UNIVERSIDADE FEDERAL DE RORAIMA – UFRR NÚCLEO DE ESTUDOS COMPARADOS DA AMAZÔNIA E CARIBE MESTRADO EM DESENVOLVIMENTO REGIONAL DA AMAZÔNIA VILMAR ANTONIO DA SILVA A FUNÇÃO SOCIOAMBIENTAL DAS TERRAS INDÍGENAS: O CASO DA RAPOSA SERRA DO SOL BOA VISTA 2013 VILMAR ANTONIO DA SILVA A FUNÇÃO SOCIOAMBIENTAL DAS TERRAS INDÍGENAS: O CASO DA RAPOSA SERRA DO SOL Dissertação apresentada ao Programa de PósGraduação – Mestrado em Desenvolvimento Regional da Amazônia da Universidade Federal de Roraima-UFRR, como parte dos requisitos exigidos para a obtenção do Título de Mestre. Orientador: Prof. Dr. Edson Damas da Silveira. BOA VISTA 2013 Dados Internacionais de Catalogação na publicação (CIP) (Biblioteca Central Maria Auxiliadora de Sousa Melo) S586f Silva, Vilmar Antonio da. A função socioambiental das terras indígenas: o caso da Raposa Serra do Sol / Vilmar Antonio da Silva – Boa Vista, 2013. 132 p.: il. Orientador: Prof. Dr. Edson Damas da Silveira. Dissertação (mestrado) – Universidade Federal de Roraima, Programa de Pós-graduação em Desenvolvimento Regional da Amazônia. 1 – Terras indígenas. 2 – Função socioambiental. 3 – Raposa Serra do Sol. 4 – Roraima. 5 – Direito socioambiental. I - Título. II – Silveira, Edson Damas da (orientador). CDU – 349.6(811.4) FOLHA DE APROVAÇÃO VILMAR ANTONIO DA SILVA A FUNÇÃO SOCIOAMBIENTAL DAS TERRAS INDÍGENAS: O CASO DA TERRA INDÍGENA RAPOSA SERRA DO SOL Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação Desenvolvimento Regional da Amazônia da Universidade Federal de Roraima – UFRR. Área de concentração: Economia do Meio Ambiente e Tecnologia. Defendida em 26 de setembro de 2013 e avaliada pela seguinte banca examinadora: ______________________________ Prof. Dr. Edson Damas da Silveira Orientador ___________________________________ Prof. Dr. Serguei Aily Franco de Camargo ____________________________ Prof. Dr. Erick Cavalcanti Linhares DEDICATÓRIA À minha esposa, Mercilene e meus dois filhos, Yuri e Ygor, pela compreensão nos meus momentos de ausência, e pelo apoio incondicional que sempre me deram. AGRADECIMENTOS Ao Núcleo de Estudos comparados da Amazônia e Caribe – NECAR, pela oportunidade que me foi concedida. À Universidade Federal de Roraima, pela importância que tem sua presença na Amazônia e no incentivo à pesquisa. Ao Professor Edson Damas da Silveira, meu orientador, pela paciência com minhas dúvidas, pela perseverança nos conselhos e, principalmente, por ter acreditado em minhas capacidades, apesar de minhas tantas limitações. EPÍGRAFE Acompanhar a História de cada um destes povos após o contato é escrever uma saga épica que nos leva a reflexões muito profundas sobre a própria humanidade e sua trajetória na terra. (Carlos Frederico Marés) RESUMO A disputa pela terra no Brasil é assunto relevante, sobretudo quando das celeumas acerca das demarcações de terras indígenas, ainda mais com a confirmação da delimitação e tomada de posição do STF sobre a Terra Indígena Raposa Serra do Sol. Garantido o usufruto exclusivo pelas comunidades indígenas sobre a área em questão, em prestígio ao instituto do indigenato, o Estado brasileiro consolida o mandamento constitucional de reconhecimento dos direitos indígenas sobre suas terras, dando a ditas terras uma função socialmente relevante e ambientalmente muito importante, estabelecendo a função socioambiental vocacionalmente adequada. Analisando-se essa função socioambiental da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, utilizando-se de pesquisa bibliográfica em conjunto com coleta e análise de dados oficiais, demonstra-se a exploração econômica das terras pelas comunidades indígenas ali residentes, por meio de projetos socioambientalmente sustentáveis, aliados à sabedoria tradicional daqueles povos na lida com a terra e o meio ambiente circundante. Desta forma, a sociedade brasileira é beneficiada com preservação ambiental consistente, conservação de conhecimentos tradicional imemoriais, bem como ganham os povos indígenas, por terem seus direitos às suas terras reconhecidos e respeitados pelo Estadonação. Palavras-chave: Raposa Serra do Sol. Função socioambiental. Terras Indígenas. Indigenato. Roraima. ABSTRACT The struggle for land in Brazil is a relevant subject, especially when the uproar about the demarcation of indigenous lands, especially with the confirmation of delineation and position taken by the Supreme Court on the Raposa Serra do Sol case. Securing the exclusive use by indigenous communities on established area, honoring the institute of indigenato, the Brazilian state consolidates the constitutional commandment recognition of indigenous rights to their lands, giving the referred lands a socially relevant and environmentally important function, establishing environmental vocationally function properly. Analyzing this environmental function of the Raposa Serra do Sol, using a literature together with collection and analysis of official data shows up the economic exploitation of land by indigenous communities living there, through socially and environmentally sustainable projects , combined with the traditional wisdom of those people in dealing with the land and surrounding environment. Thus, Brazilian society is benefited with consistent environmental preservation, conservation of ancient traditional knowledge and indigenous peoples gain by having their rights to their lands recognized and respected by the nation-state. Keywords: Raposa Serra do Sol environmental function. Indigenous Lands. Indigenato. Roraima. LISTA DE FIGURAS Figura 1 - Estado de Roraima ................................................................................................... 59 Figura 2 - Terra Indígena Raposa Serra do Sol......................................................................... 64 Figura 3 - Localização das quatro regiões da Terra Indígena Raposa/Serra do Sol ................. 65 Figura 4 - Malocão da Comunidade Serra do Sol (TI Raposa Serra do Sol ............................. 66 Figura 5 - Vista aérea do Rio Cotingo, na Região das Serras, TI Raposa Serra do Sol .......... 67 Figura 6 – Dados demográficos Terra Indígena Raposa Serra do Sol (1993-2012 .................. 68 Figura 7 - Mapa das áreas pretendidas do estado de Roraima .................................................. 72 Fugura 8 - Terras indígenas demarcadas em Roraima .............................................................. 73 Figura 9 - Mapa Etno-Região Roraima ..................................................................................... 82 Figura 10 - As vinte Terras Indígenas na Amazônia Legal com maior número de projetos Com participação indígena ..................................................................................................... 101 Figura 11 - As quinze Terras Indígenas mais desmatadas da Amazônia Legal...................... 102 Figura 12 - Instalação de torre para medição do vento na comunidade ................................. 106 LISTA DE TABELAS Tabela 1 - População da Terra Indígena Raposa Serra do Sol (1993-2012) ............................. 67 Tabela 2 - Organizações Indígenas na Raposa Serra do Sol .................................................... 70 Tabela 3 – Povos, línguas e população ..................................................................................... 77 Tabela 4 - Povos Indígenas em Roraima, segundo terras, população, áreas e grupos indígenas – 2008 ....................................................................................................................... 77 Tabela 5 - Unidades de conservação da natureza, área total, municípios abrangidos e decretos de criação .................................................................................................................... 79 Tabela 6 - Situação do Projeto de Lei 1610/96 no Congresso Nacional .................................. 88 Tabela 7 - Projetos na Terra Indígenas Raposa Serra do Sol .................................................. 104 Tabela 8 - Matriz de impactos socioambientais em 9 Terras Indígenas do Complexo Macuxi-Wapixana, RR ........................................................................................................... 112 Tabela 9 – Desmatamento na Amazônia Legal (2004-2012) ................................................. 116 Tabela 10 - Distribuição Incremento 2000 a 2011 no estado de Roraima .............................. 117 Tabela 11 - Desmatamento na Terra Indígena Raposa Serra do Sol (1997-2011) ................. 118 LISTA DE ABREVIATURAS § - Parágrafo. AARCAF - Associação Agropecuária da Região Central Água Fria. ACR - Apelação Criminal. ADERR - Agência de Defesa Agropecuária de Roraima. APIRR - Associação dos Povos Indígenas de Roraima. ARIKON - Associação Regional Indígena do Rio Kinô, Cotingo e Monte Roraima. art. – Artigo. BBC - British Broadcasting Corporation. CEF – Caixa Econômica Federal. CF – Constituição Federal. CGEES - Coordenadoria Geral de Estudos Econômicos Sociais. CGOT - Centro de Geotecnologia e Ordenamento Territorial. CIFCRSS - Centro Indígena de Formação e Cultura Raposa Serra do Sol. CIR - Conselho Indígena de Roraima COIAB - Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia brasileira. COPING - Conselho do Povo Indígena Ingarikó. CP – Código Penal. DJ – Diário da Justiça. DOU – Diário Oficial da União. Eco-92 - Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento, no Rio de Janeiro, em 1992. FAEP - Federação da Agricultura do Estado do Paraná. FEMARH - Fundação Estadual do Meio Ambiente e Recursos Hídricos de Roraima. FUNAI – Fundação Nacional do Índio. FUNASA – Fundação Nacional de Saúde. ha. – Hectare. IBAMA - Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis. IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas. ICMBio - Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade. INCRA – O Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária. INPE - Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais. ISA - Instituto Socioambiental. IUCN - International Union for Conservation of Nature. MMA - Ministério do Meio Ambiente. OMIR - Organização das Mulheres Indígenas de Roraima. ONG – Organização Não-Governamental. OPIRR - Organização dos Professores Indígenas de Roraima p. – Página. PC do B - Partido Comunista do Brasil. PDPI - Projeto Demonstrativo de Povos Indígenas. PDT – Partido Democrático Trabalhista. PET – Petição. PFL – Partido da Frente Liberal. PMDB – Partido do Movimento Democrático Brasileiro. . PPTAL - Projeto Integrado de Proteção às Populações e Terras Indígenas da Amazônia Legal. PRODES - Projeto de Monitoramento do Desflorestamento na Amazônia Legal. PRONAT - Programa Desenvolvimento Sustentável de Territórios Rurais. PSDB - Partido da Social Democracia Brasileira. PT – Partido dos Trabalhadores. PTB - Partido Trabalhista Brasileiro. RE – Recurso Extraordinário. RESP – Recurso Especial. Rio+20 - Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável, no Rio de Janeiro, em 2012. s/d – Sem data. SEI-RR – Secretaria do Índio de Roraima. SEPLAN-RR – A Secretaria de Planejamento e Desenvolvimento de Roraima. SESAI - Secretaria Especial de Saúde Indígena. SIASI - Sistema de Informação da Atenção à Saúde Indígena. SISNAMA - Sistema Nacional de Meio Ambiente. SODIUR - Sociedade de Defesa dos Índios Unidos de Roraima. STF - Supremo Tribunal Federal STJ – Superior Tribunal de Justiça. TI – Terra Indígena. TIRSS - Terra Indígena Raposa Serra do Sol. TRF – Tribunal Regional Federal. UFMA - Universidade Federal do Maranhão. UFRJ – Universidade Federal do Rio de Janeiro. Unesp - Universidade Estadual de São Paulo. US$ - Dólares americanos. WWF - World Wildlife Fund. SUMÁRIO INTRODUÇÃO............................................................................................................18 1 Terra Pública, Particular e Indígena .......................................................................... 20 1.1 Terra: histórico, conceitos e entendimentos doutrinários ....................................... 20 1.1.1 A terra segundo a visão indígena ................................................................ 20 1.1.1.1 Territorialidade................................................................................................... 23 1.1.2 A visão “civilizada” de terra ....................................................................... 24 1.1.3 Conceito de terra para o Estado .................................................................. 26 1.2 Terras particulares - um contraponto às terras indígenas ....................................... 27 1.2.1 Propriedade na Idade Moderna ................................................................... 29 1.2.2 Propriedade como direito absoluto.............................................................. 30 1.2.3 A Propriedade Privada. ............................................................................... 31 1.2.3.1 A garantia ao direito de propriedade privada .................................................... 32 1.2.3.2 Locke, o teórico da propriedade moderna ......................................................... 34 1.2.3.3 Portugal e as leis de terra .................................................................................. 36 1.3 Os Bens Públicos .................................................................................................... 37 1.3.1 Os bens públicos e as terras públicas ......................................................... 38 1.3.2 Terras Públicas ............................................................................................ 40 1.3.3 As terras devolutas ...................................................................................... 41 1.3.4 Terras tradicionalmente ocupadas pelos índios........................................... 42 1.3.4.1 Indigenato......................................................................................................... 43 1.3.5 Multiculturalismo ........................................................................................ 44 2 O direito dos povos indígenas ................................................................................... 48 2.1 Povos europeus, ocupação territorial na América e choque de civilizações. ......... 49 2.2.1 Direitos humanos e direitos dos índios. ...................................................... 50 2.2 Terras indígenas - a evolução da legislação no Brasil ........................................... 51 2.2.1 As terras indígenas ...................................................................................... 54 2.2.1.1 Aldeamento. ..................................................................................................... 58 2.2.1.2 As terras ocupadas pelos indígenas. ................................................................. 61 2.2.2 A Terra Indígena Raposa Serra do Sol ........................................................ 61 2.2.2.1 A demarcação. .................................................................................................. 