PSICANÁLISE E CINEMA A DINÂMICA DA TRANSFERÊNCIA E A DIMENSÃO DA CURA: Um diálogo sobre o filme Intouchable e a Teoria Psicanalítica Freudiana Renata Pereira Lavareda [email protected] ICPD – Instituto CEUB de Pesquisa e Desenvolvimento CESAPE – Centro de Especialização, Aperfeiçoamento e Extensão Parceria com SBP (Sociedade Brasileira de Psicanálise) Especialização em Teoria Psicanalítica- 10ª Turma - 2012 Supervisora : Joselita Rodovalho Resumo A articulação entre Psicanálise e Cinema traz significativas contribuições para a compreensão e o aprofundamento tanto da teoria psicanalítica quanto do diálogo criado em cada filme com a cultura e a subjetividade humana. Remete- nos também às métaforas e analogias partidas da Mitologia feitas por Freud, as quais enriqueceram a explicação do funcionamento psíquico humano. Esta é a relevãncia deste Ensaio: dialogar os conceitos psicanalíticos, em especial, de transferência e cura, com a tragicomédia Intouchable (Paris 2011). Me propus a discutir o impacto do Olhar; e não do ver, na relação humana e o acesso a algo do inconsciente por meio do Olhar. Abordo, ademais, o sintoma, muitas vezes intocável; no entanto atualizando elementos do circuito pulsional inconsciente, tão preciosos na abordagem psicanalítica. Debruço-me na vida e na relação dos personagens para identificar o material cotidiano presente na clínica psicanalítica, qual seja, subjetividade, humana marcada pelo desenvolviemto psicossexual e seu pháthos. Palavras-chave: diálogo. Transferência. Cura. Olhar. Sintoma. Abstract The link between Psychoanalysis and Cinema brings significant contributions to the understanding and deepening both psychoanalytic theory as the dialogue created in each film with culture and human subjectivity. Reference is also in the metaphors and analogies of Mythology games made by Freud, which enriched the explanation of human psychological functioning. This is the relevance of this test: dialogue psychoanalytic concepts, in particular, transfer and healing, with the tragicomedy Intouchable (Paris 2011). I set out to discuss the impact of the look, and not the view, the human relationship and access to something of the unconscious through look. On board, in addition, the symptom often untouchable, however upgrading circuit elements instinctual unconscious, so precious in psychoanalytic approach. I lean on the life and relationship of the characters to identify the material present in everyday clinical psychoanalysis, namely, subjectivity, marked by human psychosexual desenvolviemto and his pháthos. Key-words: dialogue.transfer.healing.look.symptom. Abstract El vínculo entre el psicoanálisis y el cine ofrece una importante contribución a la comprensión y profundización de la teoría psicoanalítica como el diálogo creado en cada película con la cultura y la subjetividad humana. Referencia también está en las metáforas y analogías de juegos Mitología hechas por Freud, que enriqueció la explicación del funcionamiento psicológico humano. Esta es la importancia de esta prueba: conceptos psicoanalíticos diálogo, en particular, la transferencia y la curación, con la tragicomedia Intouchable (París 2011). Me puse a discutir el impacto de la mirada, y no la vista, la relación humana y el acceso a algo de lo inconsciente a través de look. A bordo, además, el síntoma a menudo intocable, sin embargo actualizar los elementos del circuito pulsional inconsciente, tan precioso en el enfoque psicoanalítico. Me apoyo en la vida y la relación de los personajes para identificar el material presente en el psicoanálisis clínico cotidiano, es decir, la subjetividad, marcada por desenvolviemto psicosexual humano y sus pháthos. Palabra-clave:el diálogo.transferir.curación. mirada.síntoma. O objeto do presente Ensaio é a Dinâmica da Transferência e Dimensão da Cura, e o objetivo, a discussão dos conceitos psicanalíticos cura e transferência, seus meandros, partindo da tragicomédia Intouchable, para articular a especificidade da Psicanálise- a escuta do sujeito para além do que é dito-; com o real, a vida cotidiana das interrelações humanas, em que se encobre na maior parte das vezes a verdade de cada um, seu desejo, mantendo "intocável" o sintoma; e os sujeitos, sempre no mesmo lugar. A ESPECIFICIDADE DA PSICANÁLISE Baseado em fatos reais, Intouchable, dirigido por Olivier Nakache e Eric Toledano, em 2011, duração de 106 minutos, trata da amizade inusitada entre o milionário tetraplégico, Philippe, e o ex-presidiário, Driss, o qual se candidata à entrevista de emprego como cuidador de Philippe apenas com intuito de acionar , por meio de atestado, o seguro desemprego do governo. Surpreso e intrigado com a conduta transparente e despojada de Driss, o milionário resolve contratálo. Deste encontro se desdobra o filme, baseado no confronto entre dois mundos: o do rico tido como um objeto por todos (um inválido necessitado de todos os tipos de cuidados) e o do pobre mergulhado em submundo de exclusão e marginalidade. A meu ver, o filme engendra associações à teoria da técnica psicanalítica devido à sutil questão que comparece a todo momento: o ver e o olhar; o ouvir e o escutar, tão presentes também no setting psicanalítico. Nasio (1995) remetenos aos três tempos da pulsão: olhar, olhar-se e ser olhado e a emergência de luz que vem do Outro suscitada pela pulsão escópica. Neste livro, o autor destaca que olhar o sujeito na sessão psicanalítica é muito mais que vê-lo, este último pode acontecer na entrada à sala ou na saída. A cilada do analista é acreditar que, quando se vê, se olha. Discute que o crucial em análise é compreender a dimensão subjetiva do olhar, pontencializado ao paciente ou com ato de olhar ou com a satisfação que esse causa ao sujeito. Driss, de maneira genuína, olha Philippe, conforme nos recomenda Nasio. Este é o fantástico desta película. Ele não o vê como todos os outros sociais da vida do milionário: um tetraplégico quase morto quase- vivo. De fato, ao olhar aquele sujeito, escuta o homem, amante dos estudos e da Arte, do qual pulsa vida e está às voltas, apesar da maneira precária, em formas de cartas, com o desejo de amar e ser amado, de realizar-se apesar de suas limitações físicas. Na cena sobre a contratação de possíveis cuidadores de Philippe, a conduta de Driss proporciona grandes risadas e contrasta-se com os outros candidatos à vaga (especialistas e técnicos em cuidados e atenção à Saúde), cujo objetivo nas falas é marcado pela aplicação de uma prática baseada em conceitos engessados sobre o saudável e a saúde, desconsiderando muitas vezes a subjetividade e o contexto de cada sujeito que adoece ou necessita de intensos cuidados. O olhar, não o ver, possibilita que ex-presidiário interaja com o milionário sem piedade e receio. Este gozo de ser olhado motiva a contratação de Driss, porque ali o que se operou foi o sujeito com sua imagem olhado além dela, no que Philippe se reconheceu. Ora não é isso que Freud propõe em sua teoria sobre a técnica? Olhar o sujeito, não simplesmente vê-lo? escutar o sentido dos sintomas, sua fixação, não apenas ouvi-lo? Nasio (1995) explica o efeito desta imagem na constituição identitária: reconhecer-se não quer dizer que 'isso é o mesmo que eu', mas que esse objeto desperta prontamente um sentido ligado ao eu. E sentido quer dizer: ajustarme à imagem desse objeto algo que está ligado a minha história, a minha impressão, a minha sensação. (p.22). Philippe, em sua fala ao irmão, diz sobre este efeito do reconhecimento de sua imagem para além dela, em algo de sentido pra si, relacionado a sua história: “Driss esquece quem sou e toda vez me dá o celular pra segurar, até que percebe que não posso fazê-lo, disso que eu gosto nele, da sua falta de piedade comigo”. Nasio (1995) destaca também que “o eu não percebe imagens quaisquer, percebe apenas aquelas em que se reconhece. Ou seja, o eu percebe imagens pregnantes, imagens que, de longe ou de perto, reflitam o que ele é, essencialmente" (p 21). E adverte ao psicanalista sobre a potência do olhar: dele emerge luz, que fascina o sujeito. Driss, quando olha Phillipe, vê, claro, um homem em uma cadeira de rodas; no entanto sem uma condenação ou mesmo um aprisionamento; a imagem que lhe parece vir é de liberdade. Phillipe, de algum modo, parece ter-se identificado com essa imagem e fora surpreendido por ela. Assim como a Psicanálise não seguiu no século XX modelos consolidados pela Medicina de sua época e criou novos entendimentos para os fenômenos psíquicos. A relação entre o cuidador e o assistido não se pautou em , diante da tragédia particular do Outro, propõe a transgressão. Este é o esteio da Psicanálise – a transgressão-, visto que a vida é como nos é dada, não muda. Substancial é a operação do sujeito em uma mudança de destino. O analista o convida a implicar-se consigo mesmo e a deparar-se com sua verdade, com seu desejo, responsabilizando-se por seus atos. DA DINÂMICA DA TRANSFERÊNCIA De acordo com Freud (1912: todas relações emocionais de simpatia, amizade, confiança e similares, das quais podemos tirar bom proveito em nossas vidas, acham-se geneticamente vinculadas à sexualidade e se desenvolverem a partir de desejos puramente sexuais, através da suavização de seu objetivo sexual, por mais puros e não sensuais que possam parecer à nossa autopercepção consciente. (p.116) Posto isso, é evidente a direção dada pelo inconsciente em cada relação intersubjetiva. Os deslocamentos de afetos infantis são constantemente postos em cena nas relações, atualizados. Para Freud, este rico fenômeno recebe atenção especial em análise, porque, por meio do manejo da transferência, o analista esbarra nas resistências, no material reprimido. A Psicanálise, uma clínica baseada na escuta do material inconsciente e no desenvolvimento psicossexual do sujeito, teorizados por Freud, compõm-se de meandros alinhavados na escuta do sujeito, na sua fala histórica a ser (re)memorada e na relação transferencial. Freud (1915) "nada acontece num tratamento psicanalítico além de um intercâmbio de palavras entre o paciente e o analista. O paciente conversa, fala de suas experiências passadas e de suas impressões atuais, queixa-se.” (p.27). Freud (1913) debruçou-se muito neste conceito- transferência-, explicando que ela proporciona o retorno de conexões emocionais, de conflitos que se atualizam na relação analisando-analista. A este cabe tornar inteligível o material clínico que comparece tão fluídico nas sessões, por meio de chistes, atos falhos, sonhos, sintomas e discurso trazidos por aquele, clareando a economia de desejo do paciente e o material que experimenta como realidade psíquica-emocional, muitas vezes incompreendida. O peculiar desta teoria é constituir-se de trabalho de tratamento, cujo sistema de compreensão e intervençãoo do páthos humano utiliza-se da transferência e sua intensidade para superar as resistências. Freud (1913) expôs que "a resistência desempenhará seu papel neste método deliberado de preparação e providenciará para que o material mais valioso escape à comunicação" (p.151). Trata-se, segundo Celes (2005), de "o analisando 'falar' o que foi esquecido sob a condição do 'ouvir' específico do analista, para que o analisando também 'ouça' o que fala" (p.29). Das repetições surgem materiais adicionais capazes de suplantar as associações desconhecidas do paciente, assim também o é nas relações da vida cotidiana, inclusive na amizade entre Driss e Philippe. Os pormenores das histórias de cada um estão presentes a todo momento e suas características, nem sempre ditas, comparecem na repetição do agir, do dizer tal qual em análise. No filme, assiste-se ao confronto do que escapa a cada personagem: do homem condenado à cadeira de rodas punge o desejo de não ser mero objeto; e do ex-presidiário, sua necessidade de ressignificação de valores, trabalho e estrutura familiar. Essas marcas do que escapa a cada um e pede passagem para comunicar é a marca subjetiva, desde a priori, do filme. O não-preconceito e o não-julgamento potencializam o encontro os dois sujeitos, intocável pela hipocrisia social. A capacidade de ambos de transitar do mundo próprio para o do outro derroga questionamentos sobre o significado da cura e do que se trata quando se está diante do sofrimento humano, seja ele de que natureza for. De fato, a Psicanálise propõe ao paciente uma transgressão, o que não é nada pouco. Sua técnica lança um olhar e uma escuta privilegiados, que operam na transferência, intervem nas resistências, para que o sujeito simbolize o até então não-elaborado, dê-se conta das motivações e dos conteúdos pulsionais nos sintomas, que são soluções de compromisso entre o Isso e Eu. CONCLUSÃO O happy end inusitado surpreende os espectadores e foge a qualquer clichê. Emociona a superação das fraquezas de Philippe e Driss, construída em razão da peculiar relação de amizade, cuja potência está no olhar, e não no ver. Ambos se recompõem na singularidade de suas trajetórias, fluindo pela vida tal como é; no entanto com novos destinos, visto que cada um escutou na relação com o Outro sua verdade, seu desejo e pode se (re)inventar. O filme provoca, como dito, discussão subjacente sobre a cura, porque nenhum dos personagens a priori a pretendem, o que remeteu-me à Psicanálise, a qual também não visa à “cura”. Freud (1913) inclusive recomenda aos jovens psicanalistas a não se sentirem pressionados a dar respostas sobre os efeitos do tratamento: o analista é certamente capaz de fazer muito, mas não pode determinar de antemão exatamente quais resultados que produzirá. Ele coloca em movimento um processo, o processo de solucionamento das repressões existentes. Pode supervisar este processo, auxiliá-lo, afastar obstáculos em seu caminho, e pode indubitavelmente invalidar grande parte dele. Mas, em geral, uma vez começado, segue sua própria rota e não permite quer a direção que toma quer a ordem em que colhe seus pontos lhe sejam prescritas. (p.146) Em uma análise, está em jogo uma