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DOI: http:/dx.doi.org/10.5965/1414573102252015153
A brasilidade na obra de José de Anchieta: Na
festa de São Lourenço
Brazilian elements in José de Anchieta’s playwriting: In
Saint Lawrence’s feast
Larissa de Oliveira Neves¹
Larissa de Oliveira Neves
Urdimento, v.2, n.25, p.153–164, Dezembro 2015
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A brasilidade na obra de José de Anchieta: Na festa de São Lourenço
Resumo
Abstract
Esse artigo apresenta uma reflexão
sobre a importância do teatro jesuítico
para a cultura e para a historiografia teatral brasileiras. Busca-se pensar o teatro
de José de Anchieta de modo a mostrar
como sua obra exerceu um papel integrador no Brasil do século XVI. Para isso,
após uma rápida investigação sobre a
recepção crítica do autor no século XX,
busca-se analisar mais detidamente a
peça Na festa de São Lourenço.
This paper presents a study about
the importance of the Jesuitical theater
for Brazilian culture and theater history. It
intends to analyze José de Anchieta’s theater in order to show how his work had an
integrating role in Brazil, in the 16th century. After a small investigation about the
author’s critic reception in the 20th century, it presents a more detailed analysis of
the piece Na festa de São Lourenço.
Palavras-chave: José de Anchieta;
teatro jesuítico; cultura brasileira
Keywords: José de Anchieta; jesuitical theater; Brazilian culture.
ISSN: 1414.5731
E-ISSN: 2358.6958
¹ Profa. Dra. do Departamento de Artes Cênicas, da Universidade Estadual de
Campinas (UNICAMP), Campinas, SP, Brasil.
[email protected]
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Larissa de Oliveira Neves
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O teatro jesuítico e a vinda dos padres ao Brasil
O teatro jesuítico fez parte de um modelo de representação que se iniciou no
final da Idade Média e se estendeu pelo Barroco. Fincado em sua época, trabalhava
as contradições maiores vigentes no começo do Renascimento: o embate entre um
mundo regido por uma fé inabalável no Deus cristão e outro que se iniciava, no qual
o homem e a ciência ansiavam por segurar as rédeas da história. O teatro jesuítico tomou claramente partido do velho modo de vida, colocando-se em defesa da religião,
sem, no entanto, deixar de entrever as angústias do homem moderno que nascia.
Pela religiosidade inerente a um teatro realizado por padres, o teatro jesuítico se
aproximava da exuberância da teatralidade da Idade Média, na qual se buscava representar, em três dias de representações ou mais, toda a história da humanidade, desde
a criação do mundo ao juízo final, tendo como eixo o cristianismo, mas expandindose a cenas cômicas do cotidiano. Os Mistérios medievais, no decorrer dos séculos,
ramificaram-se em diversos outros tipos de espetáculos, um pouco mais “fechados”,
como os autos — em que se narravam histórias representativas da vida de um santo
–, e as moralidades — com enredos que acompanhavam um percurso para uma personagem, geralmente alegórica, encontrar seu lugar no Céu.
Esses gêneros do final da Idade Média adentraram o período do Barroco e chegaram ao Renascimento, com o surgimento de dramaturgos que se dedicavam, na
península ibérica principalmente, a defender a Igreja Católica e seus dogmas. Entre
os principais dramaturgos do período podemos destacar, por exemplo, Gil Vicente
(1470-1536) e Calderón de la Barca (1600-1681).
Anatol Rosenfeld ressaltou o caráter imagético desse tipo de teatro:
Trata-se de uma arte que é muito mais da imagem do que da palavra e que procura
impressionar o povo, colocando os fiéis em estado de admiração devota. [...]. O
fato é que todos os recursos cênicos inventados no Renascimento para conquistar e dominar a realidade terrena são agora mobilizados para obter precisamente
o efeito contrário: não para consolidar e sim para abalar a realidade, não para
emprestar realidade à aparência e sim para transformar a própria realidade em
aparência (2004, p.58-59).
