o mito e a racionalização do pensamento social no

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O MITO E A RACIONALIZAÇÃO DO PENSAMENTO SOCIAL NO
PROMETEU ACORRENTADO DE ÉSQUILO
SOUZA, Paulo Rogério de (FOCO/GTSEAM/UEM)
ROCHA, Alessandro Santos da (GTSEAM/UEM)
Introdução:
Na sua origem a sociedade grega teve como base um sistema particular de família
denominado génos. Os gene eram agrupamentos primitivos familiares constituídos por clãs
patriarcais. Cada clã se organiza entorno de um antepassado em comum e seus integrantes se
reuniam para prover a subsistência numa estrutura baseada na agricultura e na religião. Tudo
que era produzido na propriedade gentílica tinha como finalidade a manutenção de toda a
comunidade.
A religião gentílica era o seu princípio norteador e a ela cabia, segundo a crença,
designar a autoridade de governar e legislar essa forma de comunidade. Acreditava-se na
concepção de que a vida coletiva do homem não era administrada por princípios humanos,
mas sim, por numa força divinizada. Essa força considerada divina era a base da religião
doméstica e a tornou algo essencial para a condução dessa forma de organização. Isto porque
era a religião que unia a família e a ela cabia a obrigação de assegurar a continuidade dessa
comunidade.
Para a religião doméstica, não existiam normas, nem rituais comuns a todas as
famílias. Cada grupo familiar tinha suas cerimônias, seus ritos e cantos sagrados, suas orações
particulares para o seu deus, e acreditava que esse deus era o protetor exclusivo do seu clã: “...
cada deus protegia apenas uma família e era o deus apenas de uma casa...” (COULANGES,
1975, p. 31).
Num primeiro momento, a religião grega apresentou características bem próximas das
religiões primitivas bárbaras, ou seja, religiões primitivas dos povos não helenos e que tinham
em seus cultos a celebração de rituais e homenagem a deuses com aparência de animais.
Ambos – gregos e bárbaros – cultuavam ídolos inspirados na natureza, tais como a água, o
raio, o fogo, o vento, tidos como representações de seres divinos: “Na Arcádia, por exemplo,
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sobreviveu [...] o culto de deus com cabeça de animais, como a Deméter com cabeça de
jumenta. Certos animais consagrados aos deuses como a águia de Zeus ou a coruja de Atena,
devem ter sido antigas divindades” (JARDÉ, 1977, p. 125).
Esses cultos tinham por finalidade acalmar as forças místicas do mundo com
cerimônias particulares, tidas como sagradas, em honra a essas divindades, e também serviam
para explicar ao homem a sua origem e os eventos naturais que ele não conseguia entender
por si só.
Não obstante, os gregos foram alterando sua orientação, e a religião doméstica tornouse mais complexa. Eles começaram a adaptar a religião dos povos que chamavam de bárbaros
à sua realidade. Em uma dessas adaptações os gregos passaram a representar as divindades
sob forma física humana. Os deuses, até então representados como seres animalescos,
passaram a ser vistos como homens e mulheres, na sua forma física, o que se constituiu no
“antropomorfismo”.
Segundo a crença da religião doméstica, apesar de sua aparência física humana, os
deuses eram bem superiores aos homens, e essa superioridade era que os distinguia. Os deuses
eram maiores; tinham beleza incomparável e força extrema; não envelheciam com o passar do
tempo e tinham suas próprias leis, às quais estavam hierarquicamente subordinados. Eram
justamente essas características que separavam os homens dos deuses:
Falou-se tanto do antropomorfismo dos deuses [...] que, por vezes, as pessoas
já mal se apercebiam do abismo que os separavam dos homens. Este abismo
não é constituído apenas pelo fato de os deuses serem imortais. Também a
idéia da força sobrenatural que a eles ainda associada subordina a sua ação a
leis próprias (LESKY, 1995, p. 86).
Outra característica que diferenciava os deuses dos homens era seus poderes
“sobrenaturais” – como o do domínio das forças da natureza e da longevidade eterna –, os
quais os tornavam superiores aos homens e pelos quais eram respeitados, cultuados e temidos
pelos mortais: “Eles diferem radicalmente dos homens, todavia, pelo fato de serem imortais e
gozarem de poderes sobre-humanos. Zeus desencadeia o relâmpago e Posêidon a tempestade.
