As finalidades da religião A invenção cultural do sagrado se realiza como processo de simbolização e encantamento do mundo, seja na forma de imanência do sobrenatural no natural, seja na transcendência do sobrenatural. O sagrado dá significação ao espaço, ao tempo e aos seres que neles nascem, vivem e morrem. A passagem do sagrado à religião determina as finalidades principais da experiência religiosa e da instituição social religiosa. Dentre essas finalidades destacamos: • Proteger os seres humanos contra o medo da Natureza, nela encontrando forças benéficas, contrapostas às maléficas e destruidoras; • Dar aos humanos um acesso à verdade do mundo, encontrando explicações para a origem, a forma, a vida e a morte de todos os seres e dos próprios humanos; • Oferecer aos humanos a esperança de vida após a morte, seja sob forma de reencantamento perene, seja a forma de reencarnação purificadora, seja sob a forma da imortalidade individual, que permite o retorno do homem ao convívio direto com a divindade, seja sob a forma de fusão do espírito do morto no seio da divindade. As religiões da salvação, tanto as de tipo judaico-cristão quanto as de tipo oriental, prometem aos seres humanos libertá-los de pena e da dor da existência terrena; • Oferecer consolo aos aflitos, dando-lhes uma explicação para a dor, seja ela física ou psíquica; • Garantir o respeito às normas, às regras e aos valores da moralidade estabelecida pela sociedade. Em geral, os valores morais são estabelecidos pela própria religião, sob a forma de mandamentos divinos, isto é, a religião reelabora as relações sociais existentes como regras e normas, expressão da vontade dos deuses ou de Deus, garantindo a obrigatoriedade da odediência a elas, sob pena de sanções sobrenaturais. Críticas à religião As primeiras críticas à religião feitas no pensamento ocidental vieram dos filósofos pré-socráticos, que criticaram o politeísmo e o antropomorfismo. Em outras palavras, afirmavam que, do ponto de vista da razão, a pluralidade dos deuses é absurda, pois a essência da divindade é a plenitude infinita, não podendo haver senão uma potência divina. Declararam também absurdo o antropomorfismo, uma vez que esta reduz os deuses à condição de seres super-humanos, quando, segundo a razão, devem ser supra-humanos, isto é, as qualidades da essência divina não podem confundir-se com as da natureza humana. Essas críticas foram retomadas e sistematizadas por Platão, Aristóteles e os estóicos. Uma outra crítica à religião foi feita pelo grego Epicuro e retomada pelo latino Lucrécio. A religião, dizem eles, é fabulação ilusória, nascida do medo da morte e da Natureza, É superstição. No século XVII, o filósofo Espinosa retoma essa crítica, mas em lugar de começar pela religião, começa pela superstição. Os homens, diz ele, têm medo dos males e esperança de bens. Movidos pelas paixões (medo e esperança), não confiam em si mesmos nem nos seus conhecimentos racionais para evitar males e conseguir bens. Passional ou irracionalmente, depositam males e bens em forças caprichosas, como a sorte e a fortuna, e as transformam em poderes que os governam arbitrariamente, instaurando a superstição. Para alimentá-la, criam a religião e esta, para conservar seu domínio sobre eles, institui o poder teológico-político. Nascida do medo supersticioso, a religião está a serviço da tirania, tanto mais forte quanto mais os homens forem deixados na ignorância da verdadeira natureza de Deus e das causas de todas as coisas. Essa diferença entre religião e verdadeiro conhecimento de Deus levou, no século XVII, à idéia de religião natural ou ateísmo. Voltando-se contra a religião institucionalizada como poder eclesiástico e poder teológico-político, os filósofos da Ilustração afirmaram a existência de um deus que é força e energia inteligente, imanente à Natureza, conhecido pela razão e contrário à superstição. Observamos, portanto, que as críticas à religião voltam-se contra dois de seus aspectos: o encantamento do mundo, considerado superstição; e o poder teológico-político institucional, considerado tirânico. No século XIX, o filósofo Feuerbach criticou a religião como alienação. Os seres humanos vivem, desde sempre, numa relação com a Natureza e, desde muito cedo, sentem necessidade de explicá-la, e o fazem analisando a origem das coisas, a regularidade dos acontecimentos naturais, a origem da vida, a causa da dor e da morte, a conservação do tempo passado na memória e a esperança