123 II. A paisagem entre natureza e cultura 125 ROSARIO ASSUNTO Rosario Assunto (Caltanisseta 1915‑Roma 1994), licenciado em Direito, aproximou‑se da Filosofia por influência de Pantaleo Carabellese, docente de Filosofia Teórica em Roma. Foi professor de Estética na Universidade de Urbino, onde ensinou durante 25 anos, e de História da Filosofia Italiana na Faculdade del Magistero de Roma. Neste texto, publicado pela primeira vez em 1976, pretende clarificar os conceitos de “paisagem”, “ambiente” e “território”, que muitas vezes se sobrepõem e confundem, chegando a ser utilizados uns pelos outros, originando conflitos e discordâncias que não se devem somente ao conteúdo das ideias, mas principalmente à semântica das palavras usadas para as comunicar. Uma discussão mais informada e conduzida em bases sólidas implica a compreensão clara e metódica das respectivas diferenças. Assunto justifica, pela respectiva definição e comparação, a particularidade que confere um estatuto próprio a cada um: daí a impossibilidade de serem trocados sem que o conteúdo da mensagem seja adulterado. Considera o território como matéria (espacial, quantitativa e extensiva); o ambiente, na dupla acepção biológica e histórico-­cultural, como conteúdo; e a paisagem como forma na qual se exprime a unidade sintética a priori da matéria (território) e do conteúdo‑ou‑função (ambiente). O carácter sintético da paisagem – como espaço natural e ambiente de vida – anuncia já uma das linhas fundamentais estruturantes do seu livro Il paesaggio e l’estetica, patente nas diversas secções traduzidas na presente Antologia. Reflexão pioneira e muito esclarecedora, a posição de Assunto poderá eventualmente ser alvo de discordância, e tem‑no sido; as definições elaboradas do ponto de vista da filosofia nem sempre reúnem o consenso de outras áreas que igualmente se debruçam sobre a paisagem e o território, nomeadamente a geografia, como se pode verificar no texto de Eugenio Turri também aqui disponível. ROSARIO ASSUNTO, “Paesaggio, Ambiente, Territorio. Un tentativo di precisa­ zione concettuale”; foi primeiramente publicado in Bollettino del Centro Internazionale di Studi di Architettura Andrea Palladio, Vicenza, XVIII, 1976, ­pp. 45‑48. 131 NICOLAS GRIMALDI Filósofo e professor emérito da Universidade Paris IV Sorbonne, onde ensinou história da filosofia moderna e metafísica, Nicolas Grimaldi (n. 1933) é autor de uma extensa obra filosófica onde se espelha um pensamento multifacetado, abrangendo questões de estética, metafísica e ética, e o uso de conceitos como o imaginário, o jogo e a espera, num constante diálogo entre filosofia e literatura. No âmbito historiográfico, é um especialista de Descartes, a cuja obra dedicou vários estudos. Um dos principais tópicos estruturantes do seu pensamento reside nas relações entre as dimensões do desejo e do tempo, numa reflexão seminal (Le Désir et le temps, 1971) cuja ressonância não deixará de se repercutir neste seu ensaio sobre uma estética da paisagem. A paisagem, quando esteticamente considerada, tende de uma forma quase intuitiva a ser pensada na referência ao que genericamente se designa por “beleza da natureza”. Esta referência torna‑se actualmente tanto mais plausível quanto se alicerça numa realidade factual aparentemente insofismável: a de que o irreversível grau de destruição que vem atingindo a (bela) natureza está também, e de modo inextricável, a degradar esteticamente as suas paisagens. Ora, a reflexão de Grimaldi passa justamente por um questionamento, desconstrutivo e crítico, dessa associação intuitiva da paisagem à bela natureza, associação essa que, no fundo, se encontra intimamente ligada à concepção do belo natural de matriz kantiana. Partindo da difundida percepção de que assistimos a um estado de destruição global da natureza e das suas paisagens sem igual na história, Grimaldi pretende não obstante mostrar que tal percepção não é exclusiva do nosso tempo: por um lado, porque esse sentimento infeliz de que todo o contacto humano com a natureza tende a contaminar a sua beleza se verificava já em épocas anteriores ao advento da Revolução Industrial, o que significa que esse modo de sentir se reveste de uma certa constância ao nível da subjectividade; por outro, porque o sentimento nostálgico de uma desaparição irreversível dos lugares onde ainda pudéssemos ver a bela natureza no seu incólume estado de pureza é pelo menos tão antigo quanto a origem do mito da Arcádia. Há muito tempo, pois, que a natureza já só nos aparece 151 ALAIN ROGER Além da escrita de alguns