A citação mostra a dualidade inerente ao teatro jesuítico e Barroco, que se dá
na temática e, como se vê, nos recursos cênicos também. A cena aproveita a ciência
para paradoxalmente enaltecer uma conduta de vida centrada na felicidade postmortem. Tais procedimentos visuais, como figurinos coloridos, alçapões, elevações,
aparecimentos e desaparecimentos, máquinas de voo, entre outros, tinham o objetivo de revelar ao espectador a instabilidade de vida terrena, a fugacidade e ilusão do
cotidiano, em oposição a uma vida estável e bela, que viria após a morte, caso a pessoa tivesse seguido um caminho moralmente seguro, segundo a ética cristã-católica. Esse teatro, cuja funcionalidade tinha sido atestada por séculos, mostra ser uma
ferramenta de catequização surpreendentemente poderosa para os religiosos que se
aventuraram no Novo Mundo a serviço do rei de Portugal, D. João III, e da Igreja, com
a missão de tornar cristãs as populações de cultura tão rica quanto diversa com a qual
os europeus se depararam ao chegar às terras brasileiras no século XVI.
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Segundo diversos estudos culturais sobre a formação do povo brasileiro, tais
como Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda; Casa Grande e Senzala, de Gilberto Freyre; O povo brasileiro, de Darcy Ribeiro; ou pesquisas mais recentes, como o
projeto temático Dimensões do Império Português: investigação sobre as estruturas
e dinâmicas do Antigo Sistema Colonial, coordenado pela professora Laura de Mello
e Souza, entre 2005 e 2010 –, sabe-se da importância da religião católica na obtenção do feito hercúleo de transformar num único “povo-nação” uma extensão de terra
tão grande como a brasileira. Os missionários e a severidade religiosa do colonizador,
aliados a um modo de lidar inteligente e maleável por parte dos jesuítas, modo de
lidar que não diminuía a radicalidade de seu pensamento religioso-ideológico, mas
permitia que o conquistador atravessasse a cultura indígena de forma a conseguir,
por meio de um conhecimento íntimo, embora errôneo, da cultura a ser transformada, localizar quais pontos de ação seriam mais profícuos, fazendo dos brasileiros
um povo com imensas quantidades de manifestações artísticas populares ligadas ao
temário religioso católico.
Esse caminhar foi muito complexo e contraditório, e ainda desperta polêmicas,
sendo assunto espinhoso, com contornos delicados. Houve violência e imposição,
resistência e transformação tanto por parte dos ameríndios como dos africanos, que
chegaram logo depois, ambos escravizados. O resultado, no entanto, compõe uma
cultura popular altamente multifacetada, com camadas de saberes que se expandem
de modo amplo, vertical e horizontalmente: folguedos religiosos, catolicismo popular,
culto a santos e padroeiros, Candomblé, benzedeiros, simpatias, entre tantos outros.
E o primeiro passo dessa história foi sem dúvida dado pelos jesuítas, talvez os
únicos colonizadores que vieram para o Brasil sem o propósito de enriquecer. Não temos como, nem é meta desse curto trabalho, investigar os intuitos que regiam a fundo
cada um dos padres que aqui aportou, a fim de garantir de forma generalizante que
os jesuítas vinham todos para o Brasil com pureza de intenção. No entanto, é possível
respaldar que um dos mais famosos deles, José de Anchieta, enfrentou com coragem
episódios duros, movido por sua fé inabalável e cega, e que sua ferrenha atividade para
catequizar os indígenas vinha da certeza de estar “salvando” aquelas almas.
É importante pensar no missionário com os olhos de seu tempo, para não cometer o anacronismo de julgá-lo sem compreendê-lo. Embora difícil ao estudioso contemporâneo aceitar que os padres quinhentistas de fato acreditassem estar em uma
missão de salvamento, quando na verdade destruíam uma rede cultural bela e intrincada, seguindo a trilha de José de Anchieta (1534–1597) como exemplo, observamos que
de fato não havia má fé em suas opções, havia pelo contrário, uma fé exacerbada, incapaz de enxergar o outro a não ser por uma lógica católica medievalista. As pesquisas
de mestrado e doutorado de Paulo Hernandes (2001; 2006) recompõem a trajetória de
vida e aprendizado do poeta, demonstrando como ele se iniciou na vida eclesiástica e
saiu do relativo conforto em que vivia em Portugal para tornar-se um viajante em terras brasileiras, transitando entre povoados de modo a conhecer suas culturas, a fim de
encontrar a melhor forma de seduzi-los para um modo de vida no qual praticamente
todas as suas crenças e rituais eram considerados pecaminosos.