Os deuses se transformam livremente; eles transformam também os homens” (ROMILLY,
1984, p. 33).
Por outro lado, os gregos, em sua religião doméstica, não deram aos deuses em que
acreditavam apenas forma física humana. Os seus deuses passaram a ter características
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humanas também nos traços de personalidade, e carregavam os mesmos vícios e virtudes que
tinham os seus adoradores. Os deuses eram descritos como seres ciumentos, invejosos,
vingativos, rancorosos, passionais, iguais aos mortais. Da mesma forma, demonstravam
benevolência, inteligência, honradez, respeito, coragem e senso de justiça entre seus
membros:
Eles vivem, aliás, de maneira idêntica à dos homens. [...] Esses deuses
também têm, como os homens, paixões nem sempre lícitas. [...] De qualquer
modo, essas paixões levam com freqüência a misturar-se com os homens, às
vezes sob seu próprio aspecto, às vezes sob traços fictícios. [...] Todas essas
características tornam os deuses não só antropomórficos, mas extremamente
humanos, com os defeitos inerentes a expressão (ROMILLY, 1984, p. 3233).
Conquanto fossem apresentados sob a figura humana, de acordo com a tradição
familiar, esses deuses não deixavam de ter as características divinas que lhes eram atribuídas
segundo os preceitos da religião doméstica. A crença na religião doméstica do génos exigia do
homem antigo uma relação de respeito e de submissão com essas divindades.
Por essa relação com os deuses, a crença nos mitos, o culto aos antepassados, o
homem grego do período Arcaico encontrava-se submisso às leis instituídas pela religião e
pela crença no divino; e também estava submisso ao poder sagrado que, segundo acreditava,
essas leis tinham sobre ele.
A dependência do homem para com seus deuses levava-o a sentir a vida determinada
por um “destino”, ou, como o chamavam os gregos, pela deusa Moira – divindade olímpica
que simbolizava o destino do homem. Segundo a crença num destino predeterminando o
futuro, as decisões da vida comunitária nunca poderiam estar nas mãos de nenhuma pessoa
individualmente, mas deveriam permanecer sob os supostos “desígnios divinos”. De acordo
com a crença na religião doméstica e nas leis divinas, a coletividade do génos garantia a
organização social mantendo a submissão do homem aos seus preceitos.
Desta forma, o homem da sociedade gentílica era destituído de liberdade plena e de
autonomia para tomar as decisões pessoais, e tinha a vida norteada pela crença na religião
doméstica – representada pelo pater poder1 –, e pela necessidade de manutenção da
coletividade imposta pela tradição familiar, para a sobrevivência da comunidade. Era essa
1
“... o pater poder se referia a todo homem que não dependia de outro que tivesse autoridade sobre uma família
e sobre um domínio” (COULANGES, 1975, p. 71).
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existência coletiva socialmente determinada no interior da família gentílica que gerava uma
consciência baseada na dependência do homem para com os seus pares com vista a manter a
sobrevivência de todo o clã.
Esse sistema de organização social baseado na família gentílica – regida pelo poder
patriarcal e pautada em relações estabelecidas por uma religião doméstica – vigorou na
sociedade grega até o surgimento das cidades-Estado.
O surgimento da cidade-Estado e a influência social da tragédia
A cidade-Estado era a forma de vida social mais característica dos gregos da época
clássica e pode ser definida, segundo James Redfield (1994), como um corpo político baseado
na idéia de cidadania (p. 155): quer dizer, era uma comunidade constituída por uma
pluralidade de pessoas juridicamente iguais.
A cidade-Estado surgiu como uma tentativa de resolver os problemas sociais que a
sociedade arcaica não conseguia mais abarcar, e se caracterizou pela transição do génos,
guiado pela consciência mítica e pela coletividade familiar, para a pólis, regida pela
racionalidade e pela individualidade. A nova forma de organização, que se deu com o
surgimento das cidades-Estado, alterou a forma de ser, de agir e de pensar desse povo:
O aparecimento da pólis constitui na história do pensamento grego, um
acontecimento decisivo. Certamente, no plano intelectual como no domínio
das instituições, só no fim alcançará as suas conseqüências; a pólis conhecerá
etapas múltiplas e formas variadas. Entretanto, desde seu advento, que se
pode situar entre os séculos VIII e VII, marca um começo, uma verdadeira
invenção; pois a vida social e as relações entre os homens tomam uma forma
nova, cuja originalidade será plenamente sentida pelos gregos (VERNANT,
2002a, p. 53).