de um tempo futuro. Para isso, criam os deuses. Dão-lhe forças e poderes que exprimem desejos humanos. Fazem-nos criadores da realidade. Pouco a pouco, passam a concebê-los como governantes da realidade, dotados de forças e poderes maiores dos que os humanos. Nesse movimento, gradualmente, de geração a geração, os seres humanos se esquecem de que foram os criadores da divindade, invertem as posições e julgamse criaturas dos deuses. Estes, cada vez mais, tornam-se seres onipotentes e distantes dos humanos, exigindo destes culto, rito e obediência. Tornam-se transcendentes e passam a dominar a imaginação e a vida dos seres humanos. A alienação religiosa é esse longo processo pelo qual os homens não se reconhecem no produto de sua própria criação, transformando-o num outro (alienus), estranho, distante, poderoso e dominador. O domínio da criatura (deuses) sobre seus criadores (homens) é a alienação. A análise de Feurbach foi retomada por Marx, de quem conhecemos a célebre expressão: “A religião é o ópio do povo”. Com essa afirmação, Marx pretende mostrar que a religião – referindo-se ao judaísmo, ao cristianismo e ao islamismo, isto é, às religiões da salvação, - amortece a combatividade dos oprimidos e explorados, porque lhes promete uma vida futura feliz. Na esperança de felicidade e justiça no outro mundo, os despossuídos, explorados e humilhados deixam de combater as causas de suas misérias nesse mundo. Todavia, Marx fez uma outra afirmação que, em geral, não é lembrada. Disse ele que “a religião é lógica e enciclopédia popular, espírito de um mundo sem espírito”. Que significam essas palavras? Com elas, Marx procurou mostrar que a religião é uma forma de conhecimento e de explicação da realidade, usada pelas classes populares – lógica e enciclopédia – para dar sentido às coisas, às relações sociais e políticas, encontrando significações – o espírito no mundo sem espírito -, que lhes permitem, periodicamente, lutar contra os poderes tirânicos. Marx tinha na lembrança as revoltas camponesas e populares durante a Reforma Protestante, bem como na Revolução Inglesa de 1644, na Revolução Francesa de 1789, e nos movimentos milenaristas que exprimiam, na Idade Média, e no início dos movimentos socialistas, a luta popular contra a injustiça social e política. Se por um lado há a face opiácia do conformismo, há, por outro lado, a face combativa dos que usam o saber religioso contra as instituições legitimadas pelo poder teológico-político. Conciliação entre filosofia e religião (...) Segundo Kant, “a religião não é teologia, não é teoria sobre Deus, alma e mundo, mas resposta a uma pergunta da razão que esta não pode responder teoricamente: “O que podemos esperar?”. Qual o papel da religião? Oferecer conceitos e princípios para a ação moral e fortalecer a esperança num destino superior da alma humana. Sem Deus e a alma livre não haveria a humanidade, mas apenas a animalidade natural; sem a imortalidade, o dever tornar-se-ia banal”. A consciência constitui as significações (fenomenologia) assumindo atitudes diferentes, cada qual com seu campo específico, sua estrutura e finalidades próprias. Assim como há a atitude natural (a crença realista ingênua na existência das coisas) e a atitude filosófica (a reflexão), há também a atitude religiosa, como uma das possibilidades da vida da consciência. Quando esta se relaciona com o mundo através das categorias e das práticas ligadas ao sagrado, constitui a atitude religiosa. Assim, a consciência pode relacionar-se com o mundo de maneiras variadas – senso comum, ciência, filosofia, artes, religião -, de sorte que não há oposição nem exclusão entre elas, mas diferença. Isso significa que a oposição só surgirá quando a consciência, estando numa atitude, pretender relacionar-se com o mundo utilizando significações e práticas de uma outra atitude. Foi isto que engendrou a oposição e o conflito entre Filosofia, Ciência e Religião, pois, sendo atitudes diferentes da consciência, cada uma delas não pode usurpar os modos de conhecer e agir, nem as significações da outra. Ps.: Quando a religião passa a precisar oferecer-se sob a forma de provas racionais empíricas e teóricas de caráter científico e filosófico, presenciamos situações históricas e limites que desestabilizam o trajeto religioso (Giordano Bruno, Copérnico, Galileu Galilei, Darwin...) (extraído para fins didáticos de CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. Editora Ática: São Paulo, 1994)