63 2.2.2.2 População. ........................................................................................................ 67 3 A distribuição da terra em Roraima........................................................................... 71 3.1 A questão da agricultura e as terras afetadas ...................................................... 73 3.2 As demarcações de terras indígenas ................................................................... 74 3.3 A situação após a demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol. ............ 80 3.3.1 As dezenove condições do Supremo Tribunal Federal relativas às Terras Indígenas Raposa Serra do Sol: possibilidades e dificuldades de exploração pelos indígenas .......................................................................................................................... 84 4 Socioambientalismo e a função socioambiental da terra .......................................... 94 4.1 Socioambientalismo ........................................................................................... 96 4.2 Função socioambiental da terra .......................................................................... 98 4.2.1 Função socioambiental das terras indígenas ............................................... 99 4.2.1.1 O caso da Terra Indígena Raposa Serra do Sol - função socioambiental....... 102 4.2.1.2 Projetos e programas de exploração econômicos na Raposa Serra do Sol e seus impactos ambientais ................................................................................................................ 104 4.2.1.2.1 O projeto Cruviana ........................................................................ 105 4.2.1.2.2 Projeto uma vaca para cada índio .................................................. 106 4.2.1.2.3 Projeto Mandala ............................................................................ 109 4.2.1.3 Acertos e Desacertos ...................................................................................... 110 4.2.1.4 Problemas socioambientais. ........................................................................... 112 4.2.1.2 O desmatamento na Terra Indígena Raposa Serra do Sol e nas áreas fora da Terra Indígena. ........................................................................................................................ 116 CONCLUSÃO ........................................................................................................... 120 REFERÊNCIAS ......................................................................................................... 123 18 INTRODUÇÃO Este trabalho é fruto de cerca de dois anos de pesquisa sobre a temática indígena, social e ambiental ligada aos índios de Roraima. Tem por escopo uma análise da função socioambiental desempenhada pela terra indígena, especialmente o caso da Raposa Serra do Sol. Trata-se de importância crucial desempenhada pela terra indígena, em sua função de preservação da cultura, dos costumes, valores das comunidades, além da preservação ambiental historicamente desempenhada pelos índios. Imperativa uma análise focada no caso da Raposa Serra do Sol, tendo em consideração sua importância para a temática indígena nacional, devido à repercussão alcançada por essas terras quando da sua demarcação e a posterior celeuma jurídica que desaguou no Supremo Tribunal Federal. Como ponto de partida deste trabalho, optou-se pela delimitação do tema, iniciando a diferenciação conceitual entre as concepções do termo “terra” para indígenas, para o homem não índio e para o Estado, buscando estabelecer o alcance conceitual de referência atinente às terras indígenas e o choque existente entre dois mundos, quais sejam, o pensamento “civilizado” e o pensamento indígena. Lançou-se mão, nesta parte do trabalho, de uma releitura histórico-doutrinária, bem como da pesquisa bibliográfico-científica publicada sobre o tema, analisando a discussão acerca da eterna disputa da terra pelo homem, passando pela divisão de terras públicas e particulares, devolutas e indígenas. Em seguida passou-se aos direitos indígenas relacionados à terra, como corolário, no Brasil, do instituto do indigenato, iniciando no choque de civilizações quando da chegada dos europeus em solo americano, passando pelo povoamento amazônico brasileiro, desaguando no caso de Roraima, principalmente no aldeamento de povos indígenas. Em seguida, passouse à análise da situação fundiária do estado de Roraima e as demarcações das terras indígenas, finalmente chegando ao caso da Terra Indígena Raposa Serra do Sol. Não se pode esquecer que a demarcação dessas terras indígenas foi emblemática, pois a Corte Suprema brasileira, quando do julgamento da demarcação em ilhas ou de forma contínua, estabeleceu dezenove condicionantes para o usufruto exclusivo dos índios naquelas terras, sendo este tema explorado neste trabalho, buscando-se analisar seu alcance e a 19 influência dessas condicionantes na exploração econômico-social pelos indígenas. Ainda, importante salientar a discussão que se instalou nacionalmente devido à disputa entre indígenas e fazendeiros. Na última parte do presente estudo, buscou-se analisar a função socioambiental da terra, focando os estudos na Raposa Serra do Sol. Buscou-se nesta fase da pesquisa a coleta de dados junto aos órgãos que atuam em apoio às comunidades indígenas daquelas terras, dados esses que foram demonstrados em tabulação metodologicamente adequada à análise pretendida. Tabelas, gráficos e mapas foram utilizados com ânimo de mostrar as atividades econômicas desenvolvidas naquelas terras indígenas, evidenciando a forma socioambientalmente equilibrada que essa exploração acontece. Projetos de exploração econômica foram analisados, apresentando-se seus efeitos positivos, bem como os problemas socioambientais enfrentados pelas comunidades indígenas naquelas terras. Finalmente, buscou-se analisar o desmatamento na região amazônica, no estado de Roraima e naquelas terras indígenas, estabelecendo-se uma análise comparativa entre tais regiões, demonstrando as vantagens socioambientais das terras indígenas. Devido às dificuldades e à complexidade do tema proposto, o caminho trilhado foi difícil, a metodologia rigorosa, porém o caminhar foi instigante e oportuno. 20 1 Terra Pública, Terra Particular e Terras Indígenas Nesta primeira parte do presente estudo, imperioso é estabelecer marco teórico bastante para estabelecer os parâmetros do objeto de estudo, as delimitações conceituais aqui adotadas e possíveis correntes doutrinárias existentes. Para tanto, iniciar-se-á com as três concepções acerca do tema central deste estudo, qual seja, a conceituação do termo “terra”, sob olhares diferentes, que servirão de balizamento para as argumentações ao longo deste trabalho. Senão vejamos. Há grande diferença entre as concepções de “terra” para diferentes grupos aqui considerados. Se para o Estado o vocábulo terra está ligado às fronteiras de um país, à segurança externa ou ao controle de seu próprio povo, como em estados totalitários, para a pessoa comum, vivendo em um mundo capitalista, o termo tem conotação de riqueza ou fonte de geração de riqueza. Neste trabalho, o que se pretende aprofundar é a concepção que os indígenas têm em relação a esta palavra. Evidentemente, quanto maior o grau de contato com os não índios, maior a semelhança entre os dois mundos. 1.1 Terra: histórico, conceitos e entendimentos doutrinários O conceito de Terra é abrangente, pois o que se entende por esse termo vai depender da época, do lugar e do grupo de interesse. Segundo o Dicionário Michaelis, terra é “(lat terra) 1 O planeta em que habitamos. 2 A parte sólida desse planeta, não ocupada pelo mar. 3 A superfície da parte sólida do mesmo planeta, onde crescem os vegetais. 4 Solo, chão. 5 Terra solta, pó, poeira. 6 Lugar ou localidade onde se nasceu ou onde se habita”. Em que pesem os diversos significados e possíveis usos do vocábuo, neste trabalho, visando melhor entendimento da questão da terra, serão abordadas três concepções de terra: a concepção indígena da ideia de terra, a concepção do Estado e da sociedade não índia. 1.1.1 A terra segundo a visão indígena Para o indígena, qualquer lugar em que viva, seu entendimento do vocábulo “terra” tem significado nitidamente diferente dos não índios. Naturalmente esse entendimento advém de suas experiências enquanto sujeito cultural essencialmente rural, com cultura e 21 conhecimentos diferentes dos ditos “civilizados”. Diferentes em cultura, em costumes e em visão de mundo, pois os índios vivem na e da terra, têm ligação umbilical com a natureza, formando uma cosmovisão díspar daquela do homem urbano. O ilustre doutrinador José Afonso da Silva, ao analisar o art. 231 da Constituição Federal, elucida que: Não se vai tentar definir o que é habitação permanente, modo de utilização, atividade produtiva, ou qualquer das condições ou termos que as compõem, segundo a visão civilizada, a visão do modo de produção capitalista ou socialista, a visão do bem-estar do nosso gosto, mas segundo o modo de ser deles, da cultura deles (SILVA apud SANTILI, 1993, p. 47). No entendimento de Silva é equivocada qualquer interpretação da concepção indígena de “terra” que se baseie na concepção “civilizada”. Se o indígena vive em um mundo diferente da rotina capitalista ocidental, evidentemente suas concepções acerca da realidade são diferentes da população não índia, pois seus anseios, planos, modo de vida, preocupações são bastante diferentes da rotina de vida de um morador da cidade de São Paulo ou em uma fazenda no interior de Roraima, se bem que a realidade indígena se aproxima mais do fazendeiro do que do homem urbano. A preocupação com a acumulação de riqueza, estudos, roupas elegantes ou outras do gênero não fazem sentido para os índios. O que pensa ou sente um indígena sobre o habitat em que vive, a terra como fonte da vida, é naturalmente díspar da visão dos não índios. No Brasil, quando da chegada dos portugueses, havia aproximadamente cinco milhões de índios, divididos por centenas de povos, com religiões, línguas e organizações sociais diferentes. Em livro publicado em 2003, Marés informava a estimativa da época que haveria aproximadamente 500 mil índios, espalhados por cerca de 200 povos, vivendo em aproximadamente 500 áreas, com línguas, culturas, organização social e religiões diferentes (MARÉS, 2003). Já segundo Censo 2010, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas, o Brasil tem 896,9 mil indígenas em todo o território nacional, somando a população residente tanto em terras indígenas (63,8%), quanto em cidades (36,2%) (IBGE, 2012). Do total, 817,9 mil se autodeclararam índios no quesito cor ou raça e 78,9 mil, embora se declarassem de outra cor ou raça, principalmente parda (67,5%), se consideram indígenas pelas tradições e costumes. Evidentemente, cada povo, seja à época do descobrimento, seja nos dias atuais, tem sua própria visão de mundo, de religião, de organização de sua sociedade e de relação com a terra. Segundo Marés (2003), falando dos índios à época do descobrimento, embora haja 22 diferenças na forma com que cada povo se organize socialmente, a relação com a propriedade privada era aceita no limite da necessidade individual. Os índios têm uma relação de convivência com a terra, em quase nada lembrando a relação que o não índio tem com a terra e a propriedade individual. Estes pensam a terra como uma mercadoria, aqueles como lar. Em uma visão mais alargada, quando se analisam os índios da América Latina, notase uma visão aproximada da que Marés expõe. Para Courtis (2009, p. 61), professor da Universidade de Buenos Aires, “a terra constitui um dos traços identitários dos povos e comunidades indígenas, definidor de seu modo de vida e de sua cosmovisão”. A terra tem, para os povos e comunidades indígenas, um significado religioso e constitui a base de sua economia, geralmente pautada pelos ciclos da natureza. Para Marés, essa cosmovisão mencionada por Courtis pode ser diferente em cada povo. Em sua obra “O renascer dos povos indígenas para o direito”, Marés chama a atenção para o fato de que há diversos povos indígenas espalhados pela América, com diversas visões acerca da vida. “A organização social e o Direito de cada um dos povos indígenas que habitavam o imenso território da América difere muito entre si, porque diferentes são suas cosmovisões” (MARÉS, 2006, p. 30). CLASTRES (2003) entende que para as sociedades primitivas, a exploração da terra para a produção de bens de consumo é limitada à exata satisfação das necessidades, não havendo a intenção do acúmulo capitalista dessa riqueza. Para o autor, é a vida como natureza. Uma vez assegurada a satisfação das necessidades energéticas, não havia estímulo possível que levasse a sociedade primitiva a querer produzir mais. Essa relação com a terra se aparta profundamente da relação capitalista ou comunista, pois para as sociedades primitivas, o tempo disponível após o atendimento das necessidades básicas de alimentação era dedicado à ociosidade, o jogo, a guerra ou a festa. É inegável que essa relação com a terra, nos dias atuais, se apresenta diferente daquela existente à época de Cabral e Colombo. Evidentemente, os povos indígenas americanos sofreram profundas transformações em seus modos de vida, suas sociedades não mais tão primitivas (segundo o entendimento europeu) e suas formas de se relacionarem com a terra. Esse assunto, em especial, será foco de um capitulo posterior neste trabalho. 