Foi com a pólis que se iniciou o desmembramento das relações estabelecidas pelos
laços consanguíneos e pela religião do génos. O que até o momento eram os elos que
mantinham unida a comunidade gentílica – o grau de parentesco e a religião mítica –,
deixaram então de ser fundamentais para os membros da nova organização.
Na transição do período Arcaico para o período Clássico a sociedade grega começou a
demonstrar uma outra forma de enxergar a nova “realidade” e uma consciência para a vida
coletiva. O governo das cidades-Estado ainda estava a cargo da aristocracia que ainda
mantinha uma crença nos mitos, porém vislumbrava uma nova forma de dirigir a vida em
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sociedade. Dessa forma, o homem grego clássico começara a libertar-se da crença nas leis
divinas e do destino pré-determinado pelos deuses, para orientar-se por leis escritas pelos
cidadãos da pólis democrática, o que mudaria toda a maneira de viver e de governar desse
povo.
Essas transformações foram impulsionadas pela nova postura que o grego tomou para
dirigir essa sociedade através do diálogo da política e pelo surgimento da filosofia, e com ela
outras maneiras de enxergar e de explicar a existência e a essência humana. Isso porque o
mito e os deuses já não respondiam os questionamentos desse homem político e já não
conseguiam dar sustentáculo a essa sociedade agora regida sob uma nova perspectiva de
administração da sociedade, ou seja, pela Democracia.
Inserido nesse contexto, o cidadão da pólis não buscava mais nos deuses da religião
gentílica explicações para as suas raízes e começou o processo de rejeição a crença num
destino condutor de sua vida. A filosofia aos poucos substituíra a Teogonia e buscou
preencher as lacunas sobre a origem das coisas e do próprio homem. O cidadão político
procurava cada vez mais tomar a administração e organização da sociedade como sua
responsabilidade.
E foi no processo dessas transformações, pela busca de explicação para as mudanças
estruturais na qual estava inserido o homem, que surgiu a tragédia grega; um gênero artístico
que conseguiu entronizar o espírito da sua época.
A tragédia carregava em si a essência conflituosa do período Clássico, pois conseguia
conciliar em si tanto a religião com o culto aos deuses nas dionisíacas, como também serviu
como um instrumento político onde o cidadão expressava-se socialmente.
A importância dispensada a tragédia fez com que crescesse a influência do poeta no
meio social. Esses poetas acabaram ocupando papel de destaque na política e na formação do
povo, como foi o caso de Ésquilo, poeta trágico que vivenciou a efervescência do processo de
transição para a pólis, e expressou esse mesmo processo em suas peças.
Ésquilo viveu em Atenas nesse contexto em que o grego já passava por
transformações na maneira de vivenciar a sua existência e a sua vida em comunidade. A
religião entrara em embate com os novos princípios racionais levantados pelos primeiros
filósofos. O mito e a razão eram constantemente evocados para debater sobre quem ou o que
deveria ter a autoridade para comandar a cidade, e também como essa cidade deveria ser
conduzida.
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Como todo grego desse momento histórico Ésquilo experimentou e presenciou essas
discussões, e foi além ao levar para o “palco” esse embate entre a crença e a razão. As
personagens de Ésquilo apresentavam constantemente as características desse homem em
busca de identidade, que tentava entender as mudanças na maneira de sentir-se inserido na
comunidade e qual seria a sua obrigação para com seus pares.
Ésquilo procurou mostrar em suas peças que a religião gentílica não perdera
completamente a importância no cotidiano do povo com a formação da cidade-Estado, mesmo
com a vida política e com as novas formas de tentar explicar sua existência pela filosofia: “É
nele que o duplo alcance da tragédia – religioso e coletivo – é mais freqüentemente
caracterizado” (ROMILLY, 1984 p. 75).
Para o cidadão Ésquilo a religião e os deuses mereciam todo respeito dos cidadãos.
Mas essa não podia mais ser particularizada e opressora como na sociedade do génos. A
religião na pólis deveria ter uma característica agregadora tendo como função servir ao bem
comum. Por isso o poeta procurou caracterizar em suas personagens os homens do seu
cotidiano. Homens que ainda carregavam traços da comunidade gentílica mantendo o mesmo
respeito que os antigos dedicavam a sua religião, mas que diante das mudanças estruturais na
forma de organização já abandonavam suas características primitivas de submissão e
dependência e começavam a assumir uma outra postura cultural, social e religiosa diante da
realidade citadina.
