Jesus Cristo Libertador Quanto à compreensão da “cristologia crítica” em Leonardo Boff Hermann Brandt 1. Atualmente os debates se centralizaram no mais recente modelo teológico, a Teologia da Libertação. Às suas características funda­ mentais pertence a reivindicação por validade exclusiva. Esta rei­ vindicação é ainda fortalecida pela convicção de que a Teologia da Libertação é um a concepção genuína da teologia autóctone do assim chamado Terceiro Mundo (1). “Teologia da Libertação” já se trans­ formou, tam bém no Velho Mundo, em um chavão, como se todos soubessem o que significa este conceito. Entrementes, porém, se discute cada vez mais sobre o que “realm ente” deve ser considerado Teologia da Libertação, e isto jus­ tam ente na América do Sul, reconhecida amplamente como o con­ texto original desta Teologia (2). É significativo que o teólogo católico Hugo Assmann, expulso do Brasil e lidimado como um dos líderes da Teologia da Libertação com o seu livro Opresión — Liberación (3), se viu forçado a advertir de um a usurpação inautêntica da linguagem da libertação. A larga difusão da linguagem da liber­ tação traria consigo o perigo de seu esvaziamento; “o perigo au­ m enta na medida em que esta nova linguagem passa a exercer um a simples função de suplência do evidente desgaste da linguagem tradicional das igrejas” (4). Nesse entretempo esta advertência também já se tornou atual no âmbito extrateológico e extra-eclesiástico: tam bém a propagan­ da comercial já opera com os conceitos fundam entais da Teologia da Libertação (5). A consciência da Teologia da Libertação de estar marcando época (Epochenbewusstsein), a insegurança, suscitada por diver(1) C om pare com o exem plo típ ic o Jo sep h C om blln, “Le th è m e de la lib é ra tlo n d a n s la pensée c h ré tle n n e la tin o -a m é ric a in e ”, em L a R evue N ouvelle, B ruxelas, m a lo -ju n h o 1972, págs. 560-574. (2) U m a bib lio g rafia d a T eologia d a L ibertação, p u b lic a d a n o B rasil em lo rm a de m a ­ n u sc rito : F e rn a n d o M ontes, T eologia d a L ib ertação : uima. c o n trib u iç ã o d a teologia la tin o -am eric an a , co n tém m ais que cem títu lo s só de publicações em esp an h o l e em p o rtu g u ês. (3) M ontevidéu, 1971. (4) H ugo A ssm ann, Im plicações só c io -an a lític a s e ideológicas d a lin g u a g e m de lib ertação . M an u scrito m lm eografado, sem lu g ar n e m an o (pág. 1 ). (5) U m a em presa tê x til brasileira, p o r exem plo, p roclam a os se u s p ro d u to s sob o slogan “ lib e rtaç ão d a opressão” . 36 gências internas, quanto ao específico deste modelo teológico e o medo de um a “secularização”, de um a usurpação alienatória da linguagem da libertação — tudo isto compõe o atual quadro fenomenológico da Teologia da Libertação. Indiscutivelmente faz parte deste quadro, desde 1972, tam bém o livro Jesus Cristo Libertador, de Leonardo Boff (5). N atural­ mente é possível que já esta classificação seja criticada por alguns. Pois Boff não vincula o seu “ensaio de cristologia crítica para o nosso tem po” — assim o subtítulo — expressis verbis com um a análise das estruturas sociais, algo norm alm ente considerado im­ prescindível para um a Teologia da Libertação, e omite (apenas por motivos táticos?) qualquer referência a autores como Assmann, Gustavo Gutiérrez-Merino ou também Helder Câmara. Mas mesmo que se quisesse contestar, com base em um ideal purista de Teologia da Libertação, que este livro, pouco inclinado para extremismos, traz traços representativos de um a Teologia da Libertação, o grande sucesso e o extenso eco que este livro obteve no Brasil nos deveriam então, contudo, desafiar a nos informarmos sobre ele e a nos ocu­ parmos criticamente com ele. I. A. relação alienação-libertação 2. Se perguntarm os pelas causas da rápida difusão deste livro, podemos apresentar primeiram ente razões formais: o estilo despretencioso e simples, o esforço em tornar claro o que é comum em concepções teológicas diferentes, a ausência total de um a polêmica explícita. O livro não assume ares de escol, não conhece a obsessão por um a posição teológica própria, mas m ostra o correto como se o mesmo já tivesse sido aceito em todos os lugares. O leitor, e justa­ mente também o não-teológico, sente-se, por conseguinte, realm ente informado e não doutrinado. Mas o que faz deste livro, sob o ponto de vista do conteúdo, um produto inegável da teologia latino-americana, um acontecimento na história da teologia deste país, como também é julgado pelo lado não-católico? (7) O que é o “latino-americano” neste esboço cristológico? Estas perguntas não são estranhas ao livro. Pois “é com nossas preocupações que são só nossas e de nosso contexto sul-ameri­ cano que iremos reler não só os velhos textos doi Novo Testamento, mas também os mais recentes comentários escritos na Europa. Os dados serão situados dentro de outras coordenadas e serão projetate) L eonardo B off, Je su s C risto L ib e rtad o r: ensaio de cristologia c ritic a p a ra o nosso tem po. P etró p o lls (B rasil) e P o rto (P o rtu g a l) 1972, pág. 288. — Boff, n a sc id o em 1938, fran clscan o , e stu d o u n o B rasil e tam b é m n a s U niversidades de M u nique, W ürzburg, L ouvaln e O xford. S ua d issertação foi p u b lic a d a n a A lem an h a: D ie K irche ais S a k ra m e n t im H o rizo n t d e r W elterfa h ru n g , P a d e rb o m , 1972. A tu a lm e n te B off é professor n o I n s titu to F llosóflco-T eológlco F ra n c lsca n o em P etró p o lls e, e n tre os o u tro s cargos, o cupa o de re d a to r d a c o n ce itu a d a R ev ista E clesiástica B rasileira. Cf. B o a v en tu ra K lo ppenburg, re ce n sã o de L. Boff, O E vangelho do Cristal cósm ico, em : R e v ista E cle­ siá stic a B rasileira, vol. 31 (m arço 1971), pág. 239s. (7) S um lo T a k a tsu , “Je su s C risto L ib e rtad o r,” em : Sim pósio, R ev ista T eológica d a As­ sociação de S em inários T eológicos E vangélicos, n ú m . 9 (dezem bro), pág. 51. 37 dos dentro de um horizonte próprio. Nosso céu possui outras estrelas formando outras figuras do zodíaco, com as quais nos orientamos na aventura da fé e da vida” (8). Uma cristologia formulada na e para a América Latina deve adotar, conseqüentemente, características próprias, e “o leitor atento as irá perceber ao longo deste livro” (9). Corresponde, por­ tanto, à intenção do livro se perguntamos como esta promessa é cumprida. Para isto queremos primeiram ente analisar mais de perto c conceito central Libertador ou, respectivamente, Libertação. É de se esperar que se tom e claro até que ponto o uso corrente do conceito do Cristo Libertador e de sua missão “libertadora” surgiu do contexto especificamente latino-americano. 3. Mas a específica situação latino-americana como motivo para uma cristologia da Libertação quase que não é citada. Este título de dignidade “Libertador”, o resumo do testem unho neotestam entário no conceito Libertação, corresponde muito antes a afirmações ge­ neralizadas sobre a situação fundam ental não só da realidade hum ana, mas também da cósmica. A categoria hermenêutica, intro­ duzida sem discussão, para a essência da realidade e da existência hum ana tanto no seu aspecto individual como social é a categoria “alienação” (10). Nela se reúnem as experiências sempre iguais e atemporais de dor, ódio, sofrimento, dispersão, guerra, opressão, pecado e morte. Elas apontam para a desunião, a ambigüidade, a esquizofrenia (quer se evitar um a compreensão m oralista do peca­ do) da existência hum ana (11). Todas estas caracterizações con­ vergem na fórmula “alienação da condição hum ana”. Em expressões estereotipadas fala-se através de todo o livro formalmente da aliena­ ção fundam ental do homem, dos elementos alienantes da existência hum ana, da natureza hum ana, ou seja, da “condição hum ana” ( 12 ). Se decepciona, portanto, aquele que esperava que a sentença existencial “alienação” fosse concretizada pela problemática espe­ cífica da América do Sul ou que nela se refletisse a situação atual do Brasil. Atrás do uso geral do conceito alienação e de