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Origem do teatro brasileiro: alguns posicionamentos críticos
José de Anchieta, padre da Companhia de Jesus e missionário, chegou ao Brasil
em 1553, com 19 anos de idade. Como vimos, o objetivo de sua vida na terra recémdescoberta era claro, mas tremendamente difícil: transformar as pessoas que habitavam as verdes terras brasileiras em cristãos. José de Anchieta não se mudou para o
Brasil para fazer teatro, ou arte, no entanto, ele o fez. A ideia de que os espetáculos
encenados durante o século XVI constituem a origem do teatro brasileiro, porém,
está longe de ser aceita por todos que se debruçam sobre essa história.
Considerar a obra de Anchieta como dramaturgia genuinamente brasileira constitui uma polêmica cuja resposta depende do ponto de vista crítico frente ao que caracteriza de fato o teatro de um país. Décio de Almeida Prado (1993) resume de forma
contundente as duas possibilidades de se pensar o teatro de José de Anchieta: “O
teatro chegou ao Brasil tão cedo ou tão tarde quanto se desejar” – inicia o professor
o seu ensaio sobre a obra anchietana, explicando então:
Se por teatro entendermos espetáculos amadores isolados, de fins religiosos ou
comemorativos, o seu aparecimento coincide com a formação da própria nacionalidade, tendo surgido com a catequese das tribos indígenas feita pelos missionários da recém-fundada Companhia de Jesus. Se, no entanto, para conferir ao
conceito a sua plena expressão, exigirmos que haja uma certa continuidade de
palco, com escritores, atores e público relativamente estáveis, então o teatro só
terá nascido alguns anos após a Independência, na terceira década do século XIX
(Prado, 1993, p.15).
Apesar de indicar as duas possibilidades de ponto de vista, Prado posiciona-se
favorável à segunda, o que já é visível a partir das palavras escolhidas para descrever
ambas na citação acima. Para o crítico, o teatro realizado pelos jesuítas não constitui
teatro propriamente dito, mas festividades e apresentações, que vão de manifestações “parateatrais” a “cenas engastadas em contextos festivos mais amplos”. Trata-se
de um posicionamento centrado em uma visão textocêntrica ocidental em relação
ao teatro, uma visão moderna que se dá apenas com “continuidade de palco”. O desenvolvimento do ensaio, de extrema excelência analítica, corrobora no entanto o
modo de ver o teatro a partir de um eixo de qualidade dramático (não qualquer palco,
portanto, mas o palco do teatro moderno), que envolve um padrão estético específico e, portanto, não alcança compreender o teatro jesuítico brasileiro como sendo
tão artístico quanto as peças valorizadas pelo estudioso.
A ironia está presente em boa parte de suas análises, em frases como: “A coerência e a homogeneidade não constituíam como se percebe traços distintivos dos
espetáculos jesuíticos, se é que desse modo os podemos considerar.” (Prado, 1993,
p.21); “interessam muito ao crítico, menos enquanto teatro, mais pela luz que lançam
sobre a mente missionária” (Prado, 1993, p.23); “Na festa de São Lourenço congrega
um elenco de personagens tão disparatadas, tão dilatadas no espaço e no tempo,
quanto se possa desejar” (Prado, 1993, p.23); “A unidade dramática é das mais precárias, porém a de ordem pessoal adivinha-se qual seja” (Prado, 1993, p.24); entre
outras de teor semelhante.
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De fato, o teatro jesuítico, herdeiro do medieval, não prima pela “coerência e homogeneidade” — pelo menos não nos sentidos do drama empregados, e desejados,
pelo crítico. Também não se baseia na criação de personagens, que são, sim, “disparatadas em tempo e espaço”. Os comentários de Prado coadunam-se à ideia de Gustave
Cohen apresentada por Anatol Rosenfeld (2004, p.46), de que cada tema do teatro
medieval “poderia ter dado um bom drama”, mas Rosenfeld ressalta que “talvez se deva
discordar desta crítica, pois é a própria visão cristã que une todos esses episódios no
tecido indissolúvel da História Sagrada em que tudo está ligado a tudo e nada escapa
ao plano do divino.” Resumindo, Prado busca no teatro jesuítico características que
não lhe são inerentes e, não encontrando, obviamente o critica negativamente.