Como exemplo disso pode-se citar a peça Prometeu acorrentado, na qual as
personagens esquilianas foram construídas a partir da história mítica de Prometeu, de fundo
mítico religioso, mas que no enredo do tragediógrafo essas personagens apresentavam
características do novo homem da pólis.
O mito de Prometeu e o processo de racionalização do cidadão da pólis
Apesar de quase na sua totalidade as personagens esquiliana da tragédia Prometeu
acorrentado fazerem parte do mundo mítico, ou seja, serem deuses ou semideuses, pode-se
verificar que o foco principal da discussão do autor era o homem, mesmo havendo uma única
personagem humana na peça: a jovem Io.
Ao descrever a trajetória da condenação de Prometeu a preocupação do poeta foi
enfatizar a desobediência do condenado diante da autoridade até então inquestionável do deus
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supremo do Olimpo: Zeus. Roubando o fogo que pertencia a Zeus, o titã Prometeu rompeu
com o estado de hierarquia que até então regia a ordem do universo “divino”, provocando
assim a ira dos outros deuses, pois esse ato fragilizava um direito até então considerado
exclusivamente divino: “Deus descuidoso do rancor dos outros deuses,/ quisestes transgredir
um direito sagrado/ dando aos mortais as prerrogativas divinas” (ÉSQUILO, 1993, vv. 44-46,
p. 16).
O crime do titã fora prontamente respondido com castigo e condenação, pois o seu ato
rompera com toda uma estrutura organizacional que até o momento estivera sustentada no
comando do soberano do Olimpo e que passara a ficar com o risco de sucumbir devido a
rebeldia de Prometeu: “É hora de pagar aos deuses por seu crime/ e de aprender a resignar-se
humildemente/ ao mando soberano de Zeus poderoso” (ÉSQUILO, 1993, vv. 11-13, p. 15).
Em sua defesa Prometeu procurou destacar inicialmente o sentimento de pena pela
fragilidade do homem diante da “ignorância” da natureza humana: “Em seus primórdios
tinham olhos mas não viam,/ tinham os seus ouvidos mas não escutavam” (ÉSQUILO, 1993,
vv. 576-577, p. 35). Originalmente, segundo a mitologia, o ser humano era totalmente
desprovido de qualquer racionalidade. A humanidade era formada por seres que viviam num
mundo letárgico e confuso, e se aglomeravam em bandos sem nenhuma ordenação ou
estruturação organizacional:
PROMETEU
... e como imagens dessas que vemos em sonhos
viviam ao acaso em plena confusão.
Eles desconheciam as casas bem-feitas
com tijolos endurecidos pelo sol,
e não tinham noção do uso da madeira (ÉSQUILO, 1993, vv. 578-582, p.
35).
Segundo a narrativa de Prometeu, antes do seu ato, os “sofridos mortais” eram
igualados a seres irracionais que viviam distante da luz, pois esses: “... como formigas ágeis
levavam a vida/ no fundo de cavernas onde a luz do sol/ jamais chegava...” (ÉSQUILO, 1993,
vv. 583-585, p. 35). A falta de razão era tão danosa para os seres humanos que esses nem ao
menos conseguiam distinguir as diferentes estações do ano para que pudessem dela se
proteger como no frio inverno. Nem faziam diferença para esses mortais sem razão as belezas
da natureza na primavera ou a sua força produtiva que poderia proporcionar melhorias na
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alimentação e na forma de viver. “... não faziam distinção/ entre o inverno fértil; não usavam
a razão/ em circunstância alguma” (ÉSQUILO, 1993, vv. 585-587, p. 35).
Considerados como seres fragilizados pela sua essência primitiva que gerava uma total
falta de cultura e ciência para viver e se proteger, os efêmeros mortais despertaram a comoção
e a audácia do titã que então teve a idéia de roubar o fogo dos deuses do Olimpo – fonte do
conhecimento – para dar e, conseqüentemente, salvar aqueles de quem se tornou “benfeitor”:
“Ele roubou teu privilégio, o fogo rubro/ de onde nasceram todas as artes humanas,/ para
presenteá-lo aos mortais indefesos” (ÉSQUILO, 1993, vv. 8-10, p. 15).
