Declaração de Barbados I

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Declaração de Barbados I Pela libertação do indígena Os antropólogos participantes do Simpósio sobre fricção interétnica na América do Sul, reunidos em Barbados entre os dias 25 e 30 de janeiro de 1971, depois de analisar os relatórios apresentados sobre a situação dos povos indígenas dos vários países da região, decidiram elaborar este documento e apresentá‐lo à opinião pública, esperando que contribua para esclarecer este grave problema continental e para a luta de libertação dos povos indígenas. Os indígenas da América continuam submissos a uma relação colonial de domínio, que teve sua origem no momento da conquista e que não se desfez no seio das sociedades nacionais. Esta estrutura colonial se manifesta no fato de que os territórios ocupados pelos indígenas são considerados e utilizados como terra de ninguém, abertos à conquista e à colonização. O domínio colonial sobre as populações nativas faz parte da situação de dependência externa que a maioria dos países latino‐americanos conserva diante das metrópoles imperialistas. A estrutura interna de nossos países dependentes leva‐os a atuar de maneira colonialista na sua relação com as populações indígenas, colocando as sociedades nacionais no duplo papel de explorados e exploradores. Isto gera uma falsa imagem das sociedades indígenas e de sua perspectiva histórica, assim como uma autoconsciência deformada da sociedade nacional. Esta situação expressa‐se em agressões reiteradas contra as sociedades e culturas indígenas, tanto em ações intervencionistas supostamente protetoras, como nos casos extremos de massacres e deslocamentos compulsórios, não ficando alheios o exército e outros órgãos governamentais. As próprias políticas indigenistas dos governos latino‐
americanos visam à destruição das culturas indígenas e são usadas para a manipulação e o controle dos grupos indígenas em benefício da consolidação das estruturas existentes. Isto impede os indígenas de se libertarem da dominação colonialista e decidirem seu próprio destino. Ante tal situação, os Estados, as missões religiosas e os cientistas sociais, principalmente os antropólogos, devem assumir posturas inequívocas em vista de uma ação imediata para acabar com esta agressão e assim contribuir para favorecer a libertação do indígena. Responsabilidade do Estado Não faz sentido propor ações indigenistas que não busquem a ruptura radical da presente situação: o fim das relações coloniais externas e internas, o rompimento do sistema classista de exploração e de dominação étnica, o deslocamento do poder econômico e político de uma minoria oligárquica para as massas majoritárias, a criação de um estado verdadeiramente multiétnico no qual cada etnia tenha direito à auto gestão e à livre escolha de alternativas sociais e culturais. A análise por nós realizada demonstrou que a política indigenista dos estados nacionais latino‐americanos fracassou tanto por sua ação quanto por sua omissão. Por omissão, devido à sua incapacidade para garantir a cada grupo indígena o amparo específico que o Estado lhe deve, e para impor a lei diante das frentes de expansão nacional. Por ação, devido à natureza colonialista e classista de suas políticas indigenistas. Tal fracasso lança sobre o Estado a responsabilidade direta ou a conivência com os muitos crimes de genocídio e etnocídio que pudemos verificar. Estes crimes tendem a repetir‐se, e a culpa recairá diretamente sobre o Estado, caso não preencha os seguintes requisitos mínimos: 1. O Estado deve garantir a todas as populações indígenas o direito de serem e permanecerem como tais, vivendo segundo seus costumes e desenvolvendo sua própria cultura, já que constituem grupos étnicos específicos; 2. As sociedades indígenas têm direitos anteriores a toda a sociedade nacional. O Estado deve reconhecer e garantir a cada uma das populações indígenas a propriedade de seu território, permitindo que seja registrado corretamente, e na forma de propriedade coletiva, contínua, inalienável e suficientemente extensa para assegurar a manutenção das populações indígenas; 3. O Estado deve reconhecer às organizações indígenas o direito de se organizarem e de se governarem segundo suas especificidades culturais, e em nenhum momento poderá limitar seus membros no exercício de todo e qualquer direito de cidadania, mas, em compensação, os eximirá do cumprimento das obrigações que entrem em contradição com sua própria cultura; 4. Cabe ao Estado oferecer às populações indígenas a mesma assistência econômica, social, educacional e sanitária que oferece aos outros segmentos da população. Contudo, tem a obrigação de atender às carências específicas dessas comunidades, que são o resultado de sua submissão à estrutura colonial. E, sobretudo, tem o dever de impedir que sejam objetos de exploração por parte de qualquer setor da sociedade nacional, inclusive por parte dos agentes do órgão que lhes dá proteção oficial; 5. O Estado deve ser responsável por todos os contatos com grupos indígenas isolados, em virtude dos perigos biológicos, sociais, culturais e ecológicos que representa para eles o primeiro impacto com os agentes da sociedade nacional; 6. Os crimes e os conflitos que resultam do processo de expansão da fronteira nacional são de responsabilidade do Estado, embora não sejam cometidos diretamente por seus funcionários, civis ou militares; 7. O Estado deve definir a instância pública nacional específica que terá a seu cargo as relações com as entidades étnicas que sobrevivem em seu território. 