23 1.1.1.1 Territorialidade Não se pode deixar de abordar o tema “territorialidade” quando se tem contato com a obra de Marés “O renascer dos povos indígenas para o direito”. Para o autor, à época do descobrimento e conquista pela Europa, a cosmovisão concebida pelos índios aqui existentes era muito mais concentrada em valores ligados à vida em comunidade e sua ligação com o espaço geográfico. À época da conquista as nações indígenas habitantes das Américas tinham, provavelmente, na definição de sua jurisdição e alcance de sua organização social muito mais forte o conceito de família, parentesco, afinidade ancestral, língua, costumes e religiões comuns que limites territoriais” (MARÉS, 2006, p. 42). Essa visão de terra pelos americanos originais difere enormemente da visão capitalista que tem na terra uma possibilidade demonstrativa de poder e de acumulação de riqueza. Nas Américas havia ouro, prata, pau-brasil, que foram levados para a Europa sem cerimônia. Além disso, levaram também o tomate, o milho, a batata, o guano e o cobre. Esses produtos que aqui havia em abundância não tinham valor para os nativos, senão apenas a sobrevivência do grupo. Não consideravam a possibilidade de acumulação ou venda dessas mercadorias, visão evidentemente oposta aos europeus que aqui chegavam. Porém, há de se referenciar o conceito de território. Para Haesbaert e Limonad (2007), o território não deve ser confundido com a “simples materialidade do espaço socialmente construído, nem com um conjunto de forças mediadas por esta materialidade”. Para eles, o território é sempre, e concomitantemente, “apropriação (num sentido mais simbólico) e domínio (num enfoque mais concreto, político-econômico) de um espaço socialmente partilhado” (p. 42). Seguem ainda, os autores, se referindo ao vocábulo “território” nos seguintes termos: “o território é uma construção histórica e, portanto, social, a partir das relações de poder (concreto e simbólico) que envolvem, concomitantemente, sociedade e espaço geográfico (que também é sempre, de alguma forma, natureza)” (p. 43). Por outro norte, o conceito de território para os indígenas americanos difere de povo para povo. Eram e são muitos povos, com diferentes mitos, crenças e culturas, fazendo com 24 que os critérios para definição dos espaços geográficos que cada povo ocupa e defende sejam também muito diferentes entre si. Para Munhõz (2003, p. 291): O respeito à mãe-terra é expresso mediante uma atitude ante a vida, através da reza e das palavras que ‘pedem permissão’, seja para cruzar num lugar sagrado (cova ou montanha) ou no momento de cavar, antes de ‘feri-la’. O respeito à sagrada mãeterra e aos seus frutos manifesta-se na disposição de tomar o necessário para alimentar-se, ou na reza. Há diferença de concepção dos termos território e terra. Índios de diversos povos diferem entre si sobre o assunto, assim como os não índios têm concepção ainda mais distanciada daqueles. Para Gallois (2004, p. 39): Em muitos trabalhos acadêmicos, a produção antropológica evidencia um desconhecimento indígena do que seja território, atestando inclusive a inexistência dessa noção para determinados grupos. Nesses casos, a mobilidade espacial funciona como uma espécie de prova de que não há território (...). Análises como esta procuram descrever as concepções indígenas a partir de noções abertas de território e de limites, extremamente variáveis. Teríamos então de analisar caso a caso, as respostas dos grupos indígenas a conversão de seus territórios em terras, uma vez que como sugere João Pacheco de Oliveira Filho “não é da natureza das sociedades indígenas estabelecerem limites territoriais precisos para o exercício de sua sociabilidade”. Tal necessidade advém exclusivamente da situação colonial a que essas sociedades são submetidas. Os temas “terra e território” apresentam diversas variantes interpretativas, tais como acima visto. Assim, em que pese à visão contemporânea capitalista apontar para “terra” como fonte de riqueza a ser explorada, buscando, principalmente, produção de alimentos, não se pode olvidar que, para os indígenas, essa exploração está ligada à sua identidade cultural, seus valores e, ainda mais, à conservação de seu modo de vida. 1.1.2 A visão “civilizada” de terra Em sua obra “A função social da terra”, já na introdução, é demonstrada a importância que a terra sempre teve para as sociedades. Para o autor, “as sociedades humanas sempre tiveram, em todas as épocas e formas de organização, especial atenção ao uso e ocupação da terra” (MARÉS, 2003, p. 11). É obvio que todas as sociedades tiraram dela seu sustento. “A argamassa espiritual que une uma sociedade flui a partir das condições físicas do território em que o povo habita”. Em decorrência dessa evolução humana, dominando terra, planta e animais, foi o homem sentindo a necessidade de delimitar certa porção de terra onde ele teria 25 prioridade de utilização. Toma posse de parte da terra para atender aos interesses seus e de sua família. Em certo momento da história, surge a figura da propriedade privada. Deve-se salientar que essa figura surge em evolução natural do conceito, ainda rudimentar, de posse. Esse assunto foi tratado em trabalho anterior de nossa autoria (MATTOS & SILVA, 2012), onde aludimos aos primeiros apontamentos acerca do tema, desde os babilônicos com o Código de Hamurabi, passando pela Grécia antiga, que tinham uma base social comunitária, dependente da agricultura e pecuária, assim como Roma. Com o sistema feudal, a terra passa a significar poder e há uma concentração desse poder nas mãos dos senhores feudais. Segundo Beviláqua (1946. p. 122): A terra pertencia ao senhor: a terra era o fundamento do poder, da autoridade. O senhor, concedendo terras, obtinha homens, que lhe deviam prestações, e conseqüentemente, eram seus vassalos. Por sua vez, o feudatário, com o desenvolvimento do regime, podia fazer concessões semelhantes, a vassalos seus, continuando, sempre, vinculando às obrigações, que impusera o suserano. Já aqui se nota uma profunda diferenciação de formas de conceber a terra. Se, como visto anteriormente, o índio sempre concebeu a terra com conotações religiosas, transcedentais, mas sem intenção de apossamento individual, nota-se que o homem passa a concentrar a terra sob seu domínio como forma de acumulação de riqueza e de poder, em contraponto ao comportamento indígena. No século XVIII, com a Revolução Francesa, houve uma substituição do poder concentrado na realeza pelo poder em mãos da classe burguesa. Para Borges (1998, p. 2) “A Revolução Francesa deu vigor novo ao direito de propriedade, tornando-o quiçá mais ólido que entre os próprios romanos.” Juntamente com a independência dos Estados Unidos, a Revolução Francesa contribuiu para a consolidação do direito de propriedade. “Foi uma conquista na área dos direitos individuais contra o absolutismo do Estado” (BORGES, 1998, p. 2). Com o desenvolvimento capitalista, houve a transformação da terra em propriedade privada, “e a terra transformada em propriedade privada promoveu o desenvolvimento capitalista” (MARÉS, 2003, p. 81). Esse desenvolvimento foi centrado na propriedade capitalista, realidade essa que pregava, e ainda prega, a acumulação de propriedades, de riquezas em mãos de indivíduos (incluindo-se ai a terra), como forma de recompensa pelo 26 esforço individual. Essa visão de propriedade se funde à visão de “terra” para o homem moderno capitalista. Terra é, para este, sinônimo de riqueza, de poder a ser acumulado individualmente. 1.1.3 Conceito de terra para o Estado O Estado moderno nasce com os Tratados de Westfalia (1648), quando foram estabelecidas as bases do Estado-Nação, com território definido e uma cidadania no interior desse território (VLACH, 2008; DALLARI, 2007). Assim, o território se tornou o princípio fundador do Estado moderno. Para WEBER (1946, p. 78), cabe ao Estado “o monopólio do uso legítimo da força física dentro de um dado território”. Para melhor entendimento, cito Giddens, evocado por Vlach em seu trabalho acima citado: O Estado-nação, que existe em um complexo de outros Estados-nação, é um conjunto de formas institucionais de governo, mantendo um monopólio administrativo sobre um território com fronteiras (limites) demarcados, seu domínio sendo sancionado por lei e por um controle direto dos meios internos e externos de violência (Giddens, 1981, p. 190). Nota-se que o território tornou-se essencial e crítico para a existência do próprio Estado. Nesse contexto, o vocábulo “terra” é tido para o Estado como “território”, ou seja, uma delimitação geográfica, definida por critérios políticos. Para Silva (1999, p. 8), o “território é o limite espacial dentro do qual o Estado exerce de modo efetivo o poder de império sobre pessoas e bens”. Ainda para o autor (1997, p. 100), “é do modo de exercício do poder político em função do território que teremos o conceito de forma de Estado”. No mesmo sentido, Dallari (2007, p. 86) entende que “com raríssimas exceções, os autores concordam em reconhecer o território como indispensável para a existência do Estado”. Ainda, para Maluf (2008, p. 25) a nação, como entidade sociológica pode existir sem território, citando o autor o caso da nação judaica durante cerca de dois mil anos, afirmando que sobreviveu aquele povo como nação. Mas “Estado sem território não é Estado”. Para o Estado, o vocábulo “território” significa, ainda, uma questão de soberania e uma delimitação geográfica a ser defendida. O inciso III, parágrafo 1º, do art. 91 da 27 Constituição Federal, estabelece o Conselho de Defesa Nacional, determinando como sua competência, dentre outros, “propor os critérios e condições de utilização de áreas indispensáveis à segurança do território nacional e opinar sobre seu efetivo uso, especialmente na faixa de fronteira [...]”. Para Silva (1999), a defesa do Estado é defesa do território contra invasão estrangeira (34, II, e 137, II – CF), é defesa da soberania nacional (91), é defesa da Pátria (142). Essa visão de “terra” para o Estado é, evidentemente, profundamente diferente da visão que tem o homem comum capitalista ou socialista-comunista e, evidentemente, ainda mais diferente da visão indígena do termo. Se para o indígena “terra” significa conjunto de valores religiosos, culturais e o local ou espaço de onde se retiram os alimentos para a sobrevivência do grupo e, ainda, o espaço a ser protegido como forma de preservação de sua identidade cultural, para o não índio “terra” representa riqueza, ou local de onde se deve extrair riqueza com a finalidade de se acumular o maior volume possível, que se transforma em poder individual. Já para o Estado, “terra” tem a conotação de espaço delimitado, separando esse espaço de outros Estados. É um espaço geográfico dentro do qual esse Estado exercerá seu poder sobre os que ali vivem. É também espaço a ser defendido, sob pena de perda do poder de mando (jus imperium) dos detentores do poder estatal. 1.2 Terras particulares - um contraponto às terras indígenas Em que pese não ser este assunto o foco deste trabalho, é essencial que se estabeleça uma linha comparativa dos conceitos que levaram o homem a tratar a terra como sinônimo de propriedade privada, de fonte fundamental da formação da riqueza das nações. Segundo o dicionário Michaelis, o termo propriedade significa “(lat proprietate) 1. Qualidade de próprio. 2. Aquilo que é próprio de alguma coisa; o que a distingue particularmente de outra do mesmo gênero”. A ideia de propriedade individual, exclusiva e absoluta, de uma porção de terra não é universal, nem histórica, nem geograficamente. É, na verdade, uma construção humana 28 localizada e recente1. Na conceituação de Diniz (2000, p.103), a propriedade é “a relação fundamental do direito das coisas, abrangendo todas as categorias dos direitos reais sobre coisas alheias, sejam direitos reais limitados de gozo ou fruição, sejam os de garantia ou de aquisição”. O saudoso jurista Silvio Rodrigues (1986, p. 73) sustentava que “o domínio é o mais completo dos direitos subjetivos e constitui o próprio cerne do Direito das Coisas”. Acrescentava ainda que “a propriedade representa a espinha dorsal do direito privado, pois o conflito de interesses entre os homens que o ordenamento jurídico procura disciplinar, se manifesta, na quase generalidade dos casos, na disputa de bens”. Para alguns autores, a propriedade é fenômeno espontâneo, decorrente da necessidade de subsistência do ser humano, sendo posteriormente regulado a fim de possibilitar a convivência social pacífica (PEREIRA, 2003). A ideia de propriedade privada, seja em Roma, seja nas cidades gregas da antiguidade (COMPARATO, 1997, p. 93): [...] era ligada à religião, à adoração do deus-lar, que tomava posse de um solo e não podia ser, desde então, desalojado. A casa, o campo que a circundava e a sepultura nela localizada eram bens próprios de uma gens ou de uma família, no sentido mais íntimo, ou seja, como algo ligado aos laços de sangue que unem um grupo humano. Nesse contexto histórico, a ideia de propriedade surge, portanto, ligada ao culto aos mortos. Se a religião era familiar e o culto aos antepassados mortos, direito apenas dos familiares, o solo onde enterravam esse antepassado era, em um primeiro momento, sagrado para, posteriormente, passar a significar lugar de culto a esse antepassado, exclusivo de familiares. Segundo Coulanges (1998, p. 84), três coisas que, desde os tempos antigos, se encontram fundadas e estabelecidas solidamente nas sociedades grega e italiana: a religião doméstica, a família e o direito de propriedade. Em trabalho anterior de nossa autoria (MATTOS & SILVA, 2012), citamos Serpa Lopes (1959), para quem a sociedade romana se fundava no Direito e na Família, havendo o culto ao lar e aos mortos, o que exigia um sistema de bens assecuratórios de sua 1 Em seu livro “Função Social da Terra”, Marés inicia a primeira parte abordando esse tema. Para ele Estado e Direito modernos começam a surgir na Europa lá por volta do século XIII, talvez antes, teorizados a partir do século XVI com as informações fantásticas que traziam de cada parte do mundo as caravelas dos aventureiros, conquistadores e mercadores. Marés explica que àquela época os teóricos iam recebendo as notícias de todas as partes do mundo e formulando novas teorias, quando o mercado passava a considerar os homens não mais pela sua nobreza ou qualidades, e sim pela quantidade de bens acumulados e pela sua capacidade de acumulação de mais e mais bens (2003, p. 17). Essa concepção do homem como capaz de se apropriar de grande quantidade de bens, marca uma nova cosmovisão social do mundo. Adentra-se nesse momento no mercantilismo como fator de geração de riquezas, essas tendo como detentor um homem, que tornar-se-ia cada vez mais individual e tendo o Estado como protetor do seu direito de ter cada vez mais bens, de se tornar proprietário. 29 autossuficiência. Essa realidade, em uma Roma em crescente evolução territorial, estabeleceu forte concentração de terras nas mãos das famílias mais antigas e ricas. Alguns autores asseveram que a origem da propriedade decorreria do enfraquecimento e divisão do mancipium, poder unitário, amplo, que gozava o pater familias, englobando pessoas e coisas, que se desdobrou em diversas formas de poder, como o manus (sobre a mulher), patria potestas (sobre os filhos), dominica potestas (sobre os escravos) e dominium (sobre as coisas), aqui englobando a terra (JUSTO, 1997; ARAUJO, 1999). É, nesse momento histórico, um direito absoluto sobre pessoas e bens. Essa concepção foi parcialmente transmitida ao Direito francês (Código de Napoleão), também conhecido como Código da Burguesia. Também foi transmitida ao Direito português (Ordenações), sendo, portanto, transmitida ao Direito brasileiro (ARAÚJO, 1999). Essa fase é caracterizada pela Idade Média (BATALHA, 1997), onde o domínio manifesta-se sob a forma do directum (pertencente ao suserano, senhor feudal) e o utile (pertencente ao vassalo, que era dependente do suserano). 