elementos alienatórios só é possível reconhecer um a concepção existencial orientada nas situações limítrofes do indivíduo e comuns a todos os homens. O cerne da natureza hum ana, ou seja, a sua alienação, só se revela quando se percebe atrás de todas as modificações — devido às diversas culturas, condições sociais, situações diferentes de n a­ ções e indivíduos — a condição hum ana em sua imutabilidade. Em conformidade com isto, a “alienação” é a quintessência da história. Toda a multiplicidade da história é reduzida a esta fórmu(8) (9) (10) (11) (12) 38 B oíf, o.c., pág. 57 (n o q u e se segue só serão in d ic a d as as p á g in a s). Pág. 56. Ver. p.ex., pág. 63: “H á u m a alie n aç ão q u e pervade to d a a realid ad e h u m a n a , In ­ div id u al, social e cósm ica.” Cf. pág. 142, 149, 172. Pág. 30, 63, 65, 72, 77, 87, 93, 121, 134, 142, 149 etc., cf. o cap. IV, “Je su s C risto, lib e rtad o r d a co n d ição h u m a n a ” , pág. 76ss. la. Alienação — este é o denominador comum tam bém das culturas e estágios civilizatórios mais diferentes (13). Eles são unidos pela condição hum ana, sempre e em todos os lugares igual, cuja carac­ terística essencial é a alienação, sentida doloridamente, mas inevi­ tável, apesar de todas as tentativas de abolição. Indubitavelmente esta simplificação da história, esta esquema­ tização da existência hum ana tem as suas raízes num pensamento filosófico-existencial. Desta m aneira toda a realidade pode ser reduzida a este um conceito “alienação”. Mas isto tom a possível contrapor à totalidade da alienação a universalidade da libertação. Esta relação de correspondência tem graves conseqüências para o conceito libertação. Pois não um a opressão política, social ou econômica é o correlato para libertação, m as sim alienação no sen­ tido genérico acima apresentado. É verdade que é dito — sem referência explícita a Tillich —, que o método da correlação é indispensável para a responsabilidade da mensagem cristã: “Para compreender as respostas, é necessário que conheçamos as pergun­ tas” (14). Mas estas perguntas não surgem da realidade brasileira por meio da análise sociológica ou da crítica ideológica, mas estas perguntas são perguntas eternas de cada existência hum ana, que continuam a subsistir também na era secular, que apontam, todas elas, para a alienação. A estas perguntas deve corresponder a res­ posta libertação. Mas com isto a resposta já está predeterm inada pela pergunta. 4. At,é que ponto a pergunta (alienação) predetermina a resposta (libertação), já m ostra a extensão com que o “jargão” (15) da libertação é inserido no testem unho neotestamentário. A subordi­ nação da realidade sob o conceito da alienação obriga conseqüente­ mente a um a subordinação semelhante da multiplicidade da cristologia neotestam entária sob o título de Libertador. Como a realidade hum ana só pode ser interpretada abstratam ente como alienação, assim também o Evangelho deve ser entendido formalmente como “libertação total”: Cristo, o Libertador, é o fim de toda alienação. Assim os ouvintes de Jesus entenderam a sua pregação do Reino de Deus. “Reino de Deus” significa para eles “a realização de um a esperança de superação de todas as alienações hum anas, da des­ truição de todo o mal, seja físico, seja moral, do pecado, do ódio, da divisão, da dor e da m orte” (16). O Reino de Deus anunciado por Cristo não é um a libertação limitada, não se deve restringi-lo a aspectos isolados — políticos, econômicos ou religiosos. Mas ele abrange “tudo, mundo, homem e sociedade” (17). Pois somente assim “Reino de Deus” pode significar realização da utopia do (13) P.ex., dos povos babilónicos (epopéia de G llgam eche), dos tu p ls -g u a ra n ls ou dos gu aran is-a p ap o c u v a s n o B rasil, o u d a s u to p ia s dos tem p o s m odernos, pág. 64. Cí. tam b é m pág. 148s. (14) Pág. 63, Cf. pág. 57s., 225s., 248, 251. (15) Form ulaç& o de H. A ssm ann n o se u artig o a cim a m encionado. (16) Pág. 65. (17) Pág. 68, Cf. pág. 74. 39 coração humano, da utopia de um a total libertação da realidade hum ana e cósmica do pecado e de outros elementos alienantes na criação (18). Este Reino, em que não existe mais alienação, este Reino Cristo pregou e tornou presente. Por isso é possível dizer: “ele se entendeu como Libertador” (19). Da ressurreição fala-se de um a m aneira semelhante como do Reino de Deus. Na ressurreição de Jesus Cristo concretiza-se a liber­ tação total da existência hum ana, anunciada na pregação de Jesus sobre o Reino de Deus, de sua alienação e principalm ente também da morte (20). “A ressurreição significa a concretização do Reino de Deus na vida de Jesus” (21). Para o cristão foram, conseqüente­ mente, destruídos todos os elementos alienantes que tornam ambí­ gua a vida. O princípio esperança que está no homem sempre de novo o impeliu a tentar alcançar desesperadamente por si próprio, na sua alienação, a totalidade, e se este princípio esperança é a fonte de sempre novas utopias (22), então na ressurreição de Jesus se realizou a esperança hum ana, a “utopia” se transform ou em “topia” (23). Quanto se confundem os contornos da cristologia neotestamentária se tom a patente principalmente ali onde se quer dem onstrar a sua multiplicidade. Para Marcos Jesus é “o Messias escondido e o grande Libertador . . . como Libertador das forças alienadoras ele é o vencedor cósmico sobre a morte e o demônio” ( 24 ) . — Em Lucas ele aparece como “o Libertador dos pobres, doentes, pecadores e marginalizados . . . ” ( 25 ). Lc 2 , 11 diz: “Hoje nasceu-nos um Liber­ tador, que é Cristo Senhor” ( 26), etc. “A missão libertadora de Cristo de todos os elementos alienatórios no homem e no m undo” ( 27) — constantes formulações desta espécie tornam a cristologia neotestam entária estereotipada ( 28). Permanece aberto até que ponto esta linguagem de libertação tem a sua origem no Novo Tes­ tamento. A impressão de que estes conceitos opostos alienaçãolibertação foram impostos de fora é fortalecida pela constatação de que faltam considerações exegéticas sobre o conceito neotestamentário de libertação e que a “Teologia de Libertação” paulina sur­ preendentemente quase que não desempenha papel algum na cris­ tologia de libertação de Boff. 5. Nós vimos: alienação é um a abreviatura para as perguntas viru­ lentas da condição hum ana, e n a resposta Jesus Cristo Libertador (18) (19) (20) (21) (22) Cf. pág. 76s. P ág. 66. Cf. pág. 219. Pág. 135. B off c ita com o a u to re s P la tá o , C am plnella, K a n t, M arx, Hegel, T eilh ard e C h ard ln . O c ern e de su as u to p ia s pode se r e n c o n tra d o n a u to p ia (slc) q u e 6 a p re se n ta d a em R om 7, 24 e Apc 21, 4. Cf. 148s. (23) Pág. 149. (24) P ág. 18. (25) L.c. (26) P ág. 191. (27) Pág. 121. (28) Cf., p.ex., pág. 30, 63, 65, 72, 77, 134, 142, 148, 149, 155, 176, 178. 40 estão resumidas e sublinhadas as respostas do Novo Testamento (29). Mas qual o motivo que está agora por detrás do conceito da liberta­ ção total? Já se apontou para a seguinte coação argum entativa: Se a alienação representa a pergunta fundam ental da existência, e se “libertação” é a resposta cristã para esta pergunta, então libertação deve ser entendida com a mesma totalidade atribuída anteriorm en­ te à alienação. Mas, além disso, é possível reconhecer que se preten­ de com a enfatização da totalidade da libertação romper a restrição do título Libertador e do conceito libertação ao político-social. Á universalidade da missão libertadora de Cristo, relacionada com a alienação universal da existência hum ana, seria prejudicada se ela fosse reduzida a um aspecto parcial. Libertação no sentido de Cristo não pode ser reduzida à esfera individual e menos ainda à esfera social. Principalmente são numerosas as restrições no sentido de que Cristo não quis ser um libertador político (30). Elas devem ser entendidas como um a crítica a um conceito de libertação redu­ zido ao político-social. Se na história da tentação é rejeitado o messianismo político, então isto significa que se tra ta da libertação total da realidade em todas as dimensões (31). Por ser metapolítica, a libertação é, como a alienação, um a categoria apolítica. 