Prado chega a comentar um dos aspectos mais importantes da dramaturgia jesuítica — a relação com o público, mas mesmo a característica de colocar o público em primeiro plano não é vista positivamente: “Buscava-se, como se percebe, um
efeito cômico acessível ao público, ainda que à custa da lógica e das regras habituais
da dramaturgia” (Prado, 1993, p.28-29). Cabe novamente questionar: a qual tipo de
dramaturgia o crítico está se referindo? Com certeza não àquela a qual se filia Anchieta e sim às “regras habituais” de uma dramaturgia moderna, ou, ao menos, uma
dramaturgia que seguiria convenções outras que não as do teatro medieval ou jesuítico, teatro no qual o texto perde a primazia para a encenação. Nesse trecho, que
nos soa bastante irônico, o ensaísta está comentando a variedade de línguas que permeiam as peças, como se esse fato fosse problemático, por afetar a coerência formal.
Sobre tal aspecto, lembramos o caráter espetacular do gênero, que prima pela
exuberância de cores e artefatos simbólicos. Desse modo a falta de “lógica” da dramaturgia se justifica plenamente, porque não é uma dramaturgia para ser lida, embora o
possa ser, mas sim para ser encenada, e encenada dentro de convenções teatrais bastante precisas, aquelas vivenciadas no século XVI. Não devemos, portanto, como bem
adverte Rosenfeld a respeito do teatro medieval (muito próximo ao jesuítico, como
já frisamos), “projetar concepções atuais dentro de épocas remotas” (2004, p.49). No
contexto da realidade vivida por José de Anchieta no Brasil em princípios de colonização, a mistura das três línguas faladas e entendidas por aqui, o tupi, o português, e o
espanhol (língua materna do escritor, que nasceu nas Ilhas Canárias), de forma às vezes
aleatória, às vezes justificada em seus enredos, teria o objetivo primeiro de fazer-se
entender pelo seu público. Sendo que, se o público não entendesse os versos, aproveitaria a encenação, por se tratar de um teatro mais imagético que falado.
O próprio Décio de Almeida Prado, antes de analisar a dramaturgia, busca em
documentos históricos descrever como seria aquela cena, realizada ao ar livre, nas
clareiras em frente às igrejas de vilas abertas no meio das florestas tropicais, ou nos
pátios dos colégios, como descreve o missivista Fernão Cardim no trecho abaixo:
A Sé, que era um estudante ricamente vestido, lhe fez uma fala do contentamento que
tivera com sua vinda; a Cidade lhe entregou as chaves; as outras duas virgens, cujas
cabeças cá já tinham, a receberam à porta de nossa Igreja; alguns anjos as acompanharam, porque tudo foi a modo de diálogo (Cardim apud. Prado, 1994, p.18).
Segundo essa descrição, observamos a presença das personagens alegóricas, típicas do teatro medieval, com estudantes representando a Sé e a Cidade. As alegorias
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foram utilizadas também amplamente pelo dramaturgo português Gil Vicente, cujas
peças eram correntemente encenadas em Coimbra durante o período de estudos de
Anchieta, quando lá habitava, sendo esse autor português considerado uma das fontes de aprendizado teatral do padre (Cardoso, 1977, p.14).
Fernão Cardim aponta que o estudante que representava a Sé estava “ricamente vestido”, como também o deviam estar os outros atores dessa encenação, tanto
aquele que interpretava a Cidade, como os que faziam as virgens e os anjos. Dentro
das limitações existentes na realidade colonial, o teatro religioso conseguia manter
o forte apelo imagético herdado das cenas da Idade Média e de seus continuadores
Renascentistas, como Gil Vicente, a fim de encantar seus espectadores e seduzi-los
para a lição religiosa que se apresentava. O fato desse teatro ter um objetivo didático
não implica a perda de seu caráter artístico, apenas filia-o ao tipo de teatro que ainda
era encenado na Europa em fins da Idade Média, um teatro que não segue uma unidade de enredo típica do drama e dentre cujos objetivos o de ser apreciado por todos
não era o menor: “Decorre ainda do fato de o drama medieval se dirigir sobretudo ao
povo e sua finalidade ser popular, didática” (Rosenfeld, 2004, p.46). É esse ponto em
específico, o de ser um teatro popular, que detemos para defender a tese de que o
teatro jesuítico consiste, sim, em teatro brasileiro, como apontaremos adiante.