1.2.1 Propriedade na Idade Moderna A Idade Moderna foi marcada por dois grandes movimentos culturais: o renascimento e o iluminismo, período este compreendido entre 1453 e a Revolução Francesa em 1789. O documento intitulado “Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão” de 1789 previa a propriedade como um direito natural e imprescritível, em seu art. 2o: “A finalidade de toda associação política é a conservação dos direitos naturais e imprescritíveis do homem. Esses direitos são a liberdade, a propriedade, a segurança e a resistência à opressão”. O art. 17 dessa Declaração dispunha que: “Sendo a propriedade um direito inviolável e sagrado, ninguém pode ser dela privado, senão quando a necessidade pública, legalmente constatada, o exija evidentemente, e sob condição de uma indenização justa e prévia”. Dessa leitura depreendese que a propriedade era revestida de caráter individualista e absoluto, porém não de todo ilimitado. Há de se salientar que o Estado Burguês oriundo da Revolução Francesa surge como um corolário de “um longo processo de lutas e transformações por que passou a Europa, com 30 a reforma, a revolução inglesa e a holandesa que fez finalmente da burguesia a senhora do poder civil da sociedade” (MARÉS, 2003, p. 18). Ainda segundo o autor, a organização do Estado, a partir dai, se fundou na garantia de direitos. A organização estatal deveria representar o cidadão que tivesse direitos, igualdade de tratamento e liberdade de assumir compromissos e obrigações. “A função do Estado, no momento de sua constituição, era garantir a propriedade que necessita da liberdade e igualdade para existir”. Esta filosofia pautada na proteção da propriedade foi natural, uma vez que a classe burguesa foi a que assumiu o poder, classe essa legítima representante dos donos de terras e bens. 1.2.2 Propriedade como direito absoluto. Na antiguidade clássica, a propriedade apresentou-se como um direito absoluto que atribuía a seu titular o poder de usar, gozar e abusar da coisa. Um direito exercido sem a mínima limitação – uma vez que se apresentava como um exclusivo, absoluto e perpétuo exercício sobre os bens (ARAÚJO, 1999). Com o advento do Código Napoleônico2 há a retomada do individualismo da propriedade, com a concepção de que a propriedade era fonte de riqueza e estabilidade, sem deixar margem para considerá-la como direito relativo. Nesse sentido, consagrou-se o direito individual da propriedade, dentre outros, os quais a burguesia tanto buscou, porém, a propriedade individualista francesa fez surgir inúmeras injustiças sociais, como por exemplo, não se permitia que as classes menos favorecidas tivessem acesso às terras. Para Pereira (2001, p. 79): 2 De acordo com Pereira (1994, p. 25), “O Código Napoleônico traduz tendência de seu tempo e sintetiza as idéias-forças do direito do século XIX. E como este foi o marco do individualismo jurídico, aquele foi denominado o Código da Propriedade. Em torno dela construiu-se a economia. Em função de sua extrema valoração, os princípios jurídicos se assentaram. Ocorreu certo desprezo pela propriedade da coisa móvel, que o legislador do Consulado tratou em plano secundário e, acreditando na vilis mobilium possessio, o jurista classificou, numa espécie de aristocracia bonitária, a coisa móvel como a mais importante, porque a propriedade imobiliária traduz mais que outra qualquer a idéia de assenhoramento, conservação e de equilíbrio econômico.” 31 [...] certo é que a propriedade cada vez mais perde o caráter excessivamente individualista que reinava absoluto. Cada vez mais se acentuará a sua função social, marcando a tendência crescente de subordinar o seu uso a parâmetros condizentes com o respeito aos direitos alheios e às limitações em benefício da coletividade. A tendência crescente de limitação da propriedade privada em cumprimento à função social que deve desempenhar aponta para uma flexibilização dos direito dos proprietários, tidos primeiramente como absolutos, nos primeiros regramentos legal-estatais, sofrendo paulatina transformação social ao longo dos tempos, desaguando em um direito fulcrado mais nos valores coletivos do que individuais. Em que pesem os diversos direitos atinentes aos proprietários em desfrutarem de seus bens, os direitos sociais voltados para o bem-estar de uma coletividade ganham cada vez mais força no direito contemporâneo. 1.2.3 A Propriedade Privada. Importante elucidar o conceito de Propriedade Privada e sua diferenciação da Propriedade Pública (ou bens públicos), missão nada fácil, porém de farta discussão na doutrina jurídica. O Código Civil Português de 1867, art. 2.167, definia a propriedade como a “faculdade, que o homem tem, de aplicar à conservação da sua existência, e ao melhoramento da sua condição, tudo quanto para esse fim legitimamente adquiriu, e de que, portanto, pode dispor livremente.” Essa visão de propriedade e proprietário se baseava na aceitação de que o homem poderia adquirir coisas e acumulá-las. Nas lições de Miranda (1954, p. 155-156): 32 Os dois conceitos, de bem particular e de bem público, não correspondem, exatamente, à precipuidade da satisfação dos interesses privados, ou públicos. Há caminhos abertos ao público que pertencem a particulares e deveres e obrigações de direito público que se integram no conteúdo do direito de propriedade e, pois, o limitam. O problema de se distinguirem os bens particulares e os bens públicos é, pois, de solução a posteriori. Cada sistema jurídico diz quais são os bens públicos. Tanto quanto o outro problema, inconfundível com esse, de se precisar dentro de quais limites fica o direito de propriedade, quais os deveres e obrigações que se lhe impõe. Nesse sentido, a Constituição Federal Brasileira estabelece como bens públicos os bens da União, no art. 20 e os bens dos estados federados, no art. 26. Porém, o Código Civil Brasileiro trás um conceito mais elucidativo: “Art. 98. São públicos os bens do domínio nacional pertencentes às pessoas jurídicas de direito público interno; todos os outros são particulares, seja qual for a pessoa a que pertencerem”. A diferenciação entre bens públicos e privados é obtida, essencialmente, por exclusão. Aquilo que não é público é privado. Para Diniz (2003, p. 64) os bens públicos são os que pertencem ao domínio nacional, ou seja, à União, aos Estados ou aos Municípios. Os bens particulares são os que tiverem como titular de seu domínio pessoa natural ou jurídica de direito privado. Para Meirelles, (1992, p. 426) o conceito de domínio público não é simples: A expressão domínio público ora significa o poder que o Estado exerce sobre os bens próprios e alheios, ora designa a condição desses bens. A mesma expressão pode ainda ser tomada como o conjunto de bens destinados ao uso público (direto ou indireto- geral ou especial- uti singuli ou uti universi), como pode designar o regime a que se subordina esse complexo de coisas afetadas de interesse público. Certo é que a propriedade privada está intimamente ligada ao sentimento de cidadão na maioria das sociedades contemporâneas, onde o homem busca na propriedade a acumulação de bens para si mesmo, de forma individual, atendendo aos interesses particulares, enquanto que o Estado se preocupa com bens que devem ser disponibilizados ao público de forma coletiva. 1.2.3.1 A garantia ao direito de propriedade privada A Constituição Federal Brasileira, em seu artigo 5°, caput, e incisos XXII e XXIII, ao tratar dos direitos e deveres individuais e coletivos, garante aos brasileiros e aos estrangeiros 33 residentes no país o direito à propriedade, também disciplinando que a propriedade deverá cumprir com a sua função social. “Art. 5º - [...] XXII – É garantido o direito de propriedade; [...] XXIII – A propriedade atenderá à sua função social”. Essa garantia do direito de propriedade é vinculada à responsabilidade de destinar a ela uma função social. O professor Marés (2003, p. 21) explica que já São Tomas de Aquino entendia o proprietário como “um procurador da comunidade para a gestão de bens destinados a servir a todos, embora pertençam a um só, logo os bens supérfluos são devidos por direito natural ao sustento de quem necessita dos pobres”. O direito absoluto de proprietário, que poderia fazer o que bem entendesse com sua propriedade, desde há muito tempo foi relativizado. Na verdade, os grandes pensadores e teóricos do direito de propriedade (século XVI até o XIX) foram Lutero, Calvino, Bodin, Hobbes, Maquiavel, Locke, Rouseau, Montesquieu, Morus, Pufendorf, Francisco de Vitória, Bartolomé de Las Casas. Eram europeus de pensamento resultante do caldo cultural e social que pairava sobre a Europa daquela época, com pensamento essencialmente religioso3. Santo Tomas de Aquino, em sua obra Suma Teológica, reconhecia o direito de propriedade individual, porém entendia que os bens supérfluos que alguns possuem devem ser destinados ao sustento dos pobres, segundo o direito natural. Para ele, o proprietário tinha o direito de usar e dispor, porém dispor era apenas o direito que tinha esse proprietário de escolher a quem destinar os bens supérfluos que este detinha. Para Santo Tomás de Aquino era inadmissível a ideia de vender algo. O excedente de alimento, por exemplo, que alguém detinha era devido aos necessitados. A liberdade de troca ou venda de bens é um conceito que ainda seria defendido posteriormente por Locke (Marés, 2003). Não se admitia a essa época a ideia de acumulação de riqueza. Com a Constituição Portuguesa de 1822, que reconhecia a propriedade como um direito sagrado e inviolável e a bênção da Igreja para a propriedade privada, há o reconhecimento da propriedade como um direito natural, abrindo caminho para a 3 Marés (2003, p. 19-20) critica que da lista acima, praticamente todos eram bispos, padres, pastores ou, pelo menos, sofriam influência da Igreja, por isso se pode dizer que o pensamento cristão informou todos os teóricos que viriam a construir os alicerces do Estado e do Direito contemporâneo, sejam católicos ou protestantes. Para Marés, a defesa da propriedade seria uma reinterpretação do Evangelho, das Sagradas Escrituras e das palavras dos santos. Para ele, a prova da veracidade dos pensamentos filosóficos ali estabelecidos seria encontrada nos textos bíblicos. 34 constitucionalização do Estado burguês francês e os Estados Nacionais defensores do direito de propriedade que dali se originaram. 1.2.3.2 Locke, o teórico da propriedade moderna Locke viveu em uma Europa sob forte transformação (1632-1704) e foi o organizador da defesa teórica da propriedade burguesa absoluta, partindo da ideia de uma lei natural fundamentada não mais no divino, mas na razão (BARBOSA, 2005). Antes de Locke, a civilização cristã entendia a propriedade como uma utilidade. Com Locke e a partir dele, reinou a ideia de que a origem e o fundamento da propriedade é4 o trabalho humano, isto é, “o poder sobre as coisas se exerce na medida em que se agrega a elas algo de si, o trabalho” (MARÉS, 2003, p. 23). A argumentação de Locke era de que cada um é proprietário de seu próprio corpo e o trabalho é uma extensão dele. Para ele, porém, a ninguém é facultado adquirir mais do que possa utilizar, sendo que se alguém detiver algo que não possa utilizar e esse algo se deteriorar, feriria o direito natural, pois a natureza disponibilizou tal bem para toda a humanidade. Locke tinha a visão de propriedade muito semelhante a Santo Tomás de Aquino, pois entendia que ninguém deveria adquirir mais do que poderia utilizar. Porém, inseriu um novo elemento nessa relação de proprietário-propriedade: o conceito de corruptível, deteriorável. Para ele o homem teria direito à acumulação de bens, desde que esses não sofressem a deterioração. Se os bens fossem duráveis, não haveria obstáculo à acumulação desses bens. Ainda, para Locke os bens corruptíveis podem ser trocados por bens duráveis, possibilitando, assim, a acumulação de riquezas desses bens duráveis, como o ouro, prata, dinheiro. “mediante tácito e voluntário consentimento, han descubierto el modo em que um hombre puede posser más tierra de la que es capaz de usar, recibiendo oro o plata a cambio de la tierra sobrante; oro y plata pueden ser acumulados sin causar daño a nadie (LOCKE, 1994, p. 4 “Todo lo que uno pueda usar para ventaja de su vida, antes de que se eche a perder, será lo que le está permitido apropiarse mediante su trabajo. Mas todo aquello que exceda lo utilizable, será de otro” (LOCKE, 1994, p. 67). 35 74)”. Essa lógica seria fundamental para a justificativa da acumulação de riquezas do capitalismo, pois reduz os bens comuns somente às coisas corruptíveis, como os alimentos. Em franca crítica à evolução do pensamento de Locke no capitalismo, Marés (2003, p. 25) comenta que “O capitalismo foi mais longe e extirpou do conceito de propriedade qualquer conceito ético que pudesse subsistir em Locke, até mesmo o alimento e os remédios deixaram de ser bem comum para o capitalismo”. Ainda, a teoria de Locke pregava também que era do trabalho que vinha a justificativa para a acumulação de bens, mas o homem poderia pagar pelo trabalho alheio, o que também justificaria a acumulação de bens advinda dessa relação, pois em suma seria um contrato de compra e venda, e o trabalho produz propriedade. Ainda mais contundente, Proudhon (1988, p. 50-51) afirma que “a propriedade é um roubo”. O autor, em sua obra “O que é a Propriedade?”, escrita na França em 1840, cuja primeira edição brasileira foi publicada em novembro de 1988, evoca Cícero para explicar que a terra deve ser comparada a um grande teatro, onde as pessoas ocupam seus lugares uns ao lado dos outros, mas nenhum deles é proprietário desses lugares. Segundo Proudhon, essa comparação anula o direito de propriedade. Para ele “o que pertence a cada um não é aquilo que cada um pode possuir, mas o que cada um tem o direito de possuir”. A terra passa também a ser tratada pelo capitalismo como um bem jurídico passível de apropriação. Na Inglaterra, os “enclosure” transformaram as propriedades comuns de campos e pastagens a proprietários únicos, individuais pelo processo de cercamento5. Passar-se-á à análise da terra como propriedade, buscando um entendimento ligado ao tema central deste trabalho, qual seja, sua função social (que será analisada mais adiante). 5 Enclosure, segundo The Concise Oxford Dictionary, 5ª ed., 1966, significa o cercamento de terras comunais e sua transformação em propriedade privada. Antes do enclosure as terras aráveis estavam divididas em numerosas faixas descontínuas. A propriedade das parcelas de terras estava sujeita a inúmeras restrições, como por exemplo, o fato de que em algumas épocas do ano as parcelas eram submetidas ao uso comum da aldeia. O movimento em direção ao cercamento das terras começou na Inglaterra no século XII e completou-se no século XIX. Um processo semelhante ocorreu no restante da Europa Ocidental, intensificado apenas na segunda metade do século XVIII (WOOD, p. 11). 