6 . Se já a sentença existencial alienação não estava baseada num a análise de dependências sócio-políticas, assim também o título Libertador não apresentava um relacionamento patente com as realidades contextuais. E à asseveração de que a soma do Novo Testamento é a mensagem da libertação total faltava — como vi­ mos anteriorm ente — a verificação exegeticamente convincente. Mas que significa, afinal de contas, Libertador? O fato de ser possível encarar a perda da dimensão como aliena­ ção da existência hum ana, tem a sua correspondência na interpre­ tação do evento de Cristo como “a parusia e a epifania do Libertador da condição hum ana na globalidade de suas relações para com Deus, para com o outro e para com o cosmos” (32). Cristo integra estas relações divergentes, experimentadas como opostas ou perdidas; neste sentido ele é o “mediador” e o “reconciliador” (33) ou, em outras palavras: o “integrador”. (29) F a lta u m a reflexão c rític a so b re o c o n d ic io n am en to h istó ric o do titu lo L ib ertad o r, p o r o u tro lad o se a c e n tu a e n fa tic a m e n te a n ecessidade de u m a d ista n c ia c rític a aos conhecidos títu lo s crlstológlcos do Novo T esta m en to , e esta ênfase é fu n d a ­ m e n ta d a com o p ró p rio co m p o rta m e n to de Je su s (cf. pág. 121, 153ss.). N ão se a plica ao títu lo L ib e rtad o r o p rin cíp io : “A fé n ão p e rm ite a ideologlzação dos títu lo s d e Je su s (pág. 249s.)! (30) Cf. pág. 123, 143. (31) Cf. pág. 173s. (32) Pág. 252, se m e lh a n te em pág. 220 e pág. 260. (33) C risto é "of m ed iad o r e n tre D eus e- o hom em , n o se n tid o d e re aliz a r o d esejo f u n ­ d a m e n ta l do hom em de e x p erim en tar o In e x p erím e n táv e l e In efáv el n u m a m a n i­ festação c o n c re ta .” C risto c o n fig u ra “tam b é m a co n ciliação dos opostos h u m an o s. A h istó ria h u m a n a é am b íg u a, fe ita de paz e d e gu erra, d e a m o r a de ódio, llbertaçfio e opressão. C risto a ssu m iu e sta condição h u m a n a e a re c o n c ilio u ... D e sta rte ele v enceu a a lien ação & a cisão e n tre os h o m en s com u m vigor q u e é o vigür d o se r novo revelado n e le .” (!) Pág. 257. 41 £ exatamente este o conteúdo do título Libertador, título passí­ vel de mal-entendidos. Cristo é “o conciliador dos opostos existen­ ciais e o integrador das várias dimensões da vida hum ana na busca de sentido e luz para a cam inhada” (34). O parágrafo “Jesus Cristo, arquétipo da mais perfeita individua­ lização” (35) (!) começa com a seguinte afirmação: “Um dos desejos fundam entais de todo o homem é conseguir um a crescente integração de todos os dinamismos de sua vida consciente, subcons­ ciente e inconsciente” (36). Este desejo hum ano fundam ental por “total integração” foi saciado em Cristo: “Ele agora vai à nossa frente como caminho, luz, símbolo e arquétipo do ser mais integrado e perfeito” (37). 7 . Se bem que Boff se preocupe profundam ente pela correlação entre mensagem e situação (38), esta correlação permanece singu­ larmente inânime. “Alienação” é um conceito usado para descrever toda e qualquer situação, pois ele interpreta o homem divorciado de suas condições concretas. Conseqüentemente, tam bém a mensa­ gem da “libertação” permanece pálida e vaga. Libertação é integra­ ção, e integração é encarada, não qualitativam ente, mas aditivam ente como um enriquecimento da empobrecida existência hum ana (39). Neste contexto é especialmente elucidativo a única e errada referência que Boff faz a Tillich (40). Ele adota de Tillich o conceito “G estalt” (41), baseando-se para isso na Systematische Theologie, 1958, págs. 98-106. Tillich fala neste trecho principalm ente do “conceito do paradoxo n a teologia cristã”: “A revelação do novo ser em Cristo (é) juízo e promessa.” Ela julga e supera as limitações da existência. A afirmação paradoxal de que Jesus é o Cristo, está “voltada contra os autojuízos e as expectativas do homem” (42). Mas Boff omite totalm ente esta crítica fundam entada no evento de Cristo à autocompreensão hum ana. A figura de Cristo não contém nenhum paradoxo e, conseqüentemente, tam bém não dá origem a um a nova realidade. Cristo concretiza o anseio do coração hum ano sem julgá-lo; ele é “a realização das esperanças hum anas de total libertação e realização hum ana-divina” (43). A figura de Cristo ati(34) (35) (36) (37) (38) P ág. 258. P ágs. 260-262. Pág. 260. 262. Cf. a a firm aç ã o p ro g ra m á tic a: “É to m a n d o co n sciência da correlação e n tre p e rg u n ta e resp o sta q u e deve a rra n c a r u m a reflexão q u e m o rd a n a realid ad e o nde e la sa n g ra .” Pág. 57s. (39) C risto so u b e colocar u m “ e” o nde no s colocam os u m " o u ” e com isao co n seguiu reco n ciliar os opostos e ser m ed iad o r dos h o m en s e de to d as as cousas. Pág. 266, cf. pág. 109. (40) P ág. 252. (41) T am b ém B off c ita esta p ala v ra em alem ão. (42) T illich, o.c., pág. 102. (43) O q u e C risto re aliz o u Já estav a " la te n te ” “n o se r e n o h o m em ”, pág. 252; lá tam b ém a c ita çã o acim a a p resen tad a . 42 va as forças dos homens e torna visíveis as estruturas fundamentais da realidade hum ana (44). 8 . No início havíamos perguntado, motivados pela respectiva anun­ ciação de Boff, até que ponto a confissão “Jesus Cristo Libertador” tem a sua origem no contexto latino-americano. Esta pergunta ainda não foi respondida (45). “Alienação” é exatam ente um a abstração da situação concreta, e um a “libertação” interpretada como integração perdeu o seu caráter crítico e, conseqüentemente, também o seu caráter libertador. Não é possível, portanto, falar de um a autêntica correlação entre pergunta (situação) e resposta (mensagem). A pergunta da situação é um destilado filosóficoexistencialista, a resposta da mensagem está privada de poder transformador. Mas esta não é ainda a palavra final. A libertação só se torna compreensível quando ela é relacionada antiteticam ente com con­ dições de falta de liberdade e quando esta falta de liberdade é apresentada de um a m aneira bem concreta. Isto ocorre plenam ente em determinados contextos, os quais nos ocuparão subseqüente­ mente. II. Jesus e a Igreja 9. Leonardo Boff é católico romano. Para um leitor protestante este fato se torna especialmente evidente na conclusão eclesiológica do seu livro e na discussão exegética a respeito do testemunho dos evangelhos sobre o nascimento de Jesus. Analisaremos mais deta­ lhadam ente estas duas temáticas. a) A tese eclesiológica de Boff, pouco surpreendente, se sedimentou no título de um de seus parágrafos: “O cristianismo católico como a articulação institucionalm ente mais perfeita do cristianismo” (46). A Igreja Católica Apostólica Rom ana concretiza potencial­ m ente o Reino de Deus. Sua estreita relação com Jesus Cristo jam ais foi interrom pida (47). Nela se encontra a totalidade dos meios de salvação (48). (44) Pág. 252s., m as C f. pág. 248. J . B. L lbânlo fa la em s u a recensão d a g ra n d e In flu ên c ia do m a te ria l ld eatlv o e x iste n c ia lista : “O le ito r ... se n te de fa to a fo rte m arc a de u m p e n sa m e n to p erso n alista, existen cialista, tra n s c e n d e n ta l n a m a n e ira d e tr a ta r o p ro b lem a d e C risto, h a u rid o n a s fo n te s fllosóflco-teológlcas d a E u ro p a C e n tra l” em : C onvergência, a n o 5, ju lh o 1972, n ú m . 47, pág. 97-100, a c ita çã o pág. 99). (45) No c a p ítu lo X Q ("C om o vam os c h a m a r Je su s C risto h o je ? ” ) fa la -se , é verdade, dos “elem en to s de u m a crlstologia em lin g u ag em se c u la r” (pág. 245ss.), m a s é discu tív el se e sta “se c u la rld a d e ” deve se r c o m p reen d id a com o a re alid a d e la tin o -a m e ric a n a . E m d ireção se m elh a n te a p o n ta tam b é m a c ritica q u e a firm a q u e B off se c ala q u a n to a u m dos p roblem as crlstológlcos m ais c a n d e n te s n a A m érica L a tin a : a repressão m asslva d a fig u ra d e C risto p elo c u lto aos sa n to s e p elas novas religiões sln c re tls ta s : cf. C arlos M esters, “E m defesa de Je su s C risto L ib e rtad o r”, em : Vozes, a n o 66, vol. 66 (setem b ro 1972), pág. 571-574, ali pág. 574. (46) Pág. 277ss. (47) Cf. pág. 278. (48) Pág. 279. 