romances, Alain Roger (n. 1936) é um filósofo, foi professor de Estética na Université Blaise Pascal (Clermont Ferrand II), cujo campo de análise teórica tem incidido preferencialmente sobre questões relacionadas com a arte e com a literatura. No que concerne ao tema da paisagem, para além da publicação de Nus et Paysages (1978) e do Court traité du paysage (1997), organizou enquanto director da colecção “Pays/Paysages” das Éditions Champ Vallon os volumes colectivos Maîtres et protecteurs de la nature (1991) e La Théorie du paysage en France (1995). O texto que se segue é talvez aquele onde o autor expõe de uma forma mais incisiva e concisa aquela que é a pedra angular da sua concepção da paisagem: a dupla “artialização” (la double artialisation). Com o conceito de “artialização” Roger pretende mostrar que são os modelos e os esquemas perceptivos peculiares à arte de cada época que não só criam a paisagem, como também definem as suas respectivas categorias (belo, pitoresco, sublime, feio) e tipos (campo, floresta, montanha, mar, deserto) que periodicamente vão vigorando como esteticamente predominantes. Tal equivale a dizer, na esteira das posições conceptuais estéticas de Hegel e de Oscar Wilde, que “em si”, enquanto realidade meramente natural, a “paisagem” é uma simples extensão de “terra” (pays), um lugar no espaço natural desprovido de qualquer valor estético, que só o adquire – isto é, que só se torna verdadeira e propriamente naquilo que designamos por paisagem – quando é “artializada” pela arte e pela cultura humanas. Esta “artialização”, que transforma a simples “terra” (pays) numa paisagem (paysage), pode ter lugar segundo duas modalidades: in situ (ou móvel), em que a operação artística é directamente aplicada ao próprio “objecto” natural “no terreno” (jardim, land art); e in visu (ou aderente), em que a nossa percepção estética da paisagem é, por mediação indirecta, modelada pelas suas diferentes formas de representação na arte. Paralelamente à sua concepção da paisagem, Roger visa também, de uma forma declarada, negar as pretensões da ecologia e do naturalismo se constituírem, de facto e de jure, numa estética da paisagem. A ecologia, porque ao perspectivar a paisagem sobretudo como meio ambiente tende a concebê-la 167 EUGENIO TURRI Além de geógrafo, viajante, cartógrafo, professor de Geografia da Paisagem na Faculdade de Arquitectura e Urbanismo do Politécnico de Milão, Eugenio Turri (1927 ‑2005) foi ainda consultor para o planeamento paisagístico e territorial da Região da Lombardia. O texto aqui apresentado é a introdução do seu livro Il paesaggio come teatro. Dal territorio vissuto al territorio rappresentato, que procura justificar o valor implícito na noção de paisagem enquanto referencial e elo de ligação na relação entre homem e natureza. Para tal, defende que é necessário restituir a paisagem ao campo das manifestações culturais e do universo representativo dos indivíduos e da sociedade. Segundo este autor, a paisagem existe enquanto representação, iconema e imagem do território, no sentido em que revela os significados subjectivos dos valores histórico‑culturais que reflectem uma identidade territorial. Trata‑se de uma ideia bastante definida de paisagem, tendo em conta que minimiza a sua espacialidade e morfologia particulares, a sua existência enquanto entidade física e concreta, para a reservar ao plano das percepções, das emoções e das representações, que reclamam, portanto, uma abordagem semiótica. Mas, simultaneamente, a metáfora da “paisagem como teatro” liberta‑a também do âmbito estrito de cenário ou pano de fundo das acções humanas e confere‑lhe um sentido global que pressupõe a participação do homem, por um lado enquanto actor, ou seja, enquanto transformador do seu meio, do seu espaço, do seu ambiente de vida, e por outro, enquanto espectador que sabe observar, reconhecer e entender o sentido da sua acção sobre o território. É esta condição de espectador que permite guiar uma intervenção mais consciente e fundamentada, mais respeitadora dos ritmos da natureza e dos ritmos humanos, do património e elementos pré‑existentes, com vista à criação de “novos e melhores futuros”. Porque apenas quando o homem se afasta e retira da confusão que é a vida, a obra e a luta diárias, e assume a posição de observador, ou espectador, consegue compreender as implicações do seu agir na natureza e assim discernir qual o melhor caminho a seguir. Este livro surgiu nos anos 90 do século XX, uma altura em que se começam a tornar óbvios os resultados nefastos de uma