2 Tal obrigação não é passível de transferência nem de delegação em nenhum momento e em nenhuma circunstância. A responsabilidade das missões religiosas A obra evangelizadora das missões religiosas na América Latina corresponde à situação colonial dominante, de cujos valores está impregnada. A presença missionária significou uma imposição de critérios e padrões alheios às sociedades indígenas dominadas e que encobrem, sob um manto religioso, a exploração econômica e humana das populações indígenas. O conteúdo etnocêntrico da atividade evangelizadora é um componente da ideologia colonialista, e está baseado nos seguintes pontos: 1. Seu caráter essencialmente discriminatório, originado de uma relação hostil com as culturas indígenas, classificadas de pagãs e heréticas; 2. Sua natureza vicarial, que conduz à coisificação do indígena e sua submissão, em troca de futuras compensações sobrenaturais; 3. Seu caráter espúrio, em virtude do fato de os missionários buscarem nesta atividade uma realização pessoal, seja esta de ordem material ou espiritual; 4. O fato de que as missões se converteram numa grande empresa de colonização e dominação, em conivência com os interesses imperialistas dominantes. Em virtude desta análise chegamos à conclusão de que o melhor para as populações indígenas e também para preservar a integridade moral das próprias Igrejas é acabar com toda atividade missionária. Enquanto não se alcança este objetivo, cabe às missões um papel na libertação das sociedades indígenas, desde que se atenham aos seguintes requisitos: 1. Superar o etnocídio intrínseco à atividade catequizadora como mecanismo de colonização, europeização e alienação das populações indígenas; 2. Assumir uma posição de verdadeiro respeito diante das culturas indígenas, pondo fim à longa e vergonhosa história de despotismo e intolerância que caracterizou o trabalho dos missionários, os quais raramente revelaram sensibilidade com relação aos valores religiosos indígenas; 3. Acabar com o roubo das propriedades indígenas por parte de missões religiosas que se apropriam de seu trabalho, de suas terras e de outros recursos naturais e acabar com a indiferença diante da constante espoliação de que os indígenas são objeto por parte de terceiros; 3 4. Acabar com o espírito suntuoso e faraônico das missões, materializado sob múltiplas formas, mas que sempre se apóia na exploração do índio; 5. Pôr um fim à disputa entre denominações e agências religiosas pelas almas dos indígenas, que dá lugar, muitas vezes, a operações de compra e venda de catecúmenos, e que, em vista da aquisição de novas lealdades religiosas, os leva à divisão e às lutas internas; 6. Suprimir as práticas seculares de ruptura da família indígena quando crianças são colocadas em internatos, onde recebem valores opostos aos seus, transformando‐se em seres marginalizados, incapazes de viver tanto na sociedade nacional como em suas próprias comunidades de origem; 7. Romper com o isolamento pseudomoralista que impõe uma falsa ética, que inabilita o indígena para uma convivência com a sociedade nacional; ética esta que as próprias Igrejas não foram capazes de impor à sociedade nacional; 8. Abandonar os procedimentos de chantagem, que consistem em oferecer aos indígenas bens e favores em troca de sua total submissão; 9. Suspender imediatamente toda prática de deslocamento ou concentração de populações indígenas visando à catequese ou assimilação, práticas que levam ao imediato aumento da morbidade, da mortalidade e da decomposição familiar das comunidades indígenas; 10. Abandonar a prática criminosa de servir como intermediários para a exploração de mão‐de‐obra indígena. Na medida em que as missões não assumirem estas obrigações mínimas, incorrerão no delito de etnocídio ou de conivência com o genocídio. Enfim, reconhecemos que, recentemente, elementos dissidentes dentro das Igrejas estão tomando uma posição clara de autocrítica radical à ação evangelizadora e têm denunciado o fracasso da atividade missionária. A responsabilidade da Antropologia 1. Desde sua origem a Antropologia foi instrumento da dominação colonial: racionalizou e justificou, em termos acadêmicos – de maneira aberta ou sub‐