43 As outras religiões (entre elas o protestantismo) são “deficien­ tes” em relação a “a ” Igreja. Todas elas concretizam de “algum a” forma mais débil a Igreja de Cristo. “Nesse sentido não existem religiões naturais” (49). Mas existem graus diferentes de aproxima­ ção à Igreja Romana (50). É possível distinguir três graus da presença de Cristo. Primeiro: Cristo está presente em todos aqueles que lutam pelo bem, pela justiça, pelo amor e pela solidariedade entre os homens. Esta é “a presença de Cristo nos cristãos anônimos e latentes” (51). Segundo: O Ressurreto está presente em todos os cristãos sinceros, mesmo naqueles que não estão em comunhão plena com a Igreja Católica (52). Aqui — nos “cristãos explícitos e patentes” — Cristo está presente de “forma mais profunda” (53). Mas “o maior grau de concreção histórica” a presença de Cristo atinge no terceiro grau, na “Igreja Católica, o sacramento primordial da presença do Se­ nhor” (54). A fundamentação desta asseveração está, naturalm en­ te, na eucaristia: “na eucaristia o Senhor ressuscitado adquire o máximo grau de densidade e de presença” (55). Mas estas afirmações, plenamente ortodoxas, não são feitas sem um a silenciosa reserva. A conceituação da Igreja Católica como a mais excelente articulação institucional do cristianismo traz implí­ cita a necessidade de se deixar criticar continuam ente por Jesus Cristo e de estar também consciente de estar “ainda longe da casa paterna” (56). Mas ainda mais notável é a “conclusão” que se segue à acima mencionada exposição da presença tríplice de Cristo. Ela se apre­ senta intitulada pela sentença “O orgulho da taça está na bebida, sua humildade no servir” — um a citação de Pensamentos de Dag Hammarskjõld (57). Segundo Boff, as igrejas (!) estariam correndo o perigo de substituir a Cristo ao invés de representá-lo. “Em vez de levarem os homens a Cristo, atraem -nos somente para si mesmas” (58). A esta tendência de auto-ratificação ecle­ siástica contrapõem-se novamente as palavras de Hammarskjõld. “Você não é o óleo, não é o ar — simplesmente o ponto de combus­ tão, o ponto de clarão onde nasce a luz. — Você é apenas a lente no jato de luz. Você pode apenas receber, dar, e possuir a luz como o faz a lente. Se você procurar a si próprio e ‘os seus direitos’, impede o óleo e o ar de se encontrarem na chama, você rouba a transpa­ rência da lente. — A santidade, seja para ser luz ou para ser refletida na luz, deve-se apagar para que possa nascer, deve-se apagar para que se possa concentrar e ser espalhada” (59). (49) (50) (51) (52) (53) (54) (55) Pág. 278. E ste a ssu n to é ab o rd ad o n o c a p ítu lo ‘‘O nde en co n tram o s o C risto re ssu scitad o h o je ? ” pág. 233ss.). J á n e sta p e rg u n ta e stá irao líclto u m In teresse eclesiológico. Pág. 237ss. Cf. pág. 240. Pág. 238. Pág. 240ss. Pág. 241, cf. a in d a com o resum oi d este esquem a de trê s g rau s a su rp re e n d e n te fo r­ m u la ç ão : “O S en h o r tra n sfig u ra d o está p re se n te no s hom ens, nos crlstftos e nos c atólicos” (pág. 242). (56) Pág. 278s. (57) E m B off pág. 242. (58) Pág. 242. (59) E m B off pág. 243. 44 Como se deve compreender o fato de que Boff1 apresente estas sentenças como conclusão de sua correta eclesiologia católica? Pois há um a clara tensão entre elas e a últim a (60). Tem esta conclusão a tarefa de neutralizar as afirmações precedentes? Se a resposta para esta pergunta for positiva, o porquê disto? b) Atrás dos relatos neotestamentários sobre o nascimento de Jesus a exegese crítica católica (61) reconhece os seguintes fatos históri­ cos: 1. Noivado de Maria com José; 2. A descendência davídica de Jesus através da descendência de José; 3. O nome “Jesus”; 4. O nascimento de Jesus da Virgem Maria; 5. Nazaré como residência de Jesus (62). N aturalm ente a discussão tem como ponto central o domínio exegético do dogma de Maria, respectivamente, do nas­ cimento virginal. José, descendente de Davi, dando o nome a Jesus (Mt 1, 18-25), torna-se juridicamente seu pai e com isto o insere em sua genealo­ gia davídica. Assim Jesus é filho de Davi através de José e também o Messias. Desta forma realiza-se tam bém a profecia de Isaías que o Messias nasceria de um a virgem (Is 7, 14) (63). Mas Boff não pára aqui. Reportando-se à exegese, ele erige um muro entre a catequese tradicional e a perspectiva teológica dos evangelistas. Os tradicionalistas insistem na virgindade biológica de Maria (“antes, durante e após o parto”) como que em um miraculoso brutum factum. Para os evangelistas “a virgindade pessoal de Ma­ ria é secundária” (64). A concepção de Jesus por obra e força do Espírito Santo não quer tanto explicar o processo biológico da concepção, mas antes relacionar Jesus com outras figuras liberta­ doras do Antigo Testamento que, pela força do Espírito Santo, foram também instituídas em sua função. Para os evangelistas e todo o Novo Testam ento o milagre biológico serve, portanto, de motivo para a reflexão teológica: para os evangelistas Cristo está no centro e a virgindade de Maria está em função disto (65). Por isso (!) o Novo Testamento só concede duas vezes o aposto virgem a Maria: Lc 1, 27 e Mt 1, 23 (66), Esta breve exposição deve ter elucidado como Boff, baseado no interesse teológico dos evangelistas, procura deixar para trás as afirmações convencionais da dogmática católica. Ele apresenta m uita cautela neste processo e, de quando em quando, a colnciliação entre o dogma vigente e a consciência exegética se revela embara­ çosa (67). Mas ainda assim todo o debate se encontra sob o título “O processo cristológico continua. Os relatos da infância de Jesus: (60) (61) (62) (63) (64) (65) Q u a n to à in te rp re ta ç ã o do d iário de H am m arsköld, com pare p rin c ip a lm e n te o artig o de R olf Schäfer, "G lau b e u n d W erk” em : Z T hK 67 (1970), pág. 348ss. N este co n tex to fa lta q u a lq u e r alu são à exegese p ro te s ta n te , n o rm a lm e n te m u lto m en c io n ad a p o r B off (v. abaixo). P ág. 178, cf. pág. 190. Pág. 180s. Pág. 183. P ág. 183s. A a firm ação de que Je su s é vero hom em e vero D eus tam b é m p ode ser expressa em o u tra passagem sem n e n h u m a referên cia ao n a sc im e n to v irginal, cf. pá,g.213s. (66) Pág. 183. (67) É v erdade q u e ele fala, p o r exem plo, das irm ã s e dos irm ãos de Je su s — mafe em aspas: “irm ã s” , “irm ã o s” (pág. 194). 45 Teologia ou história?” (68) Já esta pergunta provocou um violento protesto do qual falaremos ainda subseqüentemente., Mas em todos os casos a discussão da proto-história revela aquele cauteloso distanciamento do dogma, distanciam ento este que já fora sensível nas explanações eclesiológicas. Analisemos ainda esta provisória impressão baseados na m aneira com que Boff se reporta ao magistério oficial da Igreja Católica. c) A voz do magistério oficial da Igreja soa raram ente. Aparente­ mente Boff só se lembra dele quando se atreveu a avançar dema­ siadamente. Boff fala, por exemplo, na conclusão da discussão sobre os relatos do nascimento, da possibilidade de que um leitor sem maior intimidade com as técnicas exegéticas da exegese católica atual tenha a impressão de que os evangelistas são apresentados como falsificadores, e reaja, conseqüentemente, com alegria frente a um a exegese diferenciadora. — Numa passagem tão delicada como esta Boff recorre ao magistério eclesiástico para legitim ar o seu procedi­ m ento exegético e para abafar o rompimento de afetos fundamentalistas: Em Dei Verbum núm. 12 se exige expressamente que a interpretação da Bíblia deve levar em conta especialmente o gênero literário dos textos (69). Um outro exemplo para a função protetória do magistério oficial encontramos na discussão sobre o símbolo de Calcedônia (70). Após a fundam entação do caráter irreformável e definitivo deste