6233 TEMPOS DE MEMÓRIA, ESPAÇOS DE VIDA: FOTOS DE PROFESSORAS DO INÍCIO DO SÉCULO XX NA CIDADE DO RIO DE JANEIRO Ana Valéria de Figueiredo Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro Universidade Estácio de Sá Universidade Iguaçu RESUMO Imagem é comunicação. Desde a Pré-história, quando das marcas deixadas nas paredes, a imagem é objeto de fascínio, de identidade, de mensagem. Na atualidade, mesmo virtual, criada num espaço-tempo de concretude imaterial, a imagem é tradução de histórias, desejos e sedimentação de símbolos e ícones, lugares de memórias... Civilização da imagem. Daguerreótipo, fotografia, cinema, televisão. Imagens que cercam a vida de cada um, criando cadeias e tramas imaginárias e reais; intercambiáveis, redundantes e emblemáticas, documentos de vida e trabalho. Uma imagem nunca é inocente retrato desprovido de significação. É documento sociohistórico de uma época, de um lugar, de um grupo social. É formadora de identidades que se forjam no cotidiano. Partindo desse pressuposto, investigar imagens é construir um discurso visual de um determinado tempo-espaço, com uma história prenhe de significações explícitas, tanto quanto simbólicas. Sob essa perspectiva, Aumont (2000: 78) sugere que a produção de imagens jamais é gratuita, e desde sempre, as imagens foram fabricadas para determinados usos, individuais ou coletivos. Pode-se conceber uma imagem como instrumento mediador entre o espectador, ou seja, aquele sujeito que olha a imagem, aquele para quem ela é feita (id., ib.); aquele que olha, e a realidade daquele que a vive, enquanto frui. Embasada pela fruição imagética, neste ensaio parto da premissa que ao trabalhar com as fotografias de professoras e alunos, estudo lugares de memória do magistério carioca do início do século XX, com a idéia de que a instituição escola costurava a identidade pessoal e profissional dessas mulheres e que esta expressão fotográfica também acabava por delinear um projeto pessoal e profissional da profissão de professor. Desse modo, opero com a noção de “lugares de memória” tal qual Pierre Nora (1993: 13) a descreve: como “restos”, como lugares que nascem e vivem do sentimento que não há memória espontânea, que é preciso criar arquivos, que é preciso manter aniversários, organizar celebrações, pronunciar elogios fúnebres, notariar atas, porque essas operações não são naturais. Levandose em conta que memória é também identidade e projeto, é Velho (1999) com seu texto “Memória, Identidade e Projeto” que vem dar sustentação à arquitetura de análise das fotos aqui apresentadas como suportes de memória. Segundo este autor, é a associação entre projeto e memória que vai trazer significação à identidade do indivíduo, constituindo também sua identidade social, no caso do estudo aqui proposto, identidade profissional das professoras. Opto por estudar as fotos no sentido de série, o que no dizer de Mauad (2004) é uma das maneiras de se trabalhar criticamente com este tipo de material, não ficando limitado a um simples exemplar, rompendo com a homogeneidade, o que exige do pesquisador uma atenção à polifonia, à circulação e ao consumo na produção das imagens. Tomo como fonte primária para análise, documentos iconográficos, principalmente fotografias de professoras e alunos de escolas públicas e particulares do município do Rio de Janeiro que situam-se no período que abrange as primeiras décadas do século XX. Assim, agrego o texto às fotografias que abrangem, em sua grande parte, a década de 1910, retratando escolas públicas, professoras e alunos do município de Rio de Janeiro. A breve análise das fotografias presentes neste estudo levou em conta, de maneira geral, os seguintes pontos: a cronologia das fotos; a organização das fotos em séries: fotos oficiais e não oficiais de turmas – alunos e professor; fotos do cotidiano escolar – alunos e professor em atividades escolares diárias; fotos de sala de aula com a presença/ sem a presença de professor; fotos dos ambientes escolares – dependências da escola, entorno da escola, prédio da escola; a busca de dados, na literatura que descrevem a sociedade e a escola, os hábitos e costumes pedagógicos e escolares do contexto da época estudada, que coexistem e se articulam entre si, resultando em diversos códigos e significações sociais ali registrados pelas fotos. As fotografias dessa 6234 pesquisa preliminar foram-me gentilmente cedidas pelo Centro de Referência da Educação Pública do Rio de Janeiro (CREP). São reproduções fotografadas (algumas) por Antônio Belandi (segundo os registros do CREP), tendo como originais as fotos tiradas por Augusto Malta. Quando havia a referência explícita, na própria foto, de que esta era de Malta, a legenda traz esta informação. Quando não havia certeza, não há o dado do fotógrafo. É importante frisar que as fotos foram também arquivadas pelo CREP com a permissão do Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro, pois há uma séria questão de direitos autorais das fotos de Malta envolvendo o Arquivo e a família do fotógrafo. TRABALHO COMPLETO Imagem é comunicação. Desde a Pré-história, quando das marcas deixadas nas paredes, a imagem é objeto de fascínio, de identidade, de mensagem. Na atualidade, mesmo virtual, criada num espaço-tempo de concretude imaterial, a imagem é tradução de histórias, desejos e sedimentação de símbolos e ícones, lugares de memórias... Civilização da imagem. Daguerreótipo, fotografia, cinema, televisão. Imagens que cercam a vida de cada um, criando cadeias e tramas imaginárias e reais; intercambiáveis, redundantes e emblemáticas, documentos de vida e trabalho. Uma imagem nunca é inocente retrato desprovido de significação. É documento sociohistórico de uma época, de um lugar, de um grupo social. É formadora de identidades que se forjam no cotidiano. Partindo desse pressuposto, investigar imagens é construir um discurso visual de um determinado tempoespaço, com uma história prenhe de significações explícitas, tanto quanto simbólicas. Sob essa perspectiva, Aumont (2000: 78) sugere que “a produção de imagens jamais é gratuita, e desde sempre, as imagens foram fabricadas para determinados usos, individuais ou coletivos”. Pode-se conceber uma imagem como instrumento mediador entre o espectador1, aquele que olha, e a realidade, daquele que a vive enquanto frui. Embasada pela fruição imagética, neste ensaio parto da premissa que ao trabalhar com as fotografias de professoras2 e alunos, estudo lugares de memória do magistério carioca do início do século XX, com a idéia de que a instituição escola costurava a identidade pessoal e profissional dessas mulheres e que esta expressão fotográfica delineava um projeto, pessoal e profissional da profissão de professor. Desse modo, opero com a noção de “lugares de memória”3 tal qual Pierre Nora (1993: 13) a descreve: como “restos”, como lugares que “nascem e vivem do sentimento que não há memória espontânea, que é preciso criar arquivos, que é preciso manter aniversários, organizar celebrações, pronunciar elogios fúnebres, notariar atas, porque essas operações não são naturais”. Levando-se em conta que memória é também identidade e projeto, é Velho (1999) com seu texto “Memória, Identidade e Projeto” que vem dar sustentação à arquitetura de análise das fotos aqui apresentadas como suportes de memória. Segundo este autor, é a associação entre projeto e memória que 1 Segundo Aumont (2000: 14), espectador é “aquele sujeito que olha a imagem, aquele para quem ela é feita”. 2 As fotografias aqui apresentadas foram-me gentilmente cedidas pelo Centro de Referência da Educação Pública do Rio de Janeiro (CREP). São reproduções fotografadas (algumas) por Antônio Belandi (segundo os registros do CREP), tendo como originais as fotos tiradas por Augusto Malta. Quando havia a referência explícita, na própria foto, de que esta era de Malta, a legenda traz esta informação. Quando não havia certeza, não há o dado do fotógrafo. É importante frisar que as fotos foram também arquivadas pelo CREP com a permissão do Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro, pois há uma séria questão de direitos autorais das fotos de Malta envolvendo o Arquivo e a família do fotógrafo. 3 Buscando um maior entendimento dessa noção de “lugares de memória”, Neves et al. (2005), em estudo coletivo, avança, chamando-nos a atenção de que é importante operar com a idéia de que um lugar de memória sempre o é de quem, de quê e de que época, pelo menos. Desta forma, pensar lugar de memória é também poder particularizar e singularizar memórias e lembranças. 6235 vai trazer significação à identidade do indivíduo, constituindo também sua identidade social, no caso do estudo aqui proposto, identidade profissional das professoras. Opto por estudar as fotos no sentido de série, o que no dizer de Mauad (2004) é uma das maneiras de se trabalhar criticamente com este tipo de material, não ficando limitado a um simples exemplar, rompendo com a homogeneidade, o que exige do pesquisador uma atenção à polifonia, à circulação e ao consumo na produção das imagens. Assim, agrego ao texto fotografias que abrangem, em sua grande parte, a década de 1910, retratando escolas públicas, professoras e alunos do município de Rio de Janeiro. Lugar de memória: de quê, de quem, para quê? A foto acima é da placa comemorativa da fundação da Escola Municipal Gonçalves Dias4, ocorrida em 1870. Quem lança a pedra fundamental da construção não é ninguém menos do que D. Pedro II, Imperador do Brasil à época, o que denota a importância da fundação de uma escola. É o Imperador em pessoa quem lança a prima petrus, sob a qual será erigido o edifício escolar. Se pensarmos em Le Goff (2003: 525) quando disserta sobre os materiais da memória coletiva e da História que, “de fato o que sobrevive não é o conjunto daquilo que existiu no passado, mas uma escolha efetuada [...]” (grifos meus), a placa fotografada parece ter o cunho, a intenção de demarcar uma época, um acontecimento que deve ser lembrado. Fato que deve ficar tanto na memória das testemunhas oculares da colocação da pedra, quanto daqueles que virão nas gerações posteriores, marcando a grandiosidade do Imperador que por aqui um dia viveu e letrou o povo. 4 Segundo dados do CREP, a E. M. Gonçalves Dias funciona ainda hoje no Campo de São Cristóvão, no bairro de mesmo nome. 6236 Para quem são construídas as escolas? Para a infância e a juventude, para o futuro!, dirão os entusiastas, sem nenhuma dúvida. Eis que a fotografia é também documento social, segundo Freund (1976), onde cada momento histórico presencia modos de expressão que correspondem ao caráter político, às maneiras de pensar e aos gostos de cada época. Assim é que, na foto acima, de 1910, as crianças são a parte mais expressiva da composição, figurando em destaque no plano da frente da foto5, ao passo que as professoras e funcionários (provavelmente) da escola estão atrás. Ainda podemos estabelecer uma possível relação: sendo um jardim de infância, qual o melhor lugar para se fotografar as “sementes do amanhã” senão no próprio local onde estas podem florescer e crescer saudáveis? Fotografar crianças em um jardim de infância é pensar o futuro; é pensar memória como projetos “que situam o indivíduo, suas motivações e o significado de suas ações, dentro de uma conjuntura de vida, 5 Cf com Mauad (2004: 33), onde a autora faz uma classificação para a análise dos planos da forma de expressão e enquadramentos de uma fotografia. 6237 na sucessão das etapas de sua trajetória” (Velho, 1999: 101). No caso da foto, projetos aliados às trajetórias escolares individuais e coletivas, tanto das crianças, quanto das professoras. Dentro da classe, crianças atentas aos olhos de quatro professoras. Será uma avaliação, uma aula prática a qual uma das novatas está sendo submetida pelas veteranas? Será esta uma classe-modelo? Será o material pedagógico uma recente inovação da prática pedagógica, símbolo da modernidade da civilização? Há de se pensar na assertiva de Le Goff de que escolhe-se o que vai sobreviver; é opção de corte para lembrar. Aliado a este ponto de vista, Augusto Malta6, o autor da foto, foi durante um bom tempo fotógrafo oficial da prefeitura do Rio de Janeiro7, o que pode suscitar a idéia de que dele era a incumbência de registrar visualmente o que deveria ser oficialmente guardado para a posteridade. Modos oficiais de conduta e de estar no mundo escolar exemplarmente... Fazendo um contraponto entre a foto das crianças no jardim e a foto seguinte, cabe marcar a distinção do local onde foram feitas: a das crianças, ao ar livre; a das professoras de frente para o observador, em ambiente fechado, na sala de aula, para ser mais exata. Portanto, serão, do domínio do espaço livre, sem amarras, as crianças, representantes “legítimas” do porvir, do futuro que acena em um horizonte de expectativas (Koselleck, 1990)? Será, do domínio do ofício de ser professora, o ambiente propício para exercer tal atividade, a sala de aula? Serão estes os palácios da memória de seus súditos que os ocupam? Ainda, se observarmos, as crianças encontram-se de frente para o espectador na imagem do jardim de infância, enquanto que na foto da classe, elas estão de costas para quem olha e as professoras é que estão de frente para os espectador. Nesse sentido, Freund (1976: 8) nos fala que a importância da fotografia também se dá por esta ser um dos meios mais eficazes de moldar nossas idéias e de influenciar em nosso comportamento. Memória e projeto forjando identidades: “associam-se e articulam-se dando significado à vida e às ações dos indivíduos, em outros termos, à própria identidade” (Velho, id.: 101). Desse modo podemos pensar que as fotos como lugares de memória também indicam modos de ser e estar no mundo – ser aluno e ser professora – identidades individuais e identidades profissionais. Se repararmos mais atentamente a imagem, podemos ver as mesas das crianças, vazias, sem nenhum material ou tarefa a ser realizada, o que reforça a idéia de que esta foto retrata uma situação esteticamente preparada para ser exemplar, tanto no modo de condução de uma criança em sala de aula, quanto de ser professora, zelosa pela ordem e conduta de si e de seus alunos. De acordo com Velho (id.: 103), memória e projeto ordenam e dão significado às trajetórias individuais e coletivas. Desse modo, memória e projeto existem como meios de comunicação e expressão, de articulação de interesses, de objetivos, “sentimentos e aspirações para o mundo”. Portanto, um lugar de memória é também lugar de comunicação de projetos e de maneiras de ser. Maneiras de ser, modos de criança: comportadas, mesmo à beira do balanço, objeto para o lazer entre as atividades escolares. O uniforme, imaculadamente branco, trazendo a idéia de que a escola é 6 Trago aqui um brevíssimo histórico profissional de Augusto Malta a título de esclarecimento de quem foi considerado, pela voz corrente, um dos primeiros cronistas visuais da cidade do Rio de Janeiro: “Primeiro fotógrafo oficial da Prefeitura do Rio de Janeiro, contratado em 1903 para documentar as radicais reformas urbanísticas promovidas pelo prefeito Pereira Passos, permanece nessa função até sua aposentadoria, em 1936. Além de documentar as transformações por que passou a cidade, fotografou a Exposição Nacional de 1908; a Exposição do Centenário da Independência e o desmonte do Morro do Castelo, ambos em 1922; registrou diversos aspectos da vida carioca, como o carnaval de rua, a prostituição da zona portuária, e ainda retratos de artistas, políticos e intelectuais”. (www.itaucultural.org.br) 7 Na breve pesquisa que efetuei no CREP, pude perceber pelas séries de fotos que Malta às vezes passava dois, três dias em uma determinada escola fotografando o ambiente físico, o material pedagógico, os trabalhos realizados, alunos, professores e funcionários em atividades escolares, enfim, tudo o que pudesse ficar registrado como destaque positivo da produção daquela instituição. 6238 também um ambiente higiênico8 e adequado ao bom crescimento; nos rostinhos, a vontade contida de correr, pular, brincar, sem preocupações maiores com a desarrumação da cena montada para figurar exemplarmente (foto a seguir). Que lugar de memória seria esta foto para aqueles que estão nela e a apreciassem hoje? Teríamos revividas as mesmas lembranças? Provavelmente não, posto que memória não é dado imutável. Ao contrário, é sempre construção, interpretação da construção, de forma dinâmica e problemática. O que se vê traz em si o sentido simbólico da memória que pode ser tocado pelo som “destas vozes que vêm do passado” (Nora, 1993: 16), atualizadas e ouvidas no presente e pelo presente. É Malta também o fotógrafo da próxima reprodução. O motivo da foto é também crianças no jardim de infância da E. M. Marechal Hermes, em Botafogo, Rio de Janeiro. Porém, a foto difere da anterior em pelo menos dois visíveis pontos: as crianças retratadas na foto de cima usam o uniforme claro; e as crianças da foto abaixo, vestem um costume de cor escura por cima do uniforme. Outro ponto de contraste é que as crianças do balanço (acima) não esboçam sequer um sorriso e olham para o espectador apreensivas, enquanto que as da foto a seguir, algumas sorriem e fazem pose (estudada) para o fotógrafo. 8 Sobre o modelo higiênico e as formas escolares de educação, cf com o trabalho de Gondra ( 2004). 6239 Ao fundo, em pé no portão, uma criança fora dos muros da escola, observa a pose da turma fotografada. Se memória é identidade e projeto, essa infância projetada dentro da escola é apenas uma das infâncias possíveis. Este ponto pode ser lido de acordo com Velho (id.: 104), quando o autor nos chama a atenção para a multiplicidade de projetos e de motivações que traz a possibilidade de contradições e de conflitos entre os projetos individuais e coletivos. Em outro ponto da cidade, no que hoje é o centro do Rio de Janeiro, esse projeto coletivo de escola é também registrado para os arquivos da memória, por Augusto Malta. É o jardim de infância da Escola Campos Salles. Ao ar livre, a cena retrata o que parece ser um piquenique nos jardins da escola. Os pequerruchos, ordeiramente sentados em suas cadeiras, compartilhando a boa mesa com seus pares. Ao fundo, as professoras atentas e zelosas, guardiãs da integridade física e moral de seus alunos. Tais como as árvores e seus troncos fortes, encontram-se firmes e vigilantes, mimetizando-se com a paisagem. 6240 O protagonismo da cena parece pertencer às crianças, em destaque num primeiro plano fotográfico. O canteiro circular sugere que também as mesas são parte do jardim, assim como as crianças. Aliado a essa possibilidade de leitura, Nóvoa (1991: 12) nos conta que a gênese e o desenvolvimento do modelo escolar é um processo longo, gestado entre as relações sociais, entre diferentes representações e orientações. Assim é que, segundo o autor, a partir do século XVII-XIX vem sendo efetivada uma série de normas que dizem respeito ao uso do corpo como distinção social. A “civilização dos costumes”, conforme Elias (segundo Nóvoa), impõe a internalização de regras de conduta e moral no trato social e, entre estas, as regras da boa educação à mesa não deixariam de estar incluídas. Pensando sob essa perspectiva, não parece ser à toa que o piquenique se dá ao ar livre com a utilização de mesas e cadeiras para a apreciação do lanche. Ainda, a infância sendo vista partir de uma nova concepção, enquanto “classe de idade diferenciada, que se torna centro de atenção e de preocupação” (Nóvoa, id.: 113), o mobiliário parece ter sido confeccionado de acordo com o tamanho e a especificidade de quem o está usando: cadeiras e mesas pequenas para pessoas em desenvolvimento. Nesse sentido, Nóvoa (id: 109) fala de que a memória funciona como um “verdadeiro código social que mantém a integridade do sistema social e da ordem, que reforça a identidade do grupo, que regula as trocas entre os diferentes grupos sociais. Este código social não é imutável; ele está, pelo contrário, sujeito à mudanças permanentes devidas à evolução e aos eventos sociais, às modificações do ambiente e também às circunstâncias próprias a seu processo de reprodução”. (grifos do autor) Pensando9 a fotografia como lugar de memória do magistério, entendendo memória como projeto, e projeto como campo de possibilidades à maneira de Velho (1999: 46), é este autor que auxilia 9 Acima um outro ângulo da mesma atividade, com a legenda na própria foto, conservando a grafia original da época. 6241 quando acena que “os projetos individuais sempre interagem com outros dentro de um campo de possibilidades. Não operam num vácuo, mas sim a partir de premissas e paradigmas culturais compartilhados por universos específicos”. Sob esse ponto de vista, se concebermos que havia um projeto para as crianças, entenderemos porque estas foram retratadas tão amiúde. Memória é trabalho. E por sê-lo, “entretece uma trama intrincada de coordenadas que a constituem como um campo de forças já que nela se entrecruzam passado e presente; espaços e tempos; registro e invenção; o individual e o social; anamnese e prospecção; perenidade e volatilidade [...]” (Neves, 2000: 12). Nesse sentido, ser lugar de memória do magistério é também configurar uma identidade profissional que se forja nas relações cotidianas do trabalho. Eis o material empírico do trabalho docente: alunos e a lousa, ao fundo. É o que mostra a foto acima. Emoldurando a fotografia, as professoras guardam os flancos da turma, como que demarcando o espaço de ocupação das crianças para que este não seja violado. Vinte e seis alminhas em classe com seus dois “anjos da guarda”, zelosos e que olham diretamente para quem os admira. A quem olham senão ao fotógrafo, no momento do clique da câmara? Qual o horizonte de expectativas que almejam, a partir do seu campo experiências (Koselleck, id.)? Lugares de memória do futuro... Assim como Lowenthal (1998) assinala, tomamos conhecimento do passado lembrando das coisas, das histórias que lemos e ouvimos, pelas relíquias as quais temos acesso. “O passado é um país estrangeiro”, adverte o autor. Nesse sentido, serão as imagens passaportes para que possamos adentrar esse lugar, que é também lugar de memória e esquecimento? A imagem tem caráter pedagógico: modas de meninas, modos de meninos, identidades de professoras. A imagem é de lugar de memória: tem sentido físico; é funcional; é simbólica (Nora, 1993). 6242 A imagem é memória, identidade e projeto. A imagem é a contraface do esquecimento. É vida vivida, é “educação pela memória” (Neves, 2000). Referências bibliográficas AUMONT, J. A Imagem. Campinas, SP: Papirus, 2000. FREUND, G. La fotografia como documento social. Barcelona: Gustavo Gili SA, 1976. GONDRA, J. G. Artes de civilizar. Medicina, higiene e educação escolar na Corte Imperial. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2004. LE GOFF, J. História e Memória. Campinas, SP: Unicamp, 2003. KOSELLECK, R. Champs d´expérience et horizon d’attente. Deux catégories historiques. In : Le Futur passé. Paris: EHESC, 1990. p. 307-329. LOWENTHAL, D. Como conhecemos o passado. 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