repticiamente, a situação de domínio de uns povos sobre outros e levou conhecimentos e técnicas de ação que servem para manter, reforçar ou disfarçar a relação colonial. A América Latina não constituiu exceção e, com freqüência crescente, nefastos programas de ação sobre grupos indígenas, assim como estereótipos e distorções que deformam e encobrem a verdadeira situação do índio, pretendem ter um fundamento científico nos resultados do trabalho antropológico. 4 2. Uma falsa consciência desta situação conduziu muitos antropólogos a posições equivocadas. Estas podem ser classificadas nos seguintes tipos: a) O cientificismo, que nega qualquer vínculo entre a atividade acadêmica e o destino desses povos, os quais constituem o objeto dessa mesma atividade, eliminando assim a responsabilidade política que gera esse conhecimento; b) A hipocrisia, que se manifesta no protesto retórico com base em princípios gerais, mas que evita cuidadosamente qualquer compromisso com situações concretas; c) O oportunismo, que, embora reconhecendo a penosa situação do Índio, nega a possibilidade de transformá‐la, enquanto afirma a necessidade de "fazer algo" dentro do esquema vigente, o que, em última instância, reforça este mesmo sistema. 3. A Antropologia que hoje se requer na América Latina não é a que considera as populações indígenas como meros objetos de estudo, mas a que os vê como povos colonizados e que se compromete na sua luta de libertação. 4. Dentro deste contexto é função da Antropologia: ‐ de um lado, trazer aos povos colonizados todos os conhecimentos antropológicos, tanto acerca deles mesmos como a respeito da sociedade que os oprime, a fim de colaborar com sua luta de libertação; ‐ por outro lado, reestruturar a imagem distorcida que existe na sociedade nacional em relação aos povos indígenas, desmascarando‐lhe o caráter ideológico colonialista. 5. Visando à realização dos objetivos anteriores, os antropólogos têm a obrigação de aproveitar todas as situações que se apresentam do atual sistema para agir em favor das comunidades indígenas. Cabe ao antropólogo denunciar por todos os meios os casos de genocídio e as práticas que conduzem ao etnocídio, assim como se voltar à realidade local e teorizar a partir dela, a fim de superar a condição subalterna de simples exemplificadores de teorias alheias. O indígena como protagonista de seu próprio destino 1. É necessário ter em mente que a libertação das populações indígenas ou é realizada por elas mesmas ou não é libertação. Quando elementos estranhos a elas pretendem representá‐las ou tomar a direção de sua luta de libertação, cria‐se uma forma de colonialismo que retira às populações indígenas seu direito inalienável de serem protagonistas de sua própria luta. 2. Nesta perspectiva é importante valorizar em todo o seu significado histórico a dinamização que hoje se observa nas populações indígenas do continente e que as está levando a assumir sua própria defesa contra a ação etnocida e genocida da sociedade nacional. Nesta luta, que não é nova, nota‐se 5 atualmente a aspiração de realizar a unidade pan‐indígena latino‐americana. Em alguns casos, nota‐se também um sentimento de solidariedade com outros grupos oprimidos. 3. Reafirmamos aqui o direito que têm as populações indígenas de experimentar seus próprios sistemas de autogoverno, desenvolvimento e defesa, sem que essas experiências tenham que se adaptar ou se submeter aos esquemas econômicos e sociopolíticos que predominem em um determinado momento. A transformação da sociedade nacional não poderá ocorrer se estas populações não sentirem que têm em suas mãos a criação de seu próprio destino. Além disso, na afirmação de sua especificidade sociocultural, embora sejam numericamente pequenas, as populações indígenas estão apresentando claramente vias alternativas aos caminhos já transitados pela sociedade nacional. Barbados, 30 de janeiro de 1971 Miguel Alberto Bartolomé Guillerme Bonfil Batalla Víctor Daniel Bonilla Gonzalo Castillo Cárdenas Miguel Chase‐Sardi Georg Grünberg Nelly Arvelo de Jiménez Esteban Emilio Mosonyi Darcy Ribeiro Scou S. Robinson Stefano Varese Dos quatro brasileiros presentes, apenas Darcy Ribeiro assinou esta declaração, pois estava exilado no Chile. Os demais não o fizeram por questão de segurança, devido ao regime militar que imperava no Brasil. Eis a lista completa de todos os participantes: Pedro Agostinho da Silva (Universidade Federal da Bahia, Salvador, Brasil); Nelly Arvelo Jiménez (Instituto Venezuelano de Investigações Científicas, Caracas,Venezuela); Miguel Alberto Bartolomé (Universidade de Buenos Aires, Argentina); Guillermo Bonfil Batalla (Universidade Nacional Autônoma do México, México); Victor Daniel Bonilla (Comitê para a Defesa do Indígena, Bogotá, Colômbia); Oscar Bolioli (Conselho Mundial de Igrejas, Genebra, Suíça); Gonzalo Castillo Cárdenas (Comitê para a Defesa do Indígena, Bogotá, Colômbia); Miguel Chase‐Sardi (Centro de Estudos Antropológicos do Ateneu Paraguaio, Assunção, Paraguai); Georg Grünberg (Universidade de Berna, Suíça); Carlos de Araújo Moreira Neto (Universidade de Rio Claro, Brasil); Esteban Emilio Mosonyi (Universidade Central da Venezuela, Caracas, Venezuela); Darcy Ribeiro (Universidade do Chile, Santiago, Chile); Scott S. Robinson (Whitman College, Walla Walla, USA); Sílvio Coelho dos Santos (Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, Brasil); Stefano Varese (Divisão de Populações Amazônicas, Ministério da Agricultura, Peru). 6 
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