dogma cristológico, Boff fala sobre os limites da interpretação cristológica de Calcedônia, especialmente visíveis nos termos n atu ­ reza e pessoa. A fórmula de Calcedônia não tom a em conta a evolu­ ção em Cristo testificada pelos evangelhos, nem se apercebe das conseqüências da ressurreição. Além disso, esta fórmula carece de um a perspectiva universal e cósmica, pois “a encarnação não atinge apenas Jesus de Nazaré mas toda a hum anidade”. — Também aqui Boff corrobora a intenção de sua crítica ao dogma com o magistério oficial: Gaudium et Spes (22/265) relacionou a encarnação a todo homem (71). Todas estas observações ainda são preliminares. Nós nos apro­ ximamos do cerne efetivo do livro quando perguntamos pela m a­ neira como ele apresenta a figura de Jesus, A partir disto também reconheceremos um a conexão interna das observações feitas até agora. (68) Pág. 173ss. C. M esters c ritic a a p o rm en o rizad a exposiçSo d a p ro b lem á tica exegética e d o g m ática do n a sc im e n to v irg in a l fe ita po r B off, pois seria q u e stio n á v e l se e sta p e rg u n ta Já existe e n tre o povo: cf. C. M esters o.c. (v. acim a, n o ta 43), pág. 573. S e m e lh a n te m e n te E. B. ( = E stêvão B e tte n c o u rt) em s u a recensão em : P e rg u n te e responderem os, a n o 13, n ú m . 152 (agosto 1972), pág. 385-388: B off c ria ria em seu livro problem as adicionais, em vez de fo rtalec e r a sa d ia visão crlstfi (pág. 388). (69) Pág. 190. (70) Pág. 204ss. (71) Pág. 209. M esters p ro c u ra fu n d a m e n ta r a o rto d o x ia de B off com o m ero fa to de B off c ita r fre q ü e n te m e n te tex to s de p ais d a Ig re ja e de concillos (M esters a p resen ta ap ro x im a d am en te 20 passagens; cf. o.c. (n o ta 43), pág. 573. B e tte n c o u rt se aproxim a m ais dos fa to s q u a n d o ele c ara cte riz a o liv ro de B off com o g e ralm en te am b íguo: “ A m bíguas são as posições de L eonardo Boff, p o rq u e ta n to podem se r e n te n d id as em se n tid o cató lico com o em se n tid o lib e ral e ra cio n ali st a.. cf. E. B e tte n co u rt, o.c. (n o ta 66), pág. 387. 46 10 . O vago formalismo com que se descreve o Libertador desaparece logo que Boff principia com a descrição da figura de Jesus, ou seja: a sua humanidade. Com visível alegria de descobridor Boff haure do m aterial da tradição sinótica; os termos alienação-libertação se tom am supérfluos. Segundo o testem unho dos evangelhos, Jesus é o representante do autêntico humano. Tudo o que é autenticam ente hum ano apa­ rece em Jesus: ira e ódio, bondade e dureza, a amizade, a tristeza e a tentação (72). Um frescor sem analogias pervade tudo o que faz e diz (73). Com genial independência ele diz e faz o que é racional. Por querer um entendimento das cousas e não um a submissão cega (75), “ele apela à nossa sã razão hum ana” (76). Ele se m ostra con­ vincente através de sua singular fantasia criadora (76) — “F anta­ sia é um a forma de liberdade” (77). Jesus é alguém que tem a coragem de dizer “eu”. Ele não pergunta pela “ordem”; nunca usou a palavra “obediência” (78). Ele não possui um esquema pré-fabricado de orientação, mas age com espontaneidade e criatividade: Ele derruba as barreiras erigidas pela religião, pela cultura e pelas situações existenciais, os muros da convenção e do legalismo, os muros entre o sacro e o profano, entre os homens e os sexos, entre o homem e Deus (79). Ele abre o caminho para a liberdade. Exata­ mente assim é o homem original. Ecce homo — isto é, “o homem por excelência” (80). A singularidade de Jesus está na sua hum a­ nidade autêntica, não-fingida. Esta hum anidade de Jesus, ím par e, apesar disto, diretam ente evidente para qualquer pessoa, foi o princípio do processo cristológico, da transferência de títulos de dignidade. O impulso para o surgimento do dogma cristológico está na surpreendente experiên­ cia dos discípulos, que em sua convivência com Jesus chegaram à convicção: “Humano assim só pode ser Deus mesmo” (81). Não é possível colocar todos os traços isolados deste quadro na balança minuciosa da exegese (82). Trata-se da impressão geral e das conseqüências críticas dali derivadas. (72) Pág. lOOs. (73) P ág. 94. (74) Pág. 98. (75) Pág. 97s. (76) “T alvez n a h istó ria d a h u m a n id a d e n áo te n h a h av id o pessoa q u e tivesse fa n ta sia m ais rica do q u e a de Je su s” (pág. 103). (77) Pág. 103. (78) Pág. 104ss. (79) Pág. 108, 109. (80) Pág. 212. (81) P ág. 193ss.; q u a n to à “a d m ira çã o ” com o in icio "d a filosofia e d a crlsto lo g la” v. pág. 156s., e a in d a 251ss.: A h u m a n id a d e é a p o n te q u e n o s liga a C risto. Os recen sores a firm am u n a n im e m e n te q u e u m dos p o n to s alto s do livro é c o n stitu íd o pelos c ap ítu lo s sobre a h u m a n id a d e de Jesu s. O s respectivos c ap itu lo s n ã o são a p en a s de u m a beleza incom parável, m as co n tê m tam b é m u m a g ran d e q u a n tid a d e d e in fo r­ m ações, e x tra íd as d ire ta m e n te dos q u a tro evangelh os (M esters, o.c., n o ta 43, pág. 572). O nde C risto é d e fin id o in ic ial e p rim o rd ia lm e n te com o se g u n d a pessoa d a sagrada trin d a d e , a exposição de C risto p o r Boff, a m e tafisica (J. B. Lib&nlo, o.c. n o ta 42, pág. 99) e esc rita com rico m a te ria l b íblico (K a rl Jo sef R om er, em su a recensão em : REB, vol. 32 (ju n h o 1972), pág. 490-493, ali pág. 490), deverá n a tu r a l­ m en te a b rir u m novo h o rizo n te. (82) A d istin ç ã o , p o r exem plo, e n tre “jesu lo g ia ” e “cristo lo g ia” (isto é, e n tre a au to c o n s­ ciência de Je su s e a reflexáo n a lu z d a re ssu rreição ), p arece ser p ro b lem ática, cf. pág. 160ss. 47 Isto se tom a compreensível quando se relaciona este quadro, aqui apenas apresentado em rápidos traços, com os traços funda­ mentais para uma cristologia na América Latina, em que se reflete a situação hermenêutica do continente. 11 . A “cristologia da América Latina” (83) reivindicará para si um a primazia quíntupla. Trata-se da primazia do elemento antropoló­ gico sobre o eclesiológico, da primazia do elemento utópico sobre o factual, da primazia do elemento crítico sobre o dogmático (84), da primazia do social sobre o pessoal, da primazia da ortopraxia sobre a ortodoxia. Diferentemente do esquema alienação-libertação, estas caracte­ rísticas são legitimadas pela correlação entre o testemunho dos evangelhos e a situação específica da Igreja n a América Latina. Podemos considerar primeiram ente a primazia do elemento antropológico sobre o eclesiológico em conjunto com a primazia do elemento crítico sobre o dogmático. A América Latina convém um “ceticismo eclesiológico” (85). Não a Igreja, mas o homem está aqui em foco. A m era reprodução de modelos e estruturas importadas não está em condições de aju­ dar este homem. A interpretação dogmática usual do direito canô­ nico, respectivamente a interpretação jurídica da dogmática acorrenta a Igreja latino-americana às tradições herdadas, da Europa e impede um desenvolvimento livre de um a Igreja que na América Latina recebe os seus impulsos da antropologia. Da con­ cretização ou não desta visão depende o destino de toda a Igreja Católica, “pois o futuro da Igreja Católica, com o recesso da popu­ lação européia, está inegavelmente n a América Latina”! (86) Um dos principais obstáculos para um a configuração eclesiásti­ ca própria está na “mentalidade dogmática”, devendo-se entender sob dogmático o mesmo que acrítico (87). Esta mentalidade, vigen­ te principalmente entre as instituições, se retrai do “ritm o da história”. Conseqüentemente, a crítica teológica latino-am ericana deve-sc voltar contra tradições e instituições eclesiásticas, “que hoje se tornaram m uitas vezes obsoletas, anacrônicas e um centro de conservadorismo emperrador do diálogo entre fé e mundo, Igreja e sociedade” (88). Esta m istura de eclesiocentrismo, mentalidade “dogmática” e de mecanismo de autodefesa eclesiástica impede um a encarnação da existência cristã no contexto latino-americano. Os princípios da crítica necessária