entanto, são bem diversas: o escrito de Vagalume é, em última análise, uma crítica feroz dos caminhos da industrialização do samba, ao passo que o de Alexandre tem por foco principal a construção da memória de seus companheiros de choro. Neste sentido, uma obra que pode ter servido de inspiração para o carteiro é a coletânea Lyra Brasileira de Catulo da Paixão Cearense, escrita em 1908, citada por Carvalho (2006). No prefácio deste livro, Catulo faz uma descrição sumária de alguns instrumentistas do choro, propondo mesmo uma definição do que seria, a seu ver, as características mais importantes que um instrumentista deveria ter para ser considerado um chorão, conforme afirma Carvalho (2006). Conquanto o prefácio não tenha o mesmo caráter de “verbetes” do livro de Pinto, e seja escrito em 169 prosa corrida, percebem-se em ambos o desejo de perpetuar uma geração de instrumentistas populares. Uma diferença, no entanto, fica logo patente: enquanto Catulo não tem o menor pudor em criticar os instrumentistas mais renomados, Pinto tem uma postura muito mais “cuidadosa” ao eventualmente apontar as imperfeições dos instrumentistas. Veja-se por exemplo este trecho de Catulo sobre o renomado violonista Quincas Laranjeiras: Ahi temos o Quincas Laranjeiras, o solista aprimorado que se consagra de corpo e alma aos estudos teóricos, executando nitidamente alguns trechos de ópera. Considero o violão como o acompanhador dolente das modinhas e lundus, não o apreciando muito quando invade o império de outros instrumentos, executando pedaços de músicas clássicas e óperas inteiras, raríssimas vezes. Quem me tirar o violão do choro de um acompanhamento dengoso, com todos os seus acordes gementes e seus arpejos divinais, o que me espedaça as mais íntimas fibras do coração, não terá a seu lado um apreciador devotado e até fanático. O acompanhamento com todas as harmonias, com todos os concentos arrebatadores, é muito mais difícil, em minha humilde opinião, do que um solo de rápida execução. Eis porque o meu velho amigo e companheiro de longos anos, Quincas, não é para mim um semi-deus. Se ele quisesse abandonar o solo e dedicar-se tão somente ao acompanhamento, seria, incontestavelmente, o nosso primeiro violão. Já o conheço há mais de 14 anos e não é de hoje que lhe canto esta ladainha (Catulo, 1908:4). Temos aqui, conforme salienta Carvalho (2006) uma importante definição do que seria a essência do choro para Catulo: uma práxis de “acompanhamento” típica da linguagem do choro, que o poeta define como “acompanhamento dengoso, com todos os seus acordes gementes e arpejos divinais”. Assim, conquanto existissem violonistas que solassem bem, como Quincas Laranjeiras, os verdadeiros chorões seriam aqueles com o dom de acompanhamento, conforme se percebe nas descrições que se seguem: Vamos agora aos acompanhadores de choros, capazes de emocionarem os mais refratários à música, os mais gelados corações. Não quero referir-me a eles sem falar de um excelente e soberbo solista, a quem perdôo o crime, por abraçar fervorosamente o repertório das polcas e valsas brasileiras, principalmente o que se diz choro. É o Manduca Catumby. Sem contestação sola bem, conquanto seja fraco acompanhador. Não o melindro com isso, porque ele sabe que o aprecio. O meu antigo amigo e companheiro Satyro Bilhar é um primor na sua escola, criado por si mesmo, carregando atrás de seu mavioso violão um bando de satélites impertinentes, que não o podem imitar nem de longe. Chico Borges, outro velho camarada, é o grande acompanhador de flauta e sem dúvida um dos primeiros. É 170 digno rival de Neco, que nada lhe fica devendo, quando geme ao lado de uma queixosa e soberba flauta, ou de um cavaquinho do quilate de Galdino ou Mário, dois terríveis que se podem bater, conquanto seja verdade que o Galdino é mais antigo, e por isso, mais conhecedor desse instrumento, que só pode ser ouvido quando tocado por um dos dois. Continuando nos violões: Chico Albuquerque, o pinho respeitável, dos tempos áureos de Callado e Viriato, hoje afastado do terno mas não esquecido dos calladianos acordes. Se tivesse método e escola, com o que sabe, podia, sem grandes receios, enfrentar com o seu antigo professor. Benigno, acompanhador firme, que não vacila e não teme o cantante. Ventura, uma lira opulenta de boas harmonias, mas um tanto exagerado por vezes. Com a longa prática que tem, seria um extraordinário acompanhador, se soubesse comedir-se um pouco. É interessante cotejar as descrições acima com as de Gonçalves Pinto, realizadas 28 anos depois, sobre os mesmos personagens: “O nome de Neco, na roda de choro, é um santuário, é uma veneração na formação dos seus acordes maravilhosos e embriagantes de harmonia nas passagens das tonalidades das músicas difíceis, que sem lisonja só ele sabe fazer” (70). “Bilhar era um chorão que tinha primazia entre outros chorões nos acordes, nas harmonias, no mecanismo de dedilhação com que manejava agradavelmente seu violão” (52). “Manduca de Catumby era um chorão solista e bom acompanhador que pouco se utilizava dos bordões, porém fazia proezas nas cordas de tripas, sendo por esta razão respeitado e admirado por outros chorões” (53). [Sobre Chico Borges] “O violão nos seus dedos era um hino de encantar. Fazia no violão coisas de suplantar. Tocava todos os tons com sublimes acordes, fazendo encantos de admirar” (107). Duas questões interessantes podem ser apontadas a partir desta comparação. A primeira diz respeito ao próprio conceito de choro: enquanto Catulo conceituava como “chorões” apenas aqueles que dominavam a práxis do “acompanhamento” do choro, Gonçalves Pinto — ainda que reconheça em diversas partes do livro a importância do acompanhamento, como veremos — não hesita em classificar como chorões não só aqueles que apenas “solavam”, mas também os instrumentistas “facões” (gíria da época 171 para os maus tocadores) e todos aqueles que participavam de alguma forma da roda, fosse promovendo festas, fosse apenas ouvindo e sendo “amigo dos chorões”, caso do jornalista Vagalume, citado anteriormente. Desta forma é possível afirmar que o seu conceito de choro abrangia não só a prática musical, mas todo o contexto social em que a música era realizada, todo o conjunto de “personagens” que rodeavam sua execução, bem como todos os discursos que rodeavam aquele gênero musical; assim, em última análise, o discurso do “Animal” aponta para a construção de uma rede de sociabilidade em torno de uma prática musical. Voltando ainda ao conceito de Catulo, podemos observar como a referência à questão do “acompanhamento” era de suma importância para os músicos já em 1908, a ponto de Cearense definir o bom músico pela sua capacidade de dominar esta práxis. Ainda que Gonçalves Pinto tenha uma visão mais ampla sobre este conceito, é nítido o fato de que o bom acompanhamento “com todos os seus acordes” (frase aliás bastante recorrente no livro de Pinto e também citada por Catulo) era questão vital para a prática do choro; assim, são muitas as citações no livro sobre este tema: Heitor Ribeiro, funcionário dos telégrafos, quando agarrado ao violão, tocava um acompanhamento “com todos os seus acordes” que fez o autor “ficar babado pelo gosto que sentia” (51); o já citado Chico Borges “tocava todos os tons com sublimes acordes” (107); Zé Russinho, que se destacava por reunir em seu acompanhamento ao violão “o saxe e o bombardão” (pág 192). A importância do cavaquinho aparece também em diversos trechos: assim, ao ser convidado para uma roda onde não havia cavaquinhista, o autor foi logo instado a tocar o instrumento, oferecido pelo dono da casa, pois “todos os chorões sabem que este instrumento é de uma necessidade de grande valor” (50). Da mesma forma, Galdino Cavaquinho tirava “infinidades de tons e combinações de acordes que me é aqui difícil descrever” (54). Também transparece no livro a 172 importância que os solistas davam aos bons acompanhadores, a ponto de alguns músicos se tornarem “acompanhadores exclusivos” de determinados solistas: assim o cavaquinhista Abrahão era “o acompanhador efetivo do chorado clarinetista João dos Santos, que não o dispensava por cousa alguma; pois só ele conhecia o seu segredo” (191). A qualidade do acompanhador também determinava o repertório a ser tocado na roda: Raul Flautin solava “músicas de arrepiar carreira” e também “outras de fácil acompanhamento”, pois “tocava conforme o valor dos acompanhadores” (149). De todas as citações acima tira-se o fato do quanto o acompanhamento era vital para o ambiente do choro: mais ainda, do quanto este acompanhamento se constituía como uma práxis bem definida, uma espécie de linguagem falada por aqueles instrumentistas. É interessante notar como o autor esbarra continuamente na dificuldade de tentar definir esta práxis com palavras, daí o freqüente uso de locuções como “me é muito difícil descrever”, “é impossível descrever nestas toscas linhas” o acompanhamento de fulano, etc. A questão do acompanhamento me parece ser um ponto de vital importância para os músicos de choro e que normalmente passa ao largo da bibliografia sobre o tema: este será um ponto abordado de forma mais aprofundada no quarto capítulo deste trabalho. A segunda questão importante na comparação entre os escritos de Catulo e Pinto diz respeito ao extremo cuidado com que este último se referia aos seus companheiros de choro, em comparação com a postura extremamente crítica do primeiro. Aliás esta parece ser outra diferença marcante entre O Choro e os escritos de Vagalume e Catulo: enquanto estes adotam posturas verdadeiramente militantes em prol do samba versus a industrialização (Vagalume) e em prol da modinha versus o samba (Catulo), com críticas ferozes a diversas personalidades da época (ver Carvalho, 2006: 173 44), transparece no livro de Pinto o cuidado de evitar a descrição de qualquer fato ou qualidade desabonadora de seus “personagens”. Veja-se por exemplo o seguinte trecho: Eis aqui a conclusão da segunda parte do meu livro onde descrevi sem o mínimo ressentimento os personagens de muitos chorões só no intuito de valorizá-los. E se muitas vezes de passagem toquei nas vidas intimas de algum deles foi tão somente, relembrando fatos históricos que me ocorreram sem a mínima malícia de ofendêlos pois me foi necessário assim proceder para dar o cunho real no perfil de cada um só tendo em mira enaltecer fatos e costumes de todos os chorões dentro do tema que iniciei e arquitetei em reviver o passado destes distintos companheiros musicistas que se achavam esquecidos, porém, descrevi-os dentro dos limites da veneração e do respeito pois não podia eu de modo nenhum descrever um mundo de saudades sem me intervalinhar com a minha humildade perante as grandezas artísticas valorizadas nos feitos de cada um destes grandes protagonistas da música. Com estas minhas toscas linhas pretendo desfazer qualquer um juízo mau que porventura possa se fazer de mim, ficando deste modo desfeito as maledicências que, por um acaso possam ser dirigidas irrefletidamente por espíritos malévolos, na certeza que só primei na elevação de fazer surgir os feitos dos meus saudosos companheiros inolvidáveis, que se foram, e patentear uma homenagem e um verdadeiro exemplo de confraternização aos chorões d'agora (112, grifo meu). Este trecho demonstra claramente o quanto o autor estava consciente de estar escrevendo não apenas para a posteridade, para que as “gerações futuras” soubessem que “existiu essa grande falange de chorões que elevaram e inalteceram as músicas genuinamente brasileiras” (207), mas também para seus contemporâneos, seus companheiros de choro, como já apontado nos dois primeiros capítulos. O fato de haver - pelo menos entre uma pequena comunidade de chorões contemporâneos do autor e que ainda eram vivos em 1936 -, certa expectativa em torno do livro a ser publicado é reforçado por algumas passagens da obra. Um exemplo é a nota “Acontecimento Imprevisto”, colocada à última página: Venho por meio destas linhas dar uma satisfação aos meus amigos leitores relativamente a demora da saída do meu livro O "Chôro" que deveria ter saído muito antes do Carnaval. Assim não aconteceu por motivos muito independente da minha vontade, pois, o prelo onde tinha que ser impresso quebrou [...] (id. 208, grifo meu) Outro aspecto que reforça o aspecto dialógico do livro é o fato do autor constantemente se reportar diretamente ao instrumentista descrito, como no caso do 174 violonista Juca Russo, que presumivelmente se encontrava doente à época em que Pinto escrevia, conforme se observa neste trecho: “Da minha mesa de trabalho, faço votos ao bom Deus que tu fique [sic] completamente bom da tua moléstia, para a minha satisfação e a elevação das nossas músicas que tu tanto adora.” (196). Surge daí uma outra questão interessante e que diz respeito à identidade do grupo de “chorões” descrito no livro. Como assinalado no primeiro capítulo, um dos principais objetivos de Gonçalves Pinto era descrever os instrumentistas do choro como um grupo coeso e unido: Havia mais camaradagem, mais respeito e sobretudo harmonia... até na musica, porque o "chôro" era constituído de uns blocos indissolúveis. Onde ia a corda, ia a caçamba, de modo que, onde estivesse presente fulano, estariam tambem sicrano e beltrano. (id, 116) A questão poderia então ser colocada da seguinte forma: até que ponto estes chorões se constituíam realmente como um bloco coeso? A possibilidade de que os encontros musicais descritos por Gonçalves Pinto não fossem tão harmoniosos como daria a entender o autor é citada por Carvalho (2006: 39), que exemplifica o fato citando este trecho do livro: Os bairros mais prediletos dos chorões eram: Catumby, o bairro do agrião [...]. Os catumbyenses eram também chamados de “papas-couves”. Os “choros” em Catumby eram um tanto arriscados, por que ali se abrigavam os maiores valentões da época, que constituíam os famosos partidos dos Nagôas e Guayamus, que não raro se coligavam para uma verdadeira guerrilha com um outro partido denominado “Santa Rita”. Do mesmo modo que os de Catumby se coligavam, também os do outro bairro de Santa Rita se uniam ao pessoal da Saúde e Saco de Alferes, que constituíram os bairros de Santo Cristo e Gamboa. Estas “pegadas” eram medonhas e às vezes envolviam o pessoal da Glória e Catete. Eis a razão porque os “choros” em Catumby eram um tanto perigosos. (116-117) Haveria assim uma contradição de Gonçalves Pinto ao se referir por um lado ao clima de “harmonia”, “respeito” e “camaradagem”, e por outro mencionar as “pegadas” em alguns ambientes do choro? Não creio que se possa responder a esta pergunta de forma peremptoriamente afirmativa ou negativa: ao contrário, creio que a 175 questão pode nos ajudar a entender melhor o processo de inserção do choro em outros contextos culturais da época. Aliás, esta é sem dúvida uma característica das mais importantes na análise de um livro como O Choro: pela própria característica fragmentada da narrativa e também pelo fato do autor citar frequentemente fatos históricos que não fazem mais parte do “senso comum”, ou que pelo menos não fazem mais parte do conhecimento do leitor médio do século XXI, é preciso estar sempre contextualizando historicamente os fatos narrados. Assim, no trecho citado acima é de vital importância a menção aos “famosos partidos dos Nagôas e Guayamuns”: o autor se refere aqui a duas maltas de capoeiras que dividiam o Rio de Janeiro no final do século XIX. Segundo o historiador Carlos Eugênio Líbano Soares, havia lutas de grupos (ou maltas) de capoeiras que dominavam regiões da cidade como verdadeiros estados paralelos: Cada freguesia do Rio tinha um grupo diferente. Quando outro invadia seu espaço, era a senha para o confronto. Havia um controle informal, uma geografia inquieta semelhante à atual guerra das drogas. Assim como hoje há, no Rio, o Comando Vermelho e o Terceiro Comando, havia na época nagoas e guaiamus. Os nagoas dominavam a periferia, são grupos de origem africana, e os guaiamus dominavam o centro da cidade. Eles estavam disputando espaço o tempo todo e em confronto constante também com a polícia. A partir de 1870, quando surgem os interesses políticos, a polícia passa a ser tolhida pelo poder político. A política interfere na polícia, assim como acontece hoje. E a polícia, ao invés de ser vetor da ordem, passa a ser vetor da desordem, por conta da corrupção e dos interesses políticos envolvidos na manutenção dos capoeiras (Soares, entrevista disponível em http://www.angola-ecap.org/spip.php?article114&id_rubrique=1, consulta realizada em 26 de agosto de 2008). É interessante notar como o depoimento de Soares é inteiramente corroborado por Pinto em dois trechos de seu livro. O primeiro reforça a questão das brigas entres facções rivais e é citado também por Carvalho (2006): Às vezes num baile (...) descobriam um convidado pertencente a um partido contrário, de outro bairro. A festa corria bem, mas no final, depois que o ‘choro’ tocava o ‘galope’, o ‘estrangeiro adversário’ se preparava para sair com a ‘dama’ a seu lado. Ouvia-se o brado: ‘Quem trouxe, não leva!’. E o pau comia gente! O mesmo sucedia quando o pessoal de Catumby saía de seu reduto e ia para os lados do morro do Nheco, Morro do Pinto, Praia Formosa, Saúde e Saco de Alferes (117). 176 O outro trecho deixa clara a relação entre a capoeira e a política da época: Nesta época só existiam estes dois [partidos políticos, o liberal e o conservador], que eram disputados pela força do dinheiro, da vingança da traição, dos crimes, e de cenas de pugilatos pelos capangas e chefes de malta, dos partidos de capoeiragem, Nagôas e Guayamús salientados pela faca, pela navalha, pela cabeçada, pelo tombo bahiano, pelo rabo de arraia, pelo calçador e mais as infalliveis rasteiras e pantanas, e mais muitos outros golpes deste sport genuinamente brasileiro, que dominavam no tempo da Monarchia. Os politicos d'aquelle tempo aproveitavam estes elementos fazendo de seus chefes, cabos eleitorais verdadeiros "leões de chacara", distribuidores das urnas eleitorais em defesa de suas eleições, defendida deste modo, pela flôr da gente como eram conhecidos pelas tropas partidárias. (111) Esta ligação do choro com a capoeira é sem dúvida muito interessante e ao mesmo tempo pouco estudada. Pela descrição de Pinto no Catumby é possível afirmar que havia chorões que eram também capoeiristas e membros destas “facções” rivais. Pinto cita dois ao longo de seu livro: Tadeuzinho, estafeta dos telégrafos, flautista de cor parda “era um grande atleta no jogo da capoeiragem, de uma agilidade sem nome”, e nunca havia sido derrubado por nenhum de seus colegas (28). Jorge Guerreiro era violonista, solava muito bem polcas e valsas, sendo também “um grande capoeira”, que “jogava no partido Nagô” (202). Uma vez que havia chorões capoeiristas, não há razão para se supor que os conflitos entre as facções nagoas e guaiamus citados por Pinto não se estendessem também aos músicos que faziam parte desta interseção entre choro e capoeira, razão pela qual Carvalho (2006: 40) contesta a afirmativa do “Animal” de que, em brigas como estas “todo mundo podia dar e apanhar, menos os músicos que eram considerados verdadeiras divindades” (117). Em todo o caso, a não ser pelo fato das disputas entre maltas de capoeiras, o que o autor se esmera em apresentar ao seu público é uma comunidade que ainda que formada por um contingente bastante heterogêneo — funcionários públicos, operários, músicos profissionais, intelectuais, etc — compartilhava uma linguagem musical comum, a linguagem do choro, presente em bairros tão distintos como Botafogo, Jardim 177 Botânico e Gávea (os bairros até hoje considerados como “nobres” no Rio de Janeiro) até a Cidade Nova e os subúrbios da Central do Brasil, como vimos no capítulo dois. 3.2) “O Choro” e a Indústria Fonográfica Cumpre agora analisar outro aspecto importante: a relação destes primeiros memorialistas com a indústria fonográfica. Iniciaremos nossa análise fazendo novamente um paralelo entre os escritos de Gonçalves Pinto, Catulo e Vagalume: como afirmamos anteriormente, Catulo guardou ao longo de toda sua vida uma postura hostil ao aparecimento do samba e de sua consolidação na indústria fonográfica da época, conforme se observa neste trecho citado por Carvalho (2006) Hoje, no Brasil, pululam os “bardos nacionais” e nenhum deles deixa de compor sua marchinha, seu samba ou sua canção, falando sempre na ‘Cabocla’, no ‘malandro’, no ‘Brasil pandeiro’, nome este acapadoçado, que até melindra a nossa brasilidade. Os célebres trovadores, não sei por que, fizeram dos morros o seu Parnaso, esses lugares evitados em outros tempos por todas as pessoas. (...) Basta que um sujeito escreva um samba em que capadoçalmente, fale em Brasil, para que logo seja considerado um poeta de vôos nacionais (Cearense, 1943, apud Carvalho, 2006:45). Este ataque ao samba revelava, segundo Carvalho, uma postura em defesa da modinha, gênero em que Catulo se notabilizara, escrevendo diversos livros em formato de “cancioneiros” (ou seja, com letras para músicas em voga na época) de grande sucesso popular nas décadas de 1910 e 1920, lançados em grande parte pela livraria Quaresma. É muito importante, entretanto, que conceituemos esta modinha: ainda que com raízes no início do século XIX (ver Sandroni, 2001) a modinha de Catulo é essencialmente a música dos choros (valsas, schottischs, polcas, etc) com letra. Pelo livro de Gonçalves Pinto sabemos que ela fazia parte do ambiente do choro da época: há diversas descrições de rodas onde em determinado momento cantavam-se modinhas, bem como descrições de cantores. 178 Da mesma forma, Vagalume, embora em uma posição diametralmente oposta à de Catulo, já que se colocava como ardoroso defensor do samba praticado por alguns ícones como Sinhô e Caninha, também desferia violentos ataques à indústria fonográfica da época. Esta intenção fica clara logo no prefácio, onde o autor declara que escreveu suas crônicas com o intuito de reivindicar os direitos do samba e prestar uma respeitosa homenagem aos seus criadores, àqueles que tudo fizeram pela sua propagação. Não tive outro objectivo, se não separar o trigo do joio... Hoje, que o samba foi adaptado na roda «chic», que é batido nas victrolas e figura nos programas dos rádios, é justo que a sua origem e o seu desenvolvimento sejam tambem divulgados. (Guimarães, 1933:22) Já o livro de Gonçalves Pinto apresenta uma relação com a indústria fonográfica que poderia, em um primeiro momento, ser classificada como ambígua. Normalmente as críticas do livro aos novos meios de comunicação se apresentam como “ressonâncias” de críticas na voz de seus “personagens”. Assim, é significativo que ao falar sobre Catulo o autor afirme o seguinte: Hoje só imperam as músicas estrangeiras barulhentas e irritantes ou então os sambas e marchas que tem glorificado alguns cantores modernos, enquanto isso Catullo tem mesmo saudades dos antigos trovadores que interpretavam as suas produções com tanta alma. (56) Para Carvalho (2006) esta passagem evidencia o fato de que em 1936 Catulo “já era considerado representante de um tempo distante, um músico antigo, ultrapassado” (Carvalho, 2006:22). Mais do que isso, entretanto, creio ser possível afirmar que o trecho citado acima representa uma ressonância do discurso de Catulo na voz do autor, pois, como veremos, Gonçalves Pinto nem sempre adota o mesmo discurso ao longo do seu livro. Esta linha de discurso também aparece na descrição de outros chorões, também críticos da indústria fonográfica da época. Assim, o violonista Zé Gávea estaria “hoje [1936] afastado por não se conformar, de maneira alguma, com as músicas americanas de arribação.” Costinha, grande pianista era “afamado e admirado”; entretanto, “com a sincronização e o rádio a música decaiu bastante, sendo 179 obrigado o chorão acima a retirar-se à vida privada” (203). Antonio Maria era também grande flautista que passou a tocar saxofone “muito a contragosto dos seus inúmeros admiradores, porque o saxofone é hoje em dia o instrumento da moda, figura obrigada [sic] nos fox-americanos” (165). Até que ponto estes discursos representam o pensamento do autor ou a “ressonância” do pensamento dos descritos é uma questão interessante de ser colocada, já que em diversos momentos o autor exalta o maior meio de comunicação da época: o rádio. Assim, logo na primeira parte do livro Gonçalves Pinto afirma que não citará artistas de rádio, por serem eles já bastante conhecidos do público em geral (42). Entretanto este aviso não é feito com o mesmo tom de discurso usado na descrição de Catulo; pelo contrário, o autor afirma: Quanto aos artistas do Radio deixo de mencionar seus nomes pois todos elles podese dizer, que são artistas de hoje, e que todos os conhecem os seus feitos, e gloriosos, através deste aparelho que é a admiração do mundo inteiro. Todos conhecem bem, o quanto merecem não só pelas suas encantadoras vozes, como também pelos os instrumentos que os acompanham pois que são de uma sublimidade impossível de descrever-se. Apesar do aviso, Gonçalves Pinto faz diversas citações a grandes artistas de rádio, tanto de instrumentistas do choro quanto de cantores. Assim, sobre o bandolinista pernambucano Luperce Miranda, músico com grande atuação nas rádios e nas gravações de discos da época, ele afirma: E' admirável o ouvir-se pelo Rádio, as suas dedilhações naquele pequeno [instrumento] por ele com maestria manejado. Julgo, e quase sou capaz de apostar que no Brasil inteiro não terá outro igual. (...) No Radio onde o escuto, fico absorto ao ouvi-lo, digo para mim, será possível, haver um gênio igual? Também fui chorão, e sei dar o valor aos grandes maestros, como é Lupercio” (48). Também o saxofonista Luiz Americano era instrumentista excepcional, sendo suas composições “belíssimas, pois me extasio ouvindo-as no rádio que tenho na minha residência, para me deliciar com as músicas de um sublime sopro” (id. 178). Já 180 Francisco Alves, alvo principal de Vagalume, é descrito como “primus interpares dos cantores da atualidade”, “um farol que ilumina o meio aonde ele é apreciado com verdadeira justiça”, concluindo o autor sua descrição da seguinte forma: Progrida pois cada vez mais, meu bom Francisco Alves, para que, daqui a meio século, possa ser descrito, pelos chorões da minha tempera, os teus feitos, fazendo o estímulo na phalange que pertences, pelo modo e maneiras que cantas, que tocas e interpreta as músicas genuinamente Brasileiras. (134) De modo geral, o que se percebe no livro de Gonçalves Pinto é que, apesar de algumas críticas às “músicas americanas de arribação” propagadas pelo rádio, que, como já dito, muitas vezes parecem ser “ressonâncias” do pensamento de instrumentistas contemporâneos do autor (como o próprio Catulo), há uma clara intenção de valorizar os artistas de rádio que se dedicavam à música brasileira: mais ainda, é como se o autor não visse no rádio uma verdadeira ameaça à existência do choro, e tivesse muito consciente de que havia uma linha histórica que passava dos chorões antigos aos chorões “modernos”, estes últimos já imersos na indústria cultural da época. Assim, é muito significativo que o autor, ao falar sobre a polca, afirme: A polka cadenciada e chorosa ao som de uma flauta, fosse o flautista o Viriato, o Callado, o Rangel ou seja o Pixinguinha, o João de Deus ou Benedicto Lacerda; um violão dedilhado outr'ora, por Juca Valle, Quincas Laranjeira, Bilhar, Néco ou Manduca de Catumby e hoje por Felizardo Conceição, José Rabello, Coelho Grey, Donga, João Thomaz, etc.; um cavaquinho palhetado hontem por Mario, Chico Borges, Lulu' Santos, Antonico Piteira e hoje pelo mestre dos mestres Galdino Barreto, Nelson, João Martins – foi, é e continuará a ser a alma da dansa brasileira.(115, 116) Ao enumerar instrumentistas “antigos” e “modernos” — Viriato e Callado x Pixinguinha e Benedito Lacerda, Bilhar e Quincas Laranjeiras x Donga e José Rabello, Mário Alvarez x Nelson Alves — Gonçalves Pinto traça uma linha histórica dos grandes instrumentistas do choro onde procura defender a ideia de que a essência da prática musical (no caso a polca) não se modificava, ainda que os “modernos” estivessem em sua maioria atuando em um contexto diferente — o rádio e o disco — 181 daqueles em que atuavam os “antigos” — os bailes, as serenatas e as rodas de choro. Fica aqui muito clara esta característica de “historicização” dos gêneros musicais, apontada por Moraes como uma das características destes primeiros memorialistas da música popular urbana. Apenas é de se perguntar por que o choro parece ter sofrido menos com o choque da indústria fonográfica do que o samba, pelo menos quando se compara as visões de Alexandre Gonçalves Pinto e de Vagalume sobre o tema. Para este último, a “victrola” seria a verdadeira “profanadora” do samba, por dois motivos básicos. O primeiro seria pela falta de escrúpulo dos editores, pela ganância de alguns autores e principalmente pelo monopólio exercido por certo grupinho, que constitui a comissão julgadora d'aquillo que deve ser gravado ou que entre em concurso. (Vagalume, 1933: 142) O segundo se daria pelo fato de que, ao ser transformado em produto pela indústria cultural, o samba teria perdido também muito de suas características musicais: Não queremos este samba dos concursos officiaes, com orchestra de companhia lyrica...O samba, o tradicional samba, deverá ser executado com todos os seus instrumentos próprios: a flauta, o violão, o réco-réco, o cavaquinho, o ganzá, o pandeiro, a cuica ou melhor o omelê e o chocalho. Neste andar, exigirão amanhã uma prima-dona, uma soprano-leigeiro, um tenor, um barytono e um baixo, com o respectivo corpo de córos, para cantarem, e umas bailarinas russas para dansarem o samba. (id: 157) Esta última crítica está diretamente relacionada à questão dos arranjos musicais como “intermediadores” entre as práticas musicais populares e a indústria cultural, tema abordado no trabalho de Paulo Aragão (Aragão, 2003). Para este autor, “o repertório popular, na forma como praticado por seus agentes originais, parecia revelar “defeitos” na forma de apresentação, inaceitáveis para o padrão estabelecido pela indústria fonográfica.” (id: 29). Tais “defeitos”, é preciso que se entenda, eram na maioria das vezes aspectos musicais que não se adequavam ao padrão imposto pela nova indústria: características de emissão vocal, “forma musical”, conteúdo das letras das canções e principalmente o uso dos instrumentos de percussão — estes últimos, 182 além de estarem ligados frequentemente a idéia de “rudeza” e “primitivismo”, constituíam um problema para os técnicos de som da época (Aragão, 2003). Dessa forma, a figura de arranjadores que “filtrassem” estes elementos “impuros” era de vital importância para a indústria que nascia: é significativo se notar, por exemplo, como as primeiras gravações dos sambas do Estácio, realizadas por Francisco Alves com arranjos de Simon Boutman, utilizam realmente orquestras compostas por instrumentos de cordas e sopros, sendo quase ausente o elemento percussivo. Este é então um ponto central para entendermos a razão pela qual o choro parece ter “sofrido” menos no seu processo de incorporação à indústria fonográfica: por seu próprio caráter instrumental e pelo fato de que suas matrizes (representadas em grande parte pelas danças européias como a polca, a valsa, etc) estavam mais próximas dos novos padrões estéticos exigidos pelo rádio e pelo disco, os instrumentistas de choro foram os verdadeiros alicerces desta nova indústria, muitas vezes funcionando como intermediadores ou “tradutores” de outros gêneros musicais (como o samba) para os novos padrões exigidos. A importância da formação típica do conjunto de choro, formado por violões, cavaquinho, pandeiro e instrumento solista, os chamados “regionais”, aparece neste testemunho do músico César Farias, citado por Aragão (2003) Jacob [Bittencourt, o Jacob do Bandolim] tinha ojeriza pelo nome de regional porque regional sempre foi um tapa buraco, como ele dizia. Às vezes nós estávamos lá na rádio com a nossa programação para fazer, e aí aparecia uma cantora que só cantava clássico, e se faltasse mais um número para completar o tempo do programa, a gente era chamado: Ô ô ô regional! E aí o regional ia cobrir aquele buraco. Ele tinha pavor disso, queria acabar com esse nome de regional. A questão crucial para o entendimento da postura de Gonçalves Pinto frente à indústria fonográfica da época parece ser explicada não por uma antinomia entre o “antigo” e o “novo”, entre as serenatas e rodas de choro e as transmissões de rádio e os 183 discos, mas sim por uma tentativa de estabelecer uma linha de continuidade histórica entre estes dois universos. Se por um lado o autor apreciava os “novos” intérpretes e os “novos” repertórios, por outro lado é patente o desejo de preservar o repertório de composições dos chorões de fins do século XIX e das primeiras décadas do século XX , conforme se vê neste trecho em que o autor retrata o conhecido flautista Benedito Lacerda: Bem poucos farão o que Benedicto faz, com seu sopro admirável, com uma perfeita teoria musical, de fazer o mais cético das criatura entusiasmar-se ao ouvi-lo. Daqui destas toscas linhas, vou fazer um pedido a Benedicto, de dar expansão as musicas nunca esquecidas dos sempre lembrados e chorados flautas, que foram Callado, Viriato, Capitão Rangel e Luizinho, todos estes foram planetas, que passam depois de centenares de annos. Talvez o grande flautista, não executes estes choros, pela difficuldades em obtel-as, procurando na rua Mattos Rodrigues n. 31, o grande professor Cupertino, pois tem o mesmo no seu caderno quasi, ou todas as musicas destes immensos chorões, que os seculos não trarão mais. Tenho assim a plena certeza, que o bom do Cupertino, cederá pois terá muito prazer em ouvir de um musico como Benedicto, expandil-a pelo Radio, não só perpetuando a memoria delles, como fazendo o encanto da população, que pelo Radio se extasiará ao ouvir esas bellissimas musicas, que muito agradecerá ao Benedicto e o escriptor destas apoucadas linhas. (148, grifo meu) Não deixa de ser comovente o modo como Gonçalves Pinto se remete diretamente àquele que era sem dúvida um dos maiores expoentes do choro na época áurea do rádio para solicitar a execução do repertório dos chorões antigos, chegando mesmo a dar o endereço do “professor Cupertino”, que detinha um grande acervo de partituras de choro. Seus receios não eram infundados, uma vez que realmente boa parte do repertório do choro do período de final do século XIX e das duas primeiras décadas do século XX seria praticamente esquecida durante a segunda metade do século XX. Como veremos no capítulo quatro tal ruptura só não foi maior porque alguns poucos compositores, como Pixinguinha e Jacob do Bandolim, funcionaram como verdadeiras “pontes” entre a música do choro destes dois períodos, constituindo acervos de partituras antigas e realizando gravações fonográficas de muitos destes compositores “pioneiros”. 184 Há mais um aspecto importante a ser ressaltado na relação entre os chorões descritos por Gonçalves Pinto e a “nova” geração “profissional” que integrava os casts de rádios e gravadoras, e que diz respeito às mudanças no paradigma de acompanhamento do choro. Ora, o processo de profissionalização dos instrumentistas de choro vai coincidir historicamente com o surgimento de um novo padrão rítmico de acompanhamento do samba, qualificado por Sandroni (2001:27) como contramétrico. Em outras palavras, ao invés de uma acentuação baseada na primeira, terceira, quinta ou sétima semicolcheia de um compasso de 2/4 (com oito semicolcheias, portanto), uma articulação “totalmente contramétrica”, no dizer de Sandroni, seria aquela com acentuações na segunda, quarta, sexta e oitava semicolcheias do compasso, ou seja, contrariando o esquema métrico usual do compasso. Este padrão contramétrico seria, ainda segundo Sandroni, a base do novo paradigma rítmico do samba surgido no bairro do Estácio de Sá, e que posteriormente seria incorporado, em gravações comerciais e transmissões radiofônicas, como o novo padrão de samba, por substituição às práticas musicais do passado, como a polca e o samba-amaxixado1. Essa mudança de paradigma rítmico pode ser considerada como um turning point tanto para o samba como para o choro, muito embora não haja até hoje, a meu ver, estudos detalhados sobre a incorporação destes padrões contramétricos ao choro especificamente. Diversas fontes, entretanto, apontam para o papel fundamental de Benedito Lacerda neste processo; entre estas fontes incluem-se discursos de “nativos”, ou seja, músicos de choro da atualidade, que atribuem ao flautista e a seu conjunto o 1 Não há espaço neste trabalho para uma caracterização mais detalhada de estudos sobre cometricidade e contrametricidade, nem sempre utilizados com o mesmo viés por etnomusicólogos como Kolinski e Arom, conforme nos aponta Sandroni (2001:27). Utilizo-me da conceituação de contrametricidade de Sandroni em parte pelo fato de que ela traduz a ideia de “sincopação” presente em discursos de músicos de choro da atualidade. O “choro-sambado”, surgido a partir da atuação de Benedito Lacerda e, posteriormente, Jacob do Bandolim, seria aquele baseado em padrões de “batida de tamborim”, com acentuação na segunda, quarta, sexta e oitava semicolcheias respectivamente. 