Arq Bras Cardiol volume 75, (nº 6), 2000 Bordignon e cols Relato de Caso Gestação após transplante cardíaco Gestação Pós Transplante Cardíaco. Relato de Caso e Revisão Solange Bordignon, Anna Marcela Aramayo, Daniel Nunes e Silva, Cíntia Gründler, Ivo Nesralla Porto Alegre, RS Paciente feminina de 14 anos, portadora de miocardiopatia dilatada, foi submetida à transplante cardíaco, engravidando seis anos depois. A gestação evoluiu sem intercorrências e a criança nasceu saudável. Cinco meses após o parto a mãe continua bem, apresentando função ventricular preservada e a criança demonstra um desenvolvimento neuropsicomotor normal. Embora neste relato tenha havido sucesso materno e fetal, a gestação póstransplante cardíaco é considerada de alto risco e permanece contra-indicada. jada. O coração denervado pode responder às alterações hemodinâmicas associadas à gestação e a sobrevivência do enxerto à rejeição necessita de biópsias endomiocárdicas seriadas e monitorização hemodinâmica invasiva. O objetivo deste estudo é relatar o caso de uma paciente feminina de 14 anos, portadora de miocardiopatia dilatada, submetida a transplante cardíaco e que engravidou seis anos depois. O transplante cardíaco é uma técnica amplamente aceita, factível e uma modalidade de tratamento para pacientes com doença cardíaca em fase final. O número de receptores sobreviventes após transplante continua aumentando, com melhora da qualidade de vida, incluindo a sexualidade e parto, tendo apresentado importante resultado. Muitas pacientes com dano em órgãos alvo, como coração, pulmões, rins, fígado, medula óssea ou pâncreas sofrem de infertilidade. A restauração da função normal de qualquer desses órgãos através do transplante tem conduzido à concepção e gravidez. A partir de dados disponíveis desde a primeira gravidez em receptora de transplante renal em 1958 1, é evidente que a reprodução após transplante de órgãos é possível. O desejo de engravidar é comum e normal em mulheres em idade de procriar, incluindo receptoras de transplante cardíaco. Em média são realizados nos Estados Unidos em torno de 2.500 transplantes ao ano, com uma expectativa de sobrevida de 80% em um ano e de 65% em cinco anos 2,3. A população feminina receptora de transplante cardíaco representa em torno de 21% a 38% dos casos, onde uma grande percentagem encontra-se em idade de procriação. Desde 1958, mais de 2.400 casos de gravidez ocorreram em receptores de transplantes. Sucessivas gestações têm sido relatadas em transplantadas de rim, fígado e medula óssea. A ocorrência de gestação após transplante cardíaco envolve uma circunstância delicada e não deve ser encora- Paciente, feminina, branca, solteira, estudante, natural e procedente de Porto Alegre, previamente hígida, aos 14 anos de idade, apresentou em abril/90, quadro de edema generalizado, tosse seca e dispnéia, tendo sido hospitalizada no Instituto de Cardiologia/IC-FUC para investigação diagnóstica. Realizou eletrocardiograma, ecocardiograma, cineangiocoronariografia e biópsia do miocárdio, sendo diagnosticado miocardiopatia dilatada com severa insuficiência mitral e tricúspide. O ecocardiograma demonstrou hipocontratilidade difusa com fração de encurtamento (∆D) de 16% e sinais de hipertensão arterial pulmonar incipiente. O estudo hemodinâmico mostrou falência biventricular. Em maio/ 90, foi encaminhada ao Programa de Transplante Cardíaco da Instituição e a cirurgia foi realizada em dezembro de 1991. No pós-operatório imediato realizou duas intervenções cirúrgicas por sangramento. Recebeu alta hospitalar em fevereiro/92, clinicamente assintomática. A biópsia miocárdica revelava grau 1A (rejeição aguda focal) e o tratamento indicado foi ciclosporina 500mg/dia, azatioprina 75mg/dia e prednisona 20mg/dia. A dose de ciclosporina foi gradualmente reduzida a 200mg/dia, associada a azatioprina 50mg/ dia. A paciente permaneceu assintomática até junho/96, quando foi hospitalizada com quadro de icterícia e prurido, determinados por hepatite medicamentosa, sendo que, suspensa a azatioprina, houve resolução do quadro. A partir do transplante, a paciente foi orientada quanto ao alto risco de uma possível gestação, sendo indicado o método contraceptivo de barreira com condon ou diafragma. Apesar disso, em dezembro/97, seis anos