aqui são derivados da hum a­ nidade de Jesus. O homem é o critério com o qual Jesus mede as leis. Se elas servem ao amor ou se elas escravizam o homem — este é o critério (83) (84) (85) (86) Í87) (88) 48 Pág. 56ss.,ab ran d a d o n a 2a ed. p a ra “n a ”A m érica L atin a. " . . . p rim a z ia so b re o elem en to c rític o ”, pág. 59,deve ser u m equívoco. Pág. 57. Pág. 57. Cf. pág. 58s. P ág. 59. soberano que ele põe em prática (89). Não apenas a lei mosaica lhe é sujeita, mas todos os conformismos sociais e religiosos. Jesus pode ser chamado “o Libertador da consciência oprimida” (90), pois ele liberta o homem das convenções vigentes, principalmente das estru­ turas eclesiásticas e do status quo sustentado pelas mesmas (91). Ele estava em condições de realizar isto porque ele era o autêntico homem — sem preconceitos, sem convenções (92), ou seja: liberal. “Jesus foi liberal porque ele perm itiu aos piedosos de permanece­ rem hum anos e até razoáveis” (93). Por isso ele representa “uma crise perm anente para qualquer sistema social e eclesiástico” (94). Prova de sua hum anidade anti-hierárquica é sua adogmática “nova doutrina” (Mc 1, 27) (95). Ela é profundam ente antiautoritária no sentido de questionar todas as autoridades por amor ao homem (96). Cânones dogmáticos perdem sua im portância salvífica. Eles são apenas um dos muitos exemplos da submissão ecle­ siástica da hum anidade livre. Que Jesus pode ser encarado como a raiz de um cristianismo adogmático, isto está implícito, portanto, na primazia do elemento antropológico sobre o eclesiológico, pri­ mazia esta vivida e ensinada pelo próprio Jesus: Para ele ninguém poderá salvar-se se não tiver o mais ínfimo dos irmãos como sacra­ mento — uma afirmação cujo aguilhão novamente se volta contra a igreja oficial e contra fórmulas confessionais (97). 12. Também as outras “primazias” refletem a situação latino-ame­ ricana. A primazia do elemento utópico sobre o factual corresponde a esta situação no sentido do homem sul-americano não ser deter­ minado pelo passado (ele é europeu, colonialista) mas pelo futuro. Por isso a utopia por um mundo mais hum ano derivada do princí­ pio esperança recebe para Boff um sentido específico (98). O problema principal é aqui a marginalização social de grandes camadas da população. Este mal condicionado pelas estruturas não pode ser superado por um conceito de conversão orientado no indi­ víduo. Por isso se faz necessária a exigência da prim azia do social sobre o pessoal (99). Como conclusão e resumo deve ser citada a primazia da ortopraxia sobre a ortodoxia. Esta primazia realiza “o momento praxeoló(89) (90) (91) (92) (93) (94) (95) (96) (97) Pág. 80s. Pág. 80. C om o fu n d a m e n taç õ es ap resen ta, e n tre outros, Lc 6, 5 (le itu ra do codex D) e G1 5, Cf. pág. 81s., e a in d a pág. 110, 126, 158, 162. Cf. p ág. 85, 88, 103, 105. P á g , 107, cf. pág. 98. B off a p re se n ta a q u i u m a c ita çã o d e E m s t K ãsem an n , D er R uf d e r F re ih eit (em B off c ita d o com o D er R u f z u r F re lh e lt), 1969, pág. 42. Pág. 84, cf. pág. 126. Pág. 113, cf. pág. 104. Pág. 84s., cf. pág. 108, 113. Pág. 236, cf. pág. 110s. A expressão c o n ju n ta d a p rim a z ia do e le m en to an tropológico sobre o eclesiológico, do crítico sobre o dogm ático, B off vê em M t 25, n a p aráb o la do c ristã o an ô n im o . Cf. tam b é m pág. 94: Je su s “n ã o fa z teologia. N em a p ela p a ra prin cíp io s su p erio res de m oral. N em se perde n u m a casu ístic a m in u cio sa e sem co ração .” (98) Pág. 58. (99) Pág. 59. 49 gico da mensagem de Cristo”. Nisto se deve ver a característica fundam ental da reflexão teológica na América Latina (100). Em contraposição às duas primeiras primazias que constituem um a crítica à Igreja, as três últim as parecem ter sido motivadas pela crítica social. Mas um exame mais acurado revelará, porém, que tam bém estas primazias ocupam um a posição crítico-polêmica frente ao sistema eclesiástico. O program a da ortopraxia com seu acento antidogmático se dirige contra um a Igreja que enfatiza mais a correção teológica do que a ação libertadora no sentido de Cristo, deixando conseqüente­ m ente o cristão engajado em completa orfandade: a própria Igreja estimula um a emigração contínua das melhores cabeças e forças ativas (101). A primazia do social se dirige contra um a Igreja acrítica, que, esquecendo a dimensão secular do Evangelho, procura criar o seu próprio mundo ou determ ina a sua relação com a “m aquinaria so­ cial” sem atentar para a escravidão dos sem-nome e sem-voz (102). E, finalmente, a subordinação do elemento factual ao utópico significa o abandono de um a Igreja estática, “colonial”, em favor de uma ininterrupta transformação, cujas linhas essenciais devem ser fundam entadas não mais eclesiologicamente, mas — em corres­ pondência ao contexto sul-americano — apenas ainda antropologicamente (103). 13. A dimensão ético-social da “cristologia na América Latina” se caracteriza, portanto, principalmente por sua unção de crítica à Igreja. A isto corresponde, por seu turno, a m aneira como se encara a im portância teológica do “andar de Jesus”. Se o discipulado de Jesus for mais im portante que a repetição de fórmulas cristológicas, se cristologia e ética devem estar relacionadas no sentido de 1 Jo 2, 6 (“Aquele que diz que permanece nele, esse deve também andar assim como ele andou”), então realmente é necessário perguntar pela “relevância teológica do comportamento de Jesus” (104). Aquilo que emergiu em Jesus, assim afirm a Boff reportando-se a Gogarten e Ebeling, deve também caracterizar os seus seguidores: total abertura a Deus e aos outros, amor sem limites, espírito crítico frente à situação vigente social e religiosa. “O cristão deve ser um homem livre e libertado”; Paulo diria: livre da lei, sob a lei de Cristo (105). Porém, o acento não está colocado na im portância do com­ portam ento exemplar de Jesus para um a ética cristã, mas nos tó­ picos subseqüentes que caracterizam resumidamente o comporta­ mento de Jesus. Eles são: desteologização, desmitologização, desritualização, emancipação, secularização. (100) (101) (102) (103) (104) (105) 50 Pág. 60. Pág. 60. Pág. 59. Pág. 5 8 .1 A ssim B off In titu la a su a conclusão do c a p ítu lo sobre Jesu s, o hom em o rig in al e a u tê n tic o , pág.. 110, cf. pág. 89. A citação 1 Jo : pág. 172. Pág. llOs., citaçõ es de R m 6, 15, 1 Co 9, 19-23, G1 5, 1. O denominador comum destes conceitos é a sua posição crítica frente à instituição religiosa. A relevância teológica do comporta­ mento de Jesus só é compreensível a partir de sua crítica à sabedo­ ria livresca, divorciada da vida diária, à linguagem religiosa, à delimitação cúltica de locais sagrados, à domesticação da mensagem divina em um a comunidade religiosa, ao sacramentalismo que esqueceu que o elemento determ inante para a entrada no Reino de Deus é o “sacram ento” “deste pequenino irmão” (Mt 25) (106). Se logo em seguida é critada ainda a acusação do grão inquisidor de Iwan Karamasoff, então fica completamente claro que o com­ portam ento de Jesus não quer oferecer um a base para um a ética do discipulado, mas sua relevância teológica é vista no questiona­ mento crítico da instituição da Igreja Católica (107). 