185 papel de criadores desta nova forma de choro, caracterizado por eles como o “chorosambado”: Quem deu balanço ao samba e ao choro mudando um pouco a levada foi o Regional de Benedito Lacerda, aprimorando ainda mais aquilo que Pixinguinha havia feito que foi dar rítmica ao Choro (depoimento do bandolinista Déo Rian ao autor desta tese, em 9 de janeiro de 2011) A geração de meu pai e meu tio [os flautistas Álvaro e Altamiro Carrilho respectivamente] identificava no Benedito o nascimento de uma nova forma de se acompanhar o choro, que seria este choro-sambado. Essa forma de se acompanhar era, de forma geral, baseada na batida do tamborim. A partir do Benedito e seu regional, qualquer um que não tocasse seguindo este padrão “balançado” era classificado como ‘quadrado’. Ou seja, quem só tocava no padrão antigo, o padrão da polca, era considerado ‘quadrado’ (depoimento do violonista e arranjador Mauricio Carrilho ao autor desta tese, em 10 de janeiro de 2011) Para além dos depoimentos, uma análise das gravações do conjunto de Benedito Lacerda nos permite comprovar o estabelecimento deste novo paradigma rítmico. Iniciando sua carreira musical no ano de 1930 com o grupo intitulado significativamente “Gente do Morro” – composto em sua primeira formação por Canhoto (Waldiro Tramontano), cavaquinho; Gorgulho (Jacy Pereira) e Ney Orestes (violões), Russo do Pandeiro e a eventual participação de Bide (Alcebíades Barcellos) no tamborim (Zanardi, 2009: 25) – Benedito iria imprimir, logo em suas primeiras gravações como solista, um novo estilo de acompanhamento ao conjunto. As primeiras gravações do conjunto, aliás, são de sambas e não de choros, todos já com o novo padrão rítmico que Sandroni associa aos sambistas do Estácio (a participação de Alcebíades Barcellos, um dos mais importantes representantes deste “novo samba” também é bastante significativa e certamente contribuiu de forma decisiva para o estabelecimento do padrão de acompanhamento do grupo). Assim, a primeira gravação de um choro pelo grupo, a música Gorgulho de autoria do próprio Benedito Lacerda (discos Columbia 22129) já apresenta de forma inconfundível a “levada” de tamborim que caracterizaria o padrão contramétrico. 186 Certamente a audição deste disco pelos chorões da “velha-guarda”, incluindo o próprio Gonçalves Pinto, revelava pontos totalmente divergentes dos padrões tradicionais do choro baseado na “levada” da polca. A partir de Benedito Lacerda, diversos outros compositores e intérpretes, ao longo da segunda metade do século XX, iriam consolidar este novo estilo de choro, enquanto o padrão de acompanhamento da polca seria, cada vez mais, como comprovam os depoimentos citados anteriormente, associado a uma “antiga forma” de se tocar. Ainda que certamente atento ao aparecimento deste novo padrão de choro, o discurso de Gonçalves Pinto procura, como dissemos, reforçar as características de continuidade entre os antigos e novos instrumentistas. Ao mesmo tempo, não há dúvida de que a percepção de que o choro se transformava, tanto em seus aspectos rítmicos como em seus espaços de sociabilidade, foi certamente uma das principais razões para que o carteiro procurasse consolidar a memória daqueles instrumentistas para quem a polca – e não o samba – ainda se constituía como o principal veículo de entendimento e propagação do choro. 3.3) Influências da intelectualidade: Mello Moraes, bumba-meu-boi e o choro Vimos no segundo capítulo como, no prefácio de seu livro, Gonçalves Pinto já elabora algumas idéias sobre origem e ancestralidade do choro; mencionamos também o fato de Mello Moraes ser citado ao longo do livro como participante do ambiente das rodas de choro. Cumpre agora estabelecermos com maior profundidade possíveis influências e “ressonâncias” da obra e do pensamento de Mello Moraes na obra de Gonçalves Pinto. Antes de entrarmos neste ponto, entretanto, faremos uma análise mais aprofundada sobre a forma como o carteiro se refere, ao longo de seu livro, a uma 187 possível ascendência africana. Se no prefácio Gonçalves Pinto se refere aos “costumes bahianos” que teriam sido trazidos por “nossos queridos antepassados africanos”, há, em meio ao livro, um verbete intitulado “Alvorada da música”, onde, conforme salienta Braga (2002: 210) o carteiro procura filiar o choro às bandas de música formadas por escravos das plantations de cana-de-açúcar e café do século XIX. Mais do que isso, é possível constatar que Gonçalves Pinto atribui à música destas bandas um fator preponderante para o processo de abolição da escravatura. O verbete começa com uma pequena explicação geral sobre o caráter destas bandas de música. Nota-se no trecho a tentativa de caracterizar os “tempos da monarquia” como “tempos primitivos”, “sem instrução” e “sem cultivo”, onde predominava a violência da política dominada pelos partidos liberal e conservador. As bandas de escravo cumpririam então, pelo que se depreende do trecho, o papel de amortizadoras de tais agruras: As organizações das Bandas de Musicas nas Fazendas, para tocarem nas festas de Igrejas, nos, arraiaes, longe e perto das antigas villas e freguezias, que são consideradas hoje, cidades, davam um cunho de verdadeira alegria n'aquelle meio tristonho, mas, sadio, sem instrucção, sem cultivo onde imperava a soberania dos fazendeiros, grandes nababos, chefes dos partidos politicos, liberal, e conservador (110-111, grifo meu). A violência da política, a prática dos cabrestos eleitorais, o uso da força dos capoeiras por parte dos “carrascos fazendeiros” para garantir votos à custa da força física são então enfatizados, para que logo depois o carteiro passe a descrever as bandas de música como um contraponto a este ambiente dominado por tensões. Ele começa por enaltecer a qualidade dos músicos escravos, ainda que atribuindo o qualificativo “rude” à música produzida por eles: Em taes Fazendas haviam Bandas de Musica composta de escravos, e d'ellas sahiram muitos músicos notaveis, que se identificaram com as harmonias dos seus instrumentos. A musica rude das passadas éras da escravidão, do eito, onde o feitor de bacalháu em punho tinha os fóros dos Cerberos infernaes (111). 188 Logo depois Gonçalves Pinto atribuirá à música produzida pelos barbeiros o papel de catalisador do processo de abolição, conforme se depreende do trecho a seguir: Foi depois destas organisações de Bandas de Musica, que se foi definando as iras dos Fazendeiros, que afrouxaram as algemas e os grilhões das correntes de martyrios dos infelizes escravos. Tal foi a magia das notas maviosas da musica que conseguiu abrandar os duros corações dos grandes escravocratas, transformando em alvorada de alegria as senzalas, que começaram a serem illuminadas pelo brilho da estrella da Redempção, e os Abolicionistas, n'uma inspiração divina começaram a adubar o canteiro do amôr e da igualdade, onde foi plantada a semente da flôr da Liberdade, regada e cultivada pela mão dos grandes obreiros, esse bella apotheose que foi a Lei Aurea de 13 de Maio de 1888 (111, grifo meu) A ideia de que a música, e mais especificamente a música de “matriz africana” teria o poder de “amaciar” as duras relações entre senhores de engenho e escravos não é absolutamente de exclusividade de nosso carteiro. Ela estava presente nos escritos e pensamentos de intelectuais como Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda. É óbvio que esta relação entre música e sociedade não era apontada como uma simples relação de causa e efeito como no pensamento de Gonçalves Pinto, mas ainda assim pressupõe-se, no pensamento destes intelectuais, a concepção de que uma música de matriz africana seria em parte responsável por uma “suavidade dengosa e açucarada” que envolveria “todas as esferas da vida colonial”, no dizer de Holanda: O peculiar da vida brasileira parece ter sido, por essa época [ou seja, a época colonial], uma acentuação singularmente energética do afetivo, do irracional, do passional, e uma estagnação, ou antes uma atrofia correspondente das qualidades ordenadoras, disciplinadoras, racionalizadoras. Quer dizer, exatamente o contrário do que parece convir a uma população em vias de organizar-se politicamente. À influência dos negros, mais ainda, e sobretudo, como escravos, essa população não tinha como oferecer obstáculos sérios. Uma suavidade dengosa e açucarada invade, desde cedo, todas as esferas da vida colonial (...). O gosto do exótico, da sensualidade brejeira, do chichisbeísmo, dos caprichos sentimentais, parece fornecerlhe um providencial terreno de eleição e permite que, atravessando o oceano, vá exibir-se em Lisboa, com os lundus e modinhas do mulato Caldas Barbosa (Holanda, 1999: 61) Segue-se a esse trecho a transcrição de uma letra de modinha atribuída a Caldas Barbosa, com referências às “nhanhãs” e aos “negrinhos”, como a exemplificar esse “amolecimento” das relações entre senhores e escravos. Ora, o estudo de Sandroni 189 (2001: 39-61) já nos mostrou o quanto há de “construção coletiva” na atribuição de características puramente africanas a gêneros como lundus e modinhas. Por outro lado, Abreu e Dantas (2007) nos mostram a importância de intelectuais anteriores a Freire e Holanda na criação de “um espaço que reconhecia e valorizava a presença ativa dos descendentes de africanos na nação projetada” (op. cit). É o caso de Alexandre José de Mello Moraes Filho (1844-1919), de quem passaremos a tratar. Autor de diversas obras de caráter transitório entre o memorialístico e o folclórico, Mello Moraes pode ser visto, segundo Martha Abreu (1998: 186), como um dos primeiros teóricos da aproximação entre as diversas manifestações culturais brasileiras, incluindo aí as de origens negras e indígenas, muito embora sua obra não deixasse de refletir os conflitos e os preconceitos das elites sobre estas populações. Seu livro mais importante, Festas e tradições populares no Brasil — dividido em quatro partes: festas populares, festas religiosas, tradições e tipos de rua — além de ser um exemplo desta aproximação intercultural e uma referência importantíssima para estudos de folcloristas do século XX como Câmara Cascudo, Basílio de Magalhães, entre outros (id. Ib), desafiou, no dizer de Abreu, os cânones científicos europeizantes em voga ao identificar positivamente a nação à mestiçagem e às tradições católicas. Na sua concepção, a festa, popular e católica, tornava-se o local da criação do “povo” que, formado pela união do português, do africano e do mestiço, era elogiado e valorizado em oposição a tudo que parecesse estrangeiro. (Abreu, 1998: 173) A pergunta que então se impõe é: seria possível identificar influências da obra de Mello Moraes no livro de Gonçalves Pinto? Sabemos que Alexandre conheceu Mello Moraes e que chegou mesmo a freqüentar rodas de choro em sua casa. Ao descrever o “professor de música” Aníbal, que era “íntimo do sempre chorado, e lembrado dr. Mello Moraes” (39) o autor afirma ter tido “a felicidade de acompanhá-lo [Aníbal] em muitos e bons chôros na casa do grande intelectual Mello Moraes, que muito o admirava e o 190 estimava. Annibal, era o ensaiador do célebre Bumba meu boi, que muito gosto e prazer deu àquella sempre chorada festa.” (id., ib.). Sobre a questão do Bumba-meu-boi, aliás, há um trecho do livro, já citado no trabalho de Carvalho (2006:27), que é bastante rico de significações, e por isso creio que mereça ser desenvolvido aqui. O trecho, intitulado “Bumba meu boi” pode ser resumido da seguinte forma: levado por seu amigo e também carteiro Candinho Ramos — que era também compadre de Mello Moraes — para a festa do “Bumba meu boi” que o escritor promovia anualmente em sua residência, Gonçalves Pinto acaba sendo convidado para representar o papel do boi, “cargo” que exigia alguém de confiança, já que o mesmo havia sido “escangalhado” em festas anteriores, algo extremamente condenável uma vez que o boi “custava muito dinheiro”. Ciente destes cuidados o “Animal” responde ao seu amigo Candinho: “não tenho receio pois sempre fui cuidadoso em tudo que assumo responsabilidade!”. Passamos mais uma vez então a palavra ao autor: Candinho, radiante com a minha affirmativa, apresentou-me ao Dr. Mello Moraes, como o homem escolhido para sahir no boi, ficando combinado logo a estréa para o dia seguinte, na hora regimental lá estava eu firme para assumir o compromisso. Entrei todo satisfeito no celeberrimo boi andando pelas ruas de São Christovão em visita aos amigos do Dr. Mello Moraes, finalizando a jornada na bella vivenda do saudoso Visconde de Ouro Preto, na rua 8 de Dezembro em Mangueira, mas o caso interessante é que se meu antecessor foi pessimo boi eu ainda fui peior ! pois ia pelas ruas afóra convencido mesmo que era um boi de verdade bravo, pulando, dando marradas a torto e a direito em todas as pessôas que passavam e nas que faziam parte da comitiva, de forma que quando cheguei em casa do inesquecivel Visconde de Ouro Preto, o boi estava em petição de miseria com o carão todo esfacelado com um chifre só e os pannos dos lados tinham ficado pelas ruas ! Candinho, quando reparou o estado do bicho, botou as mãos na cabeça me dizendo compadre você me collocou mal com o compadre Mello Moraes ! respondendo eu, na maior calma deste mundo: pois não foi para dar marradas que eu sahi no boi? (13, grifos meus) Este é sem dúvida um trecho que nos remete mais uma vez ao jogo dialético da malandragem apontado por Cândido no romance Memórias de um Sargento de milícias, principalmente pela forma algo cínica com que Gonçalves Pinto responde às 191 críticas de seu amigo Candinho, cinismo que o aproxima do anti-herói Leonardo2. Mais do que isso, entretanto, o episódio é simbólico por demonstrar a diferença de significações que as manifestações culturais assumiam entre diferentes estratos da sociedade da época: para Mello Moraes, o principal promotor da festa do “bumba-meuboi” no Rio de Janeiro daquela época (“era o único que conservava a tradição de todas estas festas antigas” tendo o bumba-meu-boi desaparecido na cidade após sua morte, nos diz Pinto) a figura do boi deveria ser reverenciada como um verdadeiro símbolo das tradições populares, enquanto que para o carteiro Alexandre Gonçalves Pinto o boi “era para escangalhar, pois (...) dando cabeçadas, coices, etc, o bicho tinha que virar frangalho!” (14). Em última análise o trecho pode servir de exemplo para evidenciar o quão diferentes eram as concepções de festa entre os dois personagens: de um lado Melo Moraes já prenunciando o arquétipo do folclorista, para quem as tradições seriam “puras” e portanto “intocadas”; promovendo a festa mas ao mesmo tempo colocando-se “do lado de fora” como um espectador e zelando para que o artefato cultural (o boi no caso) fosse preservado. Já a postura de Gonçalves Pinto só pode ser analisada pelo mote bakhtiniano da festa como possibilidade de abertura para uma outra dimensão da vida, que não era certamente a “vida real”: assim, ele não estava simplesmente representando o boi, mas sendo o próprio boi: “pois ia pelas ruas afóra convencido mesmo que era um boi de verdade bravo, pulando, dando marradas a torto e a direito em todas as pessôas que passavam e nas que faziam parte da comitiva”. (id., ib. grifo meu) Este episódio ilustra ainda as possibilidades de trocas culturais entre estratos sociais diferentes: o carteiro Candinho Ramos era compadre do intelectual Mello 2 Veja-se por exemplo o trecho do capítulo VI, em que Leonardo, instado pelo padrinho a ser padre, foge de casa, acompanhando uma procissão onde “esqueceu-se de tudo, pulou, saltou, gritou, rezou, cantou”, acabando por dormir em um acampamento de ciganos (do qual, aliás, Almeida nos dá uma vivíssima descrição da dança do fado). Voltando a casa no dia seguinte, trava o seguinte diálogo com o padrinho: “Menino dos trezentos... onde te meteste tu?” “Fui ver um oratório... Não diz que eu hei de ser padre?” (Almeida, 1977: 21) 192 Moraes e freqüentava-lhe a casa, bem como outros músicos como o próprio Gonçalves Pinto. Retomamos então a pergunta feita anteriormente: seria possível identificar influências da obra de Mello Moraes no livro de Pinto? Mais uma vez, não creio que se possa dar uma resposta definitiva à questão: o mais que podemos é tecer comentários mais ou menos ensaísticos sobre pontos convergentes e divergentes entre os dois autores. É preciso também atentar para as diferenças de datas entre os escritos: Mello Moraes escreve suas principais obras no início do século XX enquanto O Choro é escrito na década de 1930. Dessa forma, uma explicação sobre as “origens” da música brasileira onde o autor se coloca como um descendente de africanos seria algo provavelmente impensável nos escritos de Moraes. Entretanto, é possível encontrar pontos convergentes: um deles está presente, conforme assinala Braga (2002: 210-215), no “verbete” intitulado “As nossas festas” do livro de Gonçalves Pinto. Assim como no prefácio, temos aqui um grande número de citações arroladas por vezes de modo embaralhado: o autor descreve sumariamente as festas de Ano Bom, o Carnaval, a Semana Santa, a Páscoa e o Natal. Significativamente, a descrição destas festas também está presente no clássico Festas e tradições populares no Brasil de Mello Moraes. Obviamente as descrições de Mello Moraes são muito mais extensas — há um capítulo para cada uma das festas, enquanto no livro de Pinto elas são descritas em um único tópico. Terá havido influência de um autor para outro? É algo difícil de ser respondido, mas julgo pertinente fazer duas observações: a primeira é notar como o verbete “As nossas festas” aparece de forma “deslocada” no livro de Pinto: é praticamente a única vez em todo o livro que o autor cita estas manifestações populares: elas não tornam a aparecer nem como “pano de fundo” das descrições dos chorões, que ocupam a maior parte do livro (com exceção do Carnaval, citado quase sempre relacionado com os ranchos carnavalescos, que 193 constituíam o “ponto de ligação” entre o choro e as festas momescas). Esta constatação nos leva ao segundo ponto: o de como as descrições das festas do calendário anual tem um caráter inteiramente saudosista, presente em diversas citações ao longo do tópico. Veja-se por exemplo uma das frases iniciais deste tópico: “Quem é capaz de ter no esquecimento as festas de fim de anno das épocas remotas que começavam pelo Anno Bom (...)”, e também a citação final: “Eis aqui em pallidas e cinzeladas palavras a transcripção das grandes festas dos tempos que passaram, festas estas que tinham resplendor e devotamento em cada um chorão da velha guarda, no correr do anno.” (65). Este mesmo caráter saudoso permeia a descrição de Melo Moraes, como se vê neste trecho, carregado de ironia pela modernização dos costumes: “Mas o Brasil é um país adiantado; acha ridículas as tradições e desfaz-se delas; absolvendo os demais povos dessas futilidades que envergonham, trata de encobri-las e mostra-se sério. No outro tempo não era assim.” (Mello Moraes. s/d.: 33). À parte a questão das festas populares, creio que podemos encontrar em outras obras de Mello Moraes pontos que poderiam ser mais facilmente comparáveis às idéias de Gonçalves Pinto. Veja-se por exemplo a introdução do livro Cantares Brasileiros publicado em 1900, onde o autor faz uma veemente defesa da música popular urbana carioca, tendo a modinha e o violão como tema principais. Este texto é deveras surpreendente pois, como já sugeriram Abreu e Dantas (2007), põe em questionamento duas idéias recorrentes entre pesquisadores e intelectuais da música brasileira das décadas de 1980 e 1990: a de que “o pensamento intelectual da Belle Époque se voltava preponderantemente para valores externos e para a europeização dos costumes” e a de que a “música popular urbana teria sido sistematicamente condenada e desvalorizada pelo meio intelectual da época” (Abreu e Dantas, 2007:127). Da mesma forma que Abreu e Dantas (id), também não pretendo aqui combater estas idéias, nem tampouco 194 afirmar que elas seriam completamente falsas, mas apenas abrir um campo de questionamento que nos permita aprofundar a discussão. O livro Cantares Brasileiros traz uma compilação de letras e músicas (incluindo a pauta musical) de modinhas, lundus e canções de diversos autores, incluindo aí o próprio Mello Moraes. De cara nos chama a atenção uma parceria entre este intelectual e o conhecido compositor de lundus Xisto Bahia: intitulada “A Mulata”, é classificada no livro como “Canção Bahiana”. A letra de Mello Moraes poderia ser confundida com qualquer letra de samba da década de 1930, pelo caráter de valorização da mulata: Eu sou mulata vaidosa Linda, faceira, mimosa Quaes muitas brancas não são! Tenho requebros mais belos Se a noite são meus cabelos O dia é meu coração Na introdução do livro o autor faz uma espécie de reconstituição histórica da música brasileira, começando com a música trazida pelos portugueses “nos tempos das caravelas”, música que iria se alterar ao ser colocada “em frente de outras raças, isto é, do índio e do negro”. Mais uma vez teríamos aqui a idéia tão presente na historiografia da música popular a respeito do mito das três raças. Assim, gêneros como o fado brasileiro, o lundu e a chula seriam, no dizer de Mello Moraes, o “produto híbrido de danças espanholas e africanas”, resultado da “mestiça garbosa”, da “umbigada lúbrica” e dos “batuques dos terreiros” (Mello Moraes, 1900: 16). Depois de fazer uma espécie de passeio histórico por gêneros e compositores do passado — Moraes, cita, entre outros, Caldas Barbosa, José Mauricio e Cândido Inácio da Silva — finalmente o autor aponta o que teria sido o período mais importante da criação musical brasileira: o período de 1850 a 1870, quando a modinha brasileira teria “desertado” dos paços e dos 195 salões para “democratizar-se”, passando às esferas das festas populares, das serenatas noturnas, dos cantadores de esquina, dos instrumentistas populares: Foi nesse ambiente de prosperidade e de aspirações arrojadas que a musa democrática, sobrançada de violão, palhetando o cavaquinho, modulando na flauta, presidia os festins do povo, vagava sonhadora nas ruas e praças, despertando às suas vozes as Lílias, as Natércias, as Marílias, as Ármias e as Carolinas, para ouvi-la a horas mortas, recostadas aos postigos ou enrolando ao alto da cabeça os revoltos cabelos, debruçadas às janelas. (Mello Moraes, 1900: 23) É bastante significativo que o autor cite como o instrumental destas serenatas justamente aquilo que seria conhecido como o terno do choro: a flauta, o violão e o cavaquinho. Ao passar para o domínio “popular”, portanto, a modinha teria atingido o ápice da música brasileira tangida por instrumentistas populares que Mello Moraes passa a citar, identificando-os como “vultos de transcendente nomeada” que “foram conhecidos pelo crisma popular como Zuzu Cavaquinho, Lulu do Saco, Manezinho da Cadeia Nova ou Manezinho da Guitarra, Zé Menino, o Inácio Ferreira, o Clementino Lisboa, o Rangel, o Saturnino, o Luizinho, o Dominguinhos Reis, etc” (id: 26). Ora, muitos destes nomes são citados também por Gonçalves Pinto e Catulo, o que confirma mais uma vez a aproximação entre o intelectual e os cronistas populares: mais do que isso, o ponto central de contato entre Gonçalves Pinto e Moraes parece ser a identificação da música dos trovadores populares, a música urbana que se fazia com violões e cavaquinhos, como o ponto culminante da música brasileira, ainda que o primeiro identifique esta música como choro e o segundo ora como modinha, ora como serenatas — talvez pelo fato de que o primeiro termo tenha se consolidado com mais força apenas nas duas primeiras décadas do século XX. Cito mais um trecho de Moraes: E nesta Capital, nos dias de festas religiosas ou nacionais, aos sábados ou ao acaso da semana, na Praia Formosa, na Cadeia Nova, em São Cristóvão, em Botafogo, etc., as serenatas circulavam incessantes, os trovadores de esquina estropiavam versos e toadas, de violão a tiraloco, boiando nas ruas aos relentos estivos. Isso, porém, longe de rebaixar as nossas cantigas, confirmava a soberania das produções que, caídas de outras alturas, iam ainda ecoar nas profundezas mais obscuras da alma popular. (id., ib., grifo meu) 196 Talvez possamos arriscar dizer que esta idéia traz elementos da tese mariodeandradiana de que a identidade musical brasileira seria feita na “inconsciência do povo”. Ao “descer” do ambiente dos salões, de onde ainda continha elementos estrangeiros (as produções “caídas de outras alturas”) a modinha não iria se rebaixar, mas pelo contrário, se legitimaria como uma das mais importantes criações musicais brasileiras por encontrar ressonância, e portanto obter legitimidade, “nas profundezas mais obscuras da alma popular”. O autor prossegue o texto afirmando que, ainda que seu período áureo já tivesse passado (não nos esqueçamos que Mello Moraes escreve no ano de 1900), a modinha não havia morrido de todo: À semelhança do tronco, que sobrevive às flores e os frutos, tem-se ultimamente notado que elas [as modinhas] e o violão ressurgem com a antiga seiva, tendo como apreciados compositores Cardoso de Menezes, Cavalier Darbilly, Costa Júnior, Oscar Silva, Francisca Gonzaga, Aníbal de Castro, Catulo Cearense, Miguel Pestana (...) Após citar ainda mais alguns nomes de chorões que também estão presentes no livro de Pinto, como Sátiro Bilhar, Juca Vale, Cândido Ramos e Eduardo das Neves, Moraes conclui apoteoticamente: “Como são belas as nossas músicas! Como são suaves os nossos cantares!”. Como já dito, trata-se de um trecho realmente surpreendente pelos seguintes motivos: a) pela identificação da modinha “popular” — ou seja, aquela praticada pelos chamados trovadores de esquina e pelos instrumentistas populares (o autor cita especificamente instrumentos como violão, cavaquinho, oficleide e flauta) no período de 1850 a 1870 — como mais alta criação da música brasileira. Este reconhecimento da importância da música urbana no cenário nacional parece não ter sido regra entre os intelectuais da época. Veja-se, por exemplo, Guilherme de Melo, que, em seu clássico A Música no Brasil, publicado em 1908, praticamente ignora todo e qualquer compositor deste segmento para se concentrar na chamada música rural e na 197 música de concerto; b) pelo reconhecimento do papel de compositores que poderiam ser classificados como “populares urbanos”, tais como Chiquinha Gonzaga, Costa Júnior (a quem se credita a autoria do primeiro maxixe impresso), Catulo Cearense e o palhaço negro Eduardo das Neves, como maiores representantes desta música por volta do ano de 1900; c) pela questão da música de mercado: ainda que não dito explicitamente é razoável supor-se que, ao aceitar e reconhecer a importância da música de compositores como Chiquinha Gonzaga e Costa Júnior, Mello Moraes reconhecia também a legitimidade do mercado de partituras desta incipiente indústria cultural urbana: aliás, o próprio fato de ter editado diversos livros com compilações de letras e músicas populares da época (Cantares Brasileiros, Serenatas e Saraus etc) de certa forma também insere o intelectual Mello Moraes neste contexto comercial da época; d) pelo caráter saudosista da evocação de um tempo “áureo” da música brasileira, mas ao mesmo tempo reconhecendo a existência de compositores e instrumentistas que mantinham à época da virada do século esta “antiga seiva” dos tempos antigos: e também pelo caráter apologético de quem de certa forma conclama seus leitores a não deixarem morrer esta música, como se percebe na frase final da introdução: “Fade-nos o destino que possamos aguardar, ao tom das serenatas e de nativas cantilenas, as auroras de outros sóis, a luz de outro amanhecer.”(id: 27, grifo meu). Como se percebe, são questões que nos permitem ver a já citada oposição entre a intelectualidade e a música popular da chamada belle époque sob outros ângulos. Ao mesmo tempo, percebem-se vários pontos de contato entre o texto do intelectual e o do carteiro: a valorização desta música urbana, a citação e o desejo de nominar e valorizar instrumentistas populares, um certo clima ao mesmo tempo apologético e de “manifesto” para que esta música fosse preservada, etc. Talvez possamos concluir dizendo que nos trabalhos memorialísticos realizados por estes diversos atores sociais 198 da época — o intelectual Mello Moraes, o poeta “semi-erudito” Catulo da Paixão Cearense, o jornalista e cronista carnavalesco Vagalume e o carteiro e violonista Alexandre Gonçalves Pinto — havia uma complexa e instigante relação de influências mútuas que formam um verdadeiro caleidoscópio de interpretações dificilmente redutíveis a esquemas teóricos conclusivos e fechados e que de certa maneira constituem um espelho da complexa sociedade brasileira deste período. 199 Capítulo 4 A práxis musical em O Choro: aspectos do aprendizado, transmissão musical e acervos de partituras Neste capítulo abordaremos aspectos do livro O Choro que são frequentemente deixados de lado nos poucos estudos sobre ele e que dizem respeito exatamente a questões musicológicas que podem ser aferidas através de seu relato. O primeiro tópico abordará a questão da transmissão musical, ferramenta teórica que será a base do capítulo: utilizando textos da musicologia e da etnomusicologia procuro conceituar e discutir processos de transmissão musical que passam necessariamente por cinco instâncias: o oral, o aural, o escrito, o impresso e o gravado. Através desta discussão pretendo entender melhor a forma como estas instâncias interagem e se interrelacionam no processo de transmissão do choro. Mais ainda, a discussão será útil para entendermos o quê se transmite — não necessariamente apenas “peças musicais” fechadas, mas processos de acompanhamento, de fraseados, de improvisação, etc. No segundo tópico discuto aspectos do aprendizado: utilizando as ferramentas teóricas discutidas no primeiro tópico, procuro entender a forma como o conhecimento técnico e de repertório era passado e de que modo tais aspectos são enfatizados por Gonçalves Pinto em seu livro. O terceiro tópico é inteiramente dedicado à análise de acervos manuscritos de choro: usando tanto o livro O Choro como um trabalho de “pesquisa de campo” realizada em algumas instituições de pesquisa do Rio de Janeiro (particularmente o Museu da Imagem e do Som desta cidade), procuro entender e analisar uma faceta ainda pouco explorada nos estudos sobre o choro: a complexa e multifacetada rede de acervos de partituras manuscritas, que se estendem desde 1882 (data das partituras mais antigas) até os dias atuais. 4.1) Aspectos de transmissão: o oral e o escrito De que modo a música de choro era transmitida em fins do século XIX e primeiras décadas do século XX? Esta será a nossa questão principal, que de certa forma comporta em si outras questões: de que modo se dava o aprendizado musical dos músicos de choro? Havia diferenças de aprendizado de acordo com o instrumento utilizado? De que modo o repertório era transmitido? Qual o papel dos registros escritos e da oralidade nestes processos de transmissão? É possível falar de uma dicotomia entre estes dois processos? Como inserir neste processo outros suportes como o impresso, o gravado e o aural? A questão da transmissão oral e escrita em música já foi alvo de diversos trabalhos musicológicos e etnomusicológicos. Para Treitler (1992: 134) a simples formulação “transmissão escrita versus transmissão não escrita” implica tanto em um paralelismo — ambos os processos teriam uma finalidade única, a transmissão — quanto em uma oposição — os processos seriam diferentes e mutuamente exclusivos: algo como a opção entre mandar uma mensagem por telefone ou pelo correio, para utilizar um exemplo do autor. Entretanto, esta aparente dicotomia, que teria sido um verdadeiro paradigma da musicologia e da etnomusicologia — a divisão entre culturas “letradas” e “iletradas” musicalmente — traria, ainda segundo Treitler, percepções enganosas: por um lado, a noção de “transmissão escrita” teria como pressuposto a ideia de um objeto, algo concreto, passível de ser transmitido através de símbolos grafados. Desta forma, reduzir o complexo fazer musical — que inclui aspectos como alturas sonoras, timbre, ritmo, improvisação, etc — a um único objeto concreto transmissível seria algo no mínimo questionável. Por outro lado, a noção de “tradição não escrita” implicaria, à primeira vista, a ideia de performance a partir de um repositório mental (ou 201 seja, memória) de melodias fixas — noção que excluiria qualquer possibilidade de interação com o escrito. A ideia central de Treitler é, portanto, a de que a dicotomia entre transmissão “escrita” e “não escrita” não pode ser sustentada na prática: mais ainda, para o musicólogo, desde o começo da tradição musical escrita europeia conceitos como leitura, memória e improvisação foram aspectos contínuos, mutuamente relacionados e interdependentes (Treitler, 1992: 135). De maneira similar, Nettl (1983: 187-189) também questiona a aparente dicotomia entre a oralidade e a escrita. O autor evoca estudos de musicólogos como Charles Seeger e Curt Sachs, que já questionavam esta dualidade desde a década de 1950. Para o primeiro, o que havia de mais interessante na tradição oral não era o fato de que esta se constituía como um modo radicalmente diferente de ensino e aprendizado quando comparado à tradição escrita, mas o fato destas duas formas de transmissão estarem inextricavelmente ligadas. Já para Curt Sachs, a transmissão cultural não podia ser reduzida a uma relação dual, e passaria necessariamente por quatro instâncias: a oral, a escrita (ou manuscrita, mais precisamente), a impressa e a gravada. Estas quatro formas de transmissão, em maior ou menor grau, estariam presentes em todas as culturas do mundo a partir da segunda metade do século XX — e nunca com um caráter mutuamente excludente, mas numa relação de interdependência contínua. Tomando-se o modelo de Sachs, para algumas culturas a tradição oral poderia estar muito mais próxima do escrito do que o impresso: quando há, por exemplo, uma grande diversidade de manuscritos para um único documento musical, fruto do trabalho de diferentes copistas, a tendência será encontrarmos formas variantes, da mesma forma como na tradição oral — pelo simples fato de que o trabalho de cada copista estará condicionado não só a sua interpretação pessoal da peça musical, como a outros fatores como esquecimentos, erros, etc. Este é um ponto particularmente importante para a análise 202 dos acervos de choro e para a questão da transmissão no gênero: voltaremos a ele posteriormente. Aprofundando o debate, Nettl questiona também o fato de associarmos obrigatoriamente o conceito de transmissão à ideia de “peças” musicais fechadas: em um nível mais profundo, poderíamos pensar em um repertório não como uma série de “peças”, mas consistindo de um vocabulário de unidades menores como: motivos melódicos ou rítmicos, acordes, sequências de acordes, fórmulas de cadência, etc. Desta forma o processo de transmissão poderia ser estudado sob o prisma de como um repertório conserva (ou não) estas unidades intactas, e como elas são combinadas e recombinadas em unidades maiores que são aceitas como “peças musicais” em diferentes culturas (Nettl, 1983: 190). Este conceito também será particularmente útil em nossa análise, como se verá adiante. Voltando ao nosso objeto de estudo, parece ter sido senso comum entre os chorões da segunda metade do século XX que o choro se aprende prioritariamente através da observação direta e da tradição oral — e mesmo quando o aprendizado se dava através da partitura, esta deveria ser apenas um suporte para a memorização da estrutura básica da música, a ser “completado” por outros aspectos não escritos como “colorido”, “improvisação”etc. Desta forma, o “bom chorão” prescindiria do registro escrito, pelo menos em seu lugar de práxis, a roda do choro. Veja-se por exemplo, o depoimento a este respeito dado por Jacob do Bandolim em seu depoimento ao Museu da Imagem e do Som: (...) há dois tipos de chorões: há o chorão de estante, que eu repudio que é aquele que bota o papel pra tocar choro e deixa de ter a sua... perde a sua característica principal que é a da improvisação; e há o chorão autêntico, o verdadeiro, aquele que pode decorar a música pelo papel e depois dar-lhe o colorido que bem entender, este que me parece o verdadeiro, autêntico, honesto chorão (Jacob do Bandolim, 1967). 203 Se isso é verdade em muitos aspectos, não se pode negar por outro lado a importância que os próprios chorões das primeiras gerações davam ao registro escrito, conforme nos dá testemunha o livro O Choro. É possível encontrar no livro grande número de citações do livro em que se valoriza os instrumentistas que “sabiam música” em detrimento dos que não liam partitura: Videira, por exemplo, era um grande flautista “apesar de tocar de ouvido”, ao passo que Braguinha “tocava muito mal e de ouvido”. Por outro lado, havia bons chorões que não eram capazes de tocar nada sem a partitura. Gilberto Bombardino, por exemplo, era chorão de fato, conhecia bem música, mas se fosse convidado para acompanhar um choro de ouvido, não dava nada. (...) Nos pagodes onde ia tocar, desde que houvesse parte para ler, [tocava] a música sem pestanejar e às vezes fazendo até floreados nos intervalos das mesmas. (...) Gilberto gostava muito que os pagodes fossem até de manhã, pois gostava muito de um chocolate com biscoitos ou pão de ló (...) Assim findou-se este herói da gastronomia. Vê-se assim que a questão do registro escrito era de grande importância, mesmo considerando-se que o bom músico era sempre valorizado, independente de saber ou não ler partitura. Outro fator a se ressaltar é o da referência a existência de “pagodes” onde havia “partes para ler”: o que se infere do trecho citado é que a presença de músicos lendo partituras em festas era algo relativamente comum, fato que seria impensável, ou pelo menos condenável, em uma roda de choro a partir da segunda metade do século XX, como nos mostra o depoimento de Jacob. O que se pode concluir a partir disto é o fato de que os modos de transmissão oral e escrito parecem estar presentes desde o nascimento do gênero, e não é por acaso que o tema apareça na obra de Pinto e no depoimento de um de seus mais importantes intérpretes das décadas de 1940 a 1960, Jacob do Bandolim. Na comparação entre estes dois podemos perceber que para os chorões descritos por Pinto a leitura de partitura era algo tão valorizado como o fato de se tocar “de ouvido”. Assim, se, por um lado, o flautista Videira era um 204 grande chorão, “apesar de tocar de ouvido”, Gilberto Bombardino não deixava de ser um “chorão de fato” apesar de precisar das “partes pra ler” durante as rodas. É importante lembrar que o conjunto instrumental típico de uma roda dos tempos de Gonçalves Pinto incluía, além da flauta e dos violões e cavaquinhos (acompanhamentos ritmo-harmônicos), instrumentos responsáveis pelo contracanto, como o oficleide e o bombardino: tais contracantos eram muitas vezes lidos, conforme demonstra o trecho citado e também o fato de que, como se verá, muitas “partes” de contracanto (escritas normalmente em clave de fá) são encontradas nos acervos manuscritos que nos chegaram até os dias atuais (como o acervo do trombonista Candinho Silva, de quem falaremos adiante). Ao longo do século XX, instrumentos típicos do contracanto do choro, como o oficleide e o bombardino, caem em desuso, sendo as partes de contracantos graves incorporados ao violão de sete cordas; por conseguinte, partes escritas e “obligatas” de contracanto caem praticamente desapareceram, sendo a maior parte das vezes improvisadas pelo violão de sete cordas (nas poucas partes em que o contracanto grave do violão faz parte da música convencionou-se entre os músicos de choro chamá-lo de “baixo de obrigação”) ou por um segundo instrumento solista. Outro ponto a ser ressaltado é o de que um elemento essencial da música de choro — o acompanhamento rítmico-harmônico — raramente era escrito. Como se verá adiante, existem pouquíssimas partituras nos acervos manuscritos que nos chegaram da primeira metade do século XX com indicações para violão e cavaquinho e, no entanto, o papel destes instrumentos sempre foi descrito como de fundamental importância pelos relatos da época. Daí se conclui que a transmissão de choros através de partituras era (e continua sendo) algo que contemplava apenas alguns aspectos do fazer musical — a melodia, o 205 gênero a que a música pertencia etc.; outros aspectos, como a condução rítmicoharmônica e os eventuais contracantos melódicos (quando não eram escritos) eram transmitidos através da oralidade. Podemos aqui aplicar o conceito de Nettl, citado anteriormente, de que ao lado do conceito de “peças” musicais fechadas — no nosso caso “polcas”, “valsas”, “schottischs”, etc. —, existe um vocabulário de unidades menores que são transmitidas e recorrentemente recombinadas: assim, para os chorões da época, a melodia poderia até estar disponível em acervos manuscritos (ou eventualmente em partituras impressas): outros aspectos como sequência harmônica e acompanhamento rítmico-harmônico dependiam da transmissão oral e eram realizados na prática musical. Esta realização pode ser caracterizada como o ato de escolha, no momento do fazer musical, de caminhos possíveis de execução de determinados aspectos a partir de um vocabulário existente: o bom instrumentista acompanhador era aquele que ao mesmo tempo dominava ao máximo este vocabulário e que sabia fazer as melhores escolhas no menor tempo no momento da execução. Assim, dentre o repertório de figurações rítmico-harmônicas — chamadas atualmente de “levadas” no ambiente do choro — e de sequências harmônicas possíveis (o acompanhamento “com todos os seus acordes” de que nos fala Pinto), o acompanhador teria que escolher e combinar os elementos que mais se adequavam à melodia apresentada pelo solista no momento da roda. Esta era (e continua sendo) parte fundamental da dinâmica da roda de choro. O instrumentista de violão e cavaquinho que fazia escolhas erradas, fosse por desconhecer o vocabulário ou por inépcia, “caía”, segundo a gíria da época (muito utilizada por Pinto, como veremos), ou seja, falhava no acompanhamento. Se, por um lado, o acompanhamento era prioritariamente transmitido através da oralidade, temos várias razões para apontar que a transmissão das melodias das músicas de choro era frequentemente feita através do registro escrito. De fato, a grande 206 quantidade de trechos em que Gonçalves Pinto se refere a acervos manuscritos de solistas de choro — notadamente flautistas, como se verá — aponta para a existência de uma rede de cópias manuscritas que funcionava de forma paralela à já intensa indústria de comércio de partituras, que se inicia no Brasil ainda no século XIX, e que se dedicava em grande parte justamente à venda de músicas de gêneros que faziam parte do universo do choro, como polcas, schottischs, valsas, etc. Neste ponto, podemos fazer uma comparação entre a relação do choro com a indústria de partituras do início do século e com indústria fonográfica a partir da década de 1930: como visto no terceiro capítulo, ainda que eventualmente Gonçalves Pinto critique os meios de comunicação como o rádio e o disco pela massificação e a divulgação de músicas americanas (e que esta crítica venha muitas vezes como “ecos” da visão de jornalistas e músicos da época, como o já citado Vagalume), na maior parte das vezes sua visão é bastante elogiosa e entusiasta aos artistas que levavam o choro ao ambiente do rádio, como Luperce Miranda e Benedito Lacerda. Sua crítica recai somente no fato de que os artistas de choro do rádio pouco executavam o repertório dos “antigos chorões”, razão que o leva inclusive a oferecer os cadernos do chorão Cupertino a Benedito Lacerda, através do livro. Assim, enquanto na década de 1930 este repertório dos compositores “antigos” era tocado pelos chorões que preservavam esta memória musical (vários deles apontados por Gonçalves Pinto como ainda em atividade neste período, como era o caso do flautista Jupyaçara Xavier, de quem falaremos a seguir) e provavelmente mesclado ao repertório de músicas de choro veiculadas pelo rádio (de solistas então em evidência como os já citados Benedito Lacerda e Luperce Miranda, além de outros como Severino Rangel, Luiz Americano, etc), podemos dizer que nas primeiras décadas do século as partituras manuscritas circulavam em paralelo à indústria de comércio de partituras, muitas vezes suprindo lacunas que esta última apresentava principalmente no que 207 concerne a este grupo de instrumentistas populares. Estes aspectos serão aprofundados em tópicos posteriores. Passaremos agora à análise dos processos de aprendizado contidos no livro O Choro. 4.2) Aspectos do Aprendizado De que modo um iniciante aprendia a tocar a música do choro nas primeiras décadas do século XX no Rio de Janeiro? Embora não haja uma resposta direta a esta questão, o livro O Choro de Alexandre Gonçalves Pinto nos fornece alguns elementos bastante interessantes a este respeito: como se verá, o aprendizado do choro era um processo multifacetado que passava por instituições de ensino oficiais e não oficiais, por meios de transmissões escritos (manuscritas e impressas) e não escritos (orais, aurais, e, a partir do advento da fonografia no Brasil em 1902, gravadas). Para que possamos fazer uma análise um pouco mais aprofundada sobre este complexo processo de aprendizado, convém recuarmos um pouco no século XIX para entendermos como funcionava a dinâmica musical da época neste aspecto. A principal instituição de ensino musical do século XIX foi sem dúvida o Conservatório Imperial, fundado em 1841 pelo imperador D. Pedro II e que posteriormente — na passagem da monarquia à república — se transformaria em Instituto Nacional de Música1. Como apontado em trabalho anterior (Aragão, 2006) a trajetória do Conservatório — a instituição “oficial” de ensino musical do Império e posteriormente da república — foi sempre marcada por tensões e contradições que podem ser resumidas no dilema entre a adoção de um esquema de ensino europeu por excelência — cujo modelo foi o Conservatório de Paris — e a construção de uma 1 Em 1937, com o advento do Estado Novo, passou a se chamar Escola Nacional de Música e posteriormente Escola de Música da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). 208 música e de uma identidade brasileiras, meta perseguida tanto pelos nacionalistas como posteriormente pelos modernistas a partir de 1922. Este dilema se confunde com a história de vida de compositores e professores desta instituição que foram atores de diversas polêmicas e discussões públicas a respeito dos (des) caminhos do nacionalismo, em diversos períodos históricos, como Alberto Nepomuceno e Luciano Gallet (para Nepomuceno, ver Pereira, 1995; para Gallet, ver Bardanachvili, 1995). Talvez um fato emblemático desta tensão seja constatarmos que no século XIX encontramos como professores do Conservatório nomes como Henrique Alves de Mesquita, Joaquim Callado e Duque Estrada Meyer — todos citados e destacados por Pinto em seu livro como intérpretes e compositores ligados à prática do choro — atuando ao lado de nomes como Alberto Nepomuceno, Henrique Oswald e Leopoldo Miguez — compositores mais destacados do romantismo brasileiro. Voltaremos posteriormente a este ponto: por ora cumpre apenas assinalarmos que havia na instituição oficial de ensino do Império professores e alunos ligados às práticas musicais que posteriormente seriam classificadas como choro. No âmbito do ensino informal, havia um grande número de professores de diversos instrumentos, que com o aumento do mercado de música a partir da metade do século XIX, atuavam em diversas frentes, fossem como contratados de casas especializadas em música, fossem como professores particulares. Convém aprofundarmos melhor como se deu este processo de incremento do mercado musical: segundo Leme (2006: 158), a segunda metade do século XIX teria sido o período em que, devido ao desenvolvimento de novas técnicas de impressão musical, houve um barateamento dos custos de produção de chapas de impressão, facilitando o crescimento de um mercado produtor e consumidor: A criação desse campo fez aumentar o número de profissionais capacitados, peçaschave na relativamente complexa engrenagem que permitiu o bom funcionamento 209 das oficinas de música impressa em funcionamento no Rio de Janeiro: preparadores de chapas; comerciantes de chapas, prelos, papel e tinta; artistas gravadores; técnicos em prensagem; copistas de música; compositores que se dedicavam à música ligeira; professores de piano, canto e outros instrumentos (...) Assim, o aumento do comércio de partituras trouxe em seu bojo um incremento das atividades musicais na capital da república, o que incluía certamente a venda de instrumentos e artigos musicais e a oferta de professores e aulas de música. No que tange a oferta de professores de música, uma excelente fonte de pesquisa é o Almanak Laemmert, publicado entre 1844 e 1889 pelos irmãos Laemmert. Fundadores da tipografia Laemmert em 1833, foram responsáveis por diversas publicações de autores brasileiros e editaram por décadas este almanaque que é hoje considerado um instrumento de consulta indispensável dos aspectos sociais, comerciais e financeiro do período2. Através do Almanak observamos que era grande a oferta de professores para diversos instrumentos, entre os quais o piano (sem dúvida o mais popular), mas também para canto, violão, instrumentos de sopro, harpa, entre outros. O Almanak também corrobora o incremento do mercado de música ao longo do século XX: assim, se o volume de 1844 traz em seu índice a categoria geral “Professores de língua, música e sciências”, o volume de 1847 já traz no índice uma categoria específica que será mantida nos números subsequentes: “Professores de Música”. Os professores de violão aparecem pela primeira vez também neste volume de 1847 — um certo Mariano Brunni, residente à rua São José n. 60 dava aulas de “harpa e violão”, enquanto que Demétrio Rivexa, residente à rua do Espírito Santo n. 2 dava aulas de “piano, violão e rabecca”. No volume de 1889 encontramos entre os professores de música os nomes de Ernesto Nazareth (anunciado como “professor de piano residente à rua Major Fonseca n. 7 em 2 O Almanak Laemmert foi digitalizado pela Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro e está disponível para consulta através do site http://www.crl.edu/content/almanak2.htm. Consulta realizada em 2 de outubro de 2009. 210 São Cristóvão”) e Henrique Alves de Mesquita (“encarrega-se de funções de igrejas, bailes e teatros; mestre de harmonia e composição marcial”). Outra importante fonte para o estudo do processo de transmissão e aprendizagem na segunda metade do século XIX e inícios do século XX é constituída pelos catálogos das casas editoras da época — principalmente as listagens de obras teóricas e didáticas para diversos instrumentos. Uma das mais importantes casas editoras do Rio de Janeiro deste período — a Casa Bevilacqua, fundada em 1839 pelo genovês Isidoro Bevilacqua — teve seu catálogo de 1913 estudado por Leme (2006). Dentre as mais de 3.500 obras impressas por essa editora no período de 1839 a 1913, há um número considerável de métodos e obras teóricas. Dentre estas, Leme (2006: 304) contabiliza 105 métodos para piano, 25 métodos de leitura e solfejo, 24 métodos para violino, 5 métodos para bandolim, 2 métodos para violão, 7 métodos para diversos instrumentos e 20 “exercícios de escalas para diversos instrumentos” — sendo que a autora salienta que um destes exercícios, intitulado “Escalas para flauta de 1 chave” provavelmente teria sido a primeira obra impressa pela editora Bevilacqua. A discrepância entre o número de métodos de piano e violão não significa necessariamente que o primeiro tivesse mais popularidade que o segundo, apenas demonstra o quanto o aprendizado deste último se dava por outros meios que não o impresso. Este desnível se acentua ainda mais quando comparamos o número de obras musicais editadas para os dois instrumentos: em todo este período há apenas uma obra editada para violão solo e três para canto acompanhado de violão, enquanto há centenas de partituras para piano solo e piano e outros instrumentos. Para Leme, apesar disso o mais “popularizado” método de violão existente no século XIX, o de Mateo Carcassi, era editado no Rio de Janeiro desde 1846, inclusive pela Bevilacqua, o que atesta também que havia músicos e professores violonistas difundindo a obra entre seus pupilos (id: 306-307). 211 Ainda assim, os métodos e exercícios para violão tinham baixa vendagem, principalmente quando comparados a outros instrumentos como o piano principalmente. Uma obra intitulada Escalas para violão, editada pela Bevilacqua, teria vendido entre 1894 e 1918 apenas 374 exemplares, segundo os registros de venda da editora estudado por Leme (idem: 317). A baixa vendagem fez com que os editores procurassem elaborar novos produtos que atendessem às necessidades e ao perfil daquela parcela de instrumentistas de violão: Em 1890, na gestão de Eugênio, a Bevilacqua e Cia lançou o Método Prático para aprender a tocar violão sem mestre, que consta no catálogo com a referência da chapa no 3589. Seria um produto diferente, claramente destinado a uma parcela de público pouco letrada, talvez aos “capadócios” ou àqueles menos afeitos à leitura musical. Vendido a 1$000 cada exemplar, o método era um livrinho pequeno, tal como um gibi, com desenhos do braço do violão, onde o aluno podia “ler” onde deveria colocar seus dedos para formar as posições (acordes) para acompanhamentos harmônicos. O método ensinava o aluno a afinar seu instrumento e dava outras instruções que facilitavam a aquisição de saberes básicos (id. Ib.). Esse sistema de representação gráfica do braço do violão, uma espécie de tablatura musical, seria cada vez mais popular ao longo do século XX. Feito este preâmbulo, voltamos agora à nossa questão inicial: de que forma se dava o processo de aprendizagem do choro no período de 1870 a 1936, data de lançamento do livro que é o nosso objeto de estudo? Faremos a seguir um breve fichamento de situações em que o “Animal” cita processos de ensino. Comecemos levantando as pistas que o autor nos dá a respeito de seu próprio aprendizado (lembremos que Pinto tocava o violão e o cavaquinho). Em sua descrição do já mencionado flautista Videira, por exemplo, este elemento está presente: Videira era charuteiro e bom flautista, pois “apesar de tocar de ouvido”, sabia “dizer na sua flauta o que dizia [sic] os outros, sabendo música”. Sendo grande tocador, tinha um grave defeito: 212 se qualquer dos instrumentos desse uma nota fora da música, em qualquer passagem, [Videira] parava a flauta, o que era uma decepção para os convidados, e então logo perguntava ao que errou: ‘o senhor sabe tocar?’, o que respondia o interpelado, ‘toco pouco, e a minha prática é quase nenhuma, e depois o senhor toca com muita dificuldade, o que muito nos atrapalha’. Com esta franqueza Videira ficava radiante e então ia logo dizendo: ‘agora vou tocar para o senhor não cair’. E perguntando então: ‘Qual os tons que o senhor confere nos seu instrumento?’o que respondia: ‘dó maior, sol maior, mi menor e só’. Respondeu Videira: ‘pois bem, então vamos tocar só nesses tons’ e assim fazia, saindo-se os fracos tocadores bem e Videira contentíssimo, demonstrando assim a sua maestria, apesar de tocar de ouvido (24, grifo meu). Foi esta exatamente a situação vivida por Gonçalves Pinto, segundo sua descrição. Tendo sido convidado a tocar em um “aniversário e batizado lá pelas ruas de S. Diogo, hoje General Pedra”, Pinto e seu companheiro Dinga, “de saudosa memória”, são informados pelo anfitrião de que o flautista da roda seria ninguém menos que o Videira, que ainda não havia chegado: Oh, que decepção! Um suor frio desceu-me por todo o corpo, parecia que ia ter uma síncope, pois sabia por informações o ranzinza que ele [Videira] era! Pois sabia da decepção que ia passar e meu companheiro [sic], pois os tons que sabia naquela ocasião eram muito poucos, pois o que sabia era de principiante, que só servia para distrair, e não para acompanhar. (idem, ibidem, grifo meu). Arranjando um pretexto qualquer, os dois procuravam uma desculpa para deixar a festa quando chega o temível Videira em pessoa, “com sua maviosa flauta embaixo do braço, e que muito sorridente nos cumprimentou, satisfeito talvez, pensando que fossemos excelentes tocadores”. Ao notar que Pinto e seu companheiro estavam para se retirar, Videira diz aos dois: ‘Eu peço aos senhores que não se retirem, pois desta forma ficará a festa toda estragada’. Então eu [Pinto], muito medroso e nervoso lhe disse que fomos ali só para cantar modinhas, dentro dos tons que nós conhecíamos e não para acompanharmos flauta, pois faltava-nos a prática. Videira dando uma gostosa gargalhada, abraçou-me dizendo-me: ‘menino, não tenha medo do pouco que você toca: pois eu tocarei tudo dentro das notas que você conhece’. E assim dizendo pegou-me pela mão e a do Dinga e disse: ‘vamos lá dentro tomar uma boa talagada’ (25, grifo meu). 213 E assim, entre diversas “talagadas” em uma sala onde havia “uma bela mesa, cheia de assados e as competentes garrafas de vinhos tintos, Porto, cervejas, etc”, a roda de choro iria até o dia seguinte, tendo Videira tocado somente nos “tons” conhecidos pelos acompanhadores. Alexandre finaliza a história da seguinte forma: Daquele dia em diante, comecei a procurar Videira, não só em sua casa como em uma charutaria na rua do Ouvidor, onde ele trabalhava como cigarreiro. Andando sempre com ele principiei a tocar violão e cavaquinho, pois ele os conhecia regularmente, e tornando-me desta forma um violão e cavaquinho respeitado na roda dos tocadores batutas (...) tornando-me um bamba nos dois instrumentos de cordas de que fiz uso por muitos anos (26). Vê-se assim que o aprendizado de Pinto se deu através de uma relação mestrediscípulo: ainda que Videira não soubesse ler partituras, conhecia “regularmente” o violão e o cavaquinho, o que provavelmente quer dizer que o flautista-charuteiro dominava não só um repertório de formação de acordes, como os caminhos harmônicos e o repertório de acompanhamento rítmico-harmônico (“levadas”) dos dois instrumentos. Dessa forma, andando sempre com Videira, Alexandre conseguiu repertoriar um vocabulário de estruturas de acompanhamento que o permitiu se tornar um instrumentista “respeitado na roda dos tocadores batutas”. Da mesma forma que Videira, outros instrumentistas também se tornarem verdadeiros “professores” informais de seus instrumentos, sendo o aprendizado feito quase sempre na prática da roda. Era o caso de Gedeão por exemplo, flautista que era um “sublime artista musical”, cuja casa, na rua Machado Coelho,“perto do Estácio”, era a “reunião dos chorões, sendo portanto uma grande escola de musicistas, onde o autor deste livro ia beber naquela fonte sua aprendizagem de violão e cavaquinho” (17). Da mesma forma, Lily S. Paulo era exímia violonista, “especialista nos acordes”, pois “sendo uma companheira de choro do sempre lembrado Bilhar, que era o rei dos acordes, muito com ele aprendeu, de maneira que [quem] escuta Lily, logo diz ali está o Bilhar” (63). 214 Esta relação de aprendizado “mestre-discípulo” é bastante citada em diversos trechos do livro. Com base no fichamento de situações de ensino citados no livro, podemos fazer uma espécie de categorização de duas situações mais comuns: 1) ensino através de professores “formais”, ligados às instituições reconhecidas de ensino: normalmente ligados a instrumentos solistas ou aos instrumentos de sopro que formavam as bandas musicais ou sociedades musicais do período;. 2) ensino através de professores “informais”, ou seja, instrumentistas que não eram professores ligados à qualquer instituição oficial de ensino, mas que, por sua extrema desenvoltura no instrumento, passaram a ser citados como pontos de referência para o aprendizado. Normalmente eram instrumentistas ligados ao acompanhamento, como é o caso de Galdino Barreto e Mário Álvares da Conceição, no cavaquinho e Sátiro Bilhar e Quincas Laranjeiras no violão. Pelo fato de que, como já vimos, o aprendizado desses instrumentos se dava em grande parte através da transmissão oral, torna-se mais difícil reconstruir hoje estes processos de aprendizagem: muitas vezes não temos sequer dados biográficos confiáveis sobre estas figuras exponenciais do ensino de violão e cavaquinho, apesar de que existe ainda, entre os instrumentistas de choro da atualidade, uma espécie de “senso de linhagem” que determinaria uma espécie de “fio condutor” de instrumentistas desde meados do século XIX até os dias de hoje, como se verá. Estes instrumentistas-professores são citados não apenas por Pinto em seu livro, mas em outras fontes da época, como os livros de Vagalume e Orestes Barbosa. Passemos agora a uma análise mais detalhada dos itens listados acima. Do primeiro caso, o de professores ligados às instituições “formais” de ensino temos pelo menos um exemplo: o flautista Duque Estrada Meyer (1848-1905), sucessor de Callado no cargo de professor do Conservatório Imperial (e mais tarde do Instituto Nacional de Música). Meyer é citado da seguinte forma por Pinto: 215 O GRANDE PROFESSOR DUQUE ESTRADA MEYER Impossivel me é descrever, a grandeza, e a sublimidade deste grande professor. As suas glorias foram tantas e tantas, que só com muitas lágrimas pode-se dizer a sua vida, como immenso maestro que foi o nome acima. Foi um genio na musica, conhecia theoria como poucos, a sua flauta em seus labios não tocava mas chorava. Não só conhecia os grandes choros dos immensos flautas já por mim descripto, como tambem o classico. Tocou em muitas orchestras, sendo admiradissimo, pelos maestros daquella época. Meyer era um genio alegre, e folgazão, de uma educação finissima, exemplar pae de familia. No chôro quando tocava as musicas de Callado, Viriato Silveira, Luizinho, e outros, fazia com alma sentimento e graça. Foi grande amigo dos chorões acima, mas tinha uma grande predilecção pelo sempre chorado musico Callado, pois quase sempre tocavam juntos. Callado em attenção a esta grande e bondoza familia, escreveu uma quadrilha dedicada á mesma, que botou o nome de Família Meyer que é um primor de arte, e que tenho em meu archivo como uma joia inesquecivel. (...) (92). Note-se que, embora não haja menção ao fato de que Meyer era professor do Conservatório, o título do verbete nomeia primeiramente o “professor” e só ao longo da descrição ficamos sabendo que Meyer era flautista. Ou seja, não obstante o fato de ter sido um excelente instrumentista, conhecedor dos choros dos “imensos flautas” e “também do clássico”, Duque Estrada Meyer era em primeiro lugar um professor. Ressalte-se aqui que Callado havia sido antecessor de Meyer na cadeira de flauta do Conservatório, mas a descrição de Pinto sobre Callado em nenhum momento nomeia este como professor. Outro ponto a ser levantado: de que forma conviviam em Meyer o erudito professor do Conservatório e o instrumentista ligado às práticas populares das ruas do Rio de Janeiro da época? É muito difícil sabermos hoje em dia até que ponto as práticas populares e as músicas contidas nos cadernos dos “antigos flautas” — isto é, as músicas de Callado e Viriato, por exemplo, — faziam parte do curriculum dos alunos do Conservatório. Um fato interessante pode talvez ilustrar o caso: em um caderno manuscrito de partituras da coleção do flautista Jupyaçara Xavier (a ser analisado posteriormente), datado de 1909, encontramos na contracapa um programa de um concerto de música com os dizeres: “Grande concerto do flautista brasileiro Gabriel de Almeida – aluno laureado do Instituto Nacional de Música e ex-discípulo do 216 inesquecido professor Duque Estrada Meyer – Ginásio de Música”. Acima, manuscrito: “em 29 de janeiro de 1910”. Quando cotejamos os compositores que constavam no recital com aqueles que constam no caderno temos, de um lado, Leoncavallo, Marchetti, Dubois, entre outros — e do outro Silveira, Callado, Viriato, etc. Ou seja, o mais provável é que houvesse realmente uma divisão entre os compositores “permitidos” dentro do Conservatório e os compositores “de rua”, ainda que Meyer fosse ele mesmo um discípulo de Callado e um grande conhecedor das músicas dos choros. Outro fator que salta aos olhos é o de que, entre todos os numerosos flautistas citados no livro, apenas um — o flautista Pedro de Assis (que depois substituiu Meyer como professor daquela instituição) — é citado como discípulo de Meyer, embora saibamos por outras fontes (ver por exemplo Vasconcelos, 1977: 312-320) que pelo menos um outro importante flautista da época, Patápio Silva — responsável por algumas das primeiras gravações de flauta no Brasil pela Casa Edison —, teve aulas com ele. Duque Estrada Meyer deixou também algumas composições encontradas em coleções manuscritas de antigos flautistas como os do já citado Jupyaçara Xavier — no primeiro caderno de sua coleção encontramos uma polca intitulada “Receiosa”. Há mais quatro professores de flauta citados no livro: João Salgado, que era “que era um professor de grande mérito e paciência para ensinar a mais rude cabeça” (19); Felisberto Marques, por alcunha “Maçarico” (provavelmente por ter um sopro de ferro?) que além de “um bom executor era um exímio professor de flauta” (22); General Gasparino, “músico de grande valor”, que ocupara “cargo de grande responsabilidade” (91, o autor não nomeia o cargo) e um certo “Professor Nicanor”, também “professor de flauta e exímio executor”, grande admirador de Catullo Cearense. Não sabemos se esses professores haviam passado pelo Conservatório ou não, e se davam aulas particulares ou em sociedades musicais da época. O que tiramos disso tudo é o fato de que, dada a 217 grande popularidade da flauta naquela época — 109 flautistas são citados ao longo do livro, de acordo com o fichamento de Jacob do Bandolim —, os processos de aprendizagem se davam necessariamente através de diversas fontes, entre as quais estava a entidade “oficial” de ensino, o Conservatório Imperial (e depois Instituto Nacional de Música). Ainda que não saibamos até que ponto esta música era efetivamente ensinada no Conservatório, o fato é que temos pelo menos três gerações de professores desta instituição — Callado, Duque Estrada Meyer, e Pedro de Assis — ligados à prática do choro e citados no livro de Pinto. A presença do Conservatório Imperial é citada também como fonte de aprendizado de outros músicos populares que faziam parte do universo do choro, principalmente os instrumentistas ligados à banda e ao naipe dos metais. São diversos os exemplos no livro neste sentido: Mondego, por exemplo, que tocava bombardino e era carteiro aposentado dos correios, tinha “carta de professor pelo Instituto de Música, onde souber fazer todos os cursos admiravelmente com contentamento de todos os maestros do Instituto” (107). Com o diploma de professor passou a ser “mestre de uma Sociedade Musical na Estrada Velha da Tijuca onde fez grande quantidade de músicos, pois a sua proficiência e paciência era de encantar” (id.). Da mesma forma um certo Camargo, que tocava “regularmente” uma “flauta de 5 chaves” no rancho Ameno Resedá, era da Brigada Policial e havia feito seus estudos “no Conservatório de Música, tornando-se ali um aluno inteligente, recebendo assim o seu diploma de professor” (29). Sem dúvida as bandas e sociedades musicais também cumpriam papel importante no processo de ensino e aprendizagem. Para fornecer uma “visão panorâmica” destas instituições citadas no livro valemo-nos mais uma vez do fichamento feito por Jacob do Bandolim, citado no primeiro capítulo. Uma das categorias fichadas intitula-se “Bandas, clubs, etc.” e contém agremiações musicais 218 variadas como bandas militares, sociedades dançantes, orquestras de ranchos, etc., sempre relacionando as pessoas que são citadas ao longo do livro com as instituições listadas. Na tabela que se segue transcrevo parte deste fichamento, incluindo apenas as bandas e sociedades musicais; optei por retirar as orquestras de ranchos e sociedades dançantes, por estarem mais relacionadas a aspectos de diversão do que de ensino e aprendizagem. Tabela 7 – “Bandas, clubs, etc.” (extraído do Fichamento de Jacob do Bandolim) Arsenal da Guerra João Salgado – flauta, oficleide, fagote João dos Santos - clarinete Justiniano - flauta Santos Bocot – regente, requinta Brigada Policial Camargo - flauta Major Rocha – oficleide e regente Pedro da Mota - bombardino Colégio dos Meninos Desvalidos Carramona – piston, regente Francisco Braga - maestro Frederico de Barros - flauta Henrique Martins – trombone, bombardino Paulino Sacramento – piano, regente Romeu Silva – sax, regente Corpo de Bombeiros Anacleto de Medeiros – sax, mestre Carramona – piston – c/ mestre, 2º tenente Geraldino - bombardino Irineu de Almeida – bombardino, oficleide, trombone, regente Irineu Pianinho - flauta João Mulatinho – bombardino – c/ mestre Lica – bombardão, flauta Luiz de Souza – piston, regente Nhonhô Soares - bombardino Pedro Augusto – clarinete, contramestre Tuti – pratos, violão, bandolim Corpo de Fuzileiros Navais Gonzaga da Hora - bombardão Corpo de Marinheiros Malaquias - bombardão Corpo Militar de Polícia da Corte 219 Godinho – flautim, mestre Alferes Major Rocha – oficleide- mestre Corpo Policial da Província do Rio de Janeiro Damasio Porcino de Oliveira Gil João Elias da Cunha Juca Marques Juca Rezende Fábrica de Tecidos Corcovado (Banda) Edgar Bulhões de Freitas - flauta João Elias da Cunha - regente Fábrica de Tecidos Vila Isabel (Soc. Dansante) Macário - requinta Flor de Santana – Banda (Niterói) Juca Marques – oficleide, bombardino, regente Fortaleza de São João Luiz de Sousa – piston, regente (menor) Soares Barbosa – piston mestre Independência Musical – Club União (Estácio) João Maia – clarinete, regente Juca - piston Porfírio Levefer - bombardão Santa Cecília – Sociedade Musical (Tijuca) Juca Afonso – requinta, poeta Tijuca – Sociedade Musical da Juca - piston Gilberto - bombardino Mondego – bombardino, regente Salustiano – 1º trombone 10ª infantaria Paula Freire – contramestre, clarinete 23ª infantaria Luiz de Souza – piston, regente Há que se discernir as bandas militares, onde o efetivo fazia parte das corporações (polícia, marinha, bombeiros, etc.) e portanto era certamente assalariado, das outras instituições que funcionavam como escolas de formação musical e entretenimento, como era o caso das Sociedades Musicais. No livro há citação a duas sociedades, ambas na Tijuca: a Sociedade Musical da Tijuca -, regida por Mondego, que, como citado acima, tinha “carta de professor” pelo Instituto de Música e era 220 carteiro aposentado – e a Sociedade Musical Santa Cecília, que funcionava na rua Conde de Bonfim em frente à igreja do mesmo nome (180). De modo geral percebe-se que estas sociedades tinham a função de “cursos livres” de música: funcionavam como instrução musical primária para leigos que depois poderiam mesmo se especializar. Assim, o flautista Cupertino havia formado uma sociedade “de aprendizagem de músicos onde tem se aproveitado grande quantidade de moços e moças que já se acham diplomados pelo Instituto Nacional de Música” ( 22). Neste caso é curioso notar como a referência ao “Instituto de Música” funciona, no texto de Gonçalves Pinto, como uma indicação de qualidade, ainda que indicasse um universo vetado a instrumentistas de violão e cavaquinho, por exemplo. Continuemos agora com o segundo ponto listado anteriormente: o dos professores “informais”, notadamente de violão e cavaquinho, dos quais temos poucas informações, seja a respeito de suas biografias, seja a respeito de seus processos de ensino musical. Comecemos com o cavaquinho, instrumento tão popular no ambiente do choro e do samba da época -- como nos dá depoimento o Vagalume, como veremos adiante — quanto pouco estudado: temos pouquíssimos registros documentais sobre a origem deste instrumento no Brasil. Vimos anteriormente como Pinto definia a importância do cavaquinho no choro: “todos os chorões sabem que este instrumento é de uma necessidade de grande valor” (50). Para Vagalume, em seu livro Na roda de samba, o cavaquinho fazia parte dos instrumentos tradicionais do samba: O samba, o tradicional samba, deverá ser executado com todos os seus instrumentos proprios : a flauta, o violão, o réco-réco, o cavaquinho, o ganzá, o pandeiro, a cuica ou melhor o omelê e o chocalho. (Guimarães, 1978: 157) Os dois maiores representantes do cavaquinho da época, citados por Pinto Catulo e Vagalume foram Galdino Barreto e seu discípulo Mário Álvares da Conceição (este último é citado também por Orestes Barbosa em seu livro Samba). Temos 221 infelizmente poucas informações biográficas sobre ambos. Gonçalves Pinto descreve Galdino da seguinte forma: Mestre dos mestres, que se celebrizou com o seu aprendiz Mario, cujo discípulo venceu naquella época todas difficuldades do instrumento transformando a sua tonalidade de quatro cordas para cinco, enquanto isso Galdino, continuava com o seu cavaquinho de quatro cordas tirando infinidades de tons e combinações de acordes que me é aqui difficil de descrever, tal é a magia, e a convicção das notas vibradas pela palheta encantada de Galdino, este grande artista, inigualável no meio dos chorões, aonde elle foi o único educador deste instrumento que se chama cavaquinho. (54) Já Vagalume cita algumas vezes Galdino em seu livro, sempre como uma espécie de representante da “velha guarda”, um dos poucos guardiões do samba “autêntico”: Não seja o samba transformado em modinha, em lundú ou tango. Que formem na vanguarda dos seus defensores Canninha, Pechinguinha, Donga, João da Bahiana, Dudú Aymoré, «Didi», Zuza, Galdino e Prazeres, que são os únicos, que hoje podem defendê-lo com ardor. (Guimarães, 1978: 158) A menção a Galdino como “um dos únicos” que poderiam defender o samba “autêntico”, na visão de Vagalume, é uma mostra de como as práticas musicais ligadas ao choro e ao samba já estavam ligadas desde as primeiras décadas do século. Já Catulo menciona Galdino e Mário Álvares como “dois terríveis que se podem bater, conquanto seja verdade que o Galdino é mais antigo, e por isso, mais conhecedor desse instrumento [o cavaquinho], que só pode ser ouvido quando tocado por um dos dois” (Catulo, 1908). Temos assim a visão de pelo menos três referências da época — Pinto, Catulo e Vagalume — atestando que Galdino e seu discípulo Mário Álvares formaram uma espécie de “escola de cavaquinho” que seria passada para outras gerações. Embora não tenhamos como saber maiores detalhes sobre o método de ensino de Galdino, temos um forte indício de que sua “escola” teve reflexos até a segunda metade do século XX, influenciando um dos mais importantes cavaquinhistas do período que vai de 1930 até 1970 aproximadamente: Waldiro Tramontano, conhecido como Canhoto do 222 Cavaquinho. Canhoto iniciou sua carreira no final da década de 1920, como instrumentista do regional de Benedito Lacerda, que logo se tornaria um dos mais importantes regionais da época das rádios, responsável pelo acompanhamento de cantores representativos da época como Orlando Silva, Silvio Caldas, Francisco Alves, entre outros. Além de Canhoto, participavam do grupo os violonistas Meira (Jayme Florence) — um dos mais representativos violonistas de 6 cordas da época, professor de Baden Powell e Raphael Rabello, entre outros — Dino (Horondino José da Silva) — considerado o principal expoente brasileiro no violão de 7 cordas —, além de Gilson de Freitas no pandeiro. Com a saída de Benedito Lacerta em 1950, o grupo passa a se chamar “Regional do Canhoto”, mantendo-se em atividade até a década de 1970 em centenas de gravações de samba e de choro, com destaque para as realizadas nos dois primeiros discos lançados por Cartola pela gravadora Marcus Pereira em 1974 e 1976. A ligação entre Galdino e Canhoto é encontrada em um documento preservado em uma espécie de álbum que este último mantinha (e que hoje se encontra em poder de sua família3) com recortes de jornal da época com “matérias” sobre o Regional do Canhoto. Na primeira página do álbum há uma espécie de biografia de Galdino Barreto (Anexo I), elaborada por um certo Heitor Ribeiro, sobre quem não temos maiores informações. Através deste documento tomamos conhecimento de alguns dados mais palpáveis sobre a vida de Galdino: além de trazer uma foto do cavaquinhista — provavelmente o único registro iconográfico que temos dele — o documento nos informa que Galdino teria sido “investigador da Ordem Política e Social” e teria falecido em 1935 “com mais de setenta anos” — significativamente encontramos no livro de Pinto um pequeno verbete intitulado “Morreu Galdino Barreto” —. A informação mais importante do documento, entretanto, é a de que “dos discípulos de 3 No ano de 2007, ao coordenar a edição do Festival Nacional de Choro da Escola Portátil de Música dedicada ao centenário de Canhoto, travei contato com sua família, que generosamente me autorizou a copiar o álbum. 223 Galdino, o único sobrevivente é Waldir [sic] Tramontano, que com brilhantismo honra o mestre”. Trata-se, portanto, de um documento que comprova a ligação de ensino e aprendizagem entre os dois maiores representantes do cavaquinho da primeira e da segunda metades do século XX. Se Galdino morreu em 1935 “com mais de setenta anos”, como afirma o documento, sua data de nascimento gira em torno da década de 1860, o que o coloca como contemporâneo dos mais antigos nomes do choro como Callado, Viriato, entre outros. O fato de Canhoto ter colocado o documento com a pequena biografia de Galdino na página inicial de seu álbum de recorte também demonstra reconhecimento pelo mestre do passado. Passemos agora ao violão. Ao contrário do cavaquinho, instrumento que parece ter se desenvolvido no século XIX e primeiras décadas do século XX quase que exclusivamente através da tradição oral (é possível que tal fato se explique pela própria função do instrumento, pouco apto para o solo e utilizado basicamente com a função de acompanhamento rítmico-harmônico, função habitualmente não escrita), já havia uma “escola” européia de ensino e aprendizagem do violão, documentada em métodos como o de Carcassi, que como vimos já era editado no Rio de Janeiro desde 1846. Por outro lado, de maneira semelhante ao cavaquinho, sabemos também que a partir da segunda metade do século XIX o violão está ligado às práticas populares, a ponto de podermos falar a partir da década de 1870 em uma escola de violão de choro – basicamente uma escola de acompanhamento dos gêneros que compunha este universo: polcas, valsas, schottischs, modinhas, etc. Vimos no capítulo três como Catulo diferenciava o “violão do choro” – ou seja o violão de acompanhamento – de outras escolas de violão, formadas por instrumentistas que privilegiavam o solo. De que forma estas escolas acabam se misturando é uma das questões ainda por serem respondidas. 224 4.3) O Baú do “Animal”: os acervos manuscritos de choro Um dos mais importantes aspectos da música do choro de fins do século XIX e primeiras décadas do século XX revelado por Alexandre Gonçalves Pinto em seu relato diz respeito à questão da forma de transmissão do repertório dos músicos de choro: como já afirmado anteriormente, é notável no livro a quantidade de referências aos álbuns manuscritos de partituras e arquivos musicais particulares dos chorões. Pinto faz questão de enumerar vários títulos de que dispõe no seu próprio acervo e outras importantes coleções de música de compositores da época. Alguns exemplos dos muitos que se observam no livro: “[sobre Alfredo Vianna pai] ...deixou ele um grande arquivo de músicas antigas e modernas que devem se encontrar em poder de seu filho Pixinguinha”, “[sobre o flautista Oscar Cabral]... tinha um arquivo que muito poucos possuem não só em número como em beleza”, “ [sobre o flautista João Sampaio] ... tinha diversos cadernos de choro pelos quais tinha grande zelo. Ninguém arrancava uma música qualquer para fora, só deixava copiar em sua casa sobre suas vistas.” Se a indústria de comércio de partituras dos séculos XIX e inícios do XX já foi alvo de estudos como os de Pequeno (2000) e Leme (2006), as coleções de manuscritos de choro ainda permanecem praticamente inexploradas de estudos acadêmicos. Ainda que merecessem citações esporádicas de Ary Vasconcelos, reconhecidamente um dos precursores do estudo do choro de finais do século XIX, estas coleções só seriam pela primeira vez estudadas sob um ponto de vista musicológico a partir do trabalho dos violonistas Mauricio Carrilho e Anna Paes, que durante os anos de 1998 a 1999 realizaram a pesquisa intitulada Inventário do Repertório do Choro (1870 a 1920)4 reunindo e catalogando cerca de 5000 partituras manuscritas dispersas em vários 4 Esta pesquisa foi realizada com o apoio da Fundação RioArte. Da seleção deste vasto material foram editados pela Acari Records em parceria com a EdUERJ cinco cadernos de partituras intitulados “Princípios do Choro” no ano de 2003. 225 arquivos do Rio de Janeiro, como a coleção Mozart de Araújo, a Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, bem como diversas coleções particulares. Apesar da importância desta pesquisa, outros acervos permanecem ainda hoje inexplorados, como é o caso do acervo Jacob do Bandolim e do acervo Almirante, ambos pertencentes ao Museu da Imagem e do Som. Nos tópicos seguintes procuro fazer um trabalho de mapeamento e análise destes acervos, sempre tomando como base o “roteiro” que nos é dado por Alexandre Pinto e seu livro O Choro. Ainda que não tenha a pretensão de realizar uma análise exaustiva, algo que fugiria ao âmbito desta tese, creio que poderei aprofundar algumas das questões colocadas acima, a respeito da transmissão do conhecimento do repertório, da relação entre o oral, o escrito, o impresso e o gravado, e da relação entre indústria de partituras e estas coleções manuscritas. 4.3.1) O Acervo Jacob do Bandolim Dos acervos citados acima, me ocuparei mais detidamente da coleção de partituras do Arquivo Jacob do Bandolim, pelo fato, já mencionado, de ser esta ao mesmo tempo uma das mais ricas e menos exploradas coleções de partituras de choro do Brasil. Abro aqui um pequeno parêntesis para explicar um pouco sobre o processo de pesquisa realizado e sobre o meu envolvimento pessoal com este acervo específico. Como bandolinista e pesquisador de choro sempre tive grande interesse pela obra e pelo legado de Jacob Pick Bittencourt (1919-1969): além de notável bandolinista e compositor, Jacob teve um papel pioneiro na área de pesquisa em música popular cuja importância ainda está por ser estudada. Foi talvez o primeiro compositor de choro que procurou coletar e organizar sistematicamente acervos musicais antigos (muitas vezes “herdados” de antigos chorões da velha-guarda, como se explicará a seguir), 226 preocupando-se em aprender técnicas de catalogação (estudando os modelos utilizados na Biblioteca do Vaticano e na Biblioteca do Congresso dos E.U.A), na modernização do suporte em papel para outros suportes (era fotógrafo amador e desenvolveu um método próprio de microfilmagem de partituras que aplicou em seu próprio acervo), além de ter feito inúmeras “pesquisas de campo” utilizando um gravador de rolo em que registrou elementos importantes do choro e da música brasileira em geral. (Há fitas gravadas com exemplos de “centros de cavaquinho5”, com exemplos de “choro nordestino” e “pontos de macumba”, por exemplo). Após sua morte em 1969, seu acervo foi vendido a uma empresa particular e posteriormente doado ao Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro, onde permanece até hoje (Paz, 1997). O resultado do trabalho a ser mostrado neste tópico é fruto de uma verdadeira “pesquisa de campo” realizada no Museu da Imagem e do Som no ano de 2009: durante alguns meses de trabalho me embrenhei em um “mar” de documentos e partituras, trabalho que resultou em um processo de digitalização e catalogação das cerca de 5.900 partituras manuscritas da coleção deste bandolinista, bem como de outros documentos sobre o choro e a música brasileira em geral6. Comecemos falando sobre a estrutura do acervo de partituras: Jacob criou categorias sui generis para dividir o acervo, apresentada na tabela abaixo que explicita também a quantidade de partituras e sua organização em pastas no acervo: 5 “Centro” é o termo usado entre os músicos de choro para designar as fórmulas de acompanhamento rítmico-harmônico feitas pelo cavaquinho. 6 Esta pesquisa foi realizada com o apoio do Instituto Jacob do Bandolim, do qual faço parte, e com a colaboração de dois estagiários, Maria Souto de Carvalho e Iuri Lana Bittar. No ano de 2002 um grupo de músicos e pesquisadores, entre os quais me incluo, resolveu se unir em um instituto que, em parceria com o referido museu, preservasse e protegesse este acervo, além de promover atividades culturais, publicações etc, em torno da obra de Jacob. O Instituto Jacob do Bandolim, vem desde então realizando diversas atividades: lançamento de publicações de partituras, shows, etc. Na área de acervo o IJB foi o responsável pela recuperação das 122 fitas de rolo de Jacob do Bandolim (citadas anteriormente) projeto realizado sob a minha coordenação e do pesquisador e cavaquinista Sérgio Prata. Entre os membros do IJB encontram-se músicos e pesquisadores como Hermínio Bello de Carvalho, Luiz Otávio Braga, Mauricio Carrilho, Joel Nascimento, Déo Rian, entre outros. 227 Tabela 8: Organização das Partituras do Acervo Jacob do Bandolim a) Partituras Xerox – 201 músicas divididas em 5 pastas b) Partituras Manuscritas (PM) – 2250 músicas divididas em 13 pastas c) Partituras Manuscritas por Jacob (PMJ)- 618, arrumadas em 5 pastas d) Partituras Manuscritas na Horizontal (PMH) – 1495, arrumadas em 10 pastas e) Partituras Manuscritas na Vertical (PMV) – 1077, arrumadas em 7 pastas f) Partituras Impressas – 508, arrumadas em 13 pastas g) Pastas de Cadernos de Partitura (cadernos de manuscritos de antigos chorões): 34 cadernos h) Pastas “Ernesto Nazareth” – 165 partituras impressas para piano deste autor divididas em 4 pastas. i) PMO – Partituras Manuscritas Orquestrais – 62 arranjos de Radamés, Pixinguinha entre outros, normalmente arranjos utilizados nas gravações comerciais de Jacob. Total do acervo: 5.976 músicas Sobre a série de partituras manuscritas, não é possível entender muito bem o critério estabelecido pelo compositor: as “Manuscritas na Horizontal” se referem a partituras muitas vezes oriundas de cadernos “deitados” — normalmente de 15cm de altura por 28 cm de largura, em média —; as “Manuscritas na vertical” se referem a partituras com dimensão de 30 cm por 20 cm. Não é possível entender muito bem o porquê de haver uma série de “Partituras Manuscritas” somente, já que estas partituras mesclam papéis de música “na vertical” e “na horizontal”. Talvez tenha sido um critério posteriormente abandonado pelo compositor. Em todo o caso, o que importa observar é que todas estas partituras estão ordenadas aparentemente sem qualquer critério cronológico ou por autor: o mais provável é que Jacob as classificava conforme as ia recolhendo ou coletando de outros acervos. A série PMJ se refere às partituras manuscritas por ele. Focaremos nossa análise nas séries PMH e PMV, que se constituem como reuniões de coleções distintas de diversos copistas. O mais importante deles é sem dúvida o trombonista Cândido Pereira da Silva, o Candinho, responsável pelo maior número de partituras manuscritas da coleção. Por sua importância capital na história do choro, creio que podemos fazer uma pequena digressão bibliográfica para melhor 228 contextualizar seu papel como instrumentista e compositor. Nascido em 1879, no Rio de Janeiro, Cândido Pereira da Silva foi aluno do célebre Colégio dos Meninos Desvalidos, em Vila Isabel, instituição que abrigou e formou diversos músicos como Albertino Pimentel, Romeu Silva, entre outros. Na juventude, integrou a banda de música da Fábrica de Tecidos Confiança, também em Vila Isabel, onde fez contatos com outros músicos de choro como Pedro Galdino (autor da célebre polca Flausina), Eurico Batista, entre outros. Foi um dos primeiros músicos de choro a gravar discos comerciais nas décadas de 1910 e 1920, em diversas formações instrumentais, sendo a mais importante delas o Grupo Carioca, com o qual gravou músicas que depois se tornariam clássicos do gênero, como “Saudações” de Otávio Dias Moreno e “O Nó” de sua própria autoria. A partir de 1933, ingressou como trombonista na Orquestra do Teatro Municipal do Rio de Janeiro, onde permaneceu até 1951, quando se aposentou. (EMB: 145). Além de suas atividades como instrumentista foi um prolífico compositor e copista: não é exagero dizer que boa parte do repertório do choro de final do século XIX e das primeiras décadas do século XX chegou aos dias atuais graças à sua escrita. As centenas de partituras manuscritas que deixou são encontradas em praticamente todas as coleções de choro que nos chegaram da primeira metade do século XX: a coleção Jacob do Bandolim, a coleção Almirante, a coleção Jupyaçara Xavier (que será alvo de análise em tópico posterior), o arquivo Mozart de Araújo e a coleção Pixinguinha7 contém manuscritos deste trombonista, que abrangem o impressionante período de 1907 (data dos primeiros manuscritos) até a década de 1950. Aliás, podemos afirmar que graças à ação combinada de Alexandre Gonçalves Pinto e às partituras escritas por Candinho é que podemos conhecer pelo menos parte da música e da vida de diversos compositores populares do Rio de Janeiro da época: autores como Pedro Galdino, Galdino Barreto, 7 A coleção Mozart de Araújo encontra-se hoje depositada no Centro Cultural Banco do Brasil do Rio de Janeiro; a coleção Pixinguinha encontra-se no Instituto Moreira Salles também do Rio de Janeiro. Pesquisas exploratórias nestes acervos foram realizadas por mim ao longo dos anos de 2008 e 2009. 229 Mário Álvares, Juca Russo, Videira, entre muitos outros, só se salvaram do esquecimento total em boa parte graças ao trabalho de Pinto e Candinho. As centenas de partituras manuscritas por Candinho encontradas no acervo Jacob do Bandolim podem ser classificadas em três tipos: a) melodias compostas pelo próprio Candinho, normalmente para flauta; b) melodias de autores diversos, também escritas na extensão característica da flauta (oitava alta); c) contracantos escritos em região grave (clave de fá) para as melodias acima e d) partituras com cifras para violões (bem mais raras). Como compositor, Candinho deixou uma obra extensa, formada por mais de uma centena de músicas, das quais a maioria permanece inédita até os dias de hoje. Afora alguns clássicos como “O Nó” e “Dança de Urso” (ver anexo II, como exemplo de composição manuscrita de Candinho), a maior parte de sua obra permanece desconhecida. E se boa parte de sua obra foi preservada, sem dúvida podemos creditar tal fato a Jacob do Bandolim, amigo pessoal do trombonista: há farta documentação que comprova a amizade entre os dois (fotos, cartas, partituras com dedicatórias, etc). Jacob coletou e catalogou em seu acervo não apenas uma vasta quantidade de partituras de Candinho, como também vários documentos pessoais deste (diplomas, cadernos com anotações, etc), além de ter elaborado uma lista das obras completas do trombonista (ver anexo III). A relação entre Jacob e Candinho representa um importante elo de ligação entre os compositores das primeiras gerações do choro com os representantes do gênero da segunda metade do século XX: o trombonista conviveu, ou pelo menos coletou músicas de boa parte dos músicos populares da belle époque e este material acabou sendo herdado — e, ainda que em pequena medida, gravado — por um dos maiores compositores e intérpretes do choro a partir da década de 1940. Sobre as melodias de autores diversos escritas por Candinho o mais provável é que ele escrevesse em seus álbuns de partituras as músicas que mais lhe aprazia tocar: 230 além disso podemos supor que diversos compositores da época procuravam o trombonista para que este escrevesse suas músicas. É significativo um bilhete encontrado no verso de uma partitura do acervo: a música “O tempero da comida é o sal”, de Manoel Amorim Lima, vem acompanhada do seguinte bilhete: “Amigo Candinho: corrija a seu modo e instrumentize [sic] para compreendermos alguma coisa, pois eu quero escrever, porém não acho jeito, e por resto pesso [sic] desculpas”. Significativamente, encontramos no acervo uma parte manuscrita de Candinho com um contracanto para a melodia de Amorim Lima. O pedido para que o trombonista corrijisse e “instrumentizasse” a música — provavelmente um pedido de composição de um contraponto — se devia sem dúvida ao fato de que Candinho possuía grande experiência musical proveniente de sua experiência como mestre de banda — o que incluía teoria musical e composição. Como dissemos anteriormente, o hábito de escrever contracantos graves para as melodias do choro era freqüente, e entre as centenas de partituras de Candinho encontramos um número significativo destes contrapontos, para músicas dos mais variados autores (ver anexo IV para exemplo de contraponto grave escrito por Candinho). Também é interessante assinalar a presença de algumas poucas partituras com acompanhamento para o violão: das quase 3000 partituras das séries PMH e PMV da coleção Jacob do Bandolim, só encontramos 3 partituras escritas exclusivamente para o acompanhamento de violão: as PMH números 562, 900 e 924, esta última com a harmonia e as convenções rítmicas de uma música de Pixinguinha intitulada “Quebra Cabeças” (ver anexo V). A cifragem utilizada por Candinho ainda é a cifragem “antiga”, que perdurará até a década de 1940 pelo menos: ao invés da atual cifragem 231 alfanumérica, os instrumentistas utilizavam uma cifragem baseada sempre nas relações tonais e preparações8. Dentre outros copistas presentes no acervo Jacob do Bandolim podemos citar Quintiliano Pinto, Arnaldo Corrêa, Patrocínio Gomes e José Agostinho Macedo. Quintiliano Pinto é ninguém menos do que o irmão de Alexandre Gonçalves Pinto, de quem falaremos mais detalhadamente a seguir. Seus manuscritos situam-se entre 1914 e 1918 e refletem em sua maioria a música dos “antigos flautas”, como se verá: Callado, Viriato, Silveira, etc (ver anexo VI para exemplo de manuscrito de Quintiliano). Com uma caligrafia bastante miúda e nem sempre muito legível, Quintiliano deixou uma boa quantidade de músicas dos autores citados acima, todas escritas para a flauta (Quintiliano era também flautista como veremos a seguir). Interessante notar já algumas composições de Pixinguinha entre os manuscritos de Quintiliano, como é o caso do choro “Baú do Raul”, manuscrito datado de 1918 (ver anexo VII). Arnaldo Corrêa é outro copista também muito presente não apenas na coleção Jacob do Bandolim como em outras coleções correlatas, como o acervo de Pixinguinha9. A maioria das cópias de Arnaldo Corrêa data de 1913 e 1914: não nos foi possível, até a presente data encontrar qualquer indicação biográfica sobre ele (ver anexo VIII para exemplo de música manuscrita por Arnaldo Corrêa). Pela escrita das partituras pressupõe-se não se tratar de um flautista, e sim de um clarinetista ou de um instrumento com extensão similar. Certamente era um músico conhecido e admirado pelos instrumentistas da época: entre as músicas de Candinho encontramos uma intitulada “Arnaldo Corrêa” (PMH 586), com a seguinte inscrição do trombonista: 8 Assim, a 1ª do tom significa a própria tonalidade, a 2ª do tom significa a dominante, etc. Este dado foi verificado por mim em pesquisa exploratória realizada no Instituto Moreira Salles do Rio de Janeiro, onde está depositado o acervo de Pixinguinha. Como este acervo ainda está por ser catalogado, não foi possível incluí-lo em detalhes no presente estudo. 9 232 “Salve! 26 de julho, aniversário do Arnaldo”. Sobre os outros copistas, como Patrocínio Gomes e José Macedo temos ainda menos informações. 4.3.2) Os cadernos manuscritos da Coleção Jacob do Bandolim Passemos agora a uma análise detalhada do talvez mais importante item da coleção de partituras Jacob do Bandolim: os 34 cadernos manuscritos. Abrangendo quase um século de duração — o primeiro data de 1887 e o último de 1966; alguns contêm mais de uma centena de partituras —, estes cadernos comprovam a importância do registro escrito e da rede de troca entre estes músicos: não nos foi possível até o presente momento averiguar de maneira precisa de que forma Jacob os teria herdado — é bem possível que através do trombonista Candinho Silva. Os cadernos estão identificados e datados da seguinte forma: Tabela 9 – Coleção de Cadernos Manuscritos Acervo Jacob do Bandolim Caderno 1 – Nestor S. Caiuby – 1887 Caderno 2 – Quintiliano Pinto – 1911 Caderno 3 – Quintiliano Pinto –1912 (Obs: irmão de Alexandre Gonçalves Pinto) Caderno 4 – J. Marinho – s/ data Caderno 5 – J. S. Cauby – s/ data Caderno 6 – Junior S. Cauby – 1915 Caderno 7 – Junior S. Cauby – 1915 Caderno 8 – Quintiliano Pinto – 1917/1919 Caderno 9 – Quintiliano Pinto – 1917/1922 Caderno 10 – J.S. Cauby – 1932/35 Caderno 11 – J.S. Cauby – 1935 Caderno 12 – Manoel Pedro do Nascimento – 1939/52 Caderno 13 – Patrocínio Gomes – 1941/1942 Caderno 14 – Patrocínio Gomes – 1941/42 Caderno 15 – Patrocínio Gomes – 1942 Caderno 16 – Arlindo Nascimento – 1943/48 Caderno 17 – “Coletânea de Música – Propriedade de Patrocínio Gomes” Caderno 18 – Albertino Aguiar (Bisoga) – 1944 233 Caderno 19 – Gustavo Ribeiro – 1946 Caderno 20 – Arlindo Nascimento – 1947 Caderno 21 – Arlindo Nascimento – 1947/48 Caderno 22 – Arlindo Nascimento – 1948 Caderno 23 – Patrocínio Gomes – 1948 Caderno 24 – Arlindo Nascimento – 1948/1959 Caderno 25 – Patrocínio Gomes – 1949 Caderno 26 – Arlindo Nascimento –1950/58 Caderno 27 – Arlindo Nascimento – 1951/1953 Caderno 28 – Arlindo Nascimento/ Manuel Pedro do Nascimento – 1959 Caderno 29 – Arlindo Nascimento – 1960 Caderno 30 – Arlindo Nascimento – 1960 Caderno 31 – Arlindo Nascimento – 1962 Caderno 32 – Arlindo Nascimento – 1963/66 Caderno 33 – Manoel Pedro do Nascimento – sem data Caderno 34 – Músicas religiosas – sem data No total os 34 cadernos contém 1315 músicas dos mais variados autores. A catalogação deste material foi feita pela pesquisadora Anna Paes e serviu como base para a análise que se segue. O primeiro caderno, datado de 1887, traz na capa a inscrição “Pertence ao Snr. Nestor Soares Caiuby”, de quem não nos foi possível achar maiores referências, a não ser o fato de que morava na cidade de Itú, São Paulo, indicação contida em várias partituras. Contém 43 músicas no total, sendo que 42 não tem qualquer indicação de autor. Boa parte das músicas são estrangeiras: assim, encontram-se músicas como “La Dosset” — classificada como “quadrilha inglesa” — “Les femmes du feu” — classificada como “Grande Valsa”, “Les chants des inares du pape” e o “Carnaval de Veneza”. Observa-se no caderno uma diversidade de copistas, algo que será comum em outros cadernos da coleção: provavelmente cada caderno pertencia a um núcleo familiar, tendo um proprietário principal, mas que contava com uma série de “colaboradores” em sua escrita. Assim, se boa parte das partituras foi escrita pelo proprietário do caderno, como a “Mazurca” sem indicação de autor, mas com a inscrição “cópia de Nestor S. Caiuby – Itú – 1-12-87” — várias delas trazem a indicação de outros copistas. A “Valsa Amorosa” por exemplo, foi “copiada por 234 Antonio Pinto de Almeida Cesar em 15 de outubro de 1887”. Outra música, intitulada “Banda dos Pausinhos” foi “copiada por Juca T. P. Campos”. Não nos foi possível estabelecer a ligação destes dois copistas com Nestor Caiuby, mas este fato reforça a ideia de que o caderno funcionava como uma espécie de álbum de família, onde parentes e amigos escreviam e copiavam músicas para consumo doméstico. Outro fato interessante a ser notado é a procedência de São Paulo, o que faz supor que o hábito da escrita de álbuns de partituras manuscritas em paralelo ao consumo de partituras impressas era algo que se repetia em outras partes do o país. Ao contrário do que se poderia esperar, não há no caderno nenhuma partitura de autores “clássicos” do choro do Rio de Janeiro, como Callado e Videira. Pela escrita das partituras conclui-se que o seu proprietário não era flautista (a maioria das músicas dos cadernos dos flautistas é escrita em oitava alta, o que não acontece neste caderno) — pela extensão das partituras é razoável supor que se tratasse de um clarinetista. Há ainda um outro caderno pertencente a Nestor Caiuby, datado de 1908. Contém 87 músicas, sendo a maior parte (61) sem indicação de autoria. Neste caderno já é possível encontrar alguns autores do choro carioca, como Albertino Pimentel e Felisberto Marques, além de uma grande quantidade de compositores de São Paulo, como Erotides de Campos e Mauricio Braga; é interessante observar também uma composição intitulada “Schottisch e Polca”, sem indicação de autor. A primeira parte da música é um schottisch, com sua característica marcante de melodia pontuada, e a segunda parte se transforma em uma polca (ver anexo IX). Tal mescla de gêneros em uma mesma música não era algo incomum (veja-se por exemplo o dobrado “Pavilhão Brasileiro” de Anacleto de Medeiros, escrito todo em 6/8 e que na última parte se transforma em uma polca em 2/4), e mostra como de certa forma estes gêneros 235 acabavam se “amalgamando” dentro de uma linguagem instrumental que depois seria substantivada sob a designação “choro”. Os cadernos de números 6, 7 (ambos datados de 1915), 10 (datado de 1932 a 1935) e 11 (de 1935 a 1936) são de Júnior Soares Caiuby, provavelmente algum parente — talvez filho — de Nestor Soares. O primeiro deste caderno traz a indicação “Santos, 22 de dezembro de 1915”. Como característica geral, observa-se mais uma vez um número expressivo de músicas estrangeiras como valsas de Strauss e de outros autores da chamada “música ligeira” européia, como Franz Léhar e outros menos conhecidos. No caderno 10, por exemplo, encontramos uma peça denominada “Lustspiel”, classificada como “Ouverture cômica” de autoria de um certo J. W. Kalliwoda, acompanhada da seguinte inscrição: “copiada da parte de cítara do sr. Jorge Winckler, Rio Claro, 25-3-1933”. A cítara, instrumento hoje pouco usual, foi um instrumento presente no ambiente do choro pelo menos até a década de 1980: Pinto cita em seu livro dois citaristas que tocavam choro, e na segunda metade do século XX o instrumentista Avena de Castro (1919 – 1981), destacou-se como compositor e intérprete de choro. Além de composições estrangeiras, os cadernos de Júnior Cauby apresentam, tais como o de Nestor, grande quantidade de compositores do estado de São Paulo: além do já citado Erothides de Campos, encontramos nomes menos conhecidos como Miguel Camelloto — autor de uma valsa intitulada “Giuseppe Verdi” — e Nicolino Milano. Os nomes já atestam a influência italiana, bastante compreensível em se tratando do interior do estado de São Paulo. De todos os cadernos da coleção, talvez os mais importantes sejam os de números 2, 3, 8 e 9, datados respectivamente de 1907-1911, 1912, 1917-1919 e 19171922, pelo fato de pertencerem ao já citado Quintiliano Pinto, flautista e irmão de 236 Alexandre Gonçalves Pinto, o personagem principal deste trabalho. Quintiliano é descrito da seguinte forma no livro do “Animal”: Quintiliano Pinto, irmão do escriptor, um dos velhos chorões e de nome na roda dos que tocavam ou não. Quando a nossa Mãe morreu, elle apaixonou-se tanto, que nunca tendo escripto qualquer musica, compoz uma valsa, bastante triste, que botou o nome de "Minha Mãe", porém apesar de não compor, tocava todas as musicas dos velhos e novos flautas ou de outro qualquer instrumento. Tocou em muitos bailes, serenatas e festas, e, tinha muito gosto pela musica, especializando-se das antigas do seu tempo. Só deixou a flauta, já bastante idoso, e pela moléstia que aos poucos foi minando o seu organismo, sepultou-se no Cimeterio do Pichincha em Jacarépaguá proveniente de uma paralysia, e que hoje como seu irmão, ainda choro, e lastimo a sua morte, pois sempre tocamos juntos, e muitos nos estimavamos. Paz á sua alma é o que peço a Deus como todos os seus companheiros que com elle dormem o somno da eternidade (29) A menção ao fato de Quintiliano ser conhecido “na roda dos que tocavam ou não” reforça a ideia de que Alexandre abarcava em seu conceito de “chorão” não apenas aqueles que tocavam, mas os que estavam presentes ao ambiente da roda, como vimos no capítulo três. Também o fato de que Quintiliano havia se especializado nas “músicas antigas do seu tempo” é comprovado na análise do repertório de seus cadernos: boa parte deles é composto de músicas de compositores classificados como os “antigos flautas” por Pinto: Callado, Viriato, Videira, Juca Kallut, entre outros. Passemos agora a uma análise mais pormenorizada de cada caderno. O primeiro caderno de Quintiliano abrange o período de 1907 a 1911 e contém 44 músicas, a maioria (13) de Joaquim Callado — sendo que destas 13 músicas, 12 são quadrilhas, o que comprova a popularidade deste gênero no início do século. Boa parte das partituras traz a indicação: “Copiada por Quintiliano Pinto em” seguido da data, que varia dentro do período já citado de 1907 a 1911. Esta inscrição nos permite levantar uma questão, que aliás é pertinente a todo o material manuscrito aqui analisado: as “cópias” de Quintiliano seriam resultado de um ato mecânico de cópia de outra fonte, ou o flautista aprendia as músicas através da tradição oral (“de ouvido”) e depois as transcrevia? E se são resultado da cópia direta de outras partituras, como estabelecer um 237 “roteiro” das fontes primárias das quais estas cópias são resultado? São perguntas difíceis de serem respondidas de forma absoluta: por um lado, sabemos pelo relato de Pinto que o ato de copiar álbuns de partituras era relativamente comum na época. Lembremos a sua descrição, já citada aqui, do flautista João Sampaio que “... tinha diversos cadernos de choro pelos quais tinha grande zelo. Ninguém arrancava uma música qualquer para fora, só deixava copiar em sua casa sobre suas vistas.” Depreende-se do trecho citado que os processos de empréstimos e cópias das partituras manuscritas eram frequentes, ainda que alguns, como João Sampaio, fossem tão zelosos com o seu material que só permitiam cópias sob “suas vistas”. Por outro lado, é lícito supormos que muitas destas partituras fossem escritas a partir da percepção da tradição oral, ou seja, após um aprendizado “de ouvido”. É o caso de partituras que aparecem frequentemente em diferentes álbuns e que se tornaram muito populares em suas épocas, muitas delas recebendo letras de poetas como Catulo da Paixão Cearense, o que aumentava ainda mais a sua aceitação popular. Deste repertório podemos citar diversos exemplos: os schottischs “Yara” e “Implorando” de Anacleto de Medeiros, o tango “Sertaneja” de Mário Álvares, as valsas “Sorrir Dormindo” e “Camponesa” de Juca Kallut, a polca “Atraente” e o tango “Gaúcho” de Chiquinha Gonzaga, entre muitas outras — boa parte deste repertório, inclusive, chegou até os nossos dias através da tradição oral. Uma análise das diversas cópias destas músicas encontradas nos acervos manuscritos nos mostra a existência de variações entre elas, algumas até bastante significativas, a ponto de podermos falar de diferentes “versões” de uma mesma música, o que corrobora a teoria de que elas eram muitas vezes escritas a partir do aprendizado oral. Retomaremos esta questão nas conclusões deste trabalho: voltemos agora à análise dos cadernos. 238 O caderno de número 3, datado de 1912, contém 22 músicas de variados autores, tendo a grande maioria a inscrição “Copiada por Quintiliano G. Pinto em 1912”. É interessante notar que uma das músicas do caderno, intitulada “Feijoada das Pragas”, de autoria de Juca Russo, contém também a inscrição: “Propriedade exclusivamente do autor”. Seria uma forma de se assegurar a autoria da música, em uma época em que a questão dos direitos autorais ainda era incipiente? Note-se que é a primeira vez em que uma inscrição como esta aparece em um caderno. Juca Russo é descrito por Pinto como “um príncipe no violão e no cavaquinho” (195), filho de Juca Valle, violonista acompanhador dos “velhos flautas” Callado e Viriato. Finalmente, os cadernos de números 8 e 9, (datados de 1917-1919 e 19171922) contêm 20 e 65 músicas respectivamente. No caderno 8 encontramos pela primeira vez duas músicas de Pixinguinha, intituladas “Luiz Tocando” e “Salutaris”. Quintiliano nomeia o autor como “Alfredo da Rocha Vianna Filho” e não pelo apelido que tornaria célebre o autor de “Carinhoso”. Neste caderno encontramos ainda músicas que posteriormente seriam consideradas “clássicas” do gênero, que se tornariam parte da tradição oral do choro até o final do século XX e que seriam gravadas por diversos intérpretes neste período. É o caso do choro “Bonicrates de Muletas” de autoria de Biliano de Oliveira — gravada por Jacob do Bandolim e até hoje muito popular em rodas. No caderno 9, das 65 músicas, 34 são de autoria de Candinho Silva, o que demonstra mais uma vez a popularidade das composições deste trombonista. Voltemos agora à análise dos demais cadernos da coleção. Os cadernos de números 13, 14, 15, 17 e 25 pertenciam ao bandolinista Patrocínio Gomes, autor de pelo menos uma composição que ficou célebre entre os músicos de choro a partir da década de 1940: o choro “Pardal Embriagado”. Os cadernos são datados respectivamente de 1941, 1940-42, 1942, 1943-1956 e 1949. O primeiro caderno de Gomes, datado de 239 1941, traz na sua primeira página a inscrição: “Caderno de Músicas – Pertence a Patrocínio Gomes. Rio 1 de julho de 1941 – Travessa D. Rosa no 40. B. Pinheiros”. Contém 30 músicas, dos mais diversos autores de choro, todas elas copiadas por seu proprietário, com exceção da valsa “Sonhando” do flautista Dante Santoro, copiada por um “R. Macedo”. Interessante notar a presença de um tango argentino intitulado “Mano a Mano” de Carlos Gardel, entre a série de choros. Esta é aliás uma questão curiosa que estará presente em outros cadernos de Gomes: a mistura de autores “clássicos” do choro com cópias de músicas de sucesso comercial da época, muitas delas estrangeiras. Assim, se o caderno 17, datado de 1943-1956 — talvez o maior caderno de todos em quantidade de músicas: 128 — contém diversos autores de referência como Candinho (autor de nada menos do que 56 das composições deste caderno), Pixinguinha e outros, o caderno 19, datado de 1949, contém uma grande quantidade de partituras de outros gêneros, notadamente de rumbas e boleros, gêneros então em voga na época. O mesmo fato pode ser observado nos cadernos de Manuel Pedro Nascimento, clarinetista e seu filho Arlindo Nascimento, bandolinista. Ambos eram músicos freqüentadores do “Retiro da Velha Guarda”, conforme será visto no capítulo cinco. Somados, os cadernos pertencentes a dupla representam a maioria da coleção, com 8 volumes. Como característica geral, observa-se que estes cadernos contêm, além de alguns choros clássicos de Pixinguinha, Chiquinha Gonzaga, etc, composições de choro das décadas em que o caderno foi manuscrito — ou seja, músicas contemporâneas da época. Assim, por exemplo, o caderno de número 16, de Manuel Pedro Nascimento, contém 42 músicas, sendo que a quase totalidade é de compositores das décadas de 1940 e 1950 como Jorge Raposo, José de Freitas, Arlindo Nascimento, entre outros. E, como os cadernos de Patrocínio Gomes, há uma grande influência da música comercial da época: assim, o caderno 16, de Arlindo Nascimento tem 46 músicas, quase todas 240 transcrições de sambas, canções, foxes, frevos e outras músicas divulgadas pelas rádios e pelo disco da época. Tabela 10: Gêneros Musicais mais representativos nos Cadernos Manuscritos do Acervo Jacob do Bandolim: por décadas Datas/Gênero Blues Bolero Choro Fox Frevo Gavota Habanera Marcha Maxixe Mazurca Polca Quadrilha Ragtime Rancheira Samba Schottisch Tango Valsa Sec. XIX até 1930 a 1960 década de 1930 2 11 445 30 13 4 3 4 2 27 211 18 3 1 58 19 111 18 1 2 21 7 21 6 7 206 Total 2 445 5 13 4 3 22 3 29 232 18 3 7 22 64 26 317 Uma análise geral das designações de gênero usadas pelos próprios copistas nos cadernos do período aponta para algumas conclusões interessantes. Como vemos na tabela acima, algumas designações de gêneros são encontradas somente no período de fins do século XIX até o início da década de 1930: a quadrilha, por exemplo, cai em total ostracismo a partir desta década. Outros gêneros muito populares no início do século, como a polca e o schottisch, apesar de não serem totalmente esquecidos no período posterior, têm sua representatividade bastante reduzida. O termo “choro” só aparece a partir da década de 1930, o que confirma a ideia de que a expressão era usada nas primeiras décadas do século XX para designar o grupo musical ou a reunião de 241 músicos em determinado lugar para a prática da “roda”. Chama a atenção também o fato de haver pouquíssimas músicas designadas como “maxixe”, em ambos os períodos, o que talvez confirme o fato de que esta designação estava muito mais ligada à dança do que à música propriamente. 4.3.4) Os cadernos de Jupyaçara Xavier Uma das mais importantes fontes de pesquisa da atualidade sobre o acervo de choro do século XIX e início do XX é a coleção do flautista João Jupyaçara Xavier, que faz parte do acervo Almirante também atualmente no Museu da Imagem e do Som. Temos poucas informações biográficas sobre este flautista, sendo que nossa maior referência é mais uma vez o relato de Gonçalves Pinto, que nos dá de Xavier o seguinte retrato: Flauta de outros, e deste tempo para orgulho meu e de seus amigos. Ainda vive, apesar dos seus janeiros ainda não deixa de ir ás festas, chôros e reuniões de amigos com a sua linda flauta toda de prata, fazenda as alegrias dos lares. Jupiaçara conheceu todos os chorões d'aquelle tempo que muito os aprecia e que ainda hoje tem grandes recordações. Conserva na sua linda vivenda os retratos de quasi todos os grandes flautistas acima mencionados, pois é uma reliquia que d'alli não se retira por modo algum. O único documento que nos dá mais algumas pistas sobre Jupyaçara é uma carta do próprio flautista endereçada ao radialista Almirante datada de 194410 e que julgamos interessante transcrever aqui: Rio 4 de junho de 1944, Ao prezado Almirante, Os meus saudares respeitosos. 10 Esta carta faz parte do acervo Almirante, hoje no Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro, e foi encontrada pela pesquisadora Anna Paes em pesquisa realizada em julho de 2009. 242 Sou admirador do vosso talento, bem [como] da vossa operosidade, descobrindo músicas antigas de autores e compositores brasileiros, incentivando no espírito da mocidade o bom gosto e o conhecimento do que existe de sublime, em se tratando de lídimos compositores, cultores da dança familiar. O vosso acurado esforço, sem desfalecimento, é invejável, trazendo para o rádio, sob o impulso do microfone, o máximo do vosso talento. Sem contestação direi: nunca ninguém teve essa iniciativa, tarefa aliás difícil. V. Sa. reúne as qualidades que todos reconhecemos. Fidalguia no trato e quiçá educação e paciência, colecionando músicas de choro tornando desta arte conhecidos os compositores célebres daquela época, a [sic] sessenta, setenta anos e mais como o grande flautista e compositor Calado, Viriato, J. Pereira da Silveira flautista profissional e compositor de lindas contradanças e de outros gêneros, Inagnacio [sic] Machado exímio flautista, e igualmente compositor, Luizinho, João Duarte, Saturnino, João Fluminense, José Moura, Chiquinha Gonzaga, Pedro Galdino, Guilherme Cantalice, o saudoso Albertino Pimentel 2º tenente regente da Banda de música do Corpo de Bombeiros da Capital Federal, tendo deixado como insinamento [sic] bagagem enorme de belíssimas composições para choro. Existe ainda o professor de orquestra Candido Pereira da Silva (o Candinho) que tem escrito maior número de músicas para choro. Sou o mais obscuro amador musicista, ainda assim um apaixonado pela música. Businei um pouco na flauta sem maior habilidade. Tenho predileção pelo instrumento, tanto assim que, ainda o conservo com carinho há 32 anos sempre bem conservado quanto a qualidade e feitura. O objetivo destas linhas despretensiosas é pedir-vos indulgências par o humilde que vos escreve, bem assim, a fineza de chegar a nossa residência a rua Teles 87 (casa 1) Jacarepaguá, primeiro poste acima do Largo do Campinho, onde terei maior liberdade [de] demonstrar ao mestre, o que, acima, venho a expor. Queira, pois, escrever-me, marcando dia e hora que melhor vos convenha. Possuo 10 cadernos de músicas de choros: belas polcas, mazurcas, valsas, schottischs, quadrilhas e outros gêneros de músicas. Desejo ouvir sua opinião abalizada. Com estima, J. Jupyaçara Xavier À margem: “Sou um octogenário: já ouvi pois!” É realmente interessante fazer um paralelo entre esta carta e o pedido de Gonçalves Pinto a Benedito Lacerda no sentido de divulgar o repertório dos compositores “antigos” de choro, visto no capítulo três. Transparece aqui uma vez mais a questão da relação deste gênero musical, e particularmente dos músicos do século XIX e do início do século XX, com a indústria fonográfica das décadas de 1930 e 1940: esta parece ser aliás a razão comum que leva Gonçalves Pinto e Jupyaçara, dois representantes dos “chorões antigos” (Jupyaçara diz na carta ser um octogenário na década de 1940, o que situa seu nascimento por volta da década de 1860) a escreverem 243 no final de suas vidas (é verdade que Pinto escreve de forma indireta) para dois grandes representantes do rádio: Almirante e Benedito Lacerda. A diferença, entretanto, reside no fato de que, enquanto Lacerda talvez nunca tenha tomado conhecimento dos pedidos de Pinto, o cantor e radialista Almirante estava fortemente interessado em obter acervos do passado: tendo abandonado a carreira de cantor a partir da década de 1940 para se especializar em programas de rádio que alcançariam grande sucesso nacional, tais como “Caixa de Perguntas” (1938) e “Incrível, fantástico, extraordinário” (1947), Almirante inicia a partir da década de 1940 uma campanha de recuperação de antigos músicos, cantores e compositores que se inicia com o programa “História de Orquestras e Músicos” em 1944 e culmina com a série de programas “O Pessoal da Velha Guarda”, programa que apresentava, todas as quartas feiras, orquestrações de Pixinguinha para o repertório “antigo” do choro. Neste ambiente de verdadeira “campanha” em prol da recuperação de acervos e de dados biográficos sobre músicos e orquestras brasileiras, Almirante solicita aos ouvintes que tivessem acervos antigos de partituras ou dados sobre a vida de compositores importantes, que enviassem o material para a rádio, o que faz com que em pouco tempo centenas de cartas com farto material cheguem às suas mãos (EMB, 2000: 20 e Cabral, 1990). É neste contexto que deve ser analisada, portanto, a carta do flautista Jupyaçara. Embora não tenhamos comprovações da resposta de Almirante, podemos inferir que o radialista aceitou o convite do octogenário flautista de lhe fazer uma visita e acabou “herdando” os cadernos, material riquíssimo que analisaremos a seguir. A coleção Jupyaçara se compõe de onze cadernos, sendo dez de partituras manuscritas e um de poesias, em sua maioria com letras de choros de poetas da época, como Catulo da Paixão Cearense. Os dez cadernos contêm 859 músicas manuscritas no total: um levantamento das músicas, autores e anotações nas partituras (datas, copistas, 244 etc) foi elaborado por mim ao longo deste trabalho e demonstra alguns fatos interessantes. Em primeiro lugar, podemos observar que, ao contrário do que se poderia esperar, as músicas dos cadernos não foram escritas por uma pessoa só: ao contrário, há uma grande diversidade de copistas, principalmente nos primeiros cadernos, o que nos leva a pensar que pelo menos parte da coleção Jupyaçara é na verdade uma reunião de manuscritos provenientes muitas vezes de fontes diferentes — o que reforça a tese de que existia de fato uma rede de cópias e de troca destas partituras. Os cadernos também não estão numerados de forma cronológica, como se poderia esperar. Aparentemente o mais antigo deles é o caderno de número 9: tendo na capa a inscrição “M. Corrêa”, este caderno traz uma página com a seguinte anotação: “Este caderno tem as músicas seguintes: 6 quadrilhas/ 6 polcas / 6 valsas. Forão [sic] todas escolhidas para flauta. São Paulo 13 de abril de 1882 [o último número foi cortado, mas parece ser 2]. A última folha traz a seguinte inscrição: “2-15-82 São Paulo 1ª Flauta”. É difícil precisar hoje quem seria este “M. Corrêa” e de que modo Jupyaçara teria “herdado” este caderno, mas é interessante notar mais uma vez a procedência de São Paulo. No repertório deste caderno aparecem, além de Callado e Henrique Alves de Mesquita, compositores desconhecidos como J.J. Santana e D. Amélia Eliza, autora de uma curiosa “Valsa Chinesa”: seriam autores paulistas? Não nos foi possível averiguar: entretanto percebese mais uma vez a referência a São Paulo no tango intitulado “O Veludo” de autoria de um certo João O. Duarte, que dedica a música ao “flautista paulista” de mesmo nome. Talvez o fato mais importante que resulta da análise deste caderno seja a comprovação de que as músicas de compositores de choro, como Callado e Mesquita, circulavam ainda no século XIX em forma de manuscritos por diferentes estados do Brasil e não ficavam circunscritas à então capital federal. 245 O segundo caderno em ordem de antiguidade parece ser o de número 1, cuja data pode-se situar em torno de 1909. Compõe-se de 158 músicas, sendo que destas há 44 que contêm a indicação inequívoca do copista: os nomes que aparecem mais freqüentemente são os de duas copistas mulheres sobre as quais não temos nenhuma informação — Gilda Mattos (todas com data de 1909) e Ismênia Polly de Amorim (todas com data de janeiro de 1910). Aparece ainda o já citado Quintiliano Pinto, que assina o manuscrito de uma polca intitulada Saudades de Isabel, de Callado, dedicandoa “ao meu amigo Jupyaçara” em 1909 (Anexo X). A diversidade de copistas escrevendo em um mesmo caderno também é algo que nos faz pensar: seriam membros da mesma família, compartilhando um caderno como quem compartilha um álbum de recordações ou um diário? Ou será que um mesmo caderno circulava entre um número distinto de pessoas, sendo que cada um fazia suas anotações e depois o passava adiante? São perguntas difíceis de responder de forma absoluta. É neste caderno que se encontra, colada na contracapa, um programa de um concerto de música com os dizeres: “Grande concerto do flautista brasileiro Gabriel de Almeida – aluno laureado do Instituto Nacional de Música e ex-discípulo do inesquecido professor Duque Estrada Meyer – Ginásio de Música”, como exposto em tópico anterior. O terceiro caderno mais antigo é o de número 4, datado de 1912. Ao contrário dos dois citados anteriormente, este caderno foi escrito por uma só pessoa: o trompetista Albertino Pimentel, conhecido pela alcunha de “Carramona”, compositor que chegou até o século XXI com pelo menos uma música que virou parte da “tradição oral” do choro: a polca “Coralina” gravada repetidas vezes ao longo do século XX11. Nascido em 1874, Pimentel foi, assim como Candinho Trombone, aluno do Colégio dos Meninos 11 Ary Vasconcelos, em seu livro Carinhoso etc. – História e Inventário do Choro cita 5 gravações desta música, a primeira de 1910 com o grupo Morro do Pinto e a última de 1977 com o grupo “Os carioquinhas no choro”. No entanto desde o lançamento deste livro, na década de 1970, a música já recebeu diversas outras regravações, com solistas variados, entre eles o bandolinista Joel Nascimento. 246 Desvalidos, em Vila Isabel, onde se iniciou no trompete fazendo parte da banda de música do referido colégio: diz a lenda biográfica que, tendo se apresentado com a banda do referido colégio para a princesa Isabel, esta teria ficado impressionada com o seu desempenho ao trompete, e tendo notado que o menino tinha um olho vazado, mandou-o ao oculista que lhe colocou um olho de vidro (EMB: 165). O fato é que Pimentel entra em 1900 para a Banda do Corpo de Bombeiros e rapidamente sobe na hierarquia da instituição, chegando a regente da mesma após a morte de Anacleto de Medeiros em 1902. O caderno número 4 se inicia com uma transcrição do “Hino Nacional Brasileiro” de Francisco Manuel da Silva e é seguido de 29 músicas de autoria do próprio Albertino, sendo uma delas intitulada “Jupyaçara”. A intenção de homenagem fica patente ao final do volume, onde encontramos a seguinte dedicatória escrita em letras rebuscadas ao gosto da época: “Ao distincto Capitão Jupyaçara, modesta lembrança do obscuro amigo Albertino Pimentel (o Carramona) Rio 1º de janeiro de 1912.” (Anexo XI). Os cadernos de números 2, 5 e 10 têm suas datas fixadas logo em suas primeiras páginas: 1937-39, 1936 e 1939, respectivamente. Ainda assim, o que se verifica é que não há tampouco aqui uma unidade de copistas e de datas dos manuscritos. O caderno 10, por exemplo, apresenta grande número de músicas copiadas por Jupyaçara em datas distintas, como 1935, 1936 e 1942 — prova de que o octogenário flautista escreveu até o fim da vida, portanto. No meio do caderno aparece novamente uma cópia de Quintiliano Pinto, datada de 12 de setembro de 1926: a música intitula-se “Tira o dedo do pudinho” e é oferecida novamente ao “distinto amigo J. Jupyaçara Xavier”. O caderno número 8 apresenta na capa os dizeres: “Flauta- Músicas de Choro – J. Jupyaçara Xavier” e logo em seguida a inscrição: “Músicas para flauta – Pertence a 247 J. Hilário Xavier da Costa”. Tudo indica que este é mais um caderno “herdado” por Jupyaçara: a caligrafia não corresponde em momento algum ao do flautista. Deste J. Hilário Xavier da Costa sabemos apenas que era compadre de Albertino Pimentel pelo fato de que este último dedicou-lhe uma música intitulada “Eu e meu compadre”, presente no caderno 3 com os seguintes dizeres: “Polca composta pelo professor Albertino Pimentel e dedicada ao seu compadre João Hilário da Costa”. Pelo tipo de repertório — composto em grande parte por autores do século XIX como Callado, Viriato, Henrique Alves de Mesquita, entre outros — e pelo precário estado de conservação das partituras, é razoável presumir-se que este caderno pertence no máximo à primeira década do século XX — embora não haja nenhuma indicação de data em suas páginas. Aliás, a única partitura com alguma indicação de data intitula-se “Recordações dos três amigos” e traz os seguintes dizeres: “Escrita por Guilherme Cantalice e feita por Julio (Bahianinho) em 30 de novembro de 1878”. A indicação é ambígua: a música foi composta por Julio Bahianinho e escrita por Cantalice — não sabemos, entretanto, se a cópia foi feita em 30 de novembro de 1878 ou se esta é a data da composição. No canto da página, a lápis, algumas observações com a caligrafia de Jupyaçara: “Até 1934, 56 anos. Até 1942, 64 anos”. Passemos agora a uma pequena análise do repertório dos cadernos: mais uma vez reafirma-se aqui a popularidade das músicas de Callado — do total citado de 859 músicas da coleção, verifica-se que 89 são de sua autoria, ou seja, mais de 10% do total. Verifica-se também aqui que há músicas que aparecem em diferentes cópias, o que sem dúvida atesta, como já citado, a popularidade de algumas músicas em detrimento de outras. Assim, destas 89 músicas de Callado muitas aparecem em cópia: as quadrilhas Mimosa e Manoelita, por exemplo, aparecem respectivamente em três e duas cópias em cadernos distintos; as polcas “Puladora” e “Salomé” aparecem em cinco cópias cada 248 uma em diferentes cadernos. “Cruzes, minha prima” também aparece três vezes ao longo da coleção, sendo duas vezes no caderno número 1. Curiosamente, a polca que se tornaria a mais conhecida (e talvez a única a permanecer na tradição oral até o final do século XX), “A flor amorosa”, aparece apenas uma vez no caderno 8. Mais importante é constatar que a maior parte destas músicas jamais foram editadas e que chegaram até nós exclusivamente por seus registros na coleção Jupyaçara. O segundo compositor com maior número de músicas é o trombonista Candinho Silva (44 músicas), seguido por Albertino Pimentel (40 músicas), Anacleto de Medeiros (35 músicas), o flautista Viriato Silveira (26 músicas) e Francisca Gonzaga (14 músicas). Interessante notar mais uma vez que os últimos cadernos, escritos a partir de 1930, já contêm uma quantidade significativa de músicas que eram sem dúvida divulgadas pelas rádios e pelo disco da época: músicas como “Samba de nêgo”, de Pixinguinha e “Pelo Telefone”, de Donga, passam a compor o repertório dos cadernos, sempre mesclado às músicas dos “antigos flautas”. 4.4) Uma musicologia popular Analisadas algumas das mais importantes coleções de choro que nos chegaram das primeiras décadas do século XX resta-nos agora estabelecer algumas relações entre elas. A primeira relação diz respeito ao fato de que partituras dos mesmos copistas aparecerem em diversas coleções: assim manuscritos de Quintiliano Pinto e Candinho Silva aparecem nos álbuns de Jupyaçara e nas partituras avulsas da coleção Jacob do Bandolim. Manuscritos de Arnaldo Corrêa aparecem na coleção Pixinguinha e novamente nas partituras “herdadas” por Jacob. Tal fato comprova o quanto estas partituras circulavam dentro de um círculo específico de músicos que certamente 249 tocavam juntos e tinham relações de amizade: esta é comprovada pelo hábito, comum na época, de se dedicar composições ou cópias aos colegas. Assim, encontramos na coleção Jacob do Bandolim músicas de Candinho feitas em homenagem a outros instrumentistas: “Arnaldo Corrêa”, um choro e “Jupyaçara”, uma valsa, são exemplos disso. Também Quintiliano Pinto escreve um manuscrito e o dedica à Jupyaçara, assim como Albertino Pimentel, que chega a presentear o flautista com um álbum manuscrito de suas composições. A segunda constatação importante é a de que, a partir do final da década de 1940, quando começa a se interessar pela constituição de um acervo (Paz, 1997), Jacob do Bandolim inicia um processo — ainda que bastante incipiente e não muito sistemático — de comparação e análise das diversas fontes de acervos diferentes. Encontramos em centenas de partituras de seu acervo anotações feitas por ele que procuram estabelecer relações das músicas escritas entre as diferentes coleções. Podemos citar diversos exemplos que ilustram a questão: a música “Dominante” de Pixinguinha (PMH 043), manuscrita por Jacob, contém as seguintes anotações ao lado da página: “arq. Candinho”, “arq. Arnaldo Corrêa”, “conf. Candinho” (ver anexo XII). Ou seja, aquela música estava presente nos arquivos de Candinho e Arnaldo Corrêa: é mais difícil inferir o que quer dizer a inscrição “conf. Candinho”. Possivelmente queira dizer: “conferida”, ou “a ser conferida” por Candinho. A música “Honória” de Galdino Barreto, também manuscrita por Jacob traz a seguinte observação: “Arquivo Candinho, cop. Arnaldo Corrêa. Conferir Candinho/Figueiredo à lápis” (anexo XIII). Ou seja, a cópia manuscrita de Jacob fora feita a partir do manuscrito de Arnaldo Corrêa pertencente ao arquivo Candinho e deveria ser conferida com o próprio Candinho — não sabemos o que quer dizer “Figueiredo a lápis”, talvez uma outra cópia da mesma 250 música feita à lápis? A música “Nogueiredo ou Nogueirita”, de Cantalice, também manuscrita por Jacob traz a observação: “Conferida por Candinho”. Estas observações não se restringem somente às músicas manuscritas por Jacob. Diversos manuscritos de Quintiliano e Arnaldo Corrêa, bem como de outros copistas, trazem indicação do bandolinista procurando relacionar as diferentes fontes. O PMH 601, por exemplo, manuscrito de Quintiliano para a música “Qualquer coisa” de Irineu de Almeida traz as seguintes observações de Jacob no canto da página: “Conferir C. 39, Conferir MF 11, Conferir MF 39”. Até o presente momento da pesquisa não nos foi possível averiguar a que se referem as siglas “C” e “MF”: certamente a outras fontes e/ou arquivos que deveriam servir como referências de comparação com o manuscrito citado. Outro exemplo é a música Miúda (PMH 746), manuscrito de Arnaldo Corrêa, que traz a seguinte observação de Jacob: “Conferir estas versões”. Sabemos também que Jacob copiou diversas partituras da coleção Jupyaçara: ao que tudo indica, o bandolinista teve acesso à coleção através do radialista Almirante, de quem era amigo pessoal12. São muitas as partituras manuscritas pelo bandolinista com a indicação: “cop. Jupyaçara” — e todas elas realmente se encontram no acervo de Xavier. Também é fato que o bandolinista copiou músicas de outras fontes que ainda não conseguimos identificar: por exemplo a música “Hilda” de Mário Álvares (PMH 798) que traz a inscrição: “Cop. Betinho. Ver outra versão no caderno n. 1, 30-06-1907 ou 1917”. Não nos foi possível até o momento verificar quem teria sido o citado “Betinho” e quais os cadernos pertenceriam a ele. Além das indicações das fontes e das cópias em diversos cadernos, Jacob anotava também de forma freqüente variações de melodias e de forma das mesmas músicas. Assim, verifica-se, por exemplo, no 12 Significativamente, encontra-se no arquivo Almirante no Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro um pequeno papel em que o radialista — sempre muito cioso do material que emprestava a terceiros, conforme nos diz Cabral (1990) — tomou a seguinte nota: “Jacob pede emprestada as partituras de Jupyaçara” (material encontrado pela pesquisadora Anna Paes em pesquisa realizada no MIS-RJ em julho de 2009) 251 manuscrito da partitura da polca “Puladora” de Callado (PMH 739) a seguinte observação de Jacob: “Na versão de Candinho, depois da 2ª entra a primeira, como se segue e uma entrada para a 3ª parte acima escrita. José Agostinho Macedo chama de ‘Imortal’” (ver Anexo XIV). Em suma, este trabalho realizado por Jacob, ainda que de forma pouco sistemática, aponta para a realização de um trabalho analítico e musicológico das coleções, feito por um músico popular fora do ambiente da academia. Mais do que isso, aponta para o fato de que, ao longo de sua trajetória de cerca de 150 anos, o choro — através de diversos compositores e intérpretes como Candinho, Jupyaçara, Quintiliano e Jacob do Bandolim — sempre esteve construindo e auto-referenciando um repertório e uma história, processo em que o registro escrito teve sempre um papel de grande importância, ainda que pouco ressaltado na bibliografia sobre o gênero. Ainda que uma análise completa de todos os acervos manuscritos de partituras dispersos em diversas instituições do Rio de Janeiro fuja ao âmbito e aos objetivos deste trabalho, creio que algumas conclusões parciais podem ser relatadas. Estas conclusões podem ser resumidas da seguinte forma: a) a importância do registro escrito no choro, e particularmente do choro de fins do século XIX e primeiras décadas do XX foi um fato subestimado (e em muitos casos ignorado), pela bibliografia do gênero até os nossos dias; b) o registro das composições de choro, dispersa em milhares de manuscritos dispostos em diferentes álbuns e coleções funcionou sempre como uma espécie de “ambiente paralelo” à indústria editorial da época, suprindo as carências desta e servindo como meio de propagação de um repertório que certamente “nutriam” o ambiente das rodas de choro. Assim, boa parte do repertório dos compositores de choro deste período jamais foi editado, e a única maneira com que estas músicas circulavam era através desta rede de manuscritos e cópias entre diferentes instrumentistas. Aliás, 252 podemos dizer que esta espécie de “rede paralela” de cópias de partituras manuscritas no choro perdura até hoje13; c) a influência da música da rádio e do disco passa a ser sentida de forma decisiva nos cadernos a partir da década de 1930: esta influência se refletia não apenas pela música de choro que era tocada nas rádios — com intérpretes como os já citados Luiz Americano, Luperce Miranda, Pixinguinha, etc — como pela influência de músicas de outros gêneros que não o choro, como o samba, a marchinha, o frevo e músicas estrangeiras inclusive; d) o trabalho de arquivamento, classificação e comparação entre esta vasta coleção de manuscritos gerou, a partir do trabalho de Jacob do Bandolim, um primeiro movimento daquilo que poderíamos classificar como uma espécie de trabalho musicológico realizado fora do ambiente acadêmico e dentro do próprio ambiente do choro. 13 Ainda que a segunda metade do século XX tenha presenciado a edição de diversas coleções de partituras de choro, a precariedade e a grande quantidade de erros de boa parte destas coleções fez com que a “rede de manuscritos” continuasse a se fazer necessária. Veja-se por exemplo a popularidade que apostilas didáticas manuscritas, como as realizadas na Oficina de Choro da Funarte na década de 1980, escritas pelo bandolinista Afonso Machado e o violonista Luiz Otávio Braga alcançaram, sendo fotocopiadas por todo o país. É muito importante notar que, atualmente, de modo paralelo às fotocópias de manuscritos, já há também coleções particulares de partituras digitalizadas (normalmente em programas de editoração de música como o Finale) sendo trocadas por músicos de choro: uma delas, talvez a mais famosa no Rio de Janeiro é a do bandolinista Marcilio Lopes, que reúne cerca de 500 partituras de choro e é intitulada “O Baú do Panda”. 253 Capítulo 5 Representações de O Choro na atualidade Cumpre agora analisarmos as redes de significação do livro O Choro na atualidade. Como sugerimos no início da tese, a obra de Gonçalves Pinto foi, a partir de sua “redescoberta” na década de 1970 por Ary Vasconcelos, alvo de uma teia de “resignificações” por parte de músicos, jornalistas, acadêmicos e amantes do choro de forma geral. Assim, a partir de uma questão principal – de que forma uma narrativa do passado altera nossa concepção do presente? – procuro ao longo do capítulo entender: 1) de que forma um discurso do passado, ou melhor dizendo, uma teia polifônica de discursos, como é o caso de O Choro, é utilizada para ao mesmo tempo historicizar e re-significar práticas sonoras e sociais do passado na atualidade; 2) de que forma os diversos atores sociais que se reúnem em torno do termo “choro” identificam no livro comportamentos e práticas do passado que se mantém (ou não) na atualidade. O cerne da questão é, portanto, a produção de discursos da atualidade sobre um (ou vários) discurso(s) do passado. Como base metodológica para a elaboração deste capítulo vali-me principalmente de entrevistas com músicos de choro, pesquisadores, editores e agitadores culturais que tem ou tiveram alguma relação com a obra de Gonçalves Pinto, sob os mais variados aspectos. Assim, o primeiro item é dedicado ao “Retiro da Velha Guarda”, espécie de reunião semanal de músicos de choro mais antigos (ou “da velha-guarda”, como o nome diz), alguns dos quais chegaram ainda a ser retratados no livro “O Choro”, como Napoleão de Oliveira e Léo Vianna. O “Retiro” durou até a década de 1970, aproximadamente, e meu principal informante sobre esta “comunidade” de músicos foi o bandolinista Déo Rian, que, então em início de carreira, 254 freqüentou as reuniões e travou conhecimento com diversos daqueles músicos. Procuro analisar de que forma aspectos do ambiente da “roda” ressaltados no livro se mantiveram ou não nestes encontros entre antigos músicos até a década de 1970. O segundo tópico do capítulo é dedicado à Revista “Roda de Choro”, publicada na década de 1990, dentro de um movimento de “renovação” do choro que estava ligado a diversos fatores, como o aparecimento de novos intérpretes, conjuntos, bem como novos espaços de promoção e comercialização do choro - entre os quais pode ser apontado o “renascimento” do antigo bairro da Lapa, no centro do Rio, com o (re-) estabelecimento de diversas casas noturnas e um público boêmio consumidor de gêneros considerados “de raiz”, como o samba e o choro (ver a este respeito Oliveira, 2001). A revista era editada pelo livreiro Rodrigo Ferrari e pelo designer Egeu Laus, e continha uma seção dedicada às “Histórias do Animal”. O fito era realizar uma brincadeira que levasse o leitor a crer que Gonçalves Pinto havia “voltado” aos tempos atuais e “misteriosamente” recontasse na revista alguns “causos” do seu livro e também histórias da atualidade, narradas “ao estilo” do carteiro. O terceiro tópico é dedicado ao movimento de “redescoberta” do choro antigo (ou seja, de compositores e obras de finais do século XIX e primeiras décadas do século XX entendidos como ligados ao choro) por um grupo de músicos ligados a gravadora Acari. A partir de uma pesquisa intitulada Inventário do Choro, patrocinada pela Rio Arte, os violonistas e pesquisadores Anna Paes e Mauricio Carrilho coletaram e catalogaram um acervo de cerca de oito mil partituras de choro deste período. Parte deste material foi gravado em duas séries de Cds lançados pela gravadora Acari, intituladas Princípios do Choro (série com 15 Cds que contempla os compositores nascidos até 1880) e Choro Carioca, música do Brasil (série com 9 Cds que contempla compositores de todo o Brasil nascidos até 1900). Uma série de cinco cadernos de partituras também foi editada, 255 baseada na coleção Princípios do Choro. Em todas estas publicações, o livro de Gonçalves Pinto funciona não apenas como base para o restabelecimento de biografias de compositores mas como, fundamentalmente, “memória oficial” do choro. Neste tópico realizei entrevistas com músicos ligados à gravadora, procurando entender de que forma a leitura do livro por parte de cada um deles modificou ou não seus entendimentos e suas visões sobre o choro, tanto no que concerne a aspectos de interpretação musical como de concepções e idéias sobre esta(s) música(s). O quarto tópico é dedicado a mais recente “re-significação” do livro O Choro: uma obra de literatura infantil (acompanhada por um Cd) intitulada “Pedro e o choro”. De autoria de Simone Cit, com direção musical de Roberto Gnattali, o livro é uma espécie de paródia do clássico de Sergei Prokofiev “Pedro e o Lobo”, onde a figura do lobo é substituída pelo “Animal”, ninguém menos do que o carteiro Gonçalves Pinto. Também aqui me vali de entrevistas com os autores do livro para entender de que forma nosso objeto de pesquisa foi “reconfigurado” para servir como base para um livro infantil. Finalmente, no último tópico apresento uma entrevista com uma neta de Alexandre Gonçalves Pinto, que pude conhecer em circunstâncias que serão explicadas posteriormente. Antes de entrarmos nestes tópicos, cabe-me agora fazer uma reflexão sobre meu próprio papel como pesquisador e, ao mesmo tempo, intérprete e músico de choro ligado, por diferentes maneiras, a vários destes atores sociais citados no parágrafo anterior. Esta posição, se por um lado facilitou muito o trabalho de entrevistas (pela proximidade que eu tinha com muitos dos entrevistados), por outro lado levanta a questão do distanciamento e de uma um tanto problemática “imparcialidade” esperada tradicionalmente de uma pesquisa científica. Tal reflexão está ligada, de maneira mais ampla, à crise de representação da autoridade etnográfica que colocou em xeque as premissas da antropologia clássica, tal como apontado por Clifford (1998:17-59). Para 256 este autor, tal crise seria resultado direto do processo de desintegração e redistribuição do poder colonial nas décadas posteriores a 1950, das repercussões das teorias culturais radicais dos anos 60 e 70, e da percepção, cada vez mais acentuada nas últimas décadas do século XX, de que o Ocidente não poderia mais se apresentar como “o único provedor de conhecimento antropológico sobre o outro”, tornando-se necessário, portanto, “imaginar um mundo de etnografia generalizada”. (id: 18-19). Em outras palavras, se os padrões de etnografia da antropologia clássica (que Clifford situa entre o período que vai de 1900 a 1960) eram calcados na relação entre a figura do antropólogo versus os nativos – em um ambiente marcado por um universo de mundos culturais descontínuos, calcado em antinomias como “metrópole-colônia”, “rural-urbano”, “aldeia tribal-centro urbano” –, nas sociedades modernas, altamente segmentadas e complexas, estes padrões se diluem na figura de uma multiplicidade de mediadores: Com a expansão da comunicação e da influência intercultural, as pessoas interpretam os outros, e a si mesmas, numa desnorteante diversidade de idiomas (...). Este mundo ambíguo, multivocal, torna cada vez mais difícil conceber a diversidade humana como culturas independentes, delimitadas e inscritas. (id: 19) Ora, esta multiplicação de mediadores contribui de forma decisiva para “desestabilizar a dicotomia entre categorias nativas e do analista, entre visões emic e etic” (Travassos, 2006), o que acaba por criar o mundo de “etnografia generalizada” citado por Clifford. Assim, as perspectivas de mediação e análise não mais se limitam à figura clássica do pesquisador acadêmico (antropólogo, etnomusicólogo, etc.); ao contrário, soma-se a esta figura uma cadeia de mediadores formada pelos mais diversos atores sociais, que buscam, continuamente, “traduzir valores e idéias de um grupo social em enunciados inteligíveis para membros de outro grupo” (id.). Aplicada ao presente trabalho, esta reflexão nos ajuda a situar nossas próprias expectativas em relação ao significado de uma tese acadêmica. Ao longo do processo de 257 feitura deste capítulo, como já dito, entrevistei atores sociais variados – músicos de choro, livreiros, designers, jornalistas, professores universitários e amantes do choro de forma geral – e cada um deles me passou a sua “visão” sobre meu objeto de estudos. Nem sempre estas visões estavam de acordo com a minha própria concepção sobre o livro; por outro lado, muitas vezes as entrevistas me fizeram ter novos ângulos de visão sobre o livro, assim como, tenho certeza, minhas próprias idéias sobre a obra de Gonçalves Pinto também mudaram, de alguma forma, a visão dos próprios entrevistados. Ao transcrever as entrevistas percebi que boa parte dos meus interlocutores também estava interessada nos objetivos e nos resultados que eu já tinha obtido em minhas pesquisas sobre O Choro: assim, em algumas delas eu acabei também sendo entrevistado. Desta forma, tenho total consciência de que meu próprio trabalho, longe de se constituir como algo “definitivo” sobre meu objeto de estudos, é mais um elo nesta cadeia de mediadores. Dentro desta perspectiva, minhas atividades como instrumentista e músico de choro – em outras palavras, como alguém “de dentro” deste meio – me conferem peculiaridades que, a meu ver, não invalidam minha capacidade de observação crítica. Estudos historicamente recentes da etnomusicologia (ver por ex. Barz e Cooley, 1996), influenciados sem dúvida pela crise da autoridade etnográfica exposta anteriormente, reposicionam o papel do insider: Longe, porém de julgar tal fato [a posição do insider] um empecilho, a etnomusicologia contemporânea tem reconhecido que os diferentes modos de interferência do observador de um processo cultural, do teoricamente mais “neutro” ao mais “intervencionista”, diferenciam-se tão somente pela intensidade, mas exigem o mesmo nível de autocrítica por parte do pesquisador, de modo a não incidir em interpretações subjetivas epistemologicamente irrelevantes (Araújo, 2003). Feita esta reflexão, passo a explicar um pouco da metodologia utilizada neste capítulo. Dividi minhas entrevistas em três frentes de trabalho: na primeira procurei 258 entrevistar músicos de choro mais antigos: procurava, entre outras coisas, saber se eles teriam tido contato com membros do grupo descrito por Alexandre Gonçalves Pinto e poderiam prestar mais informações sobre o próprio carteiro. A segunda frente buscava localizar possíveis descendentes do carteiro: obviamente tinha todo o interesse em saber se seria possível levantar mais dados biográficos sobre meu personagem. E finalmente, na terceira frente busquei entrevistar atores sociais da atualidade que tivessem sido influenciados pela leitura do livro, e, mais ainda, que tivessem atuado de alguma forma como catalisadores de “re-significações” da narrativa. 5.1) Remanescentes da geração do “Animal”: o Retiro da Velha Guarda Como dito acima, um dos meus primeiros objetivos ao realizar minhas entrevistas era o de tentar encontrar músicos que de alguma forma tivessem tido contato, se não com o próprio, pelo menos com membros do grupo descrito por Gonçalves Pinto. Como vimos no primeiro capítulo, houve, a partir da década de 1920, vários acontecimentos sociais que acarretaram mudanças significativas no meio dos antigos chorões descritos por Gonçalves Pinto. Conforme Tinhorão (1998a), o advento do rádio e a consolidação da indústria do disco terminaram por deixar obsoletas as festas animadas por músicos de choro, mote principal do livro do carteiro. Da mesma forma, a profissionalização dos instrumentistas, o contato com outros tipos de influência musical, tal como a dos jazz-bands, foxs-trotes, etc., teria, no dizer de Tinhorão, determinado a percepção de que o “tempo” dos chorões descritos por Pinto já era “passado”. Vimos ao longo do capítulo três que esta questão não era tão simples como quer nos fazer parecer Tinhorão: o próprio Gonçalves Pinto saudava os instrumentistas 259 de choro que se profissionalizavam nas rádios e estabelecia um elo de ligação entre eles e os instrumentistas do passado. Ao falar sobre a polca, como vimos, ele chega a fazer uma comparação entre diversos nomes da “velha-guarda” – Callado, Viriato, Bilhar, Quincas Laranjeiras – e da época em que escrevia – Pixinguinha, Benedito Lacerda, Nelson Alves – para reforçar esta linha de continuidade entre o “passado” e o “presente” do choro. Entretanto, é inegável que, para boa parte daquela comunidade descrita no livro, as condições do “choro” se modificaram: as festas, que antes eram exigiam a presença de músicos, ainda que diletantes, passaram em grande parte a ser animadas ao som dos discos e rádios; as práticas sociais e musicais em torno dos termos “polca” e “modinha” passaram a ser cada vez menos populares, em detrimento de novos “gêneros musicais” como o samba, por exemplo. É certo, entretanto, que pelo menos uma parte do universo descrito pelo “Animal” continuou existindo em reuniões destes antigos músicos, ainda que certamente mais escassas, até a década de 1960, pelo menos. Tais reuniões foram muito pouco documentadas até o presente momento, e parte do meu desafio ao procurar entender os possíveis desdobramentos do livro O Choro na segunda metade do século XX era o de tentar dimensioná-las. Boa parte das dificuldades decorria do fato de que as memórias destas reuniões dos poucos remanescentes do grupo descrito por Gonçalves Pinto eram (e continuam sendo) parcialmente subterrâneas. Entre os poucos documentos que as confirmam estão os escritos de Jota Efegê das décadas de 1960 e 1970: um exemplo é a sua descrição das rodas de choro na casa de Napoleão de Oliveira, violonista e compositor, membro (como vimos) do rancho Ameno Resedá e chorão descrito por Gonçalves Pinto em seu livro. Estas rodas teriam perdurado até a década de 1970, quando da morte de Napoleão, já na casa dos noventa anos (em 1973, mais especificamente). Em uma crônica datada de 1976, intitulada “O animado choro terminava com a gostosa sopa do Napoleão”, Jota 260 Efegê nos dá um vívido retrato do que eram estes encontros. O mote da crônica é saudar a criação, por Mozart de Araújo e “um grupo de gente moça” de um Clube do Choro: para o articulista, tal clube seria uma comprovação de que As excentricidades que vêm aparecendo e tentando ser cadastradas como inovações da música popular, pouco a pouco, por falta de conteúdo, estão desaparecendo. E o gostoso choro, o simplório chorinho fazendo uma música intuitiva, executada por instrumentistas versáteis, está voltando com plena aceitação e entusiasmo dos que o ouvem (Efegê, 1976: 231). Dentro deste ambiente de “volta” do choro, quando os “próprios jornais” davam “apoio aos novos conjuntos” que surgiam ligados ao gênero, o articulista ressaltava a importância da retomada da memória de encontros de “chorões da velha guarda” que haviam perdurado até “bem pouco tempo”. Entre eles estava a “animadíssima” reunião mensal (sempre no último domingo de cada mês) promovida por Napoleão de Oliveira em sua casa, no bairro do Irajá. Participavam da reunião, no dizer de Jota Efegê, músicos como Léo Vianna, irmão de Pixinguinha, ao violão; Luperce Miranda, ao bandolim, sempre acompanhado pelos filhos, bons violonistas; Bereta e Neca na flauta; Juvenal e Nascimento no clarinete; Nico e Paes Leme nos violões; e, mais jovem do grupo, Deo Rian no bandolim. Eventualmente, apareciam ainda Pixinguinha, Donga e Jacob do Bandolim. Do grupo de instrumentistas citados, os mais velhos, aparentemente, eram o próprio Napoleão e o violonista Léo Vianna, ambos citados no livro do Animal. Os demais músicos, segundo Efegê, estavam na casa dos quarenta anos (com exceção de Deo Rian, mais novo). O fato de ser o mais velho não impedia Napoleão de “comandar” a roda, mostrando “o mesmo entusiasmo de boêmio e carnavalesco fundador do ‘Ameno Resedá’”. Curiosamente, apesar da boemia do anfitrião, “não era permitido o consumo de bebidas alcoólicas: bebia-se apenas refrigerante”: ao final da noite, era servida “uma gostosa sopa preparada por Isabel, mulher de Napoleão”. 261 Naturalmente, o curto artigo de Jota Efegê não nos permite saber com mais detalhes aspectos que seriam de grande importância no âmbito deste trabalho e que nos permitiriam fazer possíveis comparações com os ambientes das rodas descritas por Gonçalves Pinto: dados como o tipo de repertório tocado por estes músicos, a existência ou não de álbuns de partituras nas rodas, a relação entre os músicos, o grau de destreza dos executantes etc., não aparecem de forma clara ao longo do artigo. Entretanto, consegui “reconstituir” parte deste ambiente através do depoimento do bandolinista Déo Rian, hoje na casa dos sessenta anos. Nascido em 1944 em Jacarepaguá, Déo iniciou-se na música ainda criança, tocando cavaquinho: Eu nasci e sempre morei em Jacarepaguá. Lá em Jacarepaguá tinha muito isso, qualquer festinha tinha aquela reunião de músicos. Meu pai gostava de cantar, gostava de tocar pandeiro, e tinha um amigo que se chamava Oscar, que tocava violino. Foi até ele quem afinou meu cavaquinho em afinação de bandolim. Mas ele tocava violino de choro mesmo. Eu comecei tocando cavaquinho ré-sol-si-ré, foi ele quem afinou pra mim em afinação de bandolim (Déo Rian, entrevista realizada em 15 de outubro de 2009). Entretanto, só a partir dos quinze anos Deo começaria a se aprimorar no instrumento, tendo aulas com o músico Moacir Arouca: Seu Moacir Arouca era da velha guarda, tocava clarinete pra caramba, foi quem me ensinou a tocar bandolim, sem tocar bandolim. Ele era tenente do exército, músico. Tocava pra caramba, lia “de cara”, solfejava, tudo... Chorão de primeiríssima qualidade. Tocava na gafieira do Méier (idem). O fato de Déo identificar Moacir como “pertencente à velha-guarda” não significava apenas que este músico já tinha certa idade (“ele já tinha 60 e poucos anos nesta época”, diz Déo no decorrer da entrevista), mas principalmente que ele pertencia a um círculo de músicos que se autodenominavam “velha-guarda” e que freqüentavam reuniões como as de Napoleão de Oliveira e as do “Retiro da Velha Guarda”, como veremos a seguir. As lições com Moacir Arouca se baseavam em um método de bandolim francês: 262 Eu ia de bicicleta pra casa dele na Taquara. Ele me dava aula no porão, ele estudava ali. Ele ficava com uma varinha, pegava o método Cristóphal — é um método francês, traduzido pro português, eram dois volumes. Eu só estudei o primeiro, [quando] comecei a estudar o segundo ele ficou doente e faleceu. Ele [Moacir] botava o método e dizia: “faz isso aqui”. Aí eu fazia a lição, não estava boa, ele dizia “não, esta lição não está boa não, faz novamente, vai fazendo isso aí” Aí ele saía. E eu ficava fazendo. Se eu errava uma nota, mesmo de longe ele gritava, “não, a nota não é essa aí não” (idem). Aos poucos, com a melhora no aprendizado técnico, Déo começa a assimilar um “repertório de choros”, repertório que “seu Moacir” tinha todo manuscrito em cadernos: Ele tinha tudo em cadernos, aqueles cadernos horizontais, tinha tudo ali. Tanto é que eu tive um caderno dele, não sei pra quem eu emprestei, era um caderno com vários choros dele. Eu emprestei pra alguém, não me devolveram e perdi. Ele tinha vários choros bons (idem). Com o progresso no bandolim, Déo começa a freqüentar diversas rodas de choro em Jacarepaguá e nos subúrbios do Rio de Janeiro: entre estas rodas estavam duas que eram formadas, no dizer do próprio Déo, por “gente da velha guarda”. A primeira era conhecida como o “Retiro da Velha Guarda”: Este Retiro da Velha Guarda, aí muito mais tarde, eu tinha lá para os meus 14 ou 15 anos, foi um senhor chamado Amorim que me levou pra lá — ele era um seresteiro, foi até ele quem levou o Jacob pra morar lá em Jacarepaguá. O seu Amorim era um detetive aposentado. Ele tocava um pouquinho de violão, gostava de cantar... Ele conhecia a turma toda da Velha Guarda. Eu conheci o seu Amorim em uma roda de choro em Jacarepaguá, que ele freqüentava aquelas rodas, junto com os chorões de lá, e coisa tal. Aí eu o conheci e ele gostou muito de mim, ficou meu amigo demais, e aí me levava pra todos os lugares. Um dia ele chegou pra mim e disse: “Garoto, vou te levar lá no retiro da Velha Guarda” (idem). O que era, afinal, o “Retiro da Velha Guarda”? É o próprio Déo quem responde: O Retiro era uma reunião da turma da Velha Guarda. Era uma reunião aos domingos, na parte da tarde. Era na casa do senhor João Dormund, um funcionário da casa da Moeda, um cara fabuloso, espetacular. Ele tocava violão, pouco. Ele quase não tocava na verdade. Mas adorava aquela música. Tinha um jantar, seu João fazia um jantar, fazia uma macarronada, um negócio qualquer... Ia até mais ou menos umas nove ou dez horas da noite e começava por volta de uma ou duas da tarde (idem). 263 Sobre João Dormund, além do fato de ter sido funcionário da Casa da Moeda, tocar pouco ou “quase nada” e ter falecido “lá por 1966, 1967”, Déo não pode precisar mais dados. Em sua casa, entretanto, se reunia semanalmente um grupo de músicos, e esta reunião era denominada pelos próprios como o “Retiro da Velha Guarda”. Antes de se reunirem na casa de João Dormund, o “Retiro” já existia, como explica Déo, na casa de um outro violonista chamado Alcebíades Vieira Nunes. Com sua morte “a reunião passou a ser na casa de João Dormund, sendo que eu não cheguei a freqüentar a casa do Alcebíades”, esclarece Déo. Entre os músicos que freqüentavam o “Retiro”, o bandolinista relaciona: Léo, irmão de Pixinguinha; Napoleão de Oliveira, que foi um dos fundadores do Ameno Resedá; o Honório Cavaquinho, primo do Pixinguinha e fundador daquele Grupo Honório — todos estes já tinham oitenta e cacetada. Eles chegaram a conhecer Mário Álvares, Albertino Pimentel, Anacleto de Medeiros. Tinha ainda o Manuel Pedro do Nascimento, que tocava clarinete; o Ary de Sá, no cavaquinho; Neca na flauta; Cincinato no bandolim. O Nelson da velha guarda ia lá com o filho Chia, que tocava violão de 7 cordas (idem). O que caracterizava as rodas do “Retiro da Velha Guarda”? Pelo depoimento de Déo Rian, alguns aspectos podem ser ressaltados, além do próprio fato de que boa parte de seus membros já beiravam setenta ou oitenta anos. Um deles diz respeito ao repertório tocado, que era formado quase que exclusivamente por compositores também identificados como sendo “da velha guarda”, ou seja, os compositores que formavam uma espécie de cânone do choro – cânone “construído” durante décadas pelas práticas musicais das rodas e pelos discursos que as acompanhavam, como é o caso do livro “O Choro” – entre os quais podem-se citar Anacleto de Medeiros, Callado, Chiquinha Gonzaga, Ernesto Nazareth, Mário Cavaquinho, entre outros. Alguns dos instrumentistas do “Retiro” haviam conhecido parte destes nomes, e, durante a roda, contavam histórias sobre eles. O já citado Napoleão de Oliveira, por exemplo, então com quase noventa anos tinha, segundo depoimento de Déo “sido amigo do Nazareth, 264 conheceu Mário Cavaquinho, contava várias histórias do Mário”. Assim, não há dúvida que um dos fatores que ligavam aqueles músicos era o conhecimento de um repertório específico; era este um aspecto fundamental que determinava a aceitação de um novo membro no grupo, e que aparece exemplificado na forma como o próprio Déo relata ter sido seu primeiro contato com o “Retiro”: Eu comecei a freqüentar o Retiro do João em 1962 mais ou menos. Quando eu cheguei lá, a turma lá, aquela velharia, o Léo me perguntou: “aí garoto, você toca bandolim há quanto tempo?” E eu: “não, estou estudando, toco um chorinho ou outro, coisa e tal.” O Léo: “você está estudando com quem?”. Nessa época eu não conhecia o Jacob ainda não, conhecia só de nome é claro. Eu disse “Estudo com seu Moacir Arouca”. Quando eu disse isso o Léo virou pro pessoal e disse, “olhai pessoal, aluno do Arouca!” Aí eles perguntaram o que é que eu ia tocar. Aí eu mandei um choro do Antonio Maria Passos, eles aí ficaram malucos! Nem me lembro mais desse choro, mas ele ficaram malucos. Porque o seu Moacir me passava essas músicas, essas músicas velhas que ele tocava (idem). Percebem-se no depoimento dois fatores decisivos para a aceitação do então jovem bandolinista no grupo: o primeiro era o fato do mesmo ser aluno de um instrumentista também identificado como “da velha guarda”, o que fez com que Léo Vianna se virasse para os membros do grupo, chamando atenção para o fato de que o novo elemento “era aluno do Arouca”. E o segundo, decisivo, foi o fato de Déo ter tocado “um choro do Antonio Maria Passos”. Antonio Maria Passos era flautista, tendo pertencido a banda do Corpo de Bombeiros sob a regência de Anacleto de Medeiros, além de ter feito parte do “Conjunto Chiquinha Gonzaga” e do grupo “Passos no Choro, que realizou diversas gravações para a Casa Edison na década de 1910. Em outras palavras, um autêntico “membro da velha-guarda”, o que fez com que os músicos do Retiro “ficassem malucos” com aquele jovem bandolinista. A partir daí, Déo passou a integrar o time de músicos que freqüentava o “Retiro” e se tornou mesmo amigo pessoal de vários daqueles instrumentistas mais antigos: “O Léo, irmão do Pixinguinha, ficou 265 muito meu amigo, ele ia lá em casa me buscar [para as reuniões do Retiro]”, diz Déo em meio ao depoimento. Um segundo fator que identificava os músicos do Retiro com o universo descrito pelo Animal diz respeito à forte ligação que eles mantinham com os acervos manuscritos de partituras, principalmente os solistas da “roda”: Na roda do Retiro da Velha Guarda a maioria dos solistas tocava lendo. Os acompanhadores não, era muito raro alguém ler. Solistas eram o Manuel [Pedro do Nascimento, clarinetista], o Arlindo [Nascimento, bandolinista e filho de Manuel], o Cincinato [bandolinista] e eu, que estava começando. Eu novo tocando música antiga, eles adoravam! O Manuel, por exemplo, tocava tremendo, naquela época ele devia estar com uns setenta e tal, quase oitenta anos. Então ele tocava tremendo, já estava tremendo o lábio. Mas lia pra caramba. Só tocava lendo. Botava o caderno na frente e sai de perto, os violões que se virem... (idem). Os cadernos de Manuel Pedro do Nascimento estão hoje integrados ao acervo Jacob do Bandolim, como vimos no quarto capítulo. Da mesma forma que Manuel Pedro, o próprio João Dormund, em cuja casa se davam as reuniões do “Retiro”, tinha, apesar de “tocar muito pouco”, conforme o depoimento de Déo, um grande número de cadernos manuscritos, alguns escritos por ele mesmo e outros “herdados” de chorões mais antigos. Pelo depoimento de Déo, percebe-se que havia uma contínua troca destes cadernos manuscritos entre os solistas: tal como algumas descrições do livro do Animal, eram comuns as rodas onde os solistas tocavam lendo e também as cópias de partituras entre os músicos. Alguns destes cadernos foram preservados em acervos particulares; o próprio Déo afirma ter “herdado” alguns dos cadernos de seu mestre Moacir Arouca; vimos no capítulo anterior que vários dos cadernos de solistas do Retiro foram incorporados posteriormente ao acervo Jacob do Bandolim, como é o caso dos cadernos do clarinetista Manuel Pedro do Nascimento e de seu filho Arlindo Nascimento. 266 Finalmente, há outro fator que estabelece uma forte ligação entre a narrativa do Animal e as rodas do Retiro da Velha Guarda, e que fica patente neste trecho do depoimento de Déo Rian: Tinha uma coisa curiosa nas rodas do “Retiro”. Sempre que eu ‘mandava’ um choro mais moderno, do Jacob, do Altamiro ou de outro compositor, eles sempre acompanhavam como se fosse polca. Podia ser o choro mais “sambado” que tivesse, o ‘Bole-bole’, por exemplo, o acompanhamento era sempre de polca. Eu até cheguei a comentar isso com o Jacob, lembro que ele disse: ‘quando eles te acompanharem assim, você não liga não, é o jeito dos velhos acompanharem’ (idem). “O jeito dos velhos acompanharem” era, portanto, baseado nas figuras rítmicas da polca. Vimos, no capítulo três, como figuras rítmicas típicas do samba do Estácio foram incorporadas ao universo do choro a partir da década de 1930, em um processo que envolveu músicos de choro ligados às rádios e ao disco que acompanhavam artistas de samba de forma geral. A partir desta década este novo padrão rítmico – que poderia ser caracterizado como “choro-sambado” – seria utilizado em boa parte dos choros compostos na segunda metade do século XX e é freqüente nas gravações de autores e intérpretes como Jacob do Bandolim, Pixinguinha, Luiz Americano, entre outros. Ora, como frisado anteriormente, este é sem dúvida uma espécie de turning point do choro: ainda que fosse possível identificar padrões de acompanhamento ligados a outros gêneros tais como schottisch, valsa e quadrilha – sendo que esta última estaria fadada ao desaparecimento na segunda metade do século XX –, era a polca (com suas variantes, como demonstra o discurso de Gonçalves Pinto no capítulo dois) o principal veículo de expressão dos chorões “da velha guarda”. “Naquela época tudo era polca”, nos diz Pixinguinha em seu depoimento ao Museu da Imagem e do Som na década de 1970. Era “o jeito dos velhos acompanharem”, nos diz Jacob através do depoimento de Déo. O que é importante frisar, portanto, é a permanência de um grupo de instrumentistas mais antigos que até a década de 1970 permaneceu infenso aos novos 267 padrões do “choro-sambado” e manteve viva a polca como sua principal forma de expressão musical. Poderíamos dizer que estes músicos eram, de certa forma, representantes da memória que Gonçalves Pinto defendia tão tenazmente ao enfatizar a importância da polca. A partir do surgimento do novo padrão “sambado”, cujo pioneiro seria (de acordo com o depoimento de vários músicos, inclusive o de Déo Rian) o flautista Benedito Lacerda e seu conjunto, o padrão de acompanhamento básico da polca (com suas variantes) passaria a ser associado a uma “levada antiga”: a “forma dos velhos acompanharem”. Ressalte-se que este padrão não deixará de existir no choro da segunda metade do século XX, mas será sempre associado a uma forma antiga de se tocar: por outro lado, os instrumentistas mais velhos passam a se identificar como “velha-guarda” pelo fato de não adotarem o novo padrão de “choro-sambado” surgido a partir da década de 1930 e continuarem a fazer da polca seu principal veículo de expressão. Para eles, assim como para nosso velho carteiro, a polca continuava sendo a principal “tradição brasileira”. 5.2) A Revista “Roda de Choro” e a coluna “Histórias do Animal” Passaremos agora a analisar uma das mais importantes “releituras” do livro “O Choro” na década de 1990: a revista “Roda de Choro”, surgida em 1995 por iniciativa do livreiro Rodrigo Ferrari e do designer Egeu Laus. A revista teve cinco números, editados entre os anos de 1995 e 1998, e recebeu o apoio da Fundação RioArte, órgão ligado à prefeitura da cidade do Rio de Janeiro. Sua finalidade era apresentar artigos, resenhas de lançamentos de CDs, colunas sobre a história dos instrumentos típicos do choro, cartas dos leitores, partituras, etc. Em seu primeiro número, datado de novembro 268 de 1995, um editorial, assinado pelo designer e amante do choro Egeu Laus, explica os propósitos da revista: Revista, boletim, informativo, folheto, fanzine. Não sabemos bem como chamar esta publicação. Sabemos, sim, dos horizontes da nossa viagem: música, hoje. Tradição e modernidade. (...) De todos os cantos e de todas as épocas, do oficleide ao sintetizador, da pena de ganso ao Macintosh, perpassando todos os gêneros, sem atravessar o ritmo, sincretizando Europa e África, juntando pretos, brancos e bugres: é o brasileiro e centenário som do choro. É nele e com ele que resolvemos falar. Não um lamento saudosista mas uma roda viva de choro, no tempo e no tom de 1995, juntando arranjadores, instrumentistas, cantores, pesquisadores, músicos e poetas, colecionadores, estudantes, produtores, e principalmente você, tarado por choro mas isolado na sua aldeia (Laus, Egeu, In: Revista Roda de Choro, n. 0, 1998) Mais uma vez se percebe o quanto a noção de “gênero musical” é indissociável de outros significados e discursos “não-musicais”: no pequeno trecho acima o termo “choro” é associado a conceitos como “sincretismo”, “raça” (“pretos, brancos e bugres”), “nacionalismo”, “tradição” (“oficleide” e “pena de ganso”) e “modernidade” (“sintetizador e Macintosh”). Assim, se por um lado a revista tinha por um lado a preocupação de mostrar a “modernidade” do choro – em diversas colunas de articulistas que falavam sobre a atualidade do gênero, o aparecimento de novos conjuntos, divulgação de partituras de compositores da atualidade, etc. – havia a preocupação de se mostrar também o lado “histórico” do choro. Não por acaso faziam parte do corpo editorial da revista pesquisadores como Ary Vasconcelos, bem como professores universitários como Luiz Antonio Simas. E, representando ainda melhor a “antiguidade” do choro, surgiu a idéia da coluna “Histórias do Animal”: A idéia era transformar o Animal em um personagem que está “pairando” a roda. Pegar o Animal e fazer dele uma espécie de colunista social da revista, recontando os “causos” do livro, mas também fazendo crônicas das rodas atuais imitando de alguma forma a sua maneira de contar histórias (entrevista com o livreiro Rodrigo Ferrari realizada em 5 de janeiro de 2011). 269 Desta forma, já no “número zero” da revista aparece a primeira coluna, que é dedicada a traçar uma breve biografia de Alexandre Gonçalves Pinto para o grande público. Assinada pelo editor Rodrigo Ferrari, ela procura ressaltar a importância do carteiro para a história do choro: Através do Animal é que podemos conhecer um pouco mais dos músicos cariocas da virada do século, tanto os que depois fariam sucesso quanto os que cairiam no esquecimento. Ele cita, por exemplo, Alfredo Vianna, melodioso flauta que viria a ser nada menos que pai de Pixinguinha. Nessa época o Pixinga já havia se exibido até na Europa com os Oito Batutas, então Alexandre priva-se de fazer muitos comentários sobre ele, já que todo mundo sabia de quem se tratava. Percebe-se assim que a preocupação do cronista era mesmo falar dos chorões anônimos, aqueles que fora das rodas não eram ninguém. Óbvio que ele cita vários medalhões, como o próprio Catulo, Anacleto de Medeiros, etc, mas o mais sensacional do livro são as páginas que falam dos desconhecidos amigos do Animal: figuras fantásticas como Honório do Thesouro, Pedro Sachristão, Luiz Gonzaga da Hora, João da Harmônica, enfim, chorões sem currículo – na sua maioria funcionários públicos – que ele reverencia maravilhosamente, traçando seus perfis musicais, desvendando seus hábitos e manias (Ferrari, Rodrigo In: Revista Roda de Choro, no. 0, 1995) 270 Figura 5: “Histórias do Animal” na Revista Roda de Choro Feita a apresentação do “Animal” o articulista avisa: A partir do próximo número, vocês ficarão em companhia do Animal. Ele vai contar histórias do arco da velha apresentando um retrato fiel do Rio de Janeiro do seu tempo, com seus personagens e a sua música. Nossa equipe de reportagem promete continuar batalhando, buscando informações e fatos novos sobre nosso ilustre colaborador. Aqueles que souberem algo a respeito podem contribuir conosco, enviando carta ou fax para a Coluna do Animal (id.) A ideia, portanto, era fazer uma brincadeira onde a figura do Animal fosse “revivida”, e ao mesmo tempo, como se vê pelo trecho acima, tentar amealhar novos 271 dados sobre o carteiro, a partir de uma possível colaboração de leitores que eventualmente tivessem mais informações sobre dados biográficos de Gonçalves Pinto. Desta forma, o próximo número da revista já trará a primeira coluna “escrita pelo Animal”. Intitulada “A volta do Animal” ela começa com uma pequena explicação onde o “carteiro” se “apresenta” aos leitores: Orgulhosíssimo! Assim me senti quando convidado pela Revista Roda de Choro para fazer parte dessa empreitada. Nunca fui um bamba da gramática nem pensei figurar entre os colaboradores de qualquer periódico, mas convite tão delicado é difícil declinar. Prometeram que meus escritos seriam sempre minuciosamente revisados, sendo os possíveis erros responsabilidade deles, que não corrigiram os meus. Assim, fico à vontade para contar coisas que eu vivi enquanto estava em plena atividade entre os vivos – muitas registradas em meu livro “O Choro”, de 1936 – e também as que presenciei aqui, lugar distante mas com boa vista (id.) Ao final da coluna, um pequeno “box”, assinado pelos editores, chamava atenção dos leitores desavisados: Recebemos em nossa redação, misteriosamente, envelopes assinados pelo chorão do início do século Animal. Os dados sobre ele já eram obscuros, agora é que ninguém entende mais nada. Num caso ímpar de paranormalidade parece que ele novamente está entre nós. É nosso dever, então, abrigá-lo em nossa roda. (id.) Sempre escrita pelo editor Rodrigo Ferrari, a coluna passará então a recontar alguns casos do livro e também histórias da atualidade como se o “Animal” tivesse “voltado”. Tal como no livro original, a ideia era satirizar também alguns “casos” relacionados com músicos atuais, sempre tentando reproduzir o estilo de Gonçalves Pinto. Segundo Ferrari, uma das questões que surgiram quando se concebeu a idéia da coluna dizia respeito à linguagem do livro original: os “causos” do livro a serem reproduzidos na coluna deveriam ser reproduções literais ou a linguagem deveria ser adaptada? Optou-se pela modernização: 272 Me dei a licença de reescrever um pouco a gramática e o português, porque se não ficaria uma coisa completamente anacrônica, mas eu tentei preservar as expressões e o caráter geral do texto. Eu só mudei umas coisas que tinham erros que muitas vezes nem eram do Animal, eram erros de tipografia mesmo, de composição. Porque ali tem isso: o livro tem muito erro do Animal, muito erro que pode ser creditado a ele, mas também tem muito erro que é da gráfica, erros de composição de tipos. Então já na primeira coluna eu coloquei o Animal falando que a revista tinha se comprometido a revisar os seus textos, uma brincadeira pra explicar um pouco desta modernização da linguagem (Ferrari, entrevista realizada em 5 de janeiro de 2011). Assim, a primeira coluna já traz a história do “Alma de Maçon” (analisada por nós no segundo capítulo): embora conservando algumas expressões usadas no original, a linguagem é, como dissemos “atualizada” e com correções ortográficas e gramaticais. Na mesma coluna, o “Animal” ainda parabeniza Ary Vasconcelos pelo seu aniversário de setenta anos, dizendo-se “sempre agradecido” pelo fato do pesquisador ter sido responsável por sua “redescoberta” para toda uma geração de “chorões de hoje”. Nos quatro números que se seguem, as colunas misturam “causos” tirados do livro com histórias da atualidade. Sobre estas, nos diz Rodrigo Ferrari: Eu passei a prestar atenção nas histórias que aconteciam em torno do ambiente das rodas que de certa forma remetessem ao ambiente descrito pelo Animal. Nessa época da revista nós passamos a fazer muitas rodas, então sobravam histórias. Em alguns casos eram histórias que eu ouvia de freqüentadores de rodas, como a história do “molho” que aparece no número três. Em outros casos eu mesmo fui testemunha ocular destes casos, como a história da “cítara do Avena” que aparece no número cinco. E aí eu procurava escrever incorporando o “jeito” do Animal (entrevista com Rodrigo Ferrari, realizada em 5 de janeiro de 2011). Na maioria das vezes, as histórias da atualidade tinham relação direta com as temáticas do livro de Gonçalves Pinto. No terceiro número, por exemplo, a história de Salvador Marins, flautista que sempre que chegava a uma roda de choro ia primeiro à cozinha do anfitrião verificar se o “gato estava dormindo no fogão” faz par com outra história da atualidade, que segundo Ferrari lhe foi contada pelo arquiteto e amante do 273 choro José Leal. É a história de um “penetra” que aparecia rotineiramente em uma casa de família na hora do almoço ou do jantar para filar a bóia; sendo convidado para a mesa, fazia antes “mil encenações”, recusando o oferecimento do anfitrião, “uma vez que não queria incomodar”, mas acabava, após muita insistência, indo sentar-se para “regalar-se” com os pratos. Até que um dia, depois de muitos almoços e jantares “filados”, o anfitrião perdeu a paciência e, após a primeira recusa do “penetra”, resolveu não mais insistir, sentando-se com a família e ignorando o indesejado elemento, que ficou na sala “ouvindo o tilintar dos copos e talheres”. Ouvindo alguém à mesa pedir para que lhe passasse o molho, o “penetra” então grita da outra sala: “Ah! Tem molho? Então eu quero!”. Como se vê, são casos que relembram de certa forma as histórias do livro O Choro; mais do que isso promoviam entre os leitores e colaboradores da Revista um imaginário do que seria o ambiente do choro no início do século. Esta percepção é apontada na carta de um leitor, endereçada à “Coluna do Animal” e reproduzida no segundo número da revista. Como dissemos anteriormente, uma das finalidades da coluna, conforme proposta dos editores presente logo no número zero, era o de tentar amealhar mais dados biográficos sobre Gonçalves Pinto. O leitor de nome Alfredo Marques, da cidade de Petrópolis, envia então uma carta na qual soma suas próprias memórias às do “Animal”. A carta se inicia com a indicação do que seria, segundo o leitor, a “enorme importância” das histórias do Animal: Meu caríssimo Animal: como de regra, passa-se ao animal a tarefa mais penosa, estafante, duradoura e útil. Veja o caso do bíblico jegue: prestou à humanidade maiores e melhores serviços que todos os economistas acumulados desde José do Egito. Coube assim a você o fardo de recriar no imaginário do respeitável público a dignidade, ingenuidade, solidariedade, sensibilidade, e tantos outros ‘ade’, além do humor, típicos dos viventes de seu tempo. Santo ofício, árduo, penoso, carga para Animal mesmo (Marques, Alfredo In: Revista Roda de Choro n. 2). 274 Logo em seguida, o leitor passa a desfiar suas próprias memórias, que se ligavam às do Animal, como se verá: Sabe, se eu não tivesse sido um ‘pirralho’ tão cioso de seus próprios negócios, teria hoje algumas histórias do Animal para contar a você. Quero dizer do próprio Sr. Alexandre Gonçalves Pinto, companheiro de meu pai no antigo DCT. Meu pai (...) em 1941 (...) resolveu falar do Animal, sempre se referindo aos excepcionais conhecimentos de seu amigo nas rodas de choro do início do século (...). Acontece que eu não levava os adultos muito a sério (...) meus pensamentos divagavam em paragens absolutamente imprevisíveis como a de recuperar a hegemonia dos ares perdida para o Valzinho em memorável batalha aérea, falha do meu cerol (...); ou como recolher o maior número de trapos velhos para o enchimento de uma bola de meia (...). Assim (...) perdi as histórias do Animal contadas por meu doce pai. (...) (mas) pode estar certo de que estarei entre os seus mais assíduos e fervorosos leitores (idem). A carta foi publicada em trechos no segundo número da Revista, como dissemos. Embora não revele novos dados biográficos relevantes sobre Gonçalves Pinto, ela é altamente simbólica pelo fato de posicionar a figura do “Animal” como responsável pelo ato de recriação de um “imaginário” no público atual daquilo que seriam as “características principais” dos “viventes daqueles tempos”. Assim, atributos como “sinceridade”, “ingenuidade”, “solidariedade” e “humor” são ligados, na visão do leitor, ao universo recriado pelo Animal. Em suma, ao “recriar” o Animal como colunista, a Revista Roda de Choro acabou por transformá-lo em “personagem” do choro, espécie de porta-voz do passado, referência de memória, símbolo de “antiguidade” e ao mesmo tempo, como aponta o leitor Alfredo Marques, responsável pela criação de um imaginário coletivo de um mundo específico: o choro antigo. Trata-se de um processo que poderia ser apontado como uma dupla mediação: de um lado temos o livro onde Gonçalves Pinto constrói suas memórias ligadas às práticas sonoras e sociais ligadas ao choro para os leitores da década de 1930 e para “a posteridade”. De outro temos a coluna “Histórias do Animal”, criada pelos editores da revista “Roda de Choro”, funcionando como uma espécie de 275 “recriação” do livro para os leitores da atualidade. Esta última mediação envolve algumas mudanças: a linguagem do livro é em parte “modernizada” para que não parecesse “arcaica” ao leitor atual. Além disso, incorporam-se novas histórias ao repertório do Animal, histórias identificadas com o mundo popular-satíricocarnavalesco do carteiro e que são em parte trazidas por pessoas do ambiente do choro (como foi o caso da história do “molho”, contada originalmente pelo arquiteto, amante do choro e amigo pessoal de Rodrigo Ferrari, que a recontou na coluna) e em parte fruto da observação direta do autor da coluna, que passou a “ prestar atenção nas histórias que aconteciam no ambiente das rodas que remetessem ao universo do Animal” conforme depoimento citado. Desta forma, o “Animal” passa a ser, graças à mediação destes diferentes atores sociais (editores da revista, colaboradores, amantes do choro, leitores, etc.) uma espécie de construção coletiva, personagem símbolo de uma construção de memória específica: a memória do choro. Não foi apenas como personagem histórico que Gonçalves Pinto foi alvo de resignificações para a atualidade. Seu livro também serviu como ponto de partida para um movimento de redescoberta – que incluiu pesquisas em acervos antigos, restaurações e edições de antigas partituras manuscritas do século XIX e primeiras décadas do século XX – do repertório de compositores ligados ao choro no período descrito pelo Animal. É este o assunto de nosso próximo tópico. 5.3) A gravadora Acari e o resgate do “choro antigo” Fundada no ano de 1999 pelos músicos Mauricio Carrilho e Luciana Rabello, a Acari Records foi definida por seus criadores como “a primeira gravadora do país 276 especializada em choro”. Como dito no início deste capítulo, boa parte de seu catálogo é voltado para o registro do repertório do choro do século XIX e inícios do século XX; dentre as principais coleções publicadas encontra-se a série Princípios do Choro com 15 Cds focalizando a obra de compositores nascidos até 1870. Resultado de um trabalho de pesquisa realizado pelos violonistas Mauricio Carrilho e Anna Paes, intitulado Inventário do Choro - que reuniu cerca de oito mil partituras de choro, entre manuscritas e editadas, dispersas por acervos da cidade do Rio de Janeiro -, as gravações fazem parte, segundo o encarte da coleção, de um trabalho de “resgate de material que permanecia em total obscuridade e inacessível ao público comum”. Para os membros da gravadora, o trabalho de Gonçalves Pinto foi uma das principais motivações e funcionou como um “guia” para todo o processo de pesquisa, conforme texto do encarte da coleção: Gonçalves Pinto traça o perfil de todos os chorões da velha guarda e grande parte dos chorões de seu tempo com uma narrativa espontânea e despretensiosa. Apesar dos erros grosseiros de sua escrita, produziu um dos mais legítimos depoimentos da história da música popular brasileira. Por ser o Animal um músico que viveu e testemunhou a fase da história da música do Brasil que trazemos à luz nesta coleção, recorremos aos seus textos ao longo de todo o trabalho e eles são aqui incansavelmente citados. A existência de vários compositores cujas partituras se encontram nos cadernos de chorões do século XIX pôde ser confirmada a partir de seu livro. Seus escritos foram referência e muitas vezes nortearam a pesquisa, esclarecendo muitos aspectos desconhecidos da vida e da obra dos cinqüenta autores aqui registrados (Encarte da Coleção Princípios do Choro – Acari/Biscoito Fino, 2002) O texto salienta, portanto, a “legitimidade” do livro de Gonçalves Pinto e o aponta como principal referência do processo de pesquisa que resultou na coleção. Entretanto, uma das questões que procurei formular aos músicos membros da gravadora e também participantes das gravações foi de que maneira eles tomaram conhecimento do livro e qual teriam sido suas primeiras impressões de leitura. De modo geral as 277 respostas mostram um estranhamento inicial. É o caso do depoimento do bandolinista Pedro Amorim, por exemplo, um dos músicos presentes nas gravações da coleção: Tomei conhecimento do Animal através do nosso querido e inesquecível amigo Ari Vasconcelos, ainda no final dos anos 70. Não sou nem nunca fui pesquisador, nunca tive método nem organização para nadar neste mar de águas fundas e traiçoeiras. A primeira idéia que me veio (devo confessar), de dentro de uma ignorância atroz: por que o Ari Vasconcelos valoriza tanto este livrinho tão mal escrito? Porque eu achei simplesmente engraçado, até gostei de ler, mas como se fosse uma piada, com aqueles erros grosseiros e as histórias tão mal contadas. Eu teria aí meus 21, 22 anos, que é uma idade danada de boa pra gente cometer erros e enganos. (Depoimento de Pedro Amorim ao autor dessa tese, em 12 de dezembro de 2010) A mesma sensação de estranhamento também teve a cavaquinhista Luciana Rabello: Conheci o livro do Animal através de meu irmão e jornalista Ruy Fabiano, que na época era crítico de música aqui no Rio. Eu tinha 15/16 anos e achei a linguagem bastante engraçada, curiosa. O que mais estranhei, num primeiro momento, foram os muitos erros de gramática (Luciana Rabello, depoimento ao autor dessa tese em 20 de dezembro de 2010). O estranhamento inicial, que nos dois depoimentos citados dizem respeito principalmente aos erros de gramática e a coesão do texto, foram superados ao longo do tempo pelas novas perspectivas que a obra abria. Para Luciana Rabello, o fato de ter trabalhado com o pesquisador Mozart de Araújo na catalogação de seu acervo quando jovem ajudou a ver o livro sob um novo prisma: Fui dimensionando a importância do livro com o tempo e na medida em que fui me aprofundando no conhecimento dessa cultura. Na época do trabalho com Mozart Araújo, chamou-me atenção o imenso número de compositores e músicos relacionados no livro. Encontrar partituras de obras de diversos deles durante o trabalho de catalogação foi mesmo emocionante. Eles ganharam vida! Cheguei a fazer uma lista de todos os compositores dessa época que encontrei no acervo do Mozart, numa inspiração arqueológica ou coisa parecida. Corri pro livro do Animal, de posse dessa lista, pra reler o que havia sobre cada um daqueles compositores. Guardo essa lista até hoje, talvez pelo impacto que isso teve pra mim, pois despertou-me a curiosidade de conhecer uma parte da história da nossa música e da nossa cidade mantida em total obscuridade (idem). 278 O violonista Mauricio Carrilho também relata o seu estranhamento inicial sobre o livro e chama a atenção, em seu depoimento, para o fato de que a obra de Gonçalves Pinto era praticamente desconhecida pelos instrumentistas de choro não só de sua geração, mas da geração de músicos de choro da época do rádio: Ninguém falava desse livro antes do relançamento em 1978, que eu saiba. Nunca ouvi qualquer menção a ele por parte dos instrumentistas mais velhos. Quando esse livro foi relançado, eu comprei na Funarte. Comprei orientado pelo Hermínio [Bello de Carvalho, produtor cultural]. Comprei e li, mas na época eu não entendi a dimensão que ele tinha. Foi só quando eu reli esse livro há uns quinze anos atrás, quando eu voltei a ter acesso a este livro – porque o meu eu tinha emprestado, aí sumiu, eu acabei comprando um outro – aí é que eu vi que era a chave para desvendar esse buraco negro, esse elo perdido das primeiras gerações do choro. A gente estava querendo saber quem eram as pessoas, como é que era essa música, e esse livro mostrava todos os caminhos, todos os ambientes, todas as figuras principais (Mauricio Carrilho, depoimento realizado em 20 de janeiro de 2010) Carrilho chama a atenção para o fato de que havia, antes do início do trabalho de pesquisa da gravadora, um grande desconhecimento do repertório de compositores de choro do século XIX. Segundo seu depoimento houve uma “quebra” de continuidade de transmissão de repertório que se deveu, em parte, ao surgimento de novos compositores de choro atuantes no ambiente da rádio e do disco, que fez com que a maior parte do “repertório antigo” fosse gradualmente esquecido: Quando eu comecei a tocar em rodas de choro, ainda adolescente, na década de 1970, esses compositores mais antigos, do século XIX, como Callado, Chiquinha e Anacleto eram tocados em rodas, mas em geral tocava-se muito pouca coisa de cada um deles. No repertório da gente tinha alguma coisa destes autores, mas a gente não sabia o tamanho e a dimensão deste repertório. Essas que a gente tocava, tocava porque tinham ficado na tradição oral do choro, e foram repassadas oralmente de geração em geração. Músicas como Flor Amorosa do Callado, Três Estrelinhas e Implorando do Anacleto. Mas nesse processo a maior parte do repertório desses autores se perdeu (idem). Para Carrilho o aparecimento de novos solistas na década de 1990 que começavam a se preocupar em fazer um trabalho de pesquisa de repertório do século XIX e o livro de Gonçalves Pinto foram a base para um movimento de retomada de 279 compositores e obras deste período. Um desses solistas, apontado por Carrilho, é o flautista e médico Leonardo Miranda: Quem primeiro me chamou a atenção pra dimensão desse repertório mais antigo foi o Leonardo Miranda. Conheci ele em rodas no final da década de 1980, início da década de 1990. O Léo começou a tocar um monte de música do Callado, ele começou a apresentar uma quantidade de músicas desses caras que a gente conhecia uma ou duas, que eu fiquei impressionado. Várias do Callado, do Anacleto, tudo coisa que eu não conhecia. Aí eu comecei a perceber que isso era uma mina de ouro, e que estava inexplorada, estava perdida. Aí eu fiz um projeto [Inventário do Choro] para fundação Rio Arte pra recuperar esse material; o projeto tinha como norte o livro do Animal, pelo fato de que ele continha boa parte dos nomes que eu estava buscando (idem). O livro funcionou então como guia e bússola para um processo sistemático de recuperação e gravação deste repertório. Além da coleção Princípios do Choro a gravadora Acari lançou também, em parceria com o Banco do Brasil, uma caixa com a íntegra das obras de Joaquim Callado encontradas em arquivos dispersos pela cidade, como a coleção Mozart de Araújo e a Fundação Biblioteca Nacional. Apesar do caráter de “resgate” deste repertório, Carrilho salienta o fato de que as gravações realizadas não procuraram reproduzir um “som de época”. Segundo o violonista, procurou-se utilizar técnicas e saberes modernos na recriação destas músicas, o que incluía tanto procedimentos técnicos ligados a gravação em estúdio quanto procedimentos modernos de harmonização. Um dos desafios deste processo de “recriação” dizia respeito ao fato de que a quase totalidade das partituras de compositores do século XIX não tinha qualquer indicação sobre o acompanhamento rítmico e harmônico que deveria ser dado às melodias escritas, conforme se vê no depoimento abaixo: É claro que a gente tinha um conhecimento da oralidade e também da audição de algumas gravações antigas, assim como o de tocar essa música em rodas com diversas gerações diferentes. Isso tudo foi fundamental pra gente conseguir estabelecer um padrão de acompanhamento dos gêneros – ritmicamente falando – e também embasado na história, no estilo – mas acrescentando coisas que a gente tecnicamente podia fazer e que eles não tinham técnica pra fazer... Acho que isso tem a ver com a harmonia também. A gente harmonizou sem quebrar a naturalidade 280 da música nem as características mais evidentes, mas acrescentamos situações harmônicas que “lincam” as pessoas de hoje ao repertório do século XIX. O cara consegue entender a música do século XIX porque ela fica com um acabamento de sonoridade, de harmonização e de sincronia rítmica; e também um acabamento de técnica ligada a sonoridade dos instrumentos atuais, às condições modernas de gravação – todo desenvolvimento técnico e tecnológico dos últimos tempos, enfim – a gente usou isso pra recriar essa música. Do contrário a gente cairia em uma coisa que eu acho destestável que é a ‘folclorização’ do choro (idem) A “folclorização do choro”, para o violonista, seria representada por tentativas de recriação deste repertório mais antigo a partir da “procura pelas sonoridades primitivas das primeiras gravações”, sem que se levasse em conta as inovações harmônicas e rítmicas das gerações do choro da segunda metade do século XX. Dessa forma, houve, no dizer de Carrilho, uma utilização consciente de procedimentos modernos, ligados à harmonia e à concepção rítmica em uma “releitura” desse repertório. No que se refere à concepção rítmica de acompanhamento, Carrilho salienta o fato de que, em um número expressivo de gravações da série Princípios do Choro, utilizou-se o “acompanhamento sambado” (para usar de suas próprias palavras) criado a partir da geração de Benedito Lacerda: Eu acho que a gente conseguiu entender a concepção de acompanhamento desse pessoal da velha guarda e do pessoal da geração pós-Pixinguinha. E a gente usa esses elementos rítmicos de acordo com a figuração da melodia ou com a intenção que a gente tem de levar [o acompanhamento] mais para um lado ou para o outro. Em outras palavras, o conhecimento do “pessoal da velha guarda”, representado pelas figuras de acompanhamentos “antigos” (como a polca), seria misturado ao conhecimento da “geração pós-Pixinguinha”, representado pela inserção de figuras rítmicas do samba no choro para uma releitura deste repertório antigo. Esse processo implicou também na recriação de gêneros musicais que estavam completamente esquecidos, como a quadrilha: Nesse processo a gente ressuscitou alguns gêneros que estavam completamente mortos, como a quadrilha, por exemplo. Como era um gênero que não existia mais 281 na tradição oral e como a gente não tinha acesso, na época, às gravações de quadrilha do início do século, a gente meio que reinventou a quadrilha. Nas nossas gravações elas ficaram menos dançantes, e a gente explorou mais a beleza melódica das quadrilhas. As melodias eram lindas e a gente fez harmonias mais ricas, com um andamento mais lento. Tudo isso pra virar uma música pra se ouvir, e não pra se dançar. Porque na época era uma coisa muito funcional e acho que é justamente por isso que ela parou, por isso que as pessoas pararam de compor. E a partir desse tratamento que a gente deu, muitas pessoas voltaram a compor quadrilha na atualidade. Eu acho que quadrilha foi um gênero que a gente ressuscitou. Assim como outros, como lundu, habanera. Ninguém tocava mais essas coisas, nem os “velhos” da geração do Meira e do Canhoto (idem). Percebe-se dessa forma que, se por um lado o livro é um dos elementos (talvez dos mais importantes, de acordo com os depoimentos) do processo de “resgate” destes compositores antigos, sua utilização, conforme fica claro no depoimento acima, nem sempre era seguida no intuito de se recriar fielmente as condições de época. No caso da quadrilha, em que pese o fato de Gonçalves Pinto realizar uma descrição bastante detalhada da dança e do caráter alegre e coreográfico da música, tais elementos não foram utilizados pelos músicos da gravadora: preferiu-se uma “recriação” que privilegiou outros aspectos como a elaboração harmônica e a escolha de um andamento mais lento1. Um outro fator também bastante ressaltado pelos músicos durante a entrevista foi o de que a leitura do livro de Gonçalves Pinto não funcionou apenas como estopim para a recuperação de compositores antigos, mas também como parte do entendimento do que seriam as “origens do choro”: Um dos grandes legados, até mesmo emocionais, trazidos pela leitura do livro é a maneira despojada, simplória, natural e despretensiosa com que ele descreve essas personalidades e todo o cenário social da época. Faz-nos entrar em contato com a verdadeira origem da cultura carioca. Transporta o leitor àquele ambiente. E talvez o mais importante: prova que o choro nasce como uma forma de expressão coletiva, uma música de encontro, de congraçamento. E, por acreditar ser esta sua maior 1 Para maiores informações sobre o processo de “recriação” da quadrilha por músicos da Acari Records remeto o leitor ao meu artigo “Aspectos de mudança e continuidades no choro: o caso da quadrilha” publicado nos anais da ANPPOM 2009. 282 riqueza, considero o livro do Animal único e importantíssimo documento histórico (depoimento de Luciana Rabello) Ao mesmo tempo em que o livro é reinterpretado como documento de origem, os discursos dos músicos entrevistados apontam para ligações entre experiências/estruturas descritas e as vivências dos próprios músicos: Eu acho que o livro nos mostra principalmente o ambiente onde a música era tocada e a forma como a música era feita. Aí você começa a fazer a relação com o que você mesmo viveu, porque a gente pegou um pouco disso ainda. As rodas, quando eu comecei a tocar, adolescente, tinham essa função ainda. Essa função social mesmo de juntar pra tocar e beber e comer. Era uma coisa só. Então as festas em que rolavam rodas eram festas que tinham comida dois dias seguidos. Cansou de ter festa na minha casa que começava sábado de manhã e seguia direto até domingo de tarde. Então era bem parecido com as situações descritas no livro (Mauricio Carrilho, depoimento em 15 de janeiro de 2011). Por outro lado, processos de ruptura são também identificados. Uma das questões levantadas por mim durante o processo de entrevistas era de que forma os músicos identificavam diferenças entre as situações musicais e sociais descritas no livro e as da atualidade. Para a cavaquinhista Luciana Rabello fatores de descontinuidade residem principalmente na maneira como os músicos atuais encaram essa música: A grande diferença do choro ali descrito [no livro do Animal] e o de hoje, reside exatamente nesse aspecto: os chorões de hoje (ao menos os da minha faixa etária) pouco se encontram com esse despojamento e pra tocar choro unicamente por prazer. Talvez pelo fato da nossa geração ser a primeira a ter podido se dedicar profissionalmente exclusivamente ao choro, esses encontros deixam de ser relacionados aos momentos de lazer. Naturalmente, há aspectos positivos e negativos em ambas as épocas. Não fica aqui uma crítica ao momento atual. Apenas a constatação que os estímulos são diferentes e, por consequência o comportamento, tendo reflexos na própria linguagem musical. Hoje é comum numa roda de choro o músico/compositor levar partituras quando pretende mostrar uma nova composição. Esse chorão contemporâneo tem por desafio não apenas exibir sua capacidade de acompanhar "de prima", mas mostrar melhor acabamento, melodias e harmonizações mais ousadas e surpreendentes, em busca de novos caminhos. É natural que o criador que teve acesso a informações de épocas posteriores seja motivado a isso. Por termos na nossa cultura musical compositores 283 como Ernesto Nazareth, Pixinguinha e alguns outros, não sei se podemos chamar o que descrevo acima como um processo de evolução, mas com certeza são características de um novo tempo (Depoimento de Luciana Rabello) Em outras palavras, a profissionalização dos músicos do choro teria sido responsável por uma mudança de atitude em relação a esta música: ao invés de se constituírem como “momentos de lazer”, a reunião de instrumentistas passou a ser ligada a ideia de “trabalho”. Por outro lado, o depoimento sugere que a “sofisticação” (muito embora a própria cavaquinhista problematize a noção de “evolução do choro”) harmônica da atualidade teria de alguma forma modificado a dinâmica das rodas. O chorão contemporâneo não teria apenas como premissa a habilidade de “acompanhar de prima”, mas de apresentar “acabamentos, melodias e harmonizações mais ousadas e surpreendentes”. Depreende-se do depoimento, o fato de que esta procura por um “refinamento” melódico e harmônico teria, de alguma forma, afetado o “despojamento” da roda: uma vez que os caminhos de harmonia e melodia se tornam “ousados e surpreendentes”, a prática de acompanhamento “de prima”, ou seja, calcada apenas no conhecimento do repertório tradicional, passa a ser inviável. Daí o fato de que compositores e músicos passam a levar partituras para a roda. É curioso que a utilização de partituras nas rodas de choro da atualidade seja apontada como um fator de ruptura com o universo descrito por Gonçalves Pinto, já que, como vimos anteriormente, o carteiro descreve vários encontros de instrumentistas onde os solistas levavam seus cadernos manuscritos. No entanto, é preciso frisar que nas rodas descritas pelo carteiro, assim como no Retiro da Velha Guarda, descrito no tópico anterior, apenas os solistas liam; o acompanhamento era todo “de ouvido” e o que qualificava um bom acompanhador era sua capacidade de não “cair” isso é, de não cometer erros de harmonia. O depoimento de Luciana Rabello aponta para o fato de que 284 a “sofisticação” harmônica das composições atuais teria levado à necessidade de que também os acompanhadores passassem a se utilizar de partituras, uma vez que o acompanhamento deixava de ser o tradicional. Este é um fator, portanto, visto como uma ruptura com o universo descrito no livro. Finalmente, outro dado importante presente nas entrevistas por mim realizadas com os músicos ligados a gravadora Acari aponta para a interpretação do livro não apenas como um “discurso de origem”, uma narrativa ligada ao passado; mas pelas modificações que sua leitura proporcionou ao “presente” do choro, e por conseqüência, às perspectivas do futuro: Para mim o livro do Animal não só salvou o choro do século XIX mas salvou também o choro do século XXI. Porque ele foi a referência, a bússola pra gente fazer vários trabalhos que resultaram em um monte de desdobramentos como é a própria Acari e como são as diversas oficinas de choro que a gente faz no mundo todo. A gente tinha no sangue essa música, mas não tínhamos material musical que fechasse o circuito da relação entre a música do século XIX e a música do século XX, e a gente só conseguiu chegar a esse material, que é essa coleção imensa de partituras, por causa do livro do Animal. No fundo é um livro do passado que modifica o futuro; toda a nossa forma de compor e de tocar foi alterada pelo conhecimento dessa música do passado, proporcionada pelo livro (entrevista com Mauricio Carrilho) Em suma, o livro de Gonçalves Pinto é tomado não apenas como estopim para um movimento de recuperação do repertório antigo; ele é apropriado, por um lado, como uma narrativa mítica das origens do choro, e por outro, como projeção do futuro, conforme se percebe por este último depoimento. Creio que caberia aqui uma reflexão sob o modo como um discurso do passado é apropriado por um grupo específico e transformado em diretriz para o futuro. Neste sentido, podemos retomar aqui o conceito de Vila (1995), exposto no primeiro capítulo, para quem a constituição de gêneros musicais passaria necessariamente pelo enfoque da narrativa. Esta seria uma forma de construção e ordenamento do mundo em um processo que é ao mesmo tempo sincrônico e diacrônico: através da eleição de determinadas narrativas do passado como modelos, 285 grupos constituem sua identidade do presente e projetam suas expectativas para o futuro. Ao eleger, portanto, o livro de Gonçalves Pinto como “narrativa de origem” da história do choro, o grupo de músicos ligados à gravadora Acari está, de certa forma, construindo seu próprio passado e escolhendo, entre vários discursos que nos chegam através da história, aquele que mais convém à situação do presente. Falamos em eleição de uma narrativa mítica: cumpre salientar que não se sugere com isso que tal narrativa seja falsa. Como demonstrou Sahlins (2008: 44-52) estruturas míticas e simbólicas estão continuamente imbricadas na construção histórica em um processo que é essencialmente dialético. Mais uma vez se percebe aqui uma dupla mediação: o discurso do carteiro elege uma série de elementos que serão tomados como símbolos da identidade do choro, o que inclui figuras que se tornarão míticas (como Callado), um repertório específico (formado por um corpus de compositores da “velha-guarda”), situações sociais que serão apontados como paradigmáticas (festas com comida e bebida, encontros entre os músicos, etc.). Todos estes elementos constituirão, na escrita de Gonçalves Pinto aspectos que configuram identidade e homogeneidade ao grupo. Por outro lado, seu discurso é reapropriado por um grupo de músicos da atualidade, naturalmente em um contexto histórico completamente diverso daquele em que o livro foi escrito, como uma teia de significações que justifica e confere sentido às práticas do presente. Este processo é mais complexo do que parece ser à primeira vista: não se trata de simplesmente “replicar” atitudes e estruturas do livro na atualidade e sim de escolher, dentre a diversidade de narrativas, conceitos, pensamentos, repertórios, práticas sonoras e sociais que o compõem, aquelas que serão tomadas como pontos de partida para novas significações do presente e projeções para o futuro. Em outras palavras, é um processo que envolve recriação, seja de práticas musicais do passado que são reconfiguradas, como é o caso da quadrilha (regravada com andamento mais lento e com uma 286 abordagem harmônica diferente da original), seja de situações sociais específicas que serão vistas como paradigmáticas, ainda que não tão presentes na atualidade, como o “despojamento” das rodas antigas, sempre ligadas a “dimensão festiva” da vida. 5.4) “Pedro e o Choro”: o “Animal” para as crianças Passamos agora a tratar de uma das mais recentes “recriações” da figura de Gonçalves Pinto. O livro-Cd Pedro e o Choro de autoria de Simone Cit e direção musical de Roberto Gnattali transforma a figura do “Animal” em um personagem de história infantil. Lançado em 2008 com o patrocínio da Petrobras, ele se insere, segundo as informações do próprio livro, em um projeto intitulado “Histórias da Música Popular Brasileira para crianças”, que recebeu o prêmio Cultura Viva do Ministério da Cultura em 2007. Com sua primeira tiragem sendo “quase inteiramente distribuída para professores”, o livro tem forte apelo pedagógico, apesar de ser considerado por seus autores mais como uma “obra literária” e não como um livro didático (Cit, 2008: 166). Paródia do clássico “Pedro e o Lobo” de Sergei Prokofiev, o livro é uma adaptação da história original que utiliza elementos brasileiros: todos os temas musicais são choros, inéditos ou conhecidos, que se associam aos animais apresentados ao decorrer da história. Os autores se utilizam em boa parte de choros que tem nomes de bichos, como “O Voo da Mosca” de Jacob do Bandolim, “Camundongo” de Waldir Azevedo, “Urubu Malandro”, tema popular, entre outros. Na história, o menino Pedro vive com sua avó Helena, com quem toma aulas de música, e alguns bichos de estimação. Ao final de cada aula Pedro ficava “folheando um livro antigo, presente de um bom amigo de sua avó no passado”, nada menos do que o livro O Choro de Alexandre Gonçalves Pinto: 287 O curioso escritor do livro que Pedro olhava tinha um estranho apelido que o deixou intrigado sem entender o sentido do codinome adotado. Uma história musical, pelo que a avó tinha dito, e Pedro achava esquisito que quem a tivesse escrito fosse por todos chamado de Animal. (Cit, 2008: 28) O menino vai então pedir explicações à avó sobre o autor e a razão do apelido, o que faz com que a velha leia a poesia de Max-Mar que abre o livro. Assustado com a idéia de que um “Animal” havia escrito o livro, Pedro só presta atenção ao primeiro verso: “Alto, já bem grisalho e urucungado”; mais assustado ainda, o menino decide sair às escondidas da avó, à cata deste “perigoso animal”, levando seus animais de estimação. No caminho eles se encontram com outros animais que são incorporados ao grupo; após muitas aventuras, já bem longe de casa e sem ter conseguido encontrar o “animal” Pedro resolve escrever uma carta para a avó, se utilizando de um carteiro que encontra pelo caminho, ninguém menos do que o próprio Alexandre Gonçalves Pinto. A confusão é desfeita e o “carteiro-personagem” esclarece: Acredite, pessoal, pois é a mais pura verdade. Sou chamado de Animal e, cá entre nós amiguinhos, eu acho o apelido legal. Carteiro de profissão nas horas vagas eu toco cavaquinho e violão. O livro que eu escrevi fala com toda a sinceridade de gente que conheci tocando pela cidade.” (id.: 145) O livro se encerra então com uma grande roda de choro com todos os personagens e animais. Na pequena seção dedicada “aos professores”, ao final, os autores chamam a atenção para as possibilidades pedagógicas da obra e para a figura histórica de Alexandre Gonçalves Pinto, remetendo inclusive para um link na internet onde seria possível acessar a obra, até então de difícil aquisição2. Essa curiosa “reutilização” de Gonçalves Pinto como personagem de uma obra voltada para o público infantil chama nossa atenção mais uma vez para os processos de 2 Após o relançamento em 1978, O Choro ficou décadas sem reedição, passando a ser um livro de difícil acesso. Em 2010 a Funarte fez uma segunda edição do livro. O Instituto Moreira Salles publicou em seu sítio virtual uma versão em pdf. 288 re-significação do livro na atualidade. A autora Simone Cit nos fornece mais elementos para o entendimento deste processo: A ideia de Pedro e o Choro surgiu da obra de Prokofiev, em uma aula para crianças. A partir dessa primeira ideia, passei a pesquisar choros com nomes de bicho para construir o roteiro. Daí a pensar o Animal como o Lobo da minha história foi só um pulinho na imaginação, não sei nem precisar o momento. Quando fiz o projeto (...) o Animal já estava na história, mas eu ainda não tinha escrito o texto. E como ele é todo rimado, muita coisa aconteceu que eu não havia previsto. Mas a intenção sempre foi a de que o Animal fosse uma metáfora do conhecimento chorístico. O choro não é um gênero solitário, longe disso... É a música das rodas, dos encontros. Ao buscar o Animal, o nosso Pedro conhece choros e chorões... (Simone Cit, depoimento ao autor, em 22 de janeiro de 2011, grifo meu). Gonçalves Pinto então se torna, mais do que um personagem de livro infantil, “metáfora do conhecimento chorístico”; ao mesmo tempo sua narrativa contribui para a construção de um imaginário do choro como uma música coletiva, “a música das rodas, dos encontros”. 5.5) Em busca do “Animal” Termino o presente capítulo relatando os resultados de minhas buscas a possíveis familiares e descendentes de Alexandre Gonçalves Pinto. É preciso esclarecer em primeiro lugar, um pouco das circunstâncias em que estas pesquisas foram feitas. No ano de 2004, antes, portanto, de iniciar meu doutorado, fui convidado a integrar uma equipe que reunia as pesquisadoras Anna Paes e Nana Vaz de Castro e que tinha por objetivo viabilizar um projeto de reedição do livro de Gonçalves Pinto, cuja edição da Funarte já havia há muito se esgotado. A ideia era fazer uma edição crítica do livro, acrescentando dados sobre os biografados, listas de composições, fatos históricos etc. Para viabilizar o projeto, entretanto, era necessária a autorização de possíveis herdeiros e um de nossos primeiros passos foi a de pensar de que forma seria possível localizálos, se é que eles efetivamente existiam. O fato de que nem o próprio Ary Vasconcelos 289 conhecia dados sobre a vida pessoal de Gonçalves Pinto, como se depreende da leitura do prefácio da reedição de 1978 nos fez supor que a edição da FUNARTE havia sido feita sem qualquer contato com a família. Apesar da constatação das dificuldades, iniciamos as buscas da forma mais prosaica possível: procurando em uma lista telefônica online pelo nome de “Alexandre Gonçalves Pinto”. Surpreendentemente a pesquisa revelou quatro resultados, sendo que um deles com um endereço em Botafogo, bairro da zona sul do Rio de Janeiro. Lembrando que o depoimento de Bororó a Ary Vasconcelos ligava Gonçalves Pinto a este bairro (conforme o prefácio da reedição da FUNARTE), resolvemos iniciar nossas buscas por aquele telefone. Desta forma localizamos uma neta do “Animal”, D. Cleuza, então com 79 anos. Conseguimos marcar então uma entrevista com ela, que foi realizada na casa de Marcelo Gonçalves Pinto, bisneto de Alexandre e neto de D. Cleuza. Cumpre dizer que nosso objetivo principal durante a visita era obter autorização para uma reedição da obra: ainda assim levamos um gravador para entrevistar D. Cleuza. Como afirmado anteriormente, na época eu ainda não havia nem sequer formulado meu projeto de doutorado, e meu interesse na entrevista era o de alguém que tinha lido o livro e que naturalmente tinha interesse pelo tema, mas que ainda não tencionava escrever especificamente sobre ele. Transcrevendo a entrevista para esta tese lamentei o fato de não ter feito algumas perguntas específicas, que teriam sido importantes para o trabalho; quando tornei a procurar a família, já iniciado meu doutorado, D. Cleuza já havia falecido. Some-se a isso o fato de que, durante a entrevista realizada em 2004, D. Cleuza, então com 79 anos, afirmava continuamente que “estava muito esquecida”, lamentando a todo instante não poder nos dar dados muito precisos sobre o avô. Segundo ela, Alexandre falecera quando ela ainda era criança, e seu tempo de convivência com ele tinha sido curto, ainda que intenso. Ainda 290 assim, creio que a entrevista revela alguns novos dados sobre o carteiro, ainda que poucos e fragmentados, pelos motivos expostos acima. A seguir transcrevo os trechos mais significativos da entrevista: PA – A senhora é filha de... D. Cleuza – Sou filha de Xandico, Alexandre Gonçalves Pinto Filho, que era filho do Alexandre Gonçalves Pinto. Meu pai, assim como meu avô, era carteiro e também tocava cavaquinho. Na minha casa sempre teve música. Na minha casa freqüentou Jacob do Bandolim, Pixinguinha, o César Faria. O filho dele é o Paulinho da Viola. Frequentaram minha casa, naquela época a gente fazia cervejinha... O Jacob tinha uma coisa, quando tocasse todo mundo calava. Se falasse alguém ele parava. Ele vinha na minha casa. PA – Quantos filhos seu avô teve? D. Cleuza – Meu avô teve seis filhos. Tem um que não era da minha avó, era de outra mulher que ele teve, o nome dele era Otávio. Da minha avó tinha: Julieta, Sefízia (tudo nome grego), tinha meu pai, que era Alexandre também; e tinha Yolanda. São seis, não é? O nome da minha avó era Virginia. Tinha outro que era... Antonico. O Otávio é que era filho dele com outra mulher. Ele vivia com ela, não chegou a casar não... Foi a paixão da vida dele aquela mulher. Depois ele casou com a minha avó. Tanto é que ele tinha escrito aqui (aponta o braço) – naquele tempo já se usava tatuagem – o nome dela. Ele depois quis tirar, depois de muitos anos, mas não conseguiu. O nome dessa outra mulher parece que era Amélia. Ou Aurélia, alguma coisa assim. PA – A senhora sabe quando e onde seu avô nasceu? D. Cleuza – Ah, quando eu não vou lembrar. Sei que ele se criou naquelas bandas de São Cristóvão, Meier, por aí. Da onde é mesmo eu não me lembro. Quando eu nasci ele morava no Engenho Novo. Porque o vovô sempre morou por lá. Não, minto, vovô foi de Vila Isabel. Tem uma tia, esta Yolanda, namorou o Noel Rosa. Quando eu nasci meus pais moravam em Vila Isabel também, na mesma rua que meu avô. Os meus pais moravam em uma casa e o meu avô em outra casa, na mesma rua. E depois viemos para Botafogo. Ele era agarrado com esta filha Julieta, que ele ajudava. Viemos para São Clemente, Fernando de Guimarães, Arnaldo Quintella PA – Mas a senhora chegou a morar com o seu avô? D. Cleuza - Desde Fernando de Guimarães morávamos todos juntos. A família se uniu pra morar junto, ele queria ter a família junto. Ele era muito agarrado com a família. Mas o que eu posso dizer a vocês é muito pouca coisa, sabe, na época a gente era criança, a gente não se ligava muito nesse negócio de música. Só uma deu pra música a Celuta, minha prima, que já morreu. O Cupertino é que ensinava a ela piano. O meu avô adorava música, por ele as netas todas, ele queria que tocassem piano. E ele queria ensinar a gente, mas a gente começava a caçoar dele, porque ele falava as coisas com a gente, as notas, mas a gente errava, acabava caçoando dele. Aí ele 291 desistiu, disse “vocês não estão querendo nada” (risos). Mas a vontade dele era que as netas todas tocassem música. PA - A senhora se lembra de quando ele estava escrevendo este livro, ou de quando saiu este livro? D. Cleuza - Me lembro! Eu já era crescidinha, como aparece naqueles retratos ali (aponta). Ele tinha os livros em casa, lembro dele distribuindo, todo contente, para os amigos. Tudo dele era escrito, ele sabia a idade dos filhos, dos netos, tudo escrito. Depois a gente se desfez de tudo dele, não sei nem que fim levou, a gente não sabe mais. O César [Faria] me conhece, quando eu vejo ele me cumprimenta. Xandico, meu pai, tocava cavaquinho. Fumava cachimbo, também, ele gostava de tocar e fumar cachimbo. PA – A senhora sabe em que ano seu avô morreu? D. Cleuza – Ih, meu filho, o ano eu não lembro não. Ele faleceu depois da minha avó, morreu na r. Arnaldo Quintella. Ele era forte, tinha aquele cabelinho caído... A filha dele mais velha morreu há quatro anos, se isso tivesse sido descoberto há mais tempo ela tinha muita coisa pra contar. Ele gostava muito de tomar vinho. Morreu na casa de uma vizinha, se encheu de vinho, chamaram ele pra almoçar lá. Ele devia estar com a pressão alta. Se encheu de vinho, comeu... Quando foi pra casa horas depois ele passou mal. PA – A senhora lembra se o seu avô tinha partituras de músicas em casa? E que fim elas levaram? D. Cleuza – Lembro que ele tinha muitas partituras sim. Parece que essas partituras o meu pai [Xandico, filho de Alexandre], deu para o Jacob [do Bandolim]. Deu a ele porque ele era famoso, e ninguém pensou que alguém ia precisar daquilo algum dia. O Serginho, filho do Jacob, adorava a minha mãe. A gente tinha até um retratinho dele com a dedicatória. Como se vê, o depoimento adiciona alguns dados à biografia de Alexandre Gonçalves Pinto, ainda que, em razão da idade avançada, D. Cleuza não pudesse dar informações mais precisas. Assim, se não foi possível precisar seu ano e lugar de nascimento, o depoimento de sua neta nos mostra que ele morou em Vila Isabel, tendo posteriormente se mudado para Botafogo com a família. Neste bairro teria morado nas ruas S. Clemente, Fernando de Guimarães e Arnaldo Quintella, onde faleceu. Fator digno de nota é o contato, mencionado no depoimento, entre a família Gonçalves Pinto e importantes nomes do choro da época, como Pixinguinha e Jacob do Bandolim. O mais provável é que esse contato tenha se dado após a morte de Alexandre; tendo em 292 vista que Jacob do Bandolim iniciou sua carreira em meados da década de 1940, é pouco provável que o carteiro ainda estivesse vivo por essa época. De qualquer forma, a entrevista comprova que houve uma efetiva ligação entre Jacob do Bandolim e a família de Gonçalves Pinto; entretanto não consegui localizar no acervo do bandolinista, hoje parte do Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro, nenhum documento ou escrito sobre este encontro. 293 Considerações Finais Como dito no início do primeiro capítulo dessa tese, o período histórico conhecido como a Belle époque carioca é repleto de significados e discursos (orais, escritos e sonoros) em torno de conceitos como nacionalismo, identidade, ancestralidade e autenticidade. Por sua complexidade, é ainda um período que desafia pesquisadores da atualidade, que recorrem a diferentes fontes de época para tentar montar, cada um a sua maneira, uma espécie de mosaico histórico deste período que testemunhou o nascimento de diversos discursos sonoros que seriam posteriormente eleitos símbolos da nacionalidade, como o samba e, em menor escala, o choro. Naturalmente, este jogo de construção de memória não se restringe aos pesquisadores acadêmicos: dele participam também outros atores sociais como jornalistas, músicos, produtores culturais, entidades e amantes de música de forma geral. Esta multiplicidade de vozes, se por um lado enriquece a discussão, certamente também a torna mais complexa. Acontecimentos históricos, sociais e sonoros do passado são reinterpretados por esta cadeia de mediadores através do tempo, em perpétua produção de discursos, muitas vezes antagônicos, sobre eventos do passado. Este processo, obviamente, não está infenso a simplificações, reificações e fantasias (em todos os níveis, inclusive o acadêmico); dada a complexidade de fontes e “vozes” que nos chegam do passado, há um perigo quase constante de se atribuir características simplificadoras a estes discursos, que são, em sua maioria, complexos e polifônicos. Assim, se os discursos de Vagalume e Orestes Barbosa são respectivamente, contra e pró o advento da rádio e do disco, é certamente simplificador reduzir seus relatos a uma simples discordância ou aquiescência com a incipiente indústria fonográfica da época. 294 No que se refere a Alexandre Gonçalves Pinto, uma das simplificações muito presentes na bibliografia acadêmica e extra-acadêmica é a de considerá-lo como um ingênuo ou “primitivo”, cujo relato serviria apenas como fonte de pesquisa para uma história social do choro. O “bom” Alexandre, no dizer de Tinhorão, apesar de ter escrito um livro de “grande ingenuidade” (1998B), revelaria fatos “sociológicos” importantes; uma de minhas motivações para escrever a presente tese foi, portanto, a de problematizar esta visão. Conforme espero ter demonstrado, seu livro é um relato complexo que deve ser estudado e analisado como tal. Como demonstram as muitas frentes de pesquisa levantadas ao longo dessa tese, a obra do carteiro poderia ser comparada a uma espécie de novelo em que diversos “fios” podem ser “puxados”, cada qual apontando para uma frente de pesquisa. Passo agora em revista estas frentes, salientando os aspectos que, segundo minha visão, podem ser apontados como contribuições do presente trabalho para um entendimento mais profundo deste que é um dos mais importantes documentos da música popular urbana do Rio de Janeiro. Em primeiro lugar realizei uma revisão bibliográfica de obras acadêmicas e extra-acadêmicas que tratam do livro: vimos que, de forma geral, tais obras identificam no livro apenas “dados sociológicos” e o analisam muitas vezes de forma depreciativa (p. ex. Cazes, 1998), ou pelo menos condescendente, identificando seu autor como um ingênuo ou primitivo, como reforçamos acima. Ora, não há dúvida de que o livro é uma das mais importantes fontes de época, que nos permite desvelar aspectos históricos e sociais da época – meu próprio trabalho aborda estes campos de maneira efetiva. Apesar disso, procurei encontrar novas ferramentas metodológicas que pudessem aprofundar minha análise; neste sentido, o binômio memória social-etnografia foi fundamental: ele permitiu “enxergar” o livro para além da visão tradicional que o vê como um amontoado de frases aparentemente sem nexo e coesão gramatical. 295 É evidente que o livro é um documento de memória social do choro. Para além desta constatação, procurei mostrar, ao longo da tese, que esta construção de memória partiu não apenas do carteiro: ela é resultado, sem dúvida, de uma memória social (ou coletiva para utilizarmos o conceito de Halbwachs) que foi construída por diferentes mediadores da época e que abrangia questões sobre nacionalidade, ancestralidade e historicização do choro. Assim, alguns discursos podem ser identificados como “narrativas míticas” sobre a origem do choro, como, por exemplo, aquele que identifica Joaquim Callado como formador do primeiro conjunto e “pai dos chorões”. Seus feitos como instrumentista e compositor correram de boca em boca e se constituíram como uma construção coletiva que foi absorvida e repetida por diferentes gerações. Gonçalves Pinto nada mais faz, em seu livro, do que registrar parte das histórias e feitos míticos que ouvia da boca de seus companheiros mais antigos do choro, ainda que ele próprio não tivesse conhecido Callado. Aprofundando ainda mais a questão da memória, procurei mostrar de que forma o livro foi, ao longo do século XX, se transformando de “memória subterrânea” a “memória oficial” do choro. Seu lançamento, em 1936, não obteve quase nenhuma repercussão – pelo menos, não consegui encontrar nenhum dado sobre ele nos principais periódicos mais importantes da época. Faço a ressalva de que, por questões de tempo e de falta de material humano – teria sido necessário uma equipe de trabalho, neste sentido – não me foi possível realizar uma pesquisa extensiva em todos os jornais de época, ainda que eu tenha pesquisado nos principais, como o Jornal do Brasil e O Globo. A falta de dados sobre a data exata do lançamento também dificultaram naturalmente as pesquisas. Em todo o caso, creio ser razoável supor que as razões que levaram Catullo a se negar a escrever um prefácio para a obra – os “desmantelos 296 gramaticais” – possam ter influído de maneira decisiva para que o livro fosse ignorado pela grande imprensa. Vimos ainda que o livro permaneceu como memória subterrânea até a década de 1960, quando encontrei o que aparentemente é o primeiro estudo mais aprofundado sobre ele: o fichamento elaborado por Jacob do Bandolim, que serviu como base para várias leituras propostas na tese. Saliento apenas o fato de que, mesmo neste período o livro teve muito pouca repercussão entre os instrumentistas de choro: minhas pesquisas com alguns músicos mais velhos, como César Farias e Carlinhos Leite, ambos contemporâneos de Jacob mostraram que eles desconheciam totalmente o livro. Mesmo no depoimento de Déo Rian sobre o Retiro da Velha Guarda, - reunião de músicos da “velha-guarda” que permaneceu até a década de 1960 com alguns dos músicos que foram “retratados” por Gonçalves Pinto - não foi possível encontrar nenhuma referência ao livro: como disse Déo ao longo de seu depoimento, nunca houve, pelo menos nas rodas que ele presenciou, a menor menção a Gonçalves Pinto e a seu livro por parte dos músicos mais velhos. É a partir de 1978, data do seu relançamento pela FUNARTE, através do pesquisador e jornalista Ary Vasconcelos, que a obra começa a se transformar em “memória oficial” do choro. Parte deste processo se deu através dos trabalhos do próprio Vasconcelos: como vimos no primeiro capítulo, o pesquisador se utiliza do livro de Gonçalves Pinto como ponto de partida para o estabelecimento de uma historiografia da música popular brasileira que tinha por objetivo formar um painel, o mais completo possível, sobre instrumentistas e compositores populares da belle époque. Em vários de seus livros, como Panorama da música popular brasileira (1964) e Panorama da música brasileira na Belle époque (1977) percebe-se nitidamente a intenção de se “completar” o panorama de instrumentistas e compositores populares feito pelo carteiro, 297 através da adição de novos dados biográficos que pudessem, nas palavras do próprio Vasconcelos, “organizar a casa”, isto é, determinar com a maior precisão possível dados biográficos como datas de nascimento e morte, informações sobre as carreiras musicais, composições etc., de cada um destes instrumentistas. A partir da década de 1990, o livro passa a fazer parte de uma teia de resignificações, se consolidando como “memória oficial” do choro. Vimos como diferentes enfoques da atualidade “apreenderam”, por assim dizer, o livro e seu autor, transformando-os sucessivamente em “colunista social” de uma revista voltada para o público de choro, estopim para um movimento de recuperação de repertório do “choro antigo” e matéria-base para um livro infantil. Neste processo, muitos discursos e idéias são proferidos por diferentes atores sociais para justificar estas re-significações; em outras palavras, cada um destes atores procurará identificar na narrativa de Gonçalves Pinto fatores que justifiquem acontecimentos, atitudes e pensamentos da atualidade. O Animal e seu livro se tornam assim símbolos de ancestralidade e autenticidade do choro, e o que era memória subterrânea se transforma em memória oficial. Outro fator que gostaria de destacar como contribuição da tese é a constatação de que o livro do carteiro se constitui também como uma “contra-memória” - no sentido atribuído por Foucault (1977) - pelo fato de incorporar em sua representação do passado a voz daqueles que foram silenciados ou marginalizados pelo discurso dominante. Esta constatação, se por um lado está ligada à recuperação de pelo menos parte das “vozes” daqueles instrumentistas populares da época, também se liga à eleição de um discurso musical e ideológico como representante máximo da nacionalidade. Para o grupo descrito pelo carteiro a memória do choro era, em grande parte, a memória da polca, “uma tradição brasileira” assim como o samba. Procurei mostrar como o aparecimento de novas formas de acompanhamento, baseadas em grande parte nas figuras rítmicas do 298 samba do Estácio – figuras calcadas na contrametricidade conforme nos demontra Sandroni (2001) – foram também apropriadas pelos novos instrumentistas e compositores de choro a partir da década de 1930. Assim, o “novo choro” que surge com muita força neste período, ligado aos instrumentistas da rádio e do disco – e o flautista Benedito Lacerda é, sem dúvida, um dos pioneiros deste movimento de apropriação de figuras rítmicas do samba do Estácio ao choro – faz surgir uma cisão entre o que seria a “velha guarda” e a “nova guarda”. A “velha guarda” seria assim representada pelos instrumentistas que ainda tinham a polca como mainstream do acompanhamento do choro e se mantinham infensos a incorporação dos padrões do samba – parte deste grupo, como vimos no capítulo cinco, permanecerá vivo até a década de 1960, esparso em rodas de choro como as do Retiro da Velha Guarda, da qual o bandolinista Déo Rian é testemunha. É a memória deste grupo, que seria cada vez menor a partir da década de 1930, que Gonçalves Pinto busca preservar, fazendo em seu livro uma defesa veemente da polca como símbolo da música nacional. Suas estratégias de defesa são, a meu ver, bastante inteligentes: por um lado ele procura estabelecer a polca como um elo de ligação entre os instrumentistas “da velha” e da “nova guarda”. Como vimos no capítulo três, ele afirmará que: A polka cadenciada e chorosa ao som de uma flauta, fosse o flautista o Viriato, o Callado, o Rangel ou seja o Pixinguinha, o João de Deus ou Benedicto Lacerda; um violão dedilhado outr'ora, por Juca Valle, Quincas Laranjeira, Bilhar, Néco ou Manduca de Catumby e hoje por Felizardo Conceição, José Rabello, Coelho Grey, Donga, João Thomaz, etc.; um cavaquinho palhetado hontem por Mario, Chico Borges, Lulu' Santos, Antonico Piteira e hoje pelo mestre dos mestres Galdino Barreto, Nelson [Alves], João Martins – foi, é e continuará a ser a alma da dansa brasileira (116). O carteiro tem razão em estabelecer estas pontes de ligação entre os antigos e novos instrumentistas, uma vez que a memória da polca não foi abruptamente esquecida pelas novas gerações: entretanto, não há dúvida no fato de que ela deixa de ser a 299 principal forma de acompanhamento para se tornar coadjuvante do “novo choro sambado”, por assim dizer; mais do que isso, ela passa a ser associada a uma forma antiquada de acompanhamento, a forma “como os velhos acompanhavam”, conforme ouvi da boca de alguns instrumentistas da atualidade, como Déo Rian. Neste processo, o repertório desse “novo choro”, simbolizado pelos instrumentistas da rádio e do disco, substitui progressivamente o repertório dos chorões do século XIX e inícios do século XX: como afirmamos ao longo do trabalho, a maior parte das composições de músicos considerados “fundadores” do choro, como Joaquim Callado e Anacleto de Medeiros, ficou praticamente esquecida durante a segunda metade do século XX, sendo preservada apenas pelos cadernos manuscritos de velhos instrumentistas que chegaram até nós. E é também contra este esquecimento que o carteiro se insurge ao fazer, em seu livro, um apelo para que o maior representante do “novo choro” – o flautista Benedito Lacerda – gravasse também o repertório dos “antigos chorões”. Diga-se, de passagem, que outros membros do grupo da “velha-guarda” também fizeram apelos semelhantes em prol desta memória específica, como é o caso do flautista Jupiaçara Xavier, que escreve a Almirante oferecendo seus “cadernos de choro”, como vimos no capítulo quatro. Se os conceitos do campo da memória social foram de grande valia metodológica, também fundamental foi a utilização da perspectiva etnográfica como ferramenta de análise do livro. Como salientado no primeiro capítulo, utilizo o termo “etnografia” como conceito amplo de descrição verbal de práticas sociais não necessariamente ligadas a um aparato teórico antropológico; utilizo-me assim das definições de Clifford (1998:26) e Seeger (1992: 89) que procuram dissociar historicamente as funções do etnógrafo e do antropólogo. Tais visões procuram questionar a idéia, que se consolida a partir das primeiras décadas do século XX, de etnografia como campo de estudos exclusivo da antropologia, dominada pelo arcabouço 300 teórico desta disciplina. Assim, segundo Clifford (1998) uma vez “apropriada” pelo campo de estudos da antropologia, a etnografia seria entendida a partir de duas visões básicas, de certa forma complementares. A primeira seria a definição de Lévi-Strauss segundo a qual a etnografia se constituiria como a “observação e análise de grupos humanos considerados em sua particularidade (...) e visando a sua reconstituição, tão fiel quanto possível a vida de cada um deles (Lévi-Strauss, 1973:14). A segunda seria a de antropólogos como Geertz, para quem a etnografia seria “uma atividade eminentemente ‘interpretativa’, uma ‘descrição densa’, voltada para a busca de ‘estruturas de significação’ (Geertz 1978: 20-25). Para além destas definições clássicas, as últimas décadas do século XX testemunharam uma grande crise de legitimidade destes padrões tradicionais de etnografia como premissas da atividade antropológica. Questões como a desintegração e a redistribuição do poder em territórios antes dominados pela relação “metrópolecolônia” e a percepção de que o Ocidente não poderia mais ser considerado o único provedor de conhecimento antropológico sobre outras partes do globo, minaram, por assim dizer, o padrão de etnografia científica que predominou no seio da antropologia na primeira metade do século XX. Desta forma, como apontamos no capítulo cinco, a condição atual alcançada por um mundo cada vez mais globalizado e, paradoxalmente, segmentado, seria a de uma multiplicidade de mediadores formando um panorama de “etnografia generalizada” (Clifford, 1998: 19). Dentro deste contexto, novas formas de compreensão do que pode ser definido como um texto etnográfico tornam-se necessárias. Textos escritos sob o ponto de vista de nativos de culturas específicas ganham novo apelo. Citando ainda Clifford (1998:98): “Com o recente questionamento dos estilos coloniais de representação, com a expansão da alfabetização e consciência etnográfica, novas possibilidades de leitura (e 301 portanto de escrita) das descrições culturais estão surgindo”. Esta percepção nos dá a chave para o entendimento do livro de Gonçalves Pinto sob uma nova ótica: ao invés de considerá-lo simplesmente como um escritor ingênuo e naif, passamos a enxergá-lo como um nativo escrevendo sobre as práticas culturais de seu grupo; neste processo, novas possibilidades de leitura se abrem ao pesquisador. A perspectiva etnográfica, portanto, nos permite entender o livro como uma textualização de práticas culturais de um grupo que se auto-definia sob a denominação “choro”. O livro nos mostra que esta palavra se constituía como uma célula viva que incluía relações sociais, práticas sonoras, discursos sobre o som, gestualizações, danças, fórmulas de oralidade e gírias. O “choro” era, simultaneamente, o lugar em que se tocava, as ocasiões festivas onde a música se dava, o grupo de instrumentistas, admiradores, dançarinos e boêmios que se reuniam em torno dessas práticas musicais; o termo abarcava também a linguagem falada pelo grupo. O livro nos permite entender de que forma o grupo construía sua própria história e seus mitos de origem, ao “canonizar” alguns instrumentistas e compositores como membros fundadores das práticas realizadas pelo grupo. Este processo de “canonização”, aliás, é bem parecido com o que ocorre com a música de concerto europeia: instrumentistas e compositores são tomados como “pais fundadores” de determinadas práticas, em um processo que envolvia a escolha de suas músicas ou “escolas” como modelos para os outros membros do grupo. Ao mesmo tempo, histórias míticas sobre seus feitos e proezas são construídas e disseminadas pela tradição oral, passando de geração em geração. Se os grandes instrumentistas e compositores são fundamentais para a constituição do grupo, o livro também nos mostra a grande importância dos instrumentistas “fracos”, ou “facões”, para utilizar um termo do próprio Gonçalves Pinto. Como frisado no primeiro capítulo, O Choro retrata, sem distinção, tanto os 302 melhores quanto os piores instrumentistas; tanto amadores quanto profissionais; tanto instrumentistas quanto não instrumentistas (ou seja, apreciadores do gênero); tanto intelectuais e músicos ligados a “alta cultura” quanto músicos ligados a classes operárias. Na contramão da bibliografia tradicional que procura sempre destacar os pontos culminantes de cada gênero ou estilo musical, o livro nos mostra que amadores, diletantes e instrumentistas fracos eram tão importantes para a dinâmica do grupo quanto os expoentes em seus instrumentos e os “pais fundadores”. Para além disso, o carteiro se esmera em mostrar que a habilidade instrumental não era o único fator a ser considerado pelo grupo na avaliação do grau de importância de um membro do grupo. Dessa forma, Sátiro Bilhar não é considerado um expoente apenas por ser o “rei dos acordes”, mas também pelo fato de que seu repertório de ditos, provérbios e frases feitas eram, tanto quanto sua música, parte do fator de identidade do grupo. Assim, ao reproduzir alguns destes ditos e frases feitas em seu livro, Gonçalves Pinto nos mostra que, para o grupo, os discursos que rodeavam Bilhar eram tão importantes quanto aquilo que ele tocava. A perspectiva etnográfica nos permite ainda analisar a linguagem do livro sob outra ótica. Ao invés de procurarmos aquilo que o carteiro não nos dá, ou seja, a norma culta e a coesão gramatical, passamos a enxergar sua escrita como representação da linguagem oral utilizada pelo grupo. Aqui há que se ter cuidado: não estou sugerindo com isso que todos os membros do grupo escrevessem como o carteiro. O grupo descrito é bastante heterogêneo e reunia não só intelectuais como membros mais letrados; é possível que mesmo outros carteiros tivessem maior grau de instrução e alfabetização do que Gonçalves Pinto. Entretanto, a escrita do livro reproduz em grande parte a linguagem oral que conferia identidade ao grupo; como visto nos capítulos um e dois, esta linguagem poderia ser definida a partir do conceito de heteroglossia, cunhado 303 por Bakhtin para descrever estratificações linguísticas não-oficiais utilizadas por grupos específicos no interior da “linguagem oficial”. Havia, assim, uma gíria do choro, uma linguagem não-oficial que caracterizava o grupo, e que é, em parte, a linguagem usada pelo carteiro em seu livro. Este é outro dos pontos em que o presente trabalho procura fornecer um novo ângulo de visão sobre nosso objeto de estudos; para analisarmos a linguagem utilizada no livro, procuramos aliar a perspectiva etnográfica a outro conceito de Bakhtin, fundamental para o desenvolvimento desta tese: o de carnavalização. Tal conceito, como vimos, está ligado a ideia de sublevação, ainda que temporária, das hierarquias e ordens vigentes através do uso, em um determinado período do ano, de elementos ligados ao satírico, ao burlesco, à valorização de símbolos escatológicos (os órgãos sexuais, os excrementos, a linguagem de baixo calão), ao grotesco, etc. Dessa forma, no período carnavalesco, as estratificações sociais presentes em diversas comunidades da Idade Média eram sustadas pelo “riso coletivo” das festas populares. Para que nossa análise fosse realmente efetiva, era necessário realizar um estudo comparativo com outras fontes populares da época. Neste sentido foi de fundamental importância a coleção de periódicos do rancho Ameno Resedá, documentação que cremos ter permanecido inédita até o presente trabalho, e que integra a Coleção Jacob do Bandolim pertencente ao Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro. A análise dos jornais do rancho nos mostrou uma grande aproximação com a linguagem utilizada em O Choro, até pelo fato de que, como vimos, boa parte dos chorões descritos por Gonçalves Pinto também freqüentava o universo dos ranchos carnavalescos. Em ambos os casos, a sátira funciona como um passaporte para o “riso coletivo”, onde, conforme definição de Bakhtin (1984:10-11), nem os próprios burladores se excluíam do processo de sátira. Assim, os sonetos satíricos, o uso de expressões populares e gírias, muitas das 304 quais quase incompreensíveis para o leitor médio da atualidade, cumpriam um papel de construção de identidade entre os membros do grupo. Como escreve o articulista do jornal do Ameno Resedá, independente da posição de cada um dos membros, fossem eles “araras ou turunas, benfeitores ou contribuintes, tudo entra na borduna”, ou seja, todos estariam imersos nesse riso coletivo e satírico. A comparação com a linguagem utilizada no jornal do rancho nos mostra, dessa forma, que a prosa de Alexandre fazia parte de um universo popular-carnavalesco comum a determinados extratos sociais; linguagem que era, no dizer de Tinhorão (2000:15), eivada de irreverência, por seu gosto e tendência por “grosserias” e “chulices”, mas que, por isso mesmo, representava “um curioso exemplo de conciliação literária entre a desbragada liberdade da fala popular das ruas e o sentido da boa moral das camadas burguesas urbanas”. Portanto, qualquer análise da linguagem do livro deve se basear no entendimento desse contexto, sem o qual ela se torna incompreensível. Além de se constituir como fator identitário de um grupo que partilhava as práticas sociais e sonoras dos ranchos e do choro, afirmamos que esta linguagem popular-carnavalesca funcionava como um instrumento eficaz de suspensão da ordem vigente, sublevação das hierarquias constituídas e passaporte para a entrada em uma dimensão festiva da vida, no melhor sentido bakhtiniano. Para fundamentar esse pensamento nos utilizamos ainda do conceito de “dialética da malandragem” utilizada por Antonio Cândido para caracterizar outro documento que retrata extratos populares do século XIX: o folhetim Memórias de um sargento de milícias de Manoel Antonio de Almeida. Ao identificar o complexo jogo dialético que frequentemente embaralhava os círculos da “ordem” – representados pelos personagens que encarnam as figuras públicas do livro, como Leonardo-pai (oficial de justiça) e o Vidigal – e os da “desordem” – representados por figuras “marginais” como a cigana, o curandeiro do 305 mangue, etc – Cândido nos aponta para uma sociedade onde as fronteiras entre o lícito e o ilícito eram extremamente permeáveis. Procuramos mostrar, ao longo do segundo capítulo, que essa mesma tensão entre o lícito e o ilícito estava presente nas narrativas e nos personagens descritos pelo “Animal”. Vimos como diversos “representantes da ordem” descritos por ele — soldados, policiais, funcionários públicos etc, — estavam sempre no limiar entre estes dois hemisférios, sendo freqüentemente repreendidos ou mesmo exonerados de seus cargos pela incompatibilidade entre as funções que exerciam e as tentações da “vida festiva”. Os “heróis do choro”, como Alexandre os denomina, eram, na verdade “anti-heróis”, que, ao privilegiarem o riso, a sátira, os pagodes sempre acompanhados de farta comida e bebida – tudo isso intermediado pelas práticas sonoras definidas sob o nome “choro” – deixavam de lado o círculo da ordem, as hierarquias constituídas, a vida institucionalizada e “oficial”, enfim. Verificamos também que esta mesma inversão de valores era freqüente nas crônicas dos jornais do Ameno Resedá. Se por um lado identificamos o caráter carnavalesco e popular da linguagem utilizada por Gonçalves Pinto, procuramos identificar também outros elementos que fazem parte de sua narrativa; nesse sentido, salientamos o caráter polifônico do texto, ao mostrarmos empréstimos e intertextualidades com pensamentos normalmente associados às camadas “cultas” e intelectuais da sociedade da época. Verificamos como, em diversos momentos do livro, o carteiro levanta questões associadas a ancestralidade, nacionalidade e raça. Em seu verbete sobre a “Alvorada da música”, por exemplo, Gonçalves Pinto procura traçar uma linha de continuidade entre o choro as práticas musicais das bandas de escravos, conforme salientado por Braga (2002: 210); mais do que isso, procura identificar essas bandas de música como fator primordial para o processo de abolição da escravatura. Como vimos no terceiro capítulo, o carteiro cita as bandas de música formadas por escravos como responsáveis pelo abrandamento “dos 306 duros corações dos grandes escravocatas”. Da mesma forma, na introdução do livro Gonçalves Pinto se refere aos “costumes bahianos que foram trazidos da África pelos nossos queridos nossos antepassados” e que seriam guardados “com o maior carinho em nossos corações”. Procuramos mostrar, amparados pelo pensamento de Abreu (2007), que esta confusa relação entre Bahia e África como “fontes” e “origens” das tradições brasileiras sem dúvida já estava presente no imaginário popular e também nas ideias de intelectuais desde o século XIX, entre os quais o escritor Mello Moraes, citado no livro. Passamos agora a outra frente de pesquisa que julgo também ser contribuição importante desta tese: a análise dos aspectos da práxis musical descrita no livro. Ao estudar e mapear de que forma o autor identifica em sua obra processos de transmissão, aprendizado e ensino das práticas musicais do choro, procuramos mostrar que o livro salienta a existência de uma rede de trocas não comerciais e não oficiais que funcionavam em paralelo às instâncias oficiais de disseminação e ensino da música – representadas pelas editoras de partituras e as escolas “reconhecidas”, como o Conservatório Imperial de Música. Assim, se boa parte dos instrumentistas descritos, principalmente aqueles que tocavam instrumentos de sopro, tinham “diploma do Conservatório”, como o carteiro faz questão de frisar como garantia de suas habilidades e proficiências musicais, a grande maioria tinha por mestres instrumentistas que não eram formalmente ligados a instituições de ensino, mas que de alguma maneira eram fundadores de “escolas” de seus instrumentos. Exemplo claro disso é a figura de Galdino Barreto, apontado por Gonçalves Pinto e seus contemporâneos como criador de uma forma de se tocar o cavaquinho e ao mesmo tempo “o único educador deste instrumento” (54). O violão também tinha seus representantes populares, não ligados a instâncias oficiais, como Sátiro Bilhar e João Pernambuco, ainda que, como nos mostram os trabalhos de Leme (2006) e Taborda (2005), o processo de ensino e 307 aprendizagem do instrumento abarcasse também métodos de ensino europeus, como os de Carcassi e Tárrega. À parte estes expoentes - grandes instrumentistas populares cujos feitos eram celebrados de boca em boca - o livro nos mostra que nomes menos conhecidos também funcionavam como instâncias de ensino e transmissão dessa música; é o caso de Videira, flautista e operário de uma fábrica de cigarros, responsável por grande parte do ensino de Gonçalves Pinto. Apesar de “tocar de ouvido”, sabia dizer em sua flauta “o que os outros diziam sabendo música”; passando a acompanhar regularmente Videira, o carteiro teria, em seu próprio dizer, principiado a tocar violão e cavaquinho, tornando-se assim um instrumentista “respeitado na roda dos tocadores batutas”. Da mesma forma, pontos de encontros entre instrumentistas também são mencionados como centro de ensino e transmissão dessa música; era o caso da residência de um certo Gedeão, classificada por Gonçalves Pinto como “uma grande escola de musicistas, onde o autor dessas linhas ia ali beber naquela fonte seu aprendizado de violão e cavaquinho” (17). Chegamos agora a um ponto que julgo central na tese: o livro de Alexandre Gonçalves Pinto abre caminho, a meu ver, para uma frente de estudos muito pouco explorada pela musicologia tradicional: a análise de acervos manuscritos de música popular dos séculos XIX e primeiras décadas do século XX. Ao mencionar, de forma recorrente em seu livro, a importância dos registros escritos em um grande número de acervos particulares, o carteiro nos aponta para a existência de uma rede dinâmica de transmissão do repertório de choro que era feita através de cópias de álbuns e partituras manuscritas. De forma similar aos aspectos de ensino e aprendizado mencionados anteriormente, este processo de transmissão do repertório através de uma rede de copistas funcionava de forma paralela ao trabalho das editoras de músicas impressas: paralela e complementar, poderíamos dizer, uma vez que abrangia corpus de 308 obras de compositores de choro que jamais chegaram a ter suas composições editadas. Mesmo aqueles que gozavam de grande prestígio popular, como Callado e Anacleto de Medeiros só tiveram uma pequena parte de suas obras impressas; a maioria de suas composições só nos chegou através destes cadernos de instrumentistas populares. As constatações acima nos permitem estabelecer uma série de reflexões que julgo oportunas e que apontam para desdobramentos desta tese. A primeira delas diz respeito a uma velha dicotomia, em parte já em parte ultrapassada pela bibliografia acadêmica mais recente, entre instâncias cultas, ou eruditas versus instâncias populares, as primeiras pressupondo tradições escritas realizadas dentro de estratos sociais ligados às camadas altas ou elites, e as segundas pressupondo saberes orais ligados às camadas mais baixas da população. Se estudos das últimas décadas de diversos campos da história (principalmente da história cultural e da microhistória, com trabalhos como os de Burke, 1989 e Ginzburg, 2006), e da teoria e crítica literária (Bakhtin, 1981, 1987) já nos fornecem ferramentas que nos permitem questionar o que há de reducionista nessa aparente dicotomia, creio que mesmo importantes estudos mais recentes sobre a música popular urbana brasileira não escaparam de cair em uma tipologia por vezes simplificadora destas categorias. Mencionamos, no primeiro capítulo, a dicotomia apresentada no importante trabalho de Vianna (2007:29) entre o pensamento intelectual e “o povo”, representados respectivamente por Gilberto Freire e Prudente de Morais Neto, de um lado, e Pixinguinha, Donga e Patrício Teixeira de outro, no encontro que é o mote do livro. Como argumentamos no referido capítulo, a dicotomia é questionável uma vez que Pixinguinha e Donga também imersos em uma tradição “culta” musical: ambos sabiam “ler e escrever” música e eram detentores de acervos de partituras que remontavam ao século XIX. 309 Poder-se-ia argumentar que Pixinguinha e Donga talvez devessem ser considerados exceções, uma vez que seriam representantes máximos da indústria fonográfica da época, e portanto não poderiam se enquadrar na (problemática) categoria de “povo”. Mas eis que Alexandre Gonçalves Pinto nos apresenta em seu livro uma sociedade onde representantes destes estratos sociais comumente associados às camadas populares – carteiros, carregadores, estafetas, pequenos funcionários dos telégrafos, etc. –, escreviam e trocavam partituras, constituindo coleções de músicas populares que funcionavam – talvez mais do que a indústria de partituras da época – como poderosa ferramenta de disseminação e transmissão destas práticas sonoras abarcadas sob a denominação “choro”. Não estou sugerindo com isso que todos os membros destes estratos sociais se utilizassem do registro escrito, nem que ele seria a única base de ensino, aprendizagem e transmissão do repertório do choro. Como vimos ao longo do trabalho, a transmissão oral era de fundamental importância, principalmente no que se referia a práticas de acompanhamento rítmico-harmônicas realizadas por violões e cavaquinhos. Enfatizo, sim, a ideia de que tradições orais e escritas se misturavam de forma complexa e ao fazê-lo procuro mostrar o quão simplificador pode ser a associação, ainda presente em nossa musicologia tradicional, entre suportes escritos (partituras) como símbolos de saberes “eruditos” e transmissões orais como símbolos de saberes populares. Esta última afirmativa é corroborada pela constatação de que o campo de estudos da tradicional musicologia acadêmica brasileira ainda tem um largo caminho a percorrer no que se refere à análise destas coleções de músicas populares urbanas manuscritas. Isso nos leva a nossa segunda reflexão, que enunciaremos a partir de um duplo questionamento: de que forma as ferramentas tradicionais da musicologia podem ser aproveitadas na análise dessas coleções específicas, e de que forma novas 310 ferramentas podem ser criadas a partir do estudo de características específicas destas coleções? São questões que permanecem como desafio para trabalhos futuros. Feita esta pequena digressão, retornamos ao nosso tema: ao apontar para a existência de uma rede de copistas de música popular que tinham grande importância no processo de transmissão do gênero, Alexandre Gonçalves Pinto nos abre caminho, como dissemos, para uma nova frente de pesquisas ainda por ser desenvolvida. Ao iniciar meus estudos sobre o livro O Choro, sabia de antemão que um dos capítulos de minha tese seria focado no mapeamento e análise das práticas musicais abordadas no livro – o que incluía particularmente a questão dos acervos. Entretanto, ao começar a realizar minha “pesquisa de campo” na Coleção Jacob do Bandolim, cedo percebi que o tema, por sua vastidão e complexidade, extrapolava os limites de uma tese de doutorado. Tenho então total consciência de que o trabalho de análise deste material, alvo do quarto capítulo desta tese, pode ser considerado apenas como um “pontapé inicial” no que se refere a estudos acadêmicos sobre o assunto. Perspectivas de pesquisa que proponham não apenas trabalhos de mapeamento e catalogação destas coleções - dispersas em várias instituições públicas e privadas do Rio de Janeiro - mas que se utilizem do aparato metodológico de campos como etnomusicologia, musicologia história, memória social, história e antropologia para uma análise mais efetiva destes acervos são, a meu ver, desdobramentos possíveis para esta tese. Por outro lado, creio que uma reflexão mais aprofundada sobre o papel destes pesquisadores-músicos da década de 1960, como Almirante e Jacob do Bandolim, ainda está por ser feita. Como vimos no primeiro capítulo, o pensamento acadêmico contemporâneo tende a agrupar estes pesquisadores sob a denominação – em que não há como negar um tom depreciativo – de “folcloristas urbanos” ou “colecionistas”. Sem querer absolutamente negar o que há de reducionista ou simplificador no pensamento 311 destes pesquisadores, creio que uma avaliação mais aprofundada de seus papéis passaria por uma análise extensiva de seus acervos, escritos e ideias, algo que a meu ver ainda não foi feito. Em parte pelas condições precárias de acessibilidade desses acervos, muitos dos quais total ou parcialmente inacessíveis em instituições públicas e privadas; em parte pelo fato de que as idéias e pensamentos destes pesquisadores encontram-se dispersos em gravações de programas de rádio e jornais de época, o fato é que há ainda muito a ser feito para que possamos avaliar com maior clareza a dimensão desta geração de pesquisadores. *** Iniciamos nosso trabalho afirmando que o livro de Gonçalves Pinto estabelece um castelo de memórias. Ao final de nosso “passeio” por sua obra, podemos dizer que o carteiro não nos fala apenas de memórias: ele nos fala da relação entre discursos sonoros e discursos verbais, de como práticas sonoras funcionam como fator de construção de identidade para um grupo ou nação, de que forma mudanças e continuidades são percebidas por tais grupos e de que forma articulações políticas – e o livro não deixa de ser uma manifestação política em prol de uma memória – são montadas com o intuito de se preservar as características de um grupo. Todos esses elementos estão imbricados nestes “castelos de fantasia” que o carteiro ergueu em sua imaginação para compor este que é um documento ímpar da história da música popular brasileira. 312 FONTES 1) Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro 1.1) Coleção Jacob do Bandolim Acervo de Partituras Manuscritas Pasta: “Indice O Choro” Pasta: “Jornais do Ameno Resedá” 1.2) Coleção Almirante Acervo Jupiaçara Xavier REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ABREU, Martha. “Mello Moraes Filho: festas, tradições populares e identidade nacional”. In: A história contada: capítulos de história social da literatura no Brasil. Sidney Chalhoub e Leonardo Affonso de M. Pereira, org. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998. ABREU, Martha e DANTAS, Carolina Vianna. “Música popular, folclore e nação no Brasil, 1890-1920” In: Nação e cidadania no império: novos horizontes. José Murilo de Carvalho, org. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007. ALMEIDA, Manuel Antônio de. Memórias de um sargento de milícias. 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