pós-transplante, foi diagnosticado gestação de cinco semanas. A gravidez, que evoluiu sem intercorrências, foi acompanhada por consultas semanais de pré-natal e por consultas regulares no Ambulatório de Cardiopatia e Gestação do IC-FUC. Os níveis séricos de ciclosporina, durante esse período, foram Instituto de Cardiologia/Fundação Universitária de Cardiologia - Porto Alegre Correspondência: Solange Bordignon - Rua Gal. Ibá Mesquita Ilha Moreira, 40/ 602 - 91340-190 - Porto Alegre, RS Recebido para publicação em 4/1/99 Aceito em 16/6/99 Relato do caso 515 Bordignon e cols Gestação após transplante cardíaco Arq Bras Cardiol volume 75, (nº 6), 2000 monitorizados pelo método de radioimunoensaio com anticorpo monoclonal (RIA) e as doses foram ajustadas para a obtenção de níveis terapêuticos (200-800mg/ml). Foi necessário uma elevação progressiva da dose de ciclosporina durante a gestação. Os níveis de pressão arterial, verificados em consultório, não foram superiores a 140/90mmHg; a fração de ejeção, evidenciada pelos ecocardiogramas seriados, manteve-se estável (fig. 1). A gestação foi acompanhada de ultra-sonografia fetal mensal, sem que se tenha percebido anormalidades. A função cardíaca foi monitorizada regularmente pelo ecocardiograma uni e bidimensional com Doppler colorido, com todos os parâmetros normais. A função renal não se alterou significativamente no decorrer do período gestacional. Em julho/98, com 36 semanas de gestação, foi realizado parto cesáreo por indicação obstétrica com anestesia geral. O recém-nascido do sexo feminino pesava 2300g e media 46cm. O APGAR do recém-nascido foi de 8 no 1º e de 8 no 5º minuto. Mãe e filha evoluíram satisfatoriamente. Cinco meses após o parto, a criança não apresentou nenhuma alteração, tendo desenvolvimento neuropsicomotor adequado para a idade, e a mãe encontrase em bom estado geral, com pressão arterial de 130/ 80mmHg, freqüência cardíaca de 86bpm, fração de ejeção de 74,7% e classe funcional I (NYHA), sem qualquer episódio de rejeição. Utiliza atualmente ciclosporina 200mg/dia. Discussão Se t/ 99 Ju l/ 99 Ma i/ 99 Ma r/ 99 Ja n/ 99 No v/ 99 Se t/ 99 Ju l/ 99 Ma i/ 99 Ma r/ 99 Ja n/ 99 A partir do pioneirismo dos transplantes cardíacos heterotópicos em animais no início do século até as primeiras experiências em humanos na década de 60, inúmeros obstáculos foram superados, sendo que atualmente a sobrevida dos pacientes em cinco anos é estimada entre 60% e 82% 1-3. Aproximadamente 30% dos transplantes cardíacos são realizados em mulheres e grande parte destas ainda em idade reprodutiva 4. A primeira gestação pós-transplante cardíaco foi descrita em 1988 por Lowenstein e cols. 5. Em julho/98, Branch e cols. 6 relataram a existência, na literatura mundial, de 47 gestações pós-transplante cardíaco, provenientes de Fig. 1- Evolução dos exames laboratoriais e da pressão arterial. Ciclosporina- dosagem sérica de ciclosporina em ng/ml; FE- fração de ejeção em %, verificada no ecocardiograma; PA sist- pressão arterial sistólica em mmHg; PA diast- pressão arterial diastólica em mmHg 516 35 mulheres, já que 12 destas apresentaram mais de uma gestação. Das 35 primeiras gestações houve 26 nascidos vivos, um parto gemelar, quatro abortos espontâneos e seis abortos terapêuticos. Entre as segundas gestações póstransplante cardíaco, ocorreram 11 nascimentos e dois abortos espontâneos. No Brasil, o primeiro relato data de 1995 publicado por Almeida e cols. 7. A gravidez pós-transplante cardíaco tem sido contraindicada pelos riscos à mãe e ao concepto 8. Na gestante, os riscos estão relacionados principalmente a alterações hemodinâmicas e à terapia imunossupressora, determinando uma elevação na morbidade materna e não na mortalidade 8. Na gestação, o volume sangüíneo aumenta sensivelmente, em média 50%. Este aumento inicia na 6ª semana, atingido o pico na 32a semana de gravidez. O débito cardíaco eleva-se de 30% a 50% e a freqüência cardíaca aumenta cerca de 10 a 20bpm. A pressão arterial sistêmica diminui no primeiro e segundo trimestre, voltando aos níveis pré-gestacionais no final da gestação. A alteração mais evidente é a elevação do volume diastólico final 9-11. No paciente transplantado, o débito cardíaco é geralmente diminuído, há uma alteração na complacência do ventrículo, sendo esta menor que no ventrículo normal, a qual é mantida pela alta pressão venosa central 10,11. As pressões intracardíacas são normais no repouso, mas durante o esforço a pressão diastólica ventricular aumenta drasticamente 11. No transplante cardíaco o coração é denervado, perdendo o estímulo vagal, o que determina uma elevação na freqüência cardíaca em repouso, a qual situa-se entre 95 e 115bpm. Ocorre também uma hipersensibilidade às catecolaminas circulantes 10. Estas alterações, ocorrendo em uma gestante transplantada, podem afetar adversamente o coração, observando-se um aumento na contratilidade cardíaca, na pressão venosa central, na volemia e no débito cardíaco 7,10. Desta forma há uma sobrecarga cardíaca, resultando na evolução natural em um aumento do diâmetro do ventrículo direito, com insuficiência tricúspide 7. De modo geral, estas modificações hemodinâmicas são bem toleradas pelas pacientes transplantadas durante a gestação, no entanto, a hipertensão arterial sistêmica e a pré-eclâmpsia são mais prevalentes nestas mulheres 13,14. Os principais riscos quanto à terapia imunossupressora na gestante são índices elevados de diabetes gestacional, ruptura prematura de membranas, hipertensão arterial sistêmica, insuficiência supra-renal e infecção 3,4,15. Outras alterações também incluem maior apresentação de depressão pós-parto, anemia e icterícia colestática 8,14,16. Em relação ao concepto, a principal complicação é o retardo de crescimento intra-uterino, acompanhado de aborto espontâneo, prematuridade, insuficiência supra-renal, baixo peso ao nascimento e teratogenicidade 6,11,16. A prematuridade é freqüente pela ruptura prematura de membranas 4. O aborto ocorre mais freqüentemente pelo aumento do risco de infecções, causadas principalmente por listeria, citomegalovírus, herpesvírus e rubéola 17. Fatores relacionados com a hipertensão provocam maior prevalência tanto de baixo peso ao nascimento quanto de retardo no crescimento intra-uterino 18-20. Os fármacos utilizados na te- Arq Bras Cardiol volume 75, (nº 6), 2000 rapia imunossupressora atravessam a barreira placentária, podendo exercer ação teratogênica 4,7. Há descrições de linfopenia, hipogamaglobulinemia, trombocitopenia e hipoplasia de timo em filhos de mulheres que utilizaram azatioprina associada à prednisona, porém essas alterações foram reversíveis 4. A ciclosporina é encontrada na circulação do feto em concentrações similares à materna 21, exercendo possível atividade imunossupressora na criança 7. A terapia imunossupressora, em experimentos com animais, apresentou efeito teratogênico e fetotóxico 7, contudo em gestantes não há estudos adequados e bem controlados. Scott e cols. 16, revisando 30 casos, não encontraram anomalias congênitas, morte fetal ou morte neonatal. A rejeição do organismo ao órgão transplantado é uma importante complicação do transplante cardíaco, mesmo na vigência de terapia imunossupressora, sendo que este risco não está elevado durante a gestação 6,16,22. A terapia imunossupressora mais utilizada em pacientes transplantados é conhecida por esquema tríplice e consta de ciclosporina A, azatioprina e corticoterapia, com metilprednisolona ou prednisona 1,15, sendo esta também indicada nas pacientes que engravidam 7,13. A ciclosporina é um endecapeptídeo cíclico lipofílico isolado do fungo Tolypocladium inflatum gans e possui potente efeito imunossupressor, inibindo a síntese de interleucina 2, pelo linfócito T auxiliar, e a proliferação de células T ativadas, assim como outras linfocinas 23, diminuído a resposta imune sem ter uma mielotoxicidade importante 4. Os principais paraefeitos em pacientes transplantadas são: hipertensão arterial sistêmica, dano renal, hepático e neurológico, hiperplasia gengival, doença linfoproliferativa, fibrose miocárdica e hirsutismo 24-26. A hipertensão arterial sistêmica deve-se basicamente à vasoconstrição glomerular aferente, o que diminui a filtração glomerular e retém sódio, resultando em um efeito nefrotóxico 14. A ciclosporina pode ser utilizada na gravidez apenas se os benefícios justificarem o prejuízo potencial para o feto 4. O aleitamento deve ser contra-indicado, pois a ciclosporina está presente no leite materno 7. Na gestação, durante o terceiro trimestre, devido a hemodiluição, os níveis de ciclosporina sérica são significativamente reduzidos e é necessário um aumento da dose diária 23. A azatioprina é um derivado da 6mercaptopurina, cuja ação é mediada pela inibição da síntese das purinas, atingindo o DNA e o RNA 15. Os efeitos adversos em transplantados incluem supressão da medula óssea, com leucopenia, trombocitopenia e anemia macrocítica, susceptibilidade aumentada a neoplasias e infecções, hepatotoxidade, pancreatite, alopécia e fragilidade cutânea 7. Os corticóides têm sua ação sobre os macrófagos, linfócitos T e ação imunossupressora inespecífica. A prednisona é mais utilizada no esquema tríplice e a metilprednisolona é a preferida em episódios de rejeição aguda 27. A contra-indicação da gestação pós-transplante cardía- Bordignon e cols Gestação após transplante cardíaco co é baseada nas complicações já descritas e em alguns centros mundiais há inclusive a recomendação do aborto terapêutico 4,7,16. Não há um consenso sobre qual o método contraceptivo ideal para as transplantadas em idade reprodutiva 28. Os métodos de barreira, como condom e diafragma, apresentam os menores efeitos adversos, entretanto, por sua baixa eficácia não são amplamente recomendados 4. Os dispositivos intra-uterinos apresentam baixa efetividade em pacientes imunossuprimidos e possuem um maior risco de infecção 4. Os contraceptivos orais combinados devem ser considerados somente para mulheres livres de hipertensão, doença hepática e tromboembólica, já que quando associados a agentes imunossupressores, potencializam a ocorrência de hipertensão arterial sistêmica, hepatotoxidade, tromboembolismo, acidente vascular cerebral, colestase, edema e distúrbios gastrointestinais 7,27,29. A opção atual são os progestágenos, já que estes podem ser utilizados na presença de hipertensão arterial sistêmica e tromboembolismo, sendo eficazes e apresentando baixos níveis de efeitos adversos 28. Todos os métodos de contracepção hormonais exigem rigorosa monitorização dos níveis séricos dos agentes imunossupressores, pois podem influir na sua metabolização 28 . Os métodos contraceptivos permanentes, como a ligadura tubária e a vasectomia, são uma boa opção, pois são seguros e não apresentam as complicações dos métodos hormonais; no entanto, são de difícil reversibilidade 4,7,16. Na evolução gestacional, o acompanhamento pré-natal é fundamental e deve ser mais rigoroso e freqüente quando comparado às gestações normais. São exames indispensáveis durante a gestação: dosagem sérica dos níveis de ciclosporina, contagem de leucócitos e plaquetas, hemogramas de rotina, ecocardiografias e monitorização da função renal 14,22. Exames radiológicos e biópsia miocárdica não são recomendados rotineiramente 7. A transplantada cardíaca geralmente tolera bem o parto vaginal e a cesariana só deve ser realizada por indicação obstétrica 16; contudo, a taxa de cesariana em mulheres transplantadas é maior 30. Durante o parto, o débito cardíaco é elevado em até 25% pelas contrações uterinas, provocado pela elevação no retorno venoso, o que gera a necessidade de uma monitorização rigorosa. No pós-parto imediato há um aumento na pré-carga decorrente da drenagem sangüínea do útero para a circulação periférica, o que pode necessitar intervenção médica 11. No puerpério, os níveis de ciclosporina tendem a elevar-se, exigindo uma redução nas doses diárias 7. Apesar dos altos índices de sucesso obtidos atualmente, a gestação pós-transplante cardíaco continua sendo considerada de alto risco e inspira especial atenção médica. Os principais esforços devem ser direcionados à rigorosa contracepção e, na vigência de uma gestação, ao adequado controle de possíveis complicações. 517 Bordignon e cols Gestação após transplante cardíaco Arq Bras Cardiol volume 75, (nº 6), 2000 Referências 1. 2. 3. 4. 5. 6. 7. 8. 9. 10. 11. 12. 13. 14. 15. 16. Nesralla I, Sant’Anna JRM. Transplante Cardíaco. In: Nesralla I, ed. Cardiologia Cirúrgica: Perspectivas para o Ano 2000. São Paulo: Fundo Editorial Bynk 1994: 617. Kirk EP. Organ transplantation and pregnancy: a case report and review. Am J Obstet Gynecol 1991; 164: 1629-34. Reitz BA. Heart and heart-lung transplantation. In: Braunwald E. Heart Disease: A Textbook of Cardiovascular Medicine. 5th ed. 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