14. Estas asseverações revelam que a relevância teológica da figura histórica Jesus está no fato de ela legitim ar a confrontação do sistema eclesiástico com a sua origem. Conseqüentemente o proble­ m a da continuidade se domicilia na própria instituição. A figura de Jesus conduz a um a perm anente crise de reivindicação autori­ tária e eclesiástica de identidade. Neste fato é possível reconhecer um traço “protestante” (108), um a impressão plenamente corroborada pela literatura utilizada por Boff. Como introdução ao seu livro Boff apresenta um a extensa citação da preleção sobre cristologia realizada por Bonhoeffer em Berlim (109). E não apenas a exposição sobre as questões da histó­ ria da forma, da tradição e da redação da exegese bíblica se baseia fundam entalm ente em teólogos protestantes (principalmente de origem alemã) (110), pois a teologia protestante se m ostra cons­ tantem ente presente como componente do diálogo até o fim do )ivro de Boff. Principalmente os representantes da ciência neotestam entária confirmam quase todos a sua presença e geralmente são citados positivamente (111). (106) Cf. pág. 111. (107) “A fé deve lib e rta r a fig u ra d e Je su s das p eias q ue o p re n d e m ” (pág. 247). N este c o n te x to deve se m en c io n ar o e le m e n to , m ístic o da teologia de Boff. Se p ara a cristologia vale a íra se de K ierk eg aard : “C ale-se, recolhe-se, pois é o a b so lu to ” (pág. 61), se a s fó rm u la s d o g m áticas pressupõem o silêncio d ia n te do m isté rio (pág. 30ss.), se “fé ” p a ra B o a v en tu ra é: b a lb u c iar sobre o In efáv el (pág. 31),e n tã o o dogm a se to m a secu n d ário . “As p a la v ras sobre C risto e su a m ensagem n ã o são n a d a ” em com paração com as realid ad es q u e a p en a s a fé conhece (pág. 60s). Apenaà m e d itan d o “a vida h u m a n a de Jesus, C risto ” é que se revela o m istério d e Je su s e do hp m em pág. 195, 251). (108) " P ro te sta n te ” e n te n d id o a q u i n o se n tid o am plo d a p alav ra, com o o In te rp re to u H a n s-Jo ac h im B irk n er (P ro te sta n tism u s im W andel, M ü nchen, 1971). (109) Pág. H s., cf. D. B onhoeffer, G esam m elte S c h rifte n , ed. p o r E. B ethge, vol. 3, M unique, 1966, pág. 167s. (110) Pág. 45ss. (111) E n u m ero os se g u in te s nom es: B u ltm a n n , K üm m el, H engel, B alz, K äsem an n , G. B o rn ­ kam m , S ta u ffe r, M arxsen, H aenchen. B ra u n , C u llm a n n , H ahn, E. Schw eizer, Joachim Jerem ias, D eichgräber, G oppelt, S trecker, G ru n d m a n n , E. L ohse, C onzelm ann, W ilckens, D elling, F u ch s; e a in d a E. B ru n n er,, G og arten , D oem e, E beling, G rass, soelle, P an n en b erg , K ü n n e th , N iederw im m er, M o ltm an n , T llllc h e tam b é m R. O tto, L letzm an n , E iert, K äh ler, A. S chw eitzer, O. R ietm ü lle r e S chlelerm acher. 51 15. É a referência antitética da figura do Jesus histórico à instituição eclesiástica, ao sistema de intermediação salvífica sacramental, ao seu dogma e aos seus princípios de moral, um a conseqüência do fato de Boff se orientar pelos métodos, questionamentos e resulta­ dos exegéticos representativos da teologia protestante? Em todos os casos é esta a principal objeção das críticas dirigidas a Boff. Gustavo Corção, que dá evasão ao seu prazer na difamação em artigos — estilisticamente excelentes —, publicados em todo o Brasil, ataca em seu artigo “Uma fraude religiosa” (112) duas premissas de Boff. Primeiramente ele critica a distinção exegética entre fatos his­ tóricos e sua interpretação teológica. Boff fundam entara a sua exigência hermenêutica de que cada época deveria escrever a sua própria cristologia com as transformações do horizonte filosófico, religioso, histórico e social (principalmente após o surgim ento da crítica histórica na época do iluminismo) e tam bém com a histo­ ricidade da revelação. Com isso Boff — assim Corção — se coloca como senhor sobre as verdades eternas, “que a carne e o sangue, isto é, a América Latina, não ensinam ”. Se reduzirmos a polêmica à sua essência, então ela apresenta a afirmação de que o procedi­ mento exegético utilizado problematiza a identidade e a continui­ dade da Igreja. Por isso a Igreja deve reagir diante do livro de Boff como diante de um a tentação satânica (113). A segunda premissa de Boff é a reivindicação de ser católico. Esta reivindicação é ilegítima. Boff não é nem mais, um progressis­ ta, isto é, um católico que se agacha diante dos protestantes; seu livro m ostra inequivocamente que “ele é um protestante que ainda se inculca como franciscano” (114). Por isso a acusação “fraude religiosa” e o apelo de deixar a Igreja em paz e de fundar um a seita própria do “boffismo”. Este panfleto poderia ser perfeitamente omitido se suas duas principais acusações não fossem idênticas às levantadas pelo arce­ bispo de Porto Alegre, cardeal Vicente Scherer (115). Segundo Scherer, Boff se situa na linha dos protestantes libe­ rais, entre os quais sobressai Bultm ann. Eles contestam a fidedigni(112) C orreio do Povo, 17-9-72, pág. 4. (113) “ Só tem o s u m a resp o sta: 'V ade re tro S a ta n a ’” (o.c.). (114) O.c. “Esse a g ac h am e n to dos católicos d ito s p rogressistas d ia n te dos inim igos da Ig reja, isto é, d ia n te dos| falsos d o u to res q u e p ersistem e agravam o erro de L u te ro e de o u tro s (e a q u i n ã o m e refiro aos pobres irm ã o s sep arad o s q u e m u ito a n te s de todo este tra -la -lá ecum ênico já sabíam os serem m ais herd eiro s de erros do q ue fa u to re s dé heresias), esse a g ach am en to , dizia, c o n stitu i u m a das faces m ais h e ­ d io n d as d a crisel de c a rá te r de nosso tem p o .” D os a u to re s citad o s por B off "a m eta d e é d e clara d a m e n te p ro te s ta n te e a o u tra m etad e é n e o -m e ta p ro te sta n te , com o se n o ssa d o u trin a cató lic a tivesse a in d ig ên cia c u ltu ra l de u m a trib o d a P o lin ésia ” (o.c.). U m p o n to a lto d a p olêm ica in tra c a tó lic a sobre G . C orção é a p u b lic a çã o de u m a n o ta oficial d a c ú ria da arquidiocese do R io de Ja n e iro q u e a c u sa C orção de su b v e rte r (!)] e dem o lir a Ig re ja de D eus com a su a in citaç ão m ilita n te c o n tra “a p ró p ria h ie ra rq u ia ”, e exorta a todos os fiéis a n ão seguirem , em m a té ria religiosa, a o rien ta çã o de pessoas “ q u e sab em fazer causa com um com as forças q u e p re te n d em c o m b a ter a Ig re ja ” ; cf. “N ota d a c ú ria arq u id io cesan a do R io de Ja n e iro d e sa u to riza n d o o professor G u stav o C orção” , em : REB, vol. 33 (m arço 1973), pág. 186. (115) E sta c o n co rd ân cia tam bém i foi a n o ta d a p o r B off: REB, vol. 32 (setem b ro 1972), pág. 515s. A crítica de Scherer, a p re se n ta d a p rim e iram en te n o p ro g ram a rad io fô n ico “Voz do P a sto r”, foi p u b lic a d a n o C orreio do Povo de 29-8-72 sob o títu lo “C ardeal critica livro de p a d re fran cisc an o .” 52 dade dos evangelhos, distinguindo entre o Jesus histórico e o Jesus dal fé, esvaziando com sua interpretação m odernista do dogma cristológico a substância doutrinária da Igreja, questionando, conseqüentemente, a fé cristã. Mas assim Boff pratica um a teologia “fora do campo fecundo e seguro da doutrina certa e imutável que vem das origens” (116). É realm ente questionável se Boff não se tornou insustentável como chefe de redação da Revista Eclesiástica Brasileira. Tendo em vista o seu livro e um a série de artigos publi­ cados sob sua responsabilidade, Scherer lam enta “que esta aprecia­ da publicação não mais poderá ser recebida pelo clero como orien­ tadora fiel em questões de doutrina segundo as diretrizes da fé católica”. Estas críticas corroboram onde seus influentes autores vêem a causa para a perda da sólida conexão da piedade com unitária (117) e também da teologia à autoridade eclesiástica: Boff ocupouse com a exegese crítica e a problemática herm enêutica sem a de­ vida proteção. Ele tentou, sob sua própria responsabilidade, trans­ ladar o cerne do Evangelho, a partir do testem unho neotestamentário, para o contexto atual, sem satisfazer-se a priori com a posição do magistério. Em contraposição a isto, as opiniões positivas — superiores em número — se esforçam em enfatizar a ortodoxia de Boff (118). 