36 1.2.3.3 Portugal e as leis de terra Enquanto a Europa discutia justificativas teóricas e morais para o direito de propriedade, o capitalismo e a expansão da propriedade ocorriam na prática. Havia abundância de terras e faltavam trabalhadores devido à peste negra, êxodo rural, expulsão dos mouros da Península Ibérica, fazendo com que houvesse um encarecimento da mão de obra. Devido a crescente demanda por produção de bens para o comércio, houve maior interesse pelo trabalho na terra, mas para si mesmo, pois o homem passou a ser proprietário de terra para sua lide. Para Rau (1946, p. 28) “Para levar o homem a romper o rejo, empunhar o machado para lutar contra a floresta e a pegar no arado para arrotear a terra brava, só a concessão de terrenos e de liberdade pessoal seriam estímulos suficientemente fortes para o conseguir”. O nascimento do direito de propriedade ou do direito de usar e dispor da terra, em Portugal, está ligado à liberdade do trabalho. O trabalho livre e a livre propriedade da terra são pressupostos do ulterior desenvolvimento da modernidade e do próprio mercantilismo. As leis portuguesas dessa época (século XIII) se preocupam com o valor da moeda, do salário, da duração do dia de trabalho e a perseguição aos vadios (MARÉS, 2003). Mesmo com leis que perseguiam a vadiagem, muitos braços aptos ao trabalho se recusavam a fazê-lo ou exigiam salários cada vez mais altos. Nesse momento surge a Lei de Sesmarias 6, estabelecendo como condição de propriedade da terra o seu cultivo. Em 1514 as sesmarias foram reestruturadas pelas Ordenações Manuelinas e repetidas em 1603 pelas Ordenações Filipinas. Chegou, assim, ao Brasil e foram implantadas como solução ao problema da necessidade de povoamento das terras. Nesse sistema as capitanias eram divididas em partes menores, sendo distribuídas com a função de serem exploradas com agricultura. Sobre o assunto, LIMA LOPES (2002, p. 354) explica que, “entre 1548 e 1822, quando foi proibida a concessão de sesmarias, o Brasil já se tornara latifundiário, e os colonizadores legitimados pela Coroa tiveram cada vez mais terras aos seus cuidados”. Os 6 Marés (2003, p. 30) esclarece o contexto do surgimento dessa lei: “Verificando que faltavam braços para lavrar a terra, havendo concentração de pessoas ociosas e famintas nas cidades, o Rei de Portugal, D. Fernando em 1375, obrigou os proprietários de terras a produzir sob pena de expropriação e aos braços livres a trabalhar para os proprietários, estabelecendo salários máximos e os vinculando a contratos que tivessem a duração de pelo menos um ano. Com isso criava o Instituto das Sesmarias, com o qual obrigava a todos transformarem suas terras em lavradio, sob pena de não o fazendo, as perderem a quem quisesse trabalhar, além de penas severas que poderiam variar de expropriação, açoites ou desterro. 37 senhores sesmeiros eram representantes da própria Coroa, usando do artifício de arrendar glebas sob seu poder a lavradores menores, deles recolhendo rendas, proventos e tributos, ou expulsando-os, quando de seu interesse. Esse instituto foi cada vez menos utilizado, especialmente após o século XVI, com o avanço da propriedade capitalista e mercantilista, até sua total inviabilidade no final do século XIX com o surgimento do Estado nacional português. Conquanto sua extinção, o sistema de sesmarias adotado no Brasil fez nascer um direito de propriedade fortemente baseado na concentração de terras e latifúndios, muitos especulativos. 1.3 Os Bens Públicos Desde tempos imemoriais houve a necessidade de um ente que pudesse administrar os bens que não fossem particulares. Essa categoria de bens, ao qual se tem nominado bens públicos, foi entregue ao Estado para que os administre, estabelecendo regulamentação específica para seu uso. Nas palavras de BASTOS (1994, p. 23) essa regulação advém “[...] de um regime jurídico adequado que, além de especificar sua composição e utilização, cria regras de proteção contra atos ilegítimos, ou danosos, quer provindos de particular, quer do próprio Estado”. Atualmente, todos os países conhecem um tratamento bastante minucioso dispensado à regulamentação e proteção desses bens, por meio de normas legais que garantam o atingimento dos objetivos e finalidades para os quais estão voltados e que deram origem ao seu surgimento. Evidentemente os bens públicos recebem tratamento jurídico diferente dos bens particulares, uma vez que se trata de um conjunto de bens que devem ser destinados a funções que atendam à coletividade, que tragam benefícios voltados à sociedade como um todo, além de serem altamente estratégicos para que o Estado desenvolva suas políticas de desenvolvimento. Ainda na Roma Antiga, os bens públicos (res communes, res universitatis e res publicae) tinham tratamento legislativo especial. As res publicae eram insuscetíveis de apropriação privada, pertenciam a todos, ao povo. Na Idade Média os bens públicos eram 38 tidos como propriedade do rei, mas com o passar dos tempos, atribuiu-se ao povo essa propriedade, sendo esses bens públicos tidos, dai para frente, como bens do povo, deixandose para o governante a função de administração sobre esses bens, algo bem diferente da propriedade privada do rei (DI PIETRO, 1991). 1.3.1 Os bens públicos e as terras públicas O direito brasileiro adota, para os bens públicos, uma classificação tripartite: bens de uso comum do povo, bens de uso especial e bens dominicais (DI PIETRO, 2006, p. 4). Para o ilustre doutrinador BASTOS (1994. p. 306), bem público é "o conjunto de coisas corpóreas e incorpóreas, móveis, imóveis e semoventes de que o Estado se vale para poder atingir as suas finalidades." Também são tidos como os bens necessários à Administração Pública para o atingimento dos fins coletivos de propiciar o bem estar e a satisfação dos habitantes de seu território (PEREIRA, 1994). Nesse diapasão, os bens públicos são todas as coisas de que o Estado pode lançar mão para desenvolver suas políticas públicas, supostamente destinadas ao bem-estar do povo. Esses bens também são aqueles disponíveis para que o Estado execute suas ações de soberania, conforme Meirelles (1992), para quem o Estado exerce poderes de Soberania sobre todas as coisas que se encontram em seu território. Alguns bens pertencem ao próprio Estado; outros, embora pertencentes a particulares, ficam sujeitos às limitações administrativas impostas pelo Estado; outros não pertencem a ninguém, por serem inapropriáveis. O Código Civil Brasileiro estabelece, em seu artigo 98 que “são públicos os bens do domínio nacional pertencentes às pessoas jurídicas de direito público interno; todos os outros são particulares, seja qual for a pessoa a que pertencerem”. Bens públicos são, portanto, os que pertencem ao domínio nacional, ou seja, à União, aos Estados ou aos Municípios. No artigo 99, do mesmo Código Civil, os bens públicos estão assim elencados: I - os de uso comum do povo, tais como rios, mares estradas, ruas e praças; II - os de uso especial, tais como edifícios ou terrenos destinados a serviço ou estabelecimento da administração federal, estadual, territorial ou municipal, inclusive os de suas autarquias; 39 III - Os dominicais, que constituem o patrimônio das pessoas jurídicas de direito público, como objeto de direito pessoal, ou real, de cada uma dessas entidades. Parágrafo único - Não dispondo a lei em contrario, consideram-se dominicais os bens pertencentes ás pessoas jurídicas de direito público a que se tenha dado estrutura de direito privado. Os bens públicos de uso comum do povo são os bens, embora pertencentes à pessoa jurídica de direito público interno, podem ser utilizados, sem restrição e gratuita ou onerosamente, por todos, sem necessidade de qualquer permissão especial desde que cumpridas as condições impostas por regulamentos administrativos. Como exemplo, praças, jardins, ruas, estradas, mares, praias (DINIZ, 2003, p. 69). Os bens públicos de uso especial são os utilizados pelo próprio Poder Público, constituindo-se por imóveis aplicados ao serviço ou estabelecimento federal, estadual ou municipal, como prédios onde funcionam tribunais, escolas públicas, secretarias, ministérios, quartéis etc. São os que têm destinação especial. Os bens dominicais são os que compõem o patrimônio da União (Constituição Federal, arts. 20, I a XI, e 176), dos Estados (Constituição Federal, art. 26, I a IV) ou dos Municípios (art. 41 do Código Civil), como objeto do direito pessoal ou real dessas pessoas de direito público interno. Abrangem bens móveis ou imóveis, como: títulos de dívida pública; estradas de ferro, telégrafos, oficinas e fazendas do Estado; ilhas formadas em mares territoriais ou rios navegáveis; terras devolutas (CF, art. 225, § 5º, 188 e art. 20) (DINIZ, 2003, p. 70). Dentre esses bens pertencentes ao Estado, situam-se as terras públicas. Estas estão previstas na Constituição Federal (CF) da seguinte forma: Art. 20. São bens da União: [...] II - as terras devolutas indispensáveis à defesa das fronteiras, das fortificações e construções militares, das vias federais de comunicação e à preservação ambiental, definidas em lei; [...] XI - as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios”. Essa disposição, que se refere apenas aos bens da União, ainda assim àquelas terras de interesse estratégico, ai incluindo as terras devolutas. Também inclui a Constituição Federal as terras indígenas entre os bens da União. Sobre este assunto, ver subitem especialmente dedicado a seguir. 40 1.3.2 Terras Públicas Quando da chegada da esquadra de Pedro Álvares Cabral, em plenos trópicos, por evidente não se falava em propriedade, uma vez que as terras eram ocupadas por indígenas, povos não letrados, sem preocupação com titulação, documentação e mesmo sem concepção da palavra propriedade. Juridicamente, todas as terras do Brasil passam imediatamente ao domínio da Coroa Portuguesa, sendo enquadradas, então, como terras públicas portuguesas e sendo reguladas pelo ordenamento jurídico português. Nesse momento histórico do Brasil não havia, por evidente, a noção de propriedade por parte dos índios aqui encontrados. Por certo, os índios tinham a noção de espaço e de posse sobre determinada parcela de terras, sempre em contraponto àquelas possuídas pelas outras tribos. Sobre o assunto, o Ministro Aliomar Baleeiro (STF - RESP 784.488, 1973) assim se manifestou: É histórico que, no Brasil, de início, todas as terras foram públicas, em virtude da posse que Pedro Álvares Cabral tomou da descoberta em nome e para o domínio do rei de Portugal. A conquista dilatou para o poente a posse histórica inicial até os confins do Oeste. De começo, o território colonial foi uma vasta fazenda da Coroa Portuguesa – parte da “minha real Fazenda”, - como escreviam em lei e alvarás os monarcas lusos, referindo-se à universalidade dos bens públicos. Evidentemente, não foram feitas documentações dessas terras nesse primeiro momento. O fato é que Portugal adquire mais de oito milhões de quilômetros quadrados, assim que resolvido o problema do Tratado de Tordesilhas, avançando seus domínios até a parte oeste do hoje território brasileiro. Assim, todas as terras do Brasil, nesse primeiro momento, eram terras públicas, pertencentes à Coroa. Públicas, portanto, essas áreas tinham que ser exploradas para que gerassem riquezas para Portugal, um país de dimensões minúsculas, situado a grande distância, tendo um oceano a atravessar, em pleno século XVI. Houve imensas dificuldades em retirar riquezas destas paragens tropicais, situação agravada ainda mais quando se deparou com a dificuldade de manter a posse recém-conquistada. Não era possível para o Estado português continuar com a exclusividade do domínio dessas terras, sendo imperativo que se fixassem pessoas morando na terra para que se pudessem garantir a posse do Brasil para Portugal. O risco iminente era de perder parte ou mesmo todo o território para os invasores. Nesse contexto, a Coroa Portuguesa decide distribuir terras para que passem a ser exploradas por particulares. Foi estabelecido o sistema de capitanias hereditárias, cujos 41 documentos mais antigos datam de 1534. A capitania tinha caráter militar e econômico voltado para a defesa externa e para o incremento de atividades capazes de estimular o comércio português e assentava-se sobre as cartas de doações e foral. Posteriormente, Portugal adota o sistema de sesmarias, buscando-se a distribuição, povoamento e exploração econômica daquelas terras públicas, passando a ser, com as sesmarias7, privatizadas. Fica-se com o ordenamento português até a independência do Brasil em 1822. Desse ano até a publicação da Lei 601, de 1850, conhecida como Lei da Terra, houve um hiato na regulação agrária. Com a Lei da Terra, estabelece-se uma efetiva legislação que regula a forma com que a terra deve ser distribuída, passando a regular privatização (através de compra por particulares) das terras públicas. 1.3.3 As terras devolutas O termo “terras devolutas” se originou no Brasil imperial, quando da existência das sesmarias que condicionavam o direito a permanecerem com as terras apenas àqueles que satifizessem as condicionantes estabelecidas pelo orenamento jurídico da época. Com a Lei de Terras, Lei nº 601 de 18 de Setembro de 1850, as terras que não cumprissem tais exigências deveriam ser “devolvidas” à Coroa. O preâmbulo dessa Lei assim dispunha: “Dispõe sobre as terras devolutas no Império, e acerca das que são possuídas por título de sesmaria sem preenchimento das condições legais, bem como por simples título de posse mansa e pacifica”. O conceito de terras devolutas é residual, ou seja, as terras que não estão incorporadas ao domínio privado nem têm uma destinação a qualquer uso público são consideradas terras devolutas (DI PIETRO, 2009, p. 714). Essas terras, por exclusão, não são as terras sob 7 Na obra de Marés “A Função Social da Terra” (2003, p. 55), o autor, ao falar sobre o fato de Portugal ter inserido a ideia de sesmarias, uma forma de distribuição de terras que acabou por proporcionar ao Brasil sua integridade territorial, apesar das profundas diferenças regionais, assim explica: “A aplicação da ideia de que toda aterra haveria de ser privada, excepcionada as de uso público, na prática, foi fatal para os índios que não a ocupavam de forma privada, nem foi admitido que seu uso era público. No desvio da teria, os índios ficaram sem terra e sem modernidade”. 42 domínio particular, nem as terras públicas que tenham alguma destinação feita pelo Poder Público. Segundo a Constituição Federal, art. 225, § 5º - “São indisponíveis as terras devolutas ou arrecadadas pelos Estados, por ações discriminatórias, necessárias à proteção dos ecossistemas naturais”. Ainda, no art. 188 – “A destinação de terras públicas e devolutas será compatibilizada com a política agrícola e com o plano nacional de reforma agrária”. Quanto às terras devolutas pertencentes aos estados-membros da federação, a Constituição prevê, no art. 26 – “Incluem-se entre os bens dos Estados: IV - as terras devolutas não compreendidas entre as da União”. O Supremo Tribunal Federal (STF), em Súmula 477 estabeleceu: “As concessões de terras devolutas situadas na faixa de fronteira, feitas pelos estados, autorizam, apenas, o uso, permanecendo o domínio com a União, ainda que se mantenha inerte ou tolerante, em relação aos possuidores”. Também, a Súmula nº 650 do STF determina que: “Os incisos I e XI do art. 20 da CF não alcançam terras de aldeamentos extintos, ainda que ocupadas por indígenas em passado remoto”. Esclarecendo, o Art. 20 da Constituição Federal (CF) São Bens da União: I - os que atualmente lhe pertencem e os que lhe vierem a ser atribuídos; XI - as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios. Cabe aqui salientar que o Estado deve ter, por lógica, preocupação em destinar as terras devolutas para que desempenhem uma função que seja proveitosa e benéfica para a sociedade. Em suma, estes bens públicos devem, assim como as propriedades privadas, desempenhar alguma função social. Evidentemente, grandes extensões de terras públicas devolutas (sem destinação específica alguma) não estão desempenhando função alguma, tampouco alguma função social. 