No mito prometeico narrado por Ésquilo o fogo carregava o sentido de ciência, de
engenhosidade, de sabedoria, de cultura. O fogo era o que tinha o poder de iluminar o que
antes estava nas trevas e não se podia enxergar, ajudando a eliminar o medo do desconhecido.
E só pela posse e uso desse fogo que a humanidade teve revelado o dom das artes: “Para ser
breve, digo-vos em conclusão:/ os homens devem-me todas as suas artes” (ÉSQUILO, 1993,
vv. 652-653, p. 37). Somente pelo fogo do rei dos deuses foi que essa raça conseguiu atingir a
consciência da sua existência e das suas possibilidades: “... a fim de servir-lhe de mestre/ das
artes numerosas, dos meios capazes/ de fazê-la chegar a elevados fins” (ÉSQUILO, 1993, vv.
144-146, p. 21).
Ao dominar o fogo roubado de Zeus pelo titã a raça humana conseguiu atingir
“elevados fins”. A partir deste momento, o homem dotado de razão – iluminado fogo
presenteado por Prometeu – tornou-se capacitado a dar os primeiros passos na direção de uma
nova forma de conduzir a vida e a sua existência de maneira madura e consistente, deixando
de serem como crianças irracionais:
PROMETEU
Falar-vos-ei agora das misérias todas
dos sofridos mortais e em que circunstancias
fiz das crianças que eles eram seres lúcidos,
dotados de razão, capazes de pensar (ÉSQUILO, 1993, vv. 568-571, p. 35).
O amadurecimento propiciado pelo poder e pela luz do fogo possibilitou a capacitação
e a libertação da vida oscilante, árdua, sofredora na qual estava inserido. Por essa interferência
transformadora na forma de guiar a existência humana o titã tornou-se o espírito criador da
cultura desse homem:
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Prometeu é o que traz a luz à humanidade sofredora. O fogo torna-se o
símbolo sensível da cultura. Prometeu é o espírito criador da cultura, que
penetra e conhece o mundo, que o põe ao serviço da sua vontade por meio
da organização das forças dele de acordo com os seus fins pessoais, que lhe
confere os tesouros e assenta em bases seguras a vida débil e oscilante do
Homem (JAEGER, 1979, p. 287).
.
Pode-se verificar como o poeta explorou o mito proporcionando algo mais do que
apenas uma narrativa religiosa. Seu objetivo estava em apresentar ao expectador o processo
de transição no qual ele, cidadão da polis, estava inserido. A história mítica serviu como pano
de fundo para que Ésquilo pudesse encenar esse homem que passava por um processo de
transformação na forma de viver em sociedade; que começava a se desgarrar de uma religião
controladora, dependente da crença nos deuses e num destino predeterminado.
O objetivo do poeta era mostrar que essa religião mítica, que por muito tempo
organizou e conduziu a vida desse povo e regeu sua existência, passara a ser substituída por
um uma outra forma de pensar do homem, e de pensar o homem.
Não se pode esquecer que Ésquilo era um poeta da pólis clássica e sua preocupação,
como de todo poeta desse momento histórico, era falar de uma maneira acessível que sua
mensagem chegasse aos cidadãos dos diferentes setores sociais que assistia sua apresentação:
“... os poetas se exprimiam como cidadãos e falavam aos cidadãos” (ROMILLY, 1984, p. 74).
É por isso que o mito de Prometeu serviu tão bem ao propósito do poeta. Sua história fazia
parte da religião grega e estava inserida na cultura do povo. E também por ser o mito de
Prometeu: “... o germe dum imortal símbolo humano” (JEAGER, 1979, p. 287) e carregar em
sim o símbolo de uma humanidade em busca de respostas para sua existência conflituosa.
Mas o homem contemporâneo de Ésquilo, no centro do processo de transição, não
havia se desprendido completamente da influência da religião gentílica e da crença nos
deuses. No entanto a nova estrutura da cidade, sua organização política e as novas descobertas
proporcionadas pela filosofia e suas ciências, já faziam com que o grego vislumbrasse e
utilizasse diferentes maneiras de conduzir a vida em sociedade. Foi nesse momento que se
acelerou o processo de transição de uma comunidade guiada por preceitos divinos para uma
sociedade então organizada sobre a técnica, a engenhosidade, a racionalidade.