16. Se todas as discussões provocadas pelo livro, se as críticas e as anticríticas, se esforçaram principalmente em contestar ou defen­ der a correção de sua interpretação cristológica, a sua fidelidade à tradição, em suma, a sua “catolicidade”, então é evidente que o aspecto singular do livro foi visto na sua tendência protestante. Vimos que o escopo do livro não era motivar cristologicamente análises sócio-políticas e um a estratégia para ações libertadoras (119). Será que o proprium latino-americano reivindicado por Boff para seu livro está. portanto, nos seus componentes protestantes? Então o conceito “libertação”, usado tão formalmente, teria adqui­ rido sentido teológico através de sua conexão antitética a uma instituição eclesiástica auto-suficiente e cujo critério é ela mesma. (116) N em o m ag istério da Ig re ja (“o p o n to decisivo de re ferên cia e de se g u ra n ça p ara o c ristã o c ató lic o ” ) n em os g ran d es m estres da exegese católica tiv e ram a devida consideração (o.c.), tam b é m B e tte n c o u rt, o.c., pág. 387 (n o ta 66). (117) Cf. a d istin ç ã o de B off e n tre a resp o sta cristológica d a d o g m ática ortodoxa e o novo q u e stio n a m e n to do criticism o (R e im a ru s ): “A resp o sta d a fé tra n q ü ila ” — “As respostas n a era do c riticism o ” , pág. 13ss. (118) P.ex.: J. C. d e O liveira T orres, “ C risto, R ei e L ib e rtad o r” , em : C orreio do Povo, 26-9-72; K. J . R om er: “A teologia do livro é te s te m u n h o vivo, e, p a rtin d o de C risto, co n d u z se g u ra m e n te ao m istério d iv in o ” (o.c., pág. 493; de m an e ira se m e lh a n te os a rtig o s de T jibânio e M esters, c ita d o s n a s n o ta s 42 e 43). B off resp o n d eu à c rítica de S cherer p u b lic a n d o sem a lteraçõ es o c a p ítu lo 10 (“H u ­ m an o assim só pode ser D eus m esm o!” ) do seu livro n a REB. Em u m a breve in tro d u ç ã o ele re b ate a acu sação de q u e n e g ara a d iv in d ad e de C risto e a validade dos dogm as canonizados. E le lem b ra S cherer de su a su b scrição às condições do 2o C oncílio *V atican o e c ita G a u d iu m e t Spes, n ú m . 62-406, assim com o U n ita tis R ed in teg ra tio , n ú m . 11-791. A reiv in d icação de B off de ser ortodoxo se m a n ife sta no títu lo a n te p o sto à in tro d u ç ã o e rep u b licação : L. Boff, “Je su s C risto, verdadeiro D eus e verdadeiro H om em ”, REB, vol. 32 (setem b ro 1972), pág. 515-539. (119) A té agora a in d a n ã o to m ei co n h ecim en to de u m a c rític a “d a e sq u e rd a ” ao livro de Boff. 53 Vimos que as conseqüências de crítica eclesiástica derivadas da figura de Jesus e todo o debate suscitado pelo livro ratificam esta suposição. Esta conjetura conduz à pergunta final de como se deve determ inar a relação entre esta publicação e as igrejas evangélicas no Brasil. “O protestantism o” é citado um a única vez por Boff — durante a discussão da relação entre as religiões e a Igreja católica. “ . . . a Igreja não deverá envaidecer-se de si própria, mas tam ­ bém mostrar-se aberta ao Deus que se m anifesta e revela nas reli­ giões e aprender delas facetas e dimensões da experiência religiosa que foram melhor tematizadas nas religiões do que dentro da própria Igreja, como o valor da mística da índia, o despojamento interior no budismo, o cultivo da Palavra de Deus no protestantis­ mo, etc.” (120). Tendo em vista a extrema situação de minoridade das igrejas evangélicas na América Latina, esta afirmação deveria ser encara­ da como um a indicação realista quanto à sua insignificância nu­ mérica. Mas ela naturalm ente causa estranheza em um livro decisivamente moldado pela teologia protestante. Mas exatamente esta relação desproporcionada: por um lado, um a grande influên­ cia através da teologia protestante, por outro lado, a ausência de qualquer referência às igrejas evangélicas no país, lança um a luz significativa sobre a precária situação do cristianismo evangélico no Brasil e também em toda a América Latina. As igrejas da Reforma estão no dilema de, um a vez, se delimitar frente ao catolicismo e, por outro lado, mostrar-se como igrejas autóctones. Trata-se, portanto — quanto ao Brasil —, de ser Igreja brasileira sem tom ar-se católica, ou seja, permanecer protestante sem se desintegrar como “igreja de estrangeiros”. Justam ente a teologia protestante “acadêmica” im portada da Europa é encarada aqui como um obstáculo da integração (121). Há duas possibilidades de solução para esta aporia. Ou a fuga para um fundamentalismo de um a inflexibilidade conservativíssima ou a aproximação aos movimentos pentecostais, cujo sistema, dife­ rentem ente do fundamentalismo anticrítico, pode ser designado como acrítico. Os defensores de um a teologia crítica nas igrejas evangélicas têm uma posição bastante difícil entre estas duas sedutoras alter(120) Pág. 279. (121) Cf. a afi"m açâo do ex -secretário geral da ASTE: “ A a lta q u a lid a d e d a form ação teológica n ã o é g a ra n tid a ta n to pela su a c len tificid ad e, m a s m u ito m ais p o r su a re le ­ vância (u m a relevância q ue deve ser a u tê n tic a ). Sabem os p e rfe ita m e n te q u e é possível dispor das m ais v ariad as fo rm as de diferen ciação e im ita ç ã o acad êm icas e c o n tin u a r sendo alien ad o e irrelev a n te. E ste é o perigo q u e alg u m as das nossas escolas (scil. te o ­ lógicas) correm , o rien ta n d o -se m ais p o r H eidelberg. P rin c eto n , F o rth W o rth (ou G en eb ra ou R om a) do q u e pelo B rasil de 1968. N ão m ais podem os c o n tin u a r a g lorificar u m a c ie n tificid a d e que tem com o co n seq ü ên cia a esterilização d a fé c ristã com v istas à m issão ” (A haron Sapsezian, “ A uch ein e ‘T heologie d e r H o ffn u n g ': T en d en zen in d e r th eo logischen A usbildung, B rasilien 1968” , em M o n a tlic h e r In fo rm a tio n sb rie f ü b e r E vangelisatio n, hrsg . vom ÖRK, A btlg. fü r W eltm ission u n d E vangelisatio n, Nr. 8-10 ( = o u tu b ro -d ez em b ro ) 1968, pág. 10. 54 nativas (122). A mencionada relação desproporcionada no livro de Boff reflete exatamente esta situação. Mas se o proprium latino-americano deste livro polêmico (123) — para o qual apontaram nossas observações — está no seu pro­ testantismo, então as igrejas evangélicas no Brasil, a não ser que tenham a vontade e a força para se libertar da coação desta aporia, deverão estar conscientes da possibilidade de que no futuro a he­ rança protestante será adotada pelos católicos progressistas (124). Em sua movimentada história o protestantism o assumiria, portan­ to, uma nova forma, sem que as igrejas provenientes da Reforma de Lutero tivessem, contudo, reivindicado desta vez esta herança. (122) In d ício s são, p o r exem plo, a dem issão de u m dos m ais e m in e n te s teólogos p ro te s ta n ­ tes, R ubem Alves (cf. se u livro A theology of h u m a n hope, New Y ork a n d C leveland, 1969 — u m a correção a lta m e n te in te re ssa n te à T eologia d a esp eran ça d e M o ltm an n ) do m in isté rio de su a ig reja p re sb ite ria n a ; o u o fo rte apoio d ad o ao p re sid en te m issu rian o P~euss (em su a polêm ica com o S em in ário C oncórdia de S t. L ouis) pela direção do d istrito b rasileiro do Sínodo M issouri. (123) “U m livro p o lêm ico” — este é o títu lo d e u m ex ten so a n ú n c io d este livro n o Correio do PovO, 22-8-1972: E sta o b ra re p re se n ta ria o in ício d a a u to n o m ia d a teologia b ra ­ sileira fre n te à teologia européia, su a polâm ica se d irig iria c o n tra u m co n ceito de verdade a b stra to e d esvinculado d a fig u ra de Jesu s. N ão so m e n te os teólogos c a tó ­ licos, m as tam b é m a im p re n sa se c u la r o co nsidera com o a p rim e ira p u b licação im p o rta n te d a teologia b ra sile ira : D evido ao se u n ív el teológico e sta o bra p e rm a n e ­ cerá por m u ito s an o s u m m arco decisivo da cristologla c rítica . P ois ela a b re àq u eles q u e n ã o são m ais a tin g id o s p ela p réd ica e p ela cateq u ese a té agora vigentes, o c am in h o p a ra u m c ristia n ism o a u tê n tic o . — Cf. a recensão de U. Zilles, em : P erspectiva T eológica (R evista S em estral d a F acu ld ad e de T eologia C risto R ei), São Leopoldo, n ú m . 8, 1973 pág. 86-89 e o a rtig o “Je su s re v isto ” em : V eja, 14-6-1972, pág< 49s. (124) A isto correspon de a convicção expressada p o r católicos de q u e “a ú n ic a força do p ro te sta n tism o n o B rasil e stá n a fraq u ez a do cato licism o ” , assim P a u l G allet (pseud.), E l P adre. B riefe eines G eistlich en a u s B rasilien. Ed. M. Q uoist, G raz usw ., 1970. Pág. 168, ali n a form a cursiva. 5õ