1.3.4 Terras tradicionalmente ocupadas pelos índios As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios são terras públicas, conforme art. 20, XI da Constituição Federal. O artigo 231, parágrafo primeiro, deixa claro o sentido dessa ocupação: 43 Art. 231, § 1º - São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições. § 2º As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se a sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes. Não se podem considerar as terras devolutas da mesma espécie que as tradicionalmente ocupadas pelos índios. A ocupação indígena prevista nesses artigos constitucionais não se limita aos agrupamentos das habitações em que dormem, mas abrange toda a área onde os índios obtêm o indispensável para sua sobrevivência digna, colhendo os frutos da natureza, plantando, criando gado ou pescando, dependendo das condições de cada região (DALLARI, 2008). Ainda segundo o autor, “é na área circundante às habitações que o índio identifica, colhe e utiliza plantas medicinais, bem como o material necessário à edificação das casas e à fabricação de roupas, utensílios, enfeites e objetos destinados aos seus rituais, como também suas armas”. Além disso, esse espaço circundante é onde eles enterram os seus mortos, pelos quais têm grande respeito e veneração. Para melhor entendimento deste ponto, buscar-se-á traçar uma linha do tempo, analisando a evolução dos direitos dos índios. 1.3.4.1 Indigenato A garantia legal ao direito do índio a sua terra é fundado na existência de uma relação jurídica entre o índio e o seu território anterior. Esse vínculo é superior a qualquer outra relação com a terra que possa advir. Desse entendimento surge o indigenato que, nas palavras de Yamada (2006, p. 4) "é a fonte primária e congênita da posse territorial dos índios. É o direito dos índios sobre as terras que ocupam ou ocuparam, independentemente de título ou reconhecimento formal". No mesmo diapasão, Barbosa (2007) entende que a versão brasileira desse instituto foi formulada por João Mendes Junior, no início do século XX. Entende ainda que “[...] absolutamente distinto do direito de quaisquer outros cidadãos, não integrando o 44 sistema relativo aos direitos de posse e de propriedade, previstos pelo Código Civil, mas se constitui em direito autônomo, especial e independente do sistema geral” (p. 5). Para a desembargadora federal Selene Maria de Almeida (BRASIL, 2004): [...] Com efeito, não eram os índios posseiros e sim os donos, pois, como firmado pelo mencionado autor, ‘tinham o domínio do título legítimo - indigenato, que não é o direito adquirido, mas congênito, primeiro: logo, as suas posses não estavam sujeitas à legitimação. O indigenato é a fonte primária e congênita da posse territorial; é um direito congênito, enquanto a ocupação é título adquirido. O indigenato é legítimo por si, não é um fato dependente de legitimação, ao passo que a ocupação, ao fato posterior, dependem de requisitos que a legitimem. Na mesma esteira, José Afonso da Silva, em parecer feito a pedido do Conselho Indígena de Roraima (CIR), em 2008, afirmou que, ainda no período colonial, com o Alvará de 1o de abril de 1680, que se criou o primeiro texto legal que fundamentou o direito dos índios especialmente sobre as terras por eles tradicionalmente ocupadas. Para o jurisconsulto, esse Alvará reconheceu o direito de posse permanente das terras ocupadas pelos índios, o indigenato (SILVA, 2008). 1.3.5 Multiculturalismo O Estado Moderno, tal como se apresenta hoje, nasce com o esfacelamento do sistema feudal, em meados do século XVI. Por meio do Tratado de Westfalia8 e baseado na doutrina cristã, surge um Estado composto por território, povo e governo. Para Silveira (2010, p. 24), esse Estado surge “se comparando à figura de um grande homem, apresentado na forma de um corpo físico primorosamente delimitado (território), coeso pelo princípio ativo da vida (povo) e comandado por um cérebro onipresente (governo)”. Ainda segundo o autor, esse Estado surge com fundamento na doutrina cristã, mas com a finalidade de proteção e defesa da totalidade dos homens naturais, circunscritos a um determinado espaço territorial e a partir dos primeiros sopros da modernidade, mas acabou por se lançar na empreitada messiânica da universalidade, onde todos seriam iguais. Esse Estado moderno buscou unificar toda a 8 Celebrada em 1648, a paz de Westfália encerrou a Guerra dos Trinta anos, última das guerras de religião a castigar o continente europeu. Nela se afirmou a igualdade jurídica entre os Estados, consolidando-se a aceitação do princípio da soberania estatal, razão pela qual podemos afirmar que os tratados que a celebraram marcam os primórdios da atual sociedade internacional. (MATIAS, 2005, p. 35-36). 45 humanidade, impondo uma mesma religião, educação e cultura a todos os povos que se encontravam em seu território. Esse Estado moderno passa do plano espiritual do catolicismo – que pregava a universalização da religião, onde ninguém poderia ser diferente, sob pena de ser excluído das garantias oferecidas por aquele estado de bem-estar social, para um plano físico-legal. Essa universalidade, assim, deixa de ser um plano apenas religioso, passando a ser o plano do próprio Estado, “anseio mais tarde revitalizado com o avanço da burguesia sobre o poder político a partir do advento da Revolução Francesa” (SILVEIRA, 2010, p. 25). Na obra do professor e meu orientador nesta dissertação, Edson Damas da Silveira9, em subitem intitulado “Estado moderno, monismo jurídico, constituição e minorias”, o autor analisa a transformação conduzida pelo Estado Moderno no sentido de unificação de todos os povos envolvidos por um mesmo território, em uma proposta hegemônica de vida. Afirma ainda (p. 28) que essa unificação, quando não feita “sub-repticiamente em razão da sobreposição da cultura europeia sobre outras”, ocorre com o emprego da força legitimada pelos mecanismos de direito concebidos e/ou reconhecidos pelo próprio Estado10. Essa legitimação se dá através da Constituição desse Estado, que elenca os poderes conferidos por ela mesma, aos agentes ali elencados, dando-lhes suporte legal para o emprego da coerção e coação interna, objetivando garantir a dita proposta hegemônica. Para Weber (1946, p. 78), cabe ao Estado “[...] o monopólio do uso legítimo da força física dentro de um dado território”. Por outro eixo, esse Estado moderno se estabelece e se estrutura apresentando forte tez individualista, fundando garantias voltadas para o indivíduo, como o direito de propriedade, afastando os direitos coletivos. Para Marés (2006, p. 85), “o individualismo é festejado no ocidente como nova fronteira da civilização, novo marco da liberdade, portanto nada mais razoável do que extinguir toda a fenomenologia coletiva”. Nesse contexto histórico, surge o constitucionalismo, determinando as letras escritas nas Constituições como a fonte do poder 9 A obra aqui mencionada é o livro, fruto de sua tese de doutoramento: Meio Ambiente, Terras Indígenas e Defesa Nacional. Nesse livro o ilustre professor traça uma ponderação dos Direitos Fundamentais em tensão no caso do Parque Nacional do Monte Roraima, sobreposto na Terra Indígena Raposa Serra do Sol e dentro da Faixa de Fronteira. 10 Silveira (2010, p. 28) apresenta a ideia de Max Weber, segundo o qual, o monopólio do constrangimento físico legítimo por parte do estado, onde a existência de um quadro coercitivo é determinante para a existência do próprio estado. Os conceitos de direito e burocracia para Weber, par de um monopólio de racionalidade, formam a base oficial de todo o pensamento jurídico moderno. 46 soberano do Estado. Ainda segundo o autor (p. 86), o constitucionalismo é “uma técnica específica de controle do exercício do poder com fins garantísticos”. Essa é a vocação essencial do constitucionalismo que, baseado em uma Constituição rígida, pode impor limites ao exercício do poder. (ARBOS e SOUZA FILHO, 2010, p. 58) A Constituição nasce do poder constituinte, poder esse que supostamente emana do próprio povo, estabelecendo a estruturação dos poderes do Estado, os limites desse poder. Em síntese, como diz Barboza (2005, p. 43): O constitucionalismo tem como pedra angular, os direitos fundamentais, que, por sua vez, representam os valores substantivos escolhidos pela sociedade no momento constituinte – de máxima manifestação da soberania popular – que garantem o funcionamento da democracia, isto é, quando os direitos fundamentais impõem limites materiais aos atos de governo, estão na verdade a proteger o povo como um todo e não apenas maiorias eventuais. E quem está incumbido de proteger estes valores é o Poder Judiciário, conforme determinação do próprio Poder Constituinte. Assim, o próprio Estado se constitui formalmente e se limita aos ditames de sua própria Constituição. No caso do Brasil, a Constituição Federal de 1988, que é a atual em vigor. Os Estados-Nacionais, nascidos na América Latina com as várias nações se tornando independentes, sob a luz da Revolução Francesa, seguem, assim, os ditames do EstadoBurguês e seu Direito, que teriam que ser unos e geradores de sua própria fonte. Para Scorza (1973), na América Latina, o século XIX foi marcado pela criação de Estados nacionais, alguns majoritariamente indígenas, mas construídos à imagem e semelhança dos antigos colonizadores: “Estado único e Direito único, na boa proposta de acabarem privilégios e gerar sociedades de iguais, mesmo que para isso tivesse que reprimir de forma violenta e sutil as diferenças culturais, étnicas, raciais, de gênero, estado ou condição”. Essa leitura remete ao Estado unificado, que não contempla diversidade cultural, ideológica ou outras matizes diferenciadoras, ainda mais em regiões do globo terrestre fortemente povoadas por indígenas, com diversos povos, diversas etnias, diversas formas de ver o mundo. Ainda na mesma tônica, Marés explica que a ideia de que todos os indivíduos deveriam ser convertidos em cidadãos, ou que pelo menos todos teriam esse direito, traduzia-se na assimilação, absorção ou integração dos povos culturalmente diferenciados. “Essa integração, que do ponto de vista dos dominantes era o oferecimento de ‘conquista do processo civilizatório’, sempre foi vista pelos dominados como política de submissão dos vencidos” (2006, p 63). 47 Cabe salientar que há duas visões sobre o apoderamento europeu acerca do território americano. Por um lado, para os europeus invasores, a Europa trouxe a civilização para os trópicos. Já para os indígenas americanos, o que houve foi uma invasão bárbara, uma imposição de valores alienígenas a suas culturas e, finalmente, a dominação. Ainda quanto às mazelas igualitárias do Estado-burguês, Marés critica o caráter uno desse Estado. Para ele, os colonialistas teriam roubado o ouro, a madeira, a vida dos indígenas, sob a alegação da purificação da alma; os Estados burgueses “exigiram sua alma, não para entregar a um deus, mas para igualá-las a de todos os pobres e, então, despojados de vontade, apropriar-se de seus bens” (MARÉS, 2006, p. 64). Em artigo publicado em 2001, Marés explica que: O Direito contemporâneo, além de individualista, é dicotômico: às pessoas indivíduos titulares de direitos - corresponde uma coisa - bem jurídico protegido. A legitimidade desta relação se dá por meio de um contrato - acordo entre duas pessoas. É evidente que este esquema jurídico não poderia servir aos povos indígenas da América Latina porque, mesmo que considerasse cada povo uma individualidade de direito, os bens protegidos (os bens que os povos precisam proteger) e sua legitimidade não tem nenhuma relação com a disponibilidade individual e com origem contratual. É por isso que os países latino-americanos sempre buscaram separar o indivíduo indígena de seu povo, assimilando-o à "sociedade nacional" de forma tão profunda que ele deixaria de ser povo diferenciado. O sistema pensou que a assimilação seria possível por meio do trabalho, mas nunca pôde entender que a ideia do trabalho gerador da propriedade não tem relação com as culturas indígenas (grifo nosso). Esse entendimento de que o indivíduo nacional, pertencente ao todo e ao mesmo tempo um indivíduo único, choca com a concepção e cosmovisão indígena de grupo. Se, por um lado o indivíduo é o grande ator a ser protegido pelo Estado contemporâneo burguês, por outro lado o índio fica excluído dessa classificação enquanto comunidade, pois o sistema estatal se concentra nos direitos individuais. Esse sistema entende seu papel de garantidor de direitos destinados a cada um em especial. Busca-se, então, a assimilação dos índios pela sociedade contemporânea, inserindo o novo cidadão ao mundo unitário do Estado. O trabalho deveria ser o fator catalisador e gerador da propriedade, pois o homem tem na propriedade a extensão e consequência de sua energia empregada no trabalho, sendo assim, merecedor da situação de proprietário de coisas, incluindo-se ai, a terra. 48 2 O direito dos povos indígenas Nesta parte da presente pesquisa, metodologicamente optou-se pela análise históricojurídica para estudar a evolução dos direitos dos povos indígenas, tendo a lei como fonte primária dessa análise, em uma investigação tanto bibliográfica como documental. Como fonte secundária, buscou-se analisar os doutrinadores juristas e os historiadores mais relevantes, bem como se traçou uma linha temporal-evolutiva desses direitos. Em sua tese de doutorado (O Renascer dos Povos para o Direito), Carlos Frederico Marés de Souza Filho (2006, p. 22), já na introdução, em uma seção intitulada “Aprendendo com os Macuxi”, explica que acompanhava a reunião anual dos tuxauas11, em 1988, onde se discutia a demarcação da terra indígena Raposa Terra do Sol. Um dos tuxauas se levantou e lhe pediu que explicasse o significado dos termos Constituição e Constituinte e por que ai se discutia a questão indígena. O autor explicou o processo constituinte que, àquele momento, estava em marcha no Congresso Nacional, que “a Constituição garantia direitos e limitava o poder”. Ao terminar sua explicação, um dos tuxauas levantou-se e disse: Essa tal Constituição é coisa boa, está certo o que os brancos estão fazendo. Nós também temos que fazer uma Constituição para nós, para deixar escrito e sabido quem é que pode entrar em nossas terras e quem tem que ficar fora, quem é que diz onde podemos construir nossas casas e fazer nossas roças e quando são nossas festas. Tempos depois, diz o autor, conseguiu compreender as palavras do tuxaua: Só muitos dias depois compreendi as palavras do tuxaua. Claro, a Constituição que estávamos fazendo e que tanto trabalho nos estava dando incluir os direitos indígenas e ainda que pudesse sair, como de fato saiu, a melhor Constituição acerca dos povos indígenas de tantas quanto já regeram o Brasil, não passava de uma coisa de branco, de uma forma de expressão de um direito que continuava sendo de dominador, que continuava tentando incluir, teórica e formalmente, quem nunca fora incluído e, talvez, nem quisesse sê-lo. [...] A sabedoria do tuxaua macuxi era capaz de ver que o Estado e o Direito dos brancos que se pretende universal, geral e único, é parcial, especial e múltiplo. E o disse reclamando uma identidade jurídica que reflete uma prática escondida, escamoteada e não raras vezes proibida pelo 11 Marés explica em nota de rodapé de seu livro que “Macuxi é um dos povos de maior população no Brasil, habitam o norte de Roraima, fronteira com a Venezuela e Guiana, apesar de estar em contato com a sociedade branca há mais de 100 anos e ser de maioria católica, mantém suas tradições e formas de organização com lideranças em pequenas comunidades pouco mais que familiares. Anualmente reúnem-se para uma Assembleia Geral de tuchauas (sic) na qual decidem a agenda do ano e a lutas (sic) em defesa do povo”. 