expansão urbana que 185 AUGUSTIN BERQUE Nascido em Rabat, Marrocos, em 1942, Augustin Berque licenciou‑se e doutorou‑se em Geografia na Universidade de Paris, vindo a desenvolver um especial interesse pela Ásia Oriental, nomeadamente pela língua e cultura japonesas. No Japão, onde permaneceu cerca de treze anos, leccionou fûdoron, estudo dos meios humanos. Actualmente é director de estudos da École des Hautes Études en Sciences Sociales, em Paris, integrando o Centre de Recherches sur le Japon. A consideração da historicidade da paisagem e das condições culturais que lhe deram origem são percursos dominantes na sua vasta obra, conduzida da perspectiva da geografia cultural. Se ambiente e paisagem são conceitos claramente distintos, a compreensão dos contornos da sua dissemelhança não deixa contudo de remeter para o mesmo momento da história do pensamento ocidental, quando, no século XVII, a par de uma natureza objectivada pela revolução científica surge uma natureza subjectivada em função da consciência auto­-afirmativa do sujeito moderno. Mas se a paisagem é uma categoria emergente na época moderna, que modalidades de referência com o ambiente antecederam este seu aparecimento e quais os critérios que permitem identificar a sua génese? Estas questões ocupam um lugar central no pensamento de Augustin Berque. Nos meios (milieux) humanos cruzam-­se múltiplas relações – ecológica, técnica e simbólica – estabelecidas entre as sociedades e o respectivo meio envolvente. O conjunto destas inter­relações constitui a ecúmena, distinta do ambiente na acepção que lhe é dada pelas ciências da natureza, por implicar o habitar humano de cuja acção resulta uma mediância (médiance), um sentido trajectivo, simultaneamente subjectivo e objectivo ínsito a cada forma de configuração do meio. O estudo das sociedades, ainda que não possa prescindir do conhecimento geral da extensão terrestre, não pode ser dissociado de uma hermenêutica do sentido que ao longo do tempo histórico foi sendo atribuído a cada um dos meios. Se em “L’écoumène”, Berque adverte para a urgência de considerar a paisagem como realidade em trajecção (trajection), isto é, no cruzamento do em‑si da natureza e do para‑si da humanidade, “La pensée paysagère” 213 MICHEL CORAJOUD Na obra de Michel Corajoud (n. 1937), arquitecto paisagista galardoa­do e professor na École Nationale Supérieure du Paysage (Versailles), destacam‑se diversos projectos realizados no âmbito da intervenção em espaços públicos (Parc de Gerland em Lyon, Parc du Sausset em Seine‑Saint‑Denis, Parc Jean Verlhac em Grenoble, entre outros). A concepção da paisagem de Corajoud é indissociável da sua prática de projecto, situando‑se portanto no âmbito de uma intervenção humana sobre a mesma. Ressalva, porém, que essa intervenção não deve fazer tábua rasa da paisagem – vê‑la como mera “página em branco” onde podemos imprimir de modo unilateral as nossas ideias –, mas considerá‑la como um lugar que tem já uma história e características próprias às quais o projecto de arquitectura paisagista deverá ajustar‑se; daí a sua preferência, como modelo da prática de projecto, pela morfologia do campo rural antigo, que revela as marcas dessa relação (pré‑industrial) na qual o camponês tem ainda de adaptar o seu labor geométrico da terra às condições e contingências geográficas. Em vez de uma ideia geral da natureza ou de um posicionamento, teórico e/ou estético, prévio, Corajoud tem como principal referencial da sua concepção paisagística a observação da realidade concreta “no terreno” (in situ), numa leitura directa que procura apreender – na multiplicidade dos dados físicos e biológicos e nos seus modos de articulação e de distribuição no espaço – os indícios estruturais que assinalam a anterioridade das idiossincrasias geográficas de ordem natural inerentes a cada lugar e que, na dinâmica da sua relação com as transformações produzidas pela acção humana no tempo, tornam cada paisagem característica na sua identidade evolutiva. O projecto tem como guia a própria paisagem, surgindo a “obra” como um processo de co‑instauração resultante de um compromisso equilibrado entre a criatividade do “sujeito” e o “objecto” concreto já existente. Esta dimensão objectiva da paisagem distingue‑se daquela que, em geral, associamos aos objectos propriamente ditos. Perspectivando‑a como um modo de assemblage, Corajoud realça que a paisagem, dada a essencial inter‑relação vital dos seus elementos (incluindo o substrato do seu solo), se constitui num espaço de coesão cujas componentes coexistem num estado