Em relação aos estudos críticos sobre a obra anchietana, Sábato Magaldi — para
comentar aqui os nomes dos dois principais críticos teatrais brasileiros do século XX
— avalia o legado de Anchieta de maneira bem diferente. Magaldi não só aceita a obra
do padre como sendo a primeira manifestação de teatro brasileiro, como entende
que suas limitações devem-se mais ao gênero ao qual se inscreve – a dramaturgia
medieval — do que à falta de talento teatral do jesuíta. Comparando as peças de Anchieta com as de Gil Vicente, o crítico afirma:
As limitações de seus autos, obras de circunstância, são menos oriundas de deficiências próprias do que do primarismo quase genérico da literatura medieval. Em
cinco séculos de tentativas cênicas, na Idade Média, guardamos poucos textos
religiosos significativos [...]. O teatro de Gil Vicente, extraordinário pela poesia,
riqueza de tipos e multiplicidade de gêneros, pecava por outra lacuna, que mais
ou menos se observa em toda a produção medieval: a frágil composição cênica, a
rude estrutura dramática (Magaldi, 1997, p.16- 17).
Como se vê, Magaldi também considera a estrutura cênica dos autos anchietanos “rude”, pouco refinada, poderíamos dizer, “frágil”; no entanto, ele busca pensar
esse teatro segundo o momento e circunstância em que foi escrito, quando, por todo
o contexto, “deveria filiar-se à tradição religiosa medieval” (Magaldi, 1997, p.17). Mais
que isso, Magaldi enxerga nesse teatro a unidade que lhe é inerente, a “visão unitária
do universo religioso”, que explica todas as incongruências temáticas, como “os costumes atuais dos indígenas desfilarem ao lado de imperadores romanos” (Magaldi,
1997, p.18).
Já as incongruências formais, como o uso de três línguas de forma por vezes
aleatórias, por vezes contraditórias, o crítico explica pela necessidade, desse teatro,
de pensar o público sempre em primeiro plano. Trata-se de uma dramaturgia diferente daquela a que estamos habituados a pensar, pelo seu caráter catequético e pelo
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modo como se davam as encenações, num clima, sim, de festa popular religiosa, mas
sem por isso deixar de ter uma preocupação artística, que não se descola das outras.
O texto de Magaldi se estende com comentários sobre algumas peças, buscando
reforçar o caráter simbólico de algumas passagens, sem perder de vista a época: “A
homenagem ao santo, com a representação, numa festa popular, vincula-se talvez ao
hábito medieval de celebrarem as cidades, no palco, os feitos de seus padroeiros, em
datas comemorativas” (Magaldi, 1997, p.20)
Magaldi termina seu artigo afirmando de maneira indiscutível que os autos de
Anchieta representam o começo do teatro brasileiro, ainda que sem continuidade:
“Não se pode afirmar que, no Brasil, os autos jesuíticos tiveram descendência. Entretanto, ao lado de seu valor histórico indiscutível, apraz-nos pensar que eles nos
deram marca semelhante à dos inícios auspiciosos do teatro em todo o mundo” (Magaldi, 1997, p.24). O crítico compara, nesse trecho final, o começo de nosso teatro,
sem dúvida com alta carga de ritualidade, com os inícios dos teatros grego e medieval – ambos surgidos também de rituais religiosos. No entanto, a nosso ver, a frase do
professor que mais marca a importância desse teatro como sendo a origem do teatro
brasileiro não é essa afirmação contundente, que encerra seu artigo, e sim uma que
quase se perde numa leitura rápida. Ao comentar a mistura de línguas, presente nas
peças, Magaldi indica que: “Não é mera retórica julgar que o plurilinguismo teatral
tenha contribuído para a fusão das raças.” (Magaldi, 1997, p.18)
De fato, as peças de Anchieta são brasileiras porque só poderiam existir em nossa terra, pela fusão não só das línguas, como dos costumes, já prefigurando o que
viria a acontecer nos séculos seguintes, o desenvolvimento de um povo novo a partir
do sincretismo das etnias que passaram a conviver no território americano. No primeiro século de Brasil, as peças de Anchieta misturam os costumes indígenas com os
europeus, por meio de um olhar que é, sim, etnocêntrico — como não poderia deixar
de ser naquela época — mas que buscava alcançar, e conseguia, comunicar-se com
a população que convivia naqueles anos de primórdios de Brasil. Trata-se, portanto,
de um teatro popular, ritualístico, religioso, sim, mas que não deixa de ser teatro, e
brasileiro, já que, além da mistura de línguas, temos uma primeira manifestação de
mistura de cultura, elaborada por um homem que escolheu ser brasileiro, mesmo
que essa escolha tivesse objetivos missionários.
Se não houve uma continuidade registrada em documentos históricos, que fosse documentada para nossos olhos de estudiosos do século XXI, houve, sem dúvida,
uma continuidade cultural, visível nas festas e folguedos religiosos que se desenvolveram nos séculos seguintes e continuam vivos no calendário cultural de praticamente todas as cidades brasileiras. Houve continuidade, inclusive, mesmo que de certa
forma tardia, em espetáculos teatrais que se voltam para essas festas e folguedos na
construção de sua carpintaria dramática e temática, implícita ou explicitamente, fazendo de forma outra que a de Anchieta, mas análoga, a apropriação de elementos
da cultura popular nacional. E houve no teatro religioso que continua a existir em
datas festivas nacionais, tais como as “paixões de Cristo” ou os “autos de Natal” e,
inclusive, em propostas estéticas mais individuais, como um Auto da Compadecida,
de Ariano Suassuna ou O pagador de promessas, de Dias Gomes.
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Na festa de São Lourenço e a mistura de costumes
Na festa de São Lourenço é uma das peças mais comentadas de José de Anchieta,
por ser uma das mais longas, compondo-se a partir de diferentes formas teatrais. Foi
encenada no dia 10 de agosto de 1587, em Niterói, durante a festa de São Lourenço
(Anchieta, 1977, p.142). Nela o autor inclui, em cinco partes, as diferentes formas espetaculares-teatrais representadas nas festas religiosas do Brasil colônia no século XVI.
A primeira, um prólogo bastante curto, apresenta São Lourenço sendo martirizado nas grelhas (o santo morreu queimado, no século III) cantando uma canção de
amor a Deus, em espanhol. Essa primeira cena chamaria a atenção do público, em
meio à festa, para a encenação que começava. Com a saída de São Lourenço iniciase a segunda parte, na qual alguns diabos tentarão dominar a vila de Niterói e serão
expulsos pelo mesmo São Lourenço (que acabou de morrer assado), junto com São
Sebastião e um Anjo. Essa segunda parte é toda falada em Tupi.
Na terceira parte os mesmos diabos subjugados anteriormente são chamados
pelo Anjo para torturarem e afogarem os imperadores romanos Décio e Valeriano,
responsáveis pelo martírio de São Lourenço. Mistura-se nessa parte o espanhol e o
tupi. Em seguida, o Anjo, falando em português, anuncia a chegada do Amor e do Temor de Deus, que recitarão sua mensagem ao público, em espanhol. A peça termina
com canto e dança dos meninos índios, em tupi.
José de Anchieta, chegando ao Brasil, imediatamente iniciou seu aprendizado
sobre as culturas autóctones. Em dois anos publicou a primeira gramática da língua
Tupi, fato que demonstra seu empenho em entender e se comunicar com as pessoas
que almejava converter. Na festa de São Lourenço, escrita quando o padre tinha 53
anos, dez antes de seu falecimento, demonstra um grande conhecimento dos hábitos
indígenas. Não podemos afirmar com certeza se José de Anchieta alcançava compreender os significados mais profundos dos hábitos que combatia, suas camadas
mais simbólicas, religiosas e ritualísticas. Pela sua inteligência, é bastante provável
que percebesse que o cauim e a antropofagia consistiam em costumes culturalmente mais importantes do que àqueles do cotidiano, como comer e beber, no entanto,
tal conhecimento fortaleceria, em sua missão, a necessidade de exterminá-los, por
considerá-los, sem dúvida, pecados graves ou “feitiçaria”, que impediriam a salvação
das almas de seus praticantes.
Desse modo, com extrema habilidade, o dramaturgo virava do avesso a simbologia religiosa-ritualística dos índios, transformando fortes e honrados guerreiros em
demônios ridicularizados. Gaixará e Aimbiré, que representam os diabos Na festa de
São Lourenço, são nome de valentes chefes Tamoio (aliados dos franceses e inimigos
dos portugueses), mas se apresentam como ridículos añángas, isto é, demônios da
floresta, que serão, durante toda a peça, vítimas de caçoadas. Somente nessa descrição temos a inversão de dois fortes elementos da cultura indígena: a transformação
de honrados chefes em palhaços atabalhoados; a transformação de um gênio do mal,
que assustava caminhantes incautos dentro das florestas, em um “diabão assado”,
também motivo de pilhéria. Hernandes (2006, p.90) indica ainda um terceiro nível
de leitura, observado nas entrelinhas dessa caracterização de personagens: os pajés,
maiores inimigos dos padres, por serem os mais sábios conhecedores das tradições.