Na sua peça Ésquilo procurou apresentar essa transição ao mostrar que a submissão
dos homens aos deuses não tinha mais sentido. Zeus, o senhor todo poderoso do Olimpo, já
estava com o império ameaçado, e segundo a personagem de Prometeu o fim do seu reinado
estava se aproximando: “Fica sabendo: sua queda ocorrerá” (ÉSQUILO, 1993, vv. 993, p. 48).
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A previsão de Prometeu não era apenas a ameaça de um prisioneiro rancoroso e vingativo. O
rei dos deuses já não se sustentava no trono, e esse comandante que até então era servido,
respeitado e temido por todos – principalmente pela raça humana – estava prestes a se tornar
servidor:
PROMETEU
No dia em que afinal for atingido o alvo
e tiver fim a minha longa provação,
Zeus ficará sabendo qual é a distância
imensurável entre reinar e servir! (ÉSQUILO, 1993, vv. 1227-1230, p. 58)
A confirmação desse fato foi comprovada quando a personagem de Prometeu revelara
que seria um homem, aquele que segundo a profecia nasceria do ventre de uma mortal: a
jovem Io – a única personagem humana da peça de Ésquilo –, quem iria livrá-lo das suas
correntes, desafiando assim o poder do tirano do Olimpo:
PROMETEU
Da nobre estirpe oriunda do teu leito
um dia nascerá o herói (Heracles) que vergará
seu arco glorioso para me livrar,
com o passar do tempo, destes sofrimentos (ÉSQUILO, 1993, vv. 14431446, p. 54 – Grifo nosso).
Para Ésquilo esse ser humano dotado de razão e coragem para desafiar os antigos
preceitos da religião gentílica era o próprio homem da pólis que buscava novas explicações e
soluções para os seus conflitos. O homem que, segundo a personagem de Oceano na peça,
deveria primeiro conhecer a si mesmo para que somente então pudesse elaborar estratégia
para superar as mudanças que estavam ocorrendo no seu espaço social: “... conhece-te a ti
mesmo, amigo, e adaptando-te/ a duros fotos, lança mão de novos modos” (ÉSQUILO, 1993,
vv. 409-410, p. 29). Desta forma seria capaz de romper com as correntes da antiga tradição
que o prendia a crença nos deuses e consequentemente à crença no destino que não mais regia
ou norteava sua vida.
Para ilustrar seu discurso, Ésquilo utilizou-se da voz do “Coro” da peça para buscar na
própria mitologia outra personagem que pudesse dar sustentação ao seu intento. Para isso
trouxe à memória dos espectadores a figura mítica do guerreiro Odisseu2. Esse homem
2
Odisseu era na mitologia um dos heróis da guerra de Troia e uma personagem da Ilíada e da Odisseia, de
Homero. Na Ilíada é ele quem tem a ideia de se fazer um cavalo de madeira que coubesse parte do exército
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engenhoso que desafiou os deuses e reclamou para si as glórias dos seus feitos e de suas
ações.
O que Ésquilo pretendia ao rememorar a personagem heroica de Odisseu era reforçar a
“mensagem” ao espectador – ao cidadão da pólis –, de que iluminado pelo fogo que Prometeu
roubou de Zeus e entregou a humanidade, esse não deveria mais se consorciar com os deuses
e divindades, ou se prender à preceitos e crenças que não mais faziam parte do cotidiano.
Assim como Odisseu, seria ‘um verdadeiro sábio’ aquele que conseguisse enxergar a sua
condição de ser racional e tivesse na razão o verdadeiro bem para conduzir sua vida:
CORO
Sim, era um sábio, um verdadeiro sábio,
o primeiro dos homens cujo espírito
pensou e sua língua enunciou
que se consorciar estritamente
de acordo com a sua condição
é realmente o bem maior de todo,
é que jamais se deve ter vontade,
quando se é apenas um artífice,
de unir-se a um parceiro presunçoso
por causa de sua riqueza
e inebriado por sua linguagem (ÉSQUILO, 1993, vv. 1167-1177, p. 55).
O poeta utilizou-se da personagem de Odisseu por ser esse herói o símbolo do homem
que se levantou contra o temor e a dependência divina e tomou para si as rédeas do seu
“destino”: por seu ato ardiloso e racional, e não pela ajuda dos deuses, os gregos venceram os
troianos na Guerra de Troia, e também pela sua engenhosidade ele conseguiu voltar a terra
natal depois de uma longa e tortuosa viajem pelo mundo: “Ó Musa, fala-me do solerte varão,
que, depois de ter destruído a cidade sagrada de Troia, andou errante por muitas terras”
(HOMERO, Odisseia, 1956, p. 1). A grande astúcia do rei de Ítaca levou o próprio Zeus,
segundo a narrativa homérica da Odisseia, a considerá-lo: “... em inteligência o primeiro dos
homens” (HOMERO, Odisseia, 1956, p. 3).
Assim, a retomada proposital do mito do herói grego da Odisseia foi providencial para
mostrar que o “verdadeiro homem sábio” era o cidadão que tomava para si as suas
grego no seu interior e entrega-lo aos troianos com presente, conseguindo assim atravessar os muros da fortaleza
inimiga, sendo esse um dos elementos principais da vitória dos gregos sobre os troianos. Esse evento reforça a
ideia de ser ele o mais sábio e astuto dos guerreiros gregos, o que fez com que exigisse para si as glórias da
vitória grega em oposição à interferência dos deuses. É também o protagonista da Odisseia que narra a dramática
e longa jornada de volta de Odisseu para o seu reino, Ítaca, após a guerra de Troia.
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responsabilidades na comunidade da qual fazia parte. Novamente o poeta trágico não teve
com intenção usar-se do mito para enaltecer o herói, mas exaltar as virtudes do homem.
No entanto, o processo de “enfraquecimento” da influência da crença religiosa e
exaltação do homem em Ésquilo foi além da retomada do mito de Odisseu. O poeta procurou
reforçar a ideia de que o tempo de submissão aos deuses já não mais se sustentava ao enfatizar
a discussão da sua peça no sistema de desarticulação da figura “divina” e “onipotente” de
Zeus.
No Prometeu Acorrentado, apesar de Zeus ainda ser descrito como todo poderoso do
Olimpo que desprezava a humanidade que pretendia destruir por considerá-la insignificante,
no decorrer da apresentação o mesmo começava a se revelar uma divindade que vai perdendo
suas características superiores. Descendo do seu espaço sagrado para se submeter à paixão,
entregando-se aos desejos celerados por uma “insignificante” mortal, a jovem Io, ele se
igualara ao seres que despreza:
IO
As Flechas ígneas dos anseios por ti
feriram Zeus; ele deseja ardentemente
gozar contigo os prazeres oferecidos
gela sagrada Cípris ... (ÉSQUILO, 1993, vv. 841-844, p. 44).
Ao deixar-se seduzir por Io Zeus perdeu o prestígio de o senhor onipotente do Olimpo
e passou a ser considerado um apaixonado impulsivo; uma divindade seduzível, corrompida, e
conduzida pelas emoções como qualquer mortal. O trono do rei dos deuses estava sendo
ameaçado, pois o seu ocupante demonstrava fraqueza ao sujeitar-se aos caprichos de uma
mulher, um ser menor de uma raça até então inferiorizada e odiada pelo deus dos deuses: a
raça humana: “Como não ouviria eu, pobre mulher [...]/ Que há pouco tempo acalentavas com
amor/ O coração de Zeus ...” (ÉSQUILO, 1993, vv. 760/763-764, p. 40).
O Amor de Zeus pela mortal Io afetara as estruturas do Olimpo e interferira na conduta
das outras divindades. Os deuses já não eram tão supremos e inatingíveis. Como exemplo
Ésquilo apresentou a deusa Hera: esposa de Zeus que também passara a demonstrar
sentimentos semelhantes aos expressados pelos humanos. Ao saber da paixão de Zeus pela
jovem Io e da tentativa de traição por parte do marido, Hera também desceu ao pórtico do
mundo humano e revelou o seu ciúme vingando-se cruelmente de uma inferior mortal: “... e
12
agora, atormentada/ Pelo rancor de Hera, és sempre constrangida/ a percorrer assim estes
longos caminhos...” (ÉSQUILO, 1993, vv. 764-765, p. 40).
Por esse processo de desestruturação do universo divino, a personagem de Prometeu,
por várias vezes, predisse que o rei dos deuses perderia o trono. Os deuses não seriam mais
senhores da humanidade. E concluiu a sua previsão da queda definitiva de Zeus conclamando:
PROMETEU
A minha resposta é essa: há de chegar o dia
em que, malgrado a pertinência de sua alma,
Zeus passará a ser extremamente humilde,
pois os festejos nupciais já programados
custar-lhe-ão o fim do trono e do poder
com seu inevitável aniquilamento (ÉSQUILO, 1993, vv. 1200-1205, p. 56).
Para Ésquilo a queda de Zeus e a libertação de Prometeu eram também a libertação da
humanidade: “Todos os séculos viram nele a imagem da humanidade” (JAEGER, 1979, p.
288). As correntes que prendiam o titã eram a representações dos preceitos divinos que
mantinham os seres humanos, os homens da sociedade gentílica, acorrentados à religião e à
seus deuses, vivendo sob a sombra da crença mítica.
Porém, o homem da cidade-Estado já estava se desprendendo dessas correntes; dessa
dependência. Assim como a liberdade de Prometeu dependia da queda de Zeus, a liberdade do
cidadão da pólis dependia do rompimento desse homem com os preceitos e normas da antiga
religião. Em seu discurso Prometeu sentenciara que os tormentos de Zeus teriam início no dia
em que o seu longo castigo tivesse fim:
PROMETEU
No dia em que afinal for atingido o alvo
e tiver fim a minha longa provação,
Zeus ficará sabendo qual é a distância
imensurável entre reinar e servir! (ÉSQUILO, 1993, vv. 1227-1230, p. 56)
A queda de Zeus sentenciada pelo titã simbolizava a queda de todo um sistema
religioso estrutural e opressor que vigorara na vida da comunidade gentílica, mas que não
tinha mais espaço na vida da cidade-Estado. Era a oportunidade dos homens romperem de vez
as correntes que os prendiam aos deuses e se libertarem de um sistema aristocrático até então
baseado numa administração religiosa e no poder patriarcal.
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Considerações finais
Assim, pode-se verificar que a peça Prometeu Acorrentado de Ésquilo procurou
apresentar ao homem do seu tempo que, apesar da religião ainda fazer parte da sua vida, a
crença no mito e em seus preceitos não deveriam mais influenciar na forma de viver e de se
organizar. O homem da pólis, o “ser” político, o cidadão racional, não podia mais ficar na
dependência de leis tidas como “sagradas” ou subjugado a um poder patriarcal. Pois cabia ao
cidadão a obrigação de tomar para si as responsabilidades da condução da sua sociedade.
Somente libertando-se dos desígnios divinos e rompendo definitivamente as correntes
que o aprisionava a religião, o homem iluminado pelo fogo – a razão, o conhecimento, a
cultura – presenteado por Prometeu, poderia chamar-se cidadão e teria o direito de ir até
Ágora (praça pública) discutir o futuro da pólis e da própria vida como membro da nova
organização social.
Nessa perspectiva, entende-se que a intencionalidade de Ésquilo ao encenar o mito
prometeico era mostrar ao homem/cidadão que a relação de poder e de dependência sob a qual
estivera sujeito na sociedade gentílica já não vigorava na cidade-Estado.
Ao cair as correntes do “Benfeitor da Humanidade” cairia também o poder de
governar das mãos de um único senhor, fosse no Olimpo ou no génos. Assim como Zeus
perdera seu reinado o poder patriarcal também cedera lugar a Democracia. E caberiam os
cidadãos: “seres lúcidos, dotados de razão e capazes de pensar” o papel de condutores da vida
em sociedade dentro da pólis democrática.
Referências Bibliográficas:
COULANGES, Fustel de. A cidade antiga: estudos sobre o culto, o direito, as instituições da
Grécia e de Roma. Trad: Jonas Camargo Leite e Eduardo Fonseca. São Paulo: HUMES, 1975.
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JAEGER, Werner. Paidéia: a formação do homem grego. São Paulo: Herder, 1979. 1343 p.
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LESKY, Albin. História da literatura grega. Trad. Manuel Losa. Lisboa-Portugal. Fundação
Calouste Gulbenkian, 1995. 1003 p.
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homem grego. Lisboa-Portugal; Editorial Presença, 1994. 145-172 p.
ROMILLY, Jacqueline de. Fundamentos de literatura grega. Rio de Janeiro: Zahar
Editores, 1984. 311 p.
VERNANT, Jean-Pierre. As origens do pensamento grego. São Paulo: Edusp, 2002a. 143 p.
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