direção de cura, em uma amizade não. Em Intouchable, a cura, se se pode defini-la assim, foi o deslocamento da queixa, do sofrimento para a palavra plena, que responsabiliza o sujeito diante de si quanto ao seu desejo. De fato, tratou-se de um ato de transgressão para ambos. Novos vir-a-ser se constituíram; no entanto não em razão de cuidados específicos realizados por um cuidador a um portador de necessidades físicas, até porque Driss não pretendia uma intervenção pautada em direção de cura, remissão de sintomas e (re)adaptação, conforme a fala de alguns candidatos à vaga de cuidador. É evidente que uma dimensão de cura foi operada na vida dos protagonistas. Na análise, dizemos que há uma direção. Inclusive é o analista quem dirige a cura, quando devolve ao paciente os conteúdos para além do que é dito, quando o sintoma é escutado e revela-se algo do circuito pulsional inconsciente. De fato, cada indivíduo se organiza na vida pulsional/sexual de um modo muito específico, já nos apontava Freud (1913). No entanto, tanto na vida como em análise, para que o sofrimento ou o sintoma não permaneça intocável; é imprescindível que o sujeito esteja às voltas com a busca de respostas para sua angústia, não adianta somente estar em sofrimento. Esse sozinho não engendra mudança. A questão humana é ser desejante, e o deslocamento do assujeitamento para assunção de si mesmo é que modifica, “cura”. Logo, a meu ver, os personagens estiveram tal qual em análise às voltas com a cura; no entanto, como o contexto era a vida, não um setting analítico, o termo dimensão de cura me parece mais apropriado. Isso porque o analista, que está em constante revisão de si, buscando separar-se dos conteúdos trazidos pelo paciente, cria uma perspectiva para direcionar a cura. Em se tratando de uma amizade como a de Driss e Phillipe, em que o distanciamento é mínimo, a vivência intersubjetiva proporciona uma dimensão de cura, sem direção clara. Acredito que a riqueza do filme está na experiência vivida por ambos, porque operou-se algo a partir dela e não de conhecimento em si. Esta é mais uma especificidade da Psicanálise: há uma mudança na experiência; não num nível de conhecimento. Transladar do sacrifício que se faz de si para o Outro para a posição de assumir o próprio desejo, com todas as dores que isso implica, com ônus, porque haverá; é efeito da experiência subjetiva, é sair do ver para o olhar e do ouvir para escutar. Para mim, Intouchable, o título, refere-se a algo desta relação de amizade inominável, intocável, que não passou à palavra, é pura pulsão. Esta tragicomédia reafirma a crença de que a Psicanálise é atual, aplicável, articulase a tudo que vivemos. Mesmo partindo-se de um setting distinto do consultório; a saber, no espaço da casa, da ruas de Paris, de uma lanchonete e em tantos outros locais privados de vida dos protagonistas, pode-se permear conceitos e técnica psicanalítica. Freud se propõe a entender o páthos humano a partir de uma práxis, cujo olhar se direciona ao inconsciente e aos significantes extraídos de vivências intersubjetivas, tornando-a legítima a todos fragmentos de história humana. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: Celes, L. A. (2005 julho-dezembro). Psicanáise: trabalho de fazer ouvir e de fazer falar. Psychê no IX, nº 16, São Paulo. pp. 25-48. Freud, Sigmund (1916-1917[1915]). Conferências introdutórias sobre psicanálise. Conferência. Introdução. In: edição Standart brasileiradas obras psicológicascompletas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago. 1996. v.15. pp..27-37. Freud, S. (1911-1913 [1914]). O Caso Schreber, artigos sobre Técnica e outros trabalhos. Repetir, Recordar e Elaborar (Novas Recomendações Sobre a Técnica da Psicanálise II).In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago. 1996. v.12. pp.163- 171. Freud, S. (1911-1913 [1913]). O Caso Schreber, artigos sobre Técnica e outros trabalhos. Sobre o Início do Tratamento (Novas Recomendações Sobre a Técnica da Psicanálise I). In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago. 1996. v.12. pp.137- 158. Freud, S. (1911 -1913 [1911]). O Caso Schreber, artigos sobre Técnica e outros trabalhos. A Dinâmica da Transferência. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago.1996. v.12. pp.109-119. Nakahe, O. (direção) & Toledano, E. (direção).2011. Intouchable. [Filme-vídeo]. Francois Cluzet; Omar Sy e Anne Le Ny. (atores). The Weinstein Company (distribuição). Paris. Baseado em livro autobiográgico de Phillipe Pozzo di Borgo, Le Second Souffle.106 min. color. Nasio, J.-D. (1995). O Olhar em Psicanálise. Tradução de Vera Ribeiro. Zahar Editora. Rio de Janeiro. pp. 7-39.