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Logo no começo da segunda parte da peça, talvez o trecho mais interessante desse texto para a ideia a ser explorada aqui, os dois diabos elencam uma série
de costumes que os padres gostariam de ver erradicados. Primeiramente Guaixará
alegra-se por perceber que na aldeia todos estão guardando as tradições de beber
cauim, dançar, enfeitar-se, pintar-se, matar e comer prisioneiros, manter uma sexualidade livre. Em seguida uma velha índia chora ao pensar que Guaixará é um visitante
importante; percebendo que se trata de um impostor, reclama comicamente e vingase do engano recusando-lhe cauim. Então é a vez de Aimbiré elencar seus feitos em
outras aldeias, nas quais passaram “a noite inteira em feitiços e a dançar, antes de ir
para fogueira” (Anchieta, 1977, p.149).
Como podemos observar por essa descrição, são os costumes indígenas que indicam as referências de conteúdo da obra. A construção das personagens, sua falas e
ações correspondem a uma assimilação do que se via no dia-a-dia nas vilas brasileiras.
Essa parte termina com um canto de despedida escrito em versos no Tupi, no entanto,
a melodia seguiria a musicalidade de “Quien tiene vida en el cielo”, uma canção popular
ibérica (Cardoso, 1977, p.165), fato que demonstra como, mesmo no primeiro século
de Brasil, os jesuítas já conseguiam uma comunhão entre os costumes, de modo que
todos naquelas aldeias se identificassem com a espetacularidade apresentada:
Em nenhum momento da encenação até aqui, pelo menos nesse segundo ato, as
personagens do bem ou do mal simulam serem seres etéreos, divinos ou demoníacos, santos ou anjos cristãos. Os personagens do bem como os do mal representam seres e ações cotidianas na vida das matas brasileiras. (Hernandes, 2006,
p. 103).
A terceira parte, embora esteja mais distante das “ações cotidianas”, também,
em vários momentos, integra uma visão de mundo só possível de existir nas “matas
brasileiras”. O texto mistura o Espanhol, legitimado como a língua culta naqueles meandros do novo mundo, com Tupi, a língua “carijó”, também no feitio de tornar a cena
cômica, com piadas que o público-alvo da peça compreenderia de imediato.
A peça finaliza com duas partes não dramáticas, ainda incluindo o Português,
o Castelhano e o Tupi (com esse se encerra a apresentação). Segundo padre Cardoso (1977), a estrutura dos autos de Anchieta baseia-se no costume indígena de
recebimento de um viajante ilustre ou de uma insígnia. Cada parte do texto/cena
corresponderia a uma parte desse ritual. Isso talvez explique onde Anchieta teria se
inspirado para organizar uma forma dramática tão descosida e diferente de qualquer
outro gênero ibérico (mesmo os mais esgarçados espetáculos do teatro medieval).
A festa de recebimento de um viajante nas tribos indígenas apresentava diversas passagens ritualísticas (Cardoso, 1977). Primeiramente o viajante era recebido em
localidade próxima à aldeia. Essa parte representaria, no caso de Na festa de São
Lourenço, o prólogo, com o santo martirizado declamando seu amor a Deus. Após
a primeira saudação, o viajante e as pessoas que o receberam caminhavam em trilha
engalanada para a aldeia, em uma espécie de procissão festiva. Essa parte estaria
ausente nessa peça, mas está presente em outros textos de Anchieta. Chegando à
aldeia, os chefes recebem o viajante e conversam sobre como foi a viagem, fase essa
que corresponderia à segunda parte da peça.
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Em seguida os chefes se reúnem para discutir se o visitante é bom ou mau para
o grupo (terceira parte da peça). Se for bom, será festejado, se for mau, será morto.
Independente do resultado, faz-se uma comemoração. Sendo o visitante considerado
bom, o chefe percorre a aldeia de madrugada, elogiando o convidado de modo enfático, o que seria, na peça, o discurso do Amor e Temor de Deus (quarta parte). Por fim, o
canto final dos meninos índios seria a festa em homenagem ao viajante. Essa hipótese,
defendida pelo padre Cardoso com base em depoimentos da época, explica uma das
questões levantadas por Hernandes sobre o que motivaria e como seria encenada a
quarta parte de Na festa de São Lourenço, destoando tanto das partes anteriores:
Certamente este ato foi apresentado apenas para os colonos. Aparentemente não
apresenta nenhum tipo de movimento cênico, poderia muito bem acontecer dentro da capela, como um sermão. Sendo rimado talvez tenha sido cantado por um
coro de meninos do colégio. Poderia ter acontecido após o ato anterior, porém
não creio, mais fácil imaginar que tenha acontecido em outro momento, mas na
mesma festa de São Lourenço (Hernandes, 2006, pp.123-124).
O comentário busca justificar o descosido do texto, no entanto, mesmo dentro
das igrejas, numa festa, as pessoas todas se misturavam, conforme atestam as cartas
daquele período (In. Prado, 1993), sendo mais provável que toda a peça tenha sido escrita pensando-se no público eclético que festejava junto. Nesse caso, sendo a quarta
parte uma variante dramatúrgico-cênica da “pregação do chefe índio percorrendo a
aldeia de madrugada em elogio ao bom visitante” (Cardoso, 1977, p.53), esse trecho
não só estaria representando uma estrutura dramática trabalhada conscientemente
a partir de uma manifestação cultural indígena, como teria intrínseca relação com o
universo mítico dos índios e não apenas com o imaginário cristão do colonizador.
Mais que isso, esse trecho, bem como a totalidade da peça, integra uma visão ampla
que alcança um resultado sincrético, tendo sido provavelmente também direcionada
a todos que festejavam, e não a uma parcela europeia daquela população — afinal, na
festa, as fronteiras se dissolviam, pelo menos temporariamente.
Os textos de Anchieta não podem ser divididos em partes cenicamente independentes, embora literariamente as diferenças de cada bloco sejam berrantes, porque
fazem parte de uma teatralidade integradora, que visava a propiciar uma comunhão
festiva entre aqueles que encenavam e o povo que assistia. Tal espetacularidade, ainda
limítrofe com a festa, está muito mais próxima da comunhão popular descrita e analisada por Mikhail Baktin em A Cultura Popular na Idade Média, do que da cultura individualista, ou de classes, que veio a se desenvolver no decorrer dos séculos seguintes.
Isto é, à primeira vista, Na festa de São Lourenço pode parecer uma colcha de
retalhos, propiciando uma visão lacunar sobre sua potencialidade artística, haja vista
as análises do professor Décio de Almeida Prado, que buscam encontrar nessa peça
uma uniformidade outra que não àquela vivenciada por esse estilo teatral. No entanto, um estudo voltado para a cena, que repensa a sua estrutura e o seu conteúdo à
luz dos acontecimentos de sua época e das pessoas que a encenavam e vivenciavam,
mostra que Anchieta, nessa e em outras obras, reúne de modo coeso as idiossincrasias de um ambiente em fase de integração.
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Desse modo, podemos concluir que tal obra consiste num exemplo rudimentar
do complexo processo de formação da cultura brasileira, de seu princípio. A mistura
do teatral e da festa, a inversão da sacralidade indígena no objetivo de descaracterização e transformação, a apropriação formal de ritos autóctones misturada à estrutura dos autos ibéricos, o uso de três línguas faladas, de cantos e danças — todas essas formas de composição aparentemente díspares compõem uma obra teatral que
pode ser considerada um ícone dos princípios da formação do povo brasileiro, com
toda sua exuberância e disparidade, presentes essas ainda hoje, na vida e no teatro.
Referências
Anchieta, José de. Teatro de Anchieta. São Paulo: Edições Loyola,1977.
Cardoso, Armando. Introdução Histórico-Literária. In: Anchieta, José de. Teatro de
Anchieta. São Paulo: Edições Loyola,1977.
Bakhtin, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de
François Rabelais. 3ªed. São Paulo: Hucitec; Brasília: Universidade de Brasília, 1993.
Hernandes, Paulo Romualdo. O teatro de José de Anchieta: arte e pedagogia no Brasil colônia. Campinas, 2001. Dissertação (Mestrado) – Faculdade de Educação, Universidade Estadual de Campinas.
Hernandes, Paulo Romualdo. 2006. Meraviglia: O teatro de José de Anchieta. Campinas,
2001. Tese (Doutorado) – Faculdade de Educação, Universidade Estadual de Campinas.
Magaldi, Sábato. Panorama do teatro brasileiro. São Paulo: Global Editora, 1997.
Prado, Décio de Almeida. Teatro de Anchieta a Alencar. São Paulo: Perspectiva, 1993.
Rosenfeld, Anatol. O teatro épico. 4ª ed. São Paulo: Perspectiva, 2004.
Recebido em: 25/04/2015
Aprovado em: 12/10/2015
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