49 nosso sistema jurídico. O tuxaua entendeu em poucos minutos o que nossa cultura constitucional não logrou compreender em 200 anos de puro estudo e reflexão: a uma sociedade que não é una, não pode corresponder um único Direito, outras formas e outras expressões haverá de existir, ainda que simuladas, dominadas, proibidas e, por tudo isto, invisíveis. Estas citações acima apresentadas são imprescindíveis para se entender duas vertentes importantes deste trabalho: primeiro que se pretende analisar a Função Socioambiental das Terras Indígenas, sua ocorrência (ou não) no estado de Roraima, sobretudo segundo os preceitos estabelecidos na Constituição Federal Brasileira; segundo que se pretende estabelecer uma análise comparativa entre a Função Social da Propriedade Privada, estatuída pela legislação brasileira, tendo como norteadora a própria Constituição Federal e a realidade social das demarcações de Terras Indígenas. Assim, ao analisarmos as palavras de Marés, suas análises do relacionamento entre povos indígenas e o mundo chamado civilizado, já de antemão se nota uma enorme diferença de concepção do que é Direito. Se para os “brancos”, deve haver um Direito uno, geral e universal, para os índios isso não tem sentido. Não pode ser natural para um índio aceitar um regramento de homens alienígenas a suas realidades, que ali chegam e determinam como devem viver, qual o território que deverão se fixar e quais as limitações de sua própria legislação. 2.1 Povos europeus, ocupação territorial na América e choque de civilizações. Mesmo antes de aqui chegarem, os espanhóis e portugueses já haviam dividido, entre si, as terras a serem conquistadas ao sul do planeta. À época medieval o domínio territorial do mundo era considerado dádiva divina (CUNHA, 2006, p. 17). Os reis deveriam buscar legitimidade nos papas, representantes de Deus, para suas conquistas territoriais, “donde se haverem os romanos pontífices arrogado o direito de distribuir terras, como se lhes fossem donos absolutos” (PORTO, s/d, p. 15). Segundo Caminha (1974) conta que Martim Afonso de Souza, ao vir para o Brasil, em 1530, trouxe três cartas régias, uma para exercer o cargo de capitão-mor, outra para tomar posse das terras em nome da Coroa Portuguesa e outra para distribuir terras a quem nelas quisesse produzir. Dessa forma, o que se implantou no Brasil, assim como nos domínios 50 espanhóis na América, foi uma política ocupacional baseada no saque, invasão, expulsão, com a finalidade de aumentar os respectivos territórios reais (LAS CASAS, 1985) Em consequência dessa ocupação, conta LAS CASAS (1985), em quarenta anos, morreram injustamente mais de doze milhões de pessoas, homens, mulheres e crianças em decorrência da ação dos espanhóis. Tudo para arrancar da terra seus frutos, renováveis ou não. 2.2.1 Direitos humanos e direitos dos índios. Durante a Segunda Guerra Mundial houve diversos acontecimentos que abalaram o planeta. Atrocidades aconteceram em diversas partes do globo em guerra, sendo o holocausto um dos mais repugnantes acontecimentos daqueles tempos. Com o término da Guerra, o homem sentiu a necessidade de construir organismos que tivessem alcance mundial, com capacidade de interferir em caso de ameaça de novos acontecimentos que tendessem a repetir algum daqueles episódios danosos à dignidade da humanidade. Assim, um novo referencial ético e um código norteador de uma nova ordem internacional foram estabelecidos. Estabeleceu-se um código que fosse capaz de assegurar o respeito à vida com dignidade humana. “A Declaração Universal dos Direitos Humanos foi instituída em 10 de dezembro de 1948, por meio da aprovação de 48 Estados, com 8 abstenções”. ( FRANCO, 2012, p. 7) Essa construção de um mundo mais igualitário conduziu a humanidade a pensar sociedades plurais12, onde diversos indivíduos, de diferentes concepções ideológicas, econômicas, sociais, vivessem em harmonia. Passa-se a uma construção de mecanismos de alcance mundial, que servissem como instrumentos de proteção ao homem, seja ele forte ou fragilizado, mas vivendo em harmonia, respeitando a dignidade da pessoa humana. Passa-se a se pensar em Direitos Humanos com alcance global. No entendimento de Franco (2012, p. 9) “permanece o controle e o monopólio dos Estados na organização da dinâmica das relações internas, estritamente individuais, mas agora balizadas por uma onda ética com horizonte 12 Na tese de doutorado de Franco (2012), um dos doutrinadores evocados para sustentação de suas argumentações foi Sartori (2005), segundo o qual “una cultura pluralista implica una visión del mundo basada, en esencia, en la creencia de que La diferencia, y no La semejanza, el disenso, y no La unanimidad, el cambio y no la inmutabilidad, contribuyen a La buena vida.” “Los fundamentos del pluralismo”, Revista Leviatán. N 61, 1995. 51 universal”. Esse horizonte universal é representado pelos direitos humanos que devem ser obedecidos por todos os povos e Estados, possibilitando uma convivência pacífica entre os membros da comunidade internacional. Ainda segundo Franco, “o avanço gradual e sistemático dessa onda, em nível global, e o processo de internalização desses valores são caracterizados pela dinâmica distinta e soberana de cada Estado”. Mesmo diante de diferenças em função de realidades distintas, fato é que a construção desses direitos humanos pretensamente universais toma como parâmetro os valores ocidentais, mas caminhando rumo ao reconhecimento mundial dos direitos indígenas. Franco afirma (p. 21) que: [...] levando em consideração que existem, pelo menos, cinco instrumentos específicos constituidores do horizonte dos direitos indígenas: a Convenção sobre o Instituto Indigenista Interamericano (1940); Convênio 107 da OIT, sobre Populações Indígenas e Tribais em Países Independentes (1957); a Declaração de Concessão de Independência aos Países e Povos Coloniais (1960); Convênio 169 da OIT, sobre Populações Indígenas e Tribais em Países Independentes (1989); e a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas (2007), podese notar um emergente direito internacional dos povos indígenas. Os povos indígenas passam, gradativamente, a serem objeto de um reconhecimento universal de seus direitos, juntamente com minorias fragilizadas de todo o planeta. Esse processo passa inconteste pelas discussões que se viriam a se instalar no seio da sociedade brasileira, mormente no período de 1988 em diante, em função da redemocratização do país e a promulgação da Constituição Cidadã de 1988. 2.2 Terras indígenas - a evolução da legislação no Brasil No Brasil, ao chegarem, os portugueses aqui inseriram as Ordenações do Reino, leis vigentes e dirigidas a Portugal na época da colônia. Essas Ordenações determinavam bom tratamento aos indígenas que se submetessem à catequese e tratava como inimigos de guerra os contrários a estas. “A ordem era destruir as aldeias, levar em cativeiro e matar para exemplo dos demais” (SOUZA, 1982). O Regimento de 1548, repetido em 1570 proíbe que se tomem os índios em cativeiro, com exceção aos tomados em guerra e os salteadores. Segundo a visão de Aristizábal (1993, p. 62-63), os Estados latino-americanos, ao surgirem, contaram grandemente com a colaboração dos indígenas nas lutas de independência de todos eles. Porém, com a cultura burguesa clássica por aqui aplicada, não havia espaço 52 para que existissem estamentos intermediários entre o Estado e os cidadãos, “acabando com as corporações coletivas, grupos homogêneos, etc”. “Não se podia conceber enclaves de grupos humanos com direitos próprios de coletividade. [...] os povos indígenas deveriam ser esquecidos para dar lugar a cidadãos livres” (MARÉS, 2006, p. 62). Assim, os índios deveriam se integrar aos cidadãos comuns para tornarem-se indivíduos, quando seriam agraciados com todos os direitos disponíveis para os cidadãos. Para o autor o que se pregavam eram os direitos individuais, não direitos coletivos, não para os povos indígenas, não para tribos, mas sim para indivíduos. Como dito acima, Portugal ao aqui chegar com seus navios, tomando posse da terra, aplicou imediatamente sua legislação vigente. Assim, o Brasil teve como primeira legislação aquela aplicada por Portugal, as conhecidas “Ordenações”. Registram-se os Regimentos de 1548 e 1570 como primeiras regulamentações específicas relacionadas aos índios (MARÉS, 2006). Merecem registro as Cartas Régias de 10.09.1611: Os gentios são senhores de suas fazendas nas povoações, como o são na Serra, sem lhes poderem ser tomadas, nem sobre ellas se lhes fazer moléstia ou injustiça alguma, nem poderão ser mudados contra suas vontades das capitanias e lugares que lhes forem ordenado, salvo quando eles livremente o quiserem fazer. Já nessa época, mesmo sob a égide da Coroa Portuguesa, reconheciam-se os direitos de os indígenas permanecerem em suas terras, reservando ao seu livre arbítrio a decisão de sair ou permanecer. No Alvará de 01.04.168013, a Coroa Portuguesa reconhecia que “os índios eram senhores de seus domínios e os desaldeados seriam agraciados com lugares convenientes para lavrarem e cultivarem, numa clara ideia de integração do índio à sociedade” (VILLARES, 2009, p. 98). Mesmo com a concessão das sesmarias, os direitos dos índios sobre suas terras são garantidos. Em 1775, o Alvará de 4 de abril, do rei de Portugal, determina que não haveria preconceito com aqueles que se relacionassem com indígenas: 13 Ver o entendimento de José Afonso da Silva, neste trabalho, capítulo 1.3.4.1. 53 Eu El-Rei, sou servido declarar que os meus vassalos deste reino e da América que casarem com as índias dela não ficam com infâmia alguma, antes se faraão dignos de reala atenção. Outrossim, proíbo que os ditos meus vassalos casados com índias ou seus descendentes, sejam tratados com o nome de caboclos ou outro semelhante que possa ser injurioso. O mesmo se praticará com portuguesas que se casarem com índios. Fica dai por diante, aberto o caminho para a integração praticada até pouco tempo atrás, rompida pela Constituição Federal de 1988, contudo, houve vários dispositivos legais que tratavam de assuntos indígenas na época do Brasil colônia, mas raríssimos dispositivos trataram da pessoa do índio. Normalmente tais dispositivos tratam de limitações e garantia de direitos alheios, onde o foco se refere sempre aos portugueses e suas garantias no trato com os indígenas. Havia a preocupação colonial com a integração dos desses à sociedade, mas “o que os índios pensavam, faziam ou queriam fazer, não entrava na ordem de preocupação daquela legislação” (MARÉS, 2006, p. 55-56). Em 1808, uma Carta Régia declarava guerra aos índios Botucudos do Paraná, então província de São Paulo, determinando que os prisioneiros fossem obrigados a servir por 15 anos àqueles que os apreendessem, abrindo possibilidade para os índios que se entregassem, se submetendo às leis reais e se aldeassem, “gozarem dos bens permanentes de uma sociedade pacífica e doce debaixo das justas e humanas leis que regem os meus povos” (grifo nosso). Os índios eram, na verdade, um obstáculo a ser superado pelos conquistadores que aqui se estabeleciam, mas por outro lado, reconheceu-se que as terras indígenas não eram, definitivamente, devolutas (VILLARES, 2009). Em maio de 1808, outra Carta Régia declarava guerra aos índios Botucudos do Vale do Rio Doce, estabelecendo basicamente as mesmas regras, mas desta vez determinando escravidão de dez anos aos capturados, prazo esse que poderia se estender até que fossem pacificados. Ao final do ano, outra carta determinava que os índios que se submetessem às leis reais seriam entregues a fazendeiros que os educariam, podendo, como pagamento, usufruir de seu trabalho gratuitamente14. Não se trata de escravizar os índios, mas de educá- los à convivência da sociedade “doce e pacífica”.15 14 Para melhor entendimento, ver artigo de Marés, O direito envergonhado: os índios e o direito no Brasil. In Índios do Brasil. Organizado por Luiz Donizetti Grupioni. Brasília: Ministério da Educação e do Desporto, 1994 e a legislação brasileira do século XIX na coleção Leis do Brazil, de 1808 a 1889. Esta última 54 Para Marés (2006, p. 56), o Estado colonial deixou como herança ao Estado Nacional brasileiro “um silêncio piedoso sobre os povos indígenas, um punhado de escravos, uma situação de direitos confusa e uma estrutura fundiária tão ultrapassada quanto injusta”. Apesar dessa situação, quando da Independência do Brasil, houve um hiato legal, pois o ordenamento jurídico em vigor à época perdeu eficácia com a dita Independência, ficando o país sem legislação que regulamentasse as terras, somente sendo suprida essa lacuna com a Lei de Terras, em 1850, vinte e oito anos, portanto, depois da Independência. O professor Paulo Torminn Borges (BORGES, 1981, p. 33) registra a preocupação de José Bonifácio com a situação indígena no Brasil: Aliás, José Bonifácio, logo depois da proclamação da Independência, dissera que, por justiça, os índios não deveriam ser esbulhados, “das terras que ainda lhes restam e de que são legítimos senhores”, sendo o mínimo a se exigir de nossa parte como usurpadores e cristãos. Ao iniciar-se o período de Império, nova realidade se estabeleceu, com outras regras jurídicas, agora apartadas de Portugal. Os índios foram incorporados formalmente à nova nação, sendo todos eles considerados habitantes do Brasil, brasileiros, porém a autodeterminação e soberania como etnia diferenciada foi negada (VILLARES, 2009). Em 27.10.1831, lei exonerou de servidão todos os índios que assim se encontrassem naquela data. Em 1845 nova lei foi editada, regulamentando a relação índios-Estado, por meio do decreto 426, de 24.07.1845, cuja ementa explicitava: “Contém o regulamento acerca das missões de catequese e civilização dos índios”. Estabelecia uma administração para cuidar da questão indígena, com funcionários e competências “de proteção e aldeamento dos povos encontrados, o Estado entregava à Igreja grande parte da responsabilidade de atendimento a estes povos” (MARÉS, 2006, p. 88). 2.2.1 As terras indígenas O termo “terras indígenas”, pela relevância atual no cenário nacional e mundial, merece, neste trabalho, cabal conceituação. Para José Afonso da Silva: disponível em < http://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/legislacao/publicacoes/doimperio>. Acesso em 12 Fev. 13. 15 Marés explica a filosofia de integração dos indígenas à sociedade portuguesa à época no livro O Renascer dos Povos Indígenas para o Direito, 2006, p. 55-56. 55 São terras vinculadas ao cumprimento dos direitos indígenas sobre elas, reconhecidos pela Constituição como direitos originários (art. 231), que, assim, consagra uma relação jurídica fundada no instituto do indigenato, como fonte primária e congênita da posse territorial, consubstanciada no art. 231, § 2º, quando estatui que as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se a sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes (SILVA, 2008, p. 5). Esta definição de Silva, evidentemente baseada na atual Constituição Federal (1988), trás em si mesma a visão do iminente jurista sobre o indigenato. Porém, nem sempre essa definição foi aceita. Em verdade, não há como se falar juridicamente em terras indígenas no Brasil, senão analisando o artigo 231 da Constituição Federal. Neste trabalho, alinha-se o entendimento com Villares (2009, p. 113-115), segundo o qual a Constituição Federal reconhece os direitos originários dos indígenas sobre as terras que tradicionalmente ocupam, com o intuito de efetivar a proteção da vida indígena atual e das gerações futuras, prestigiando, assim, a tradição jurídica brasileira do instituto do indigenato. Villares traz em sua obra o entendimento do ex-ministro do Supremo Tribunal Federal, Nelson Jobim: A terra indígena no Brasil, por força da definição do art. 231, se compõe de quatro elementos distintos. O primeiro deles: Art. 231 (...) § 1º São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, (...). Há um dado fático necessário: estarem os índios na posse da área. É um dado efetivo em que se leva em conta o conceito objetivo de haver a posse (...) Agora, a terra indígena não é só a área possuída de forma tradicional pelos índios. Há um segundo elemento relevante: (...) as utilizadas para suas atividades produtivas, (...). Aqui, além do elementoobjetivo de estar a aldeia localizada em determinado ponto, há necessidade de verificar-se a forma pela qual essa comunidade indígena sobrevive. O terceiro elemento que compõe esse conceito de terra indígena: (...) as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar (...) E, por último: (...) e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições. 56 Ainda, nas palavras de Villares (2009, p. 115), não se exige a imemorialidade da ocupação para se identificar uma terra como indígena. Deve-se “descolar a visão da ligação entre o índio que habitava as terras brasileiras no descobrimento (ou ocupação tão antiga que não se guarda na memória) e o ocupante atual”. Para o Instituto Socioambiental (ISA, 2013), atualmente existem 688 terras indígenas no Brasil, 238 povos, sendo que as terras indígenas ocupam aproximadamente 13% do território brasileiro. Os 238 povos indígenas somam, segundo o Censo IBGE (2010), 896.917 pessoas. Destes, 324.834 vivem em cidades e 572.083 em áreas rurais, o que corresponde aproximadamente a 0,47% da população total do país. Historicamente, somente a partir de 1850 passou-se a ter preocupação com as terras indígenas propriamente ditas. A Lei 601, de 18.09.1850 (Lei de Terras), estabeleceu nova matriz de ocupação das terras brasileiras e revogou, definitivamente, as legislações portuguesas, “estabelecendo novos conceitos jurídicos que permanecem até hoje, como terras devolutas, registro de imóveis e reservas indígenas” (MARÉS, 2006, p. 88). Para Marés, mesmo ainda conservando a filosofia integracionista, a legislação brasileira avançava no sentido de garantir aos índios restantes alguns direitos sobre as terras que ocupavam. Em seu art. 12, essa Lei estabelecia que “O Governo reservará das terras devolutas, as que julgar necessárias: §1º, para a colonização dos indígenas”. Informa Marques (2011, p. 115) que “omitiu-se a primeira Constituição brasileira (a de 1824) de inserir qualquer norma de caráter protetivo para os índios. O mesmo acontecera com a de 1891”. Em que pese a Constituição de 1891 ter sido omissa em relação aos povos indígenas, travou-se uma discussão à época sobre o tema, trazendo luz ao assunto que tomou, assim, importância no mundo político do recém-nascido Estado Republicano. Importante notar que Beviláqua defendia a tese de que deveria ser elaborada, em texto avulso, apartado dos códigos, legislação dedicada aos povos indígenas (MARÉS, 1992). No final do século XIX, havia apenas aquelas regras embutidas na Lei de Terras e no seu Regulamento (Decreto 1.318, de 30.01.1854, em seus art. 72 a 75). Importante salientar o art. 75, in verbis: 57 Art. 75 As terras reservadas, para colonização de indígenas, e por eles distribuídas, são destinadas ao seu usofruto (sic); e não poderão ser alienadas, enquanto o Governo Imperial, por ato especial, não lhes conceder o pleno gozo delas, por assim o permitir o seu estado de civilização. Nota-se, já em 1850, a preocupação com terras que deveriam ser “reservadas” para o usufruto dos indígenas, porém há uma previsão de que tais terras poderiam ser alienadas quando os índios alcançassem o seu “estado de civilização”. Em 1910 é criado o Serviço de Proteção aos Índios e Localização dos Trabalhadores Nacionais. Ficou conhecido como SPI, ainda prevalecendo a política integracionista das legislações anteriores, ou seja, “a expectativa de acabar com as culturas indígenas para assimilá-las na cultura nacional, isto é, o sonho de transformar todos os índios em cidadãos, ou o pesadelo de acabar com a categoria ‘povos indígenas’” (SOBRINHO, 1992, p. 93). Em 1928 é aprovado o Decreto Legislativo 5.484, de 27 de junho de 1928 que agradou tanto a indigenistas quanto juristas. Segundo Marés (2006), esse Decreto Legislativo, embora fosse um avanço jurídico, trazia alguns “defeitos congênitos”, como a classificação dos índios segundo a proximidade com o Estado e o desprezo pelas diferenças culturais de cada povo. A Constituição de 1934, assim como as demais que se seguiram, tratou sobre o assunto indígena, prescrevendo o respeito à posse de terras dos indígenas e nelas se achassem permanentemente localizados, sendo-lhes, no entanto, vedado aliená-las (MARQUES, 2011). A partir de 1950, o SPI, em que pese dispor de um conjunto de normas protetoras dos índios e ter sido, obviamente, criado para proteger os mesmos, iniciou um processo de decadência administrativa, “fruto de corrupção, uso indevido das terras indígenas e suas utilidades, venda de ‘atestados de inexistência de índios16’, que possibilitava o extermínio e legitimava a usurpação das terras, tornando-se um instrumento de opressão do Estado [...]” (MARÉS, 2006, p. 90). 16 Barros explica (apud MARÉS, 2006, p.89 - nota de rodapé) que estes atestados permitiam que os EstadosMembros concedessem títulos de domínio sobre terras devolutas. Evidentemente que estes títulos eram dados sem qualquer verificação prévia da existência de índios e muito menos de ocupação efetiva de novos titulares, via de regra integrantes das oligarquias locais. 58 2.2.1.1 Aldeamento. O vale do Rio Branco juntamente com o alto rio Negro foi das últimas terras a serem alcançadas pela colonização portuguesa na Amazônia. O Rio Branco, em que pese a situação estratégica entre as terras portuguesas, as possessões espanholas, dos países baixos e a Guiana, teve tardia colonização. No período colonial houve extração de cacau, baunilhas e outros produtos importantes para a Coroa Portuguesa à época. O Rio Branco era a principal via de penetração no extremo norte do Brasil, na região onde hoje se encontra Roraima, nascendo na serra Pacaraima, deslizando em direção norte-sul, “vai engrossando seu volume com as águas de seus tributários, principalmente o Tacutu e o Uraricoera, até desaguar na margem esquerda do Rio Negro.” (VIEIRA, 2003, p. 11). Sua importância para a região, no início da colonização portuguesa foi crucial. Para Barros, apud Vieira (2003, p. 11): “O navegável Rio Branco foi a via de acesso usada pelos padres para estabelecerem os aldeamentos de índios no século XVIII, pelos apresadores destes nativos, pelas tropas portuguesas que estabeleceram a fronteira colonial nos limites da sua bacia no fim do século XVIII e estabeleceram as primeiras fazendas, e pelos pecuaristas que fundaram mais e mais fazendas nos meados do século XIX até a segunda metade do século XX para fornecer gado vivo ao vale amazônico, então no auge da borracha. Foi também o Rio Branco a via de chegada dos mineiros, dos colonos, e da massa em geral. O Rio Branco é então por isto um elemento emblemático e central na paisagem da Roraima pré-rodoviária”. Pelo mapa da figura 1, pode-se mensurar a importância do Rio Branco para os desbravadores daquele tempo, uma vez que não havia, evidentemente, estradas, tampouco asfaltadas, sendo a via fluvial a única alternativa. 59 Figura 1 - Estado de Roraima. Fonte: Sogeografia.com Sobre a conquista do Rio Branco, Sampaio (apud VIEIRA, 2003, p. 18) explica que já em 1736 havia tráfico de embarcações ao longo daquele rio, assim como havia comércio: Sabe-se com certeza que desde o princípio d’este século até o anno de 1736 se occupou nas entradas do Rio Branco o capitão Francisco Ferreira, natural da cidade do Pará, o qual tinha a sua residência na aldêia de Caburís, fronteira a barra do Rio Branco. D’aqui partia, quando lhe era conveniente, a comerciar aquelle rio em todos os ramos”. É memorável o anno de 1736. N’este anno com uma grande escolta entrou no Rio Branco Christovão Ayres Botelho, que era natural da cidade do Maranhão; e foi acompanhado n’esta expedição por um famoso principal chamado Donaire. A esta expedição se seguiu a de Lourenço Belforte no ano de 1740, como também a de Miguel Ayres em 1748. O Decreto nº 1.318, de 30 de janeiro de 1854, que é o ‘’regulamento para execução da lei nº 601, de 18.09.1850’’, trata das terras reservadas, onde, no artigo 72, estabelece, in verbis: “Serão reservadas terras devolutas para colonização e aldeamento de indígenas nos distritos, onde existirem hordas selvagens’’”. Essa previsão de se reservar terras para que sejam realizada colonização “e” aldeamento tinha como corolário a intenção da Coroa Portuguesa de utilizar os próprios índios como fator de presença nacional e defesa da terra frente aos países europeus. A disputa pela terra fez com que a Coroa adotasse a política de instalação de fortes, com presença militar ao longo do litoral e, desta vez, na região do Rio 60 Branco. Na década de 1770, a Coroa fez vários descimentos, de várias etnias, fixando cinco aldeamentos no próprio Rio Branco (VIEIRA, 2003). A ocupação portuguesa no Rio Branco se deu, em verdade, não pelo estabelecimento de colonos civis. “O início de uma ocupação efetiva da região na década de 70 do século XVIII foi basicamente desempenhada pelo Estado, consistindo na construção de uma fortaleza, o Forte São Joaquim, e a formação de aldeamentos indígenas sob a jurisdição daquela guarnição militar” (SANTILLI e FARAGE, s/d). Foi uma ocupação, sobretudo militar, baseada em relações clientelistas com a população indígena17. Por outro lado, havia “[...] na época colonial, a lei de 30 de julho de 1609, declarando os índios, pessoas livres e confiando o seu protetorado aos padres jesuítas, os quais tinham, inclusive, permissão para retirá-los das florestas e instalá-los em aldeamentos (MIRANDA; SOARES; BARROSO, 2006, p. 330)”. Nota-se que a igreja tinha interesses claros quanto à existência dos aldeamentos. O fato de se retirarem os índios das florestas, instalando-os em locais preestabelecidos pelo poder Estatal e pela Igreja, demonstra a intenção de se utilizar os indígenas, primeiramente como uma “muralha humana” contra possíveis invasões; segundo como mão-de-obra à disposição do Estado, para trabalho com o gado. Dessa forma, os aldeamentos constituíram-se em fator de presença humana da Coroa portuguesa visando à consolidação territorial, porém para o índio, que se vira retirado de seu habitat que lhe aprouvera, para passar a viver onde e como lhe ordenavam, sendo forçado a abandonar seu modo de vida, sua terra e, em muitos dos casos, seu povo, os aldeamentos constituíram-se em martírio mortal. Os reflexos que se cristalizaram séculos após, vieram a ser debatidos no Congresso Nacional, na Corte Suprema, nas Nações Unidas e por toda a sociedade do século XXI. Esse o tema central deste trabalho, que será aprofundado nas páginas seguintes. 17 Paulo Santilli diz que “durante a longa disputa de fronteiras com a Inglaterra houve inúmeras iniciativas por parte dos governos imperial e provincial para fomentar o povoamento dessa região por colonos civis, mas se colheram invariavelmente inócuos. [...] A Lei de Terras de 1850, que exigia o registro da posse das terras para que as mesmas pudessem ser reconhecidas legalmente de domínio particular, resultou em apenas seis pedidos de reconhecimento em todo o vale do rio Branco no encerramento dos prazos em 1856”. (SANTILLI, 1994, p. 1720). 61 2.2.1.2 As terras ocupadas pelos indígenas. A questão da terra no Brasil, ligada ao direito de ocupação pelos indígenas, é tão antiga quanto o descobrimento (apossamento) do país. Em tempos de crescimento econômico acelerado, crescimento da participação do Brasil no fornecimento de alimentos para o planeta, o aumento crescente da população mundial e, consequentemente a necessidade do aumento da produção de alimento, essa questão torna-se sensível. Segundo Cunha (1987, p. 58), já na Carta Régia de 10 de setembro de 1611, promulgada por Filipe III, havia reconhecimento das terras indígenas: [...] os gentios são senhores de suas fazendas nas povoações, como o são na Serra, sem lhes poderem ser tomadas, nem sobre ellas se lhes fazer molestia ou injustiça alguma; nem poderão ser mudados contra suas vontadas das capitanias e lugares que lhes forem ordenados, salvo quando elles livremente o quizerem fazer ... (sic). Esse entendimento de que se devem respeitar os espaços ocupados pelos indígenas permaneceu no ordenamento jurídico brasileiro daí por diante, em menor ou maior grau de proteção dos interesses dos índios. Contemporaneamente, a atual Constituição Brasileira (1988) prevê, em seu art. 20, que as terras tradicionalmente ocupadas pelos indígenas são bens da União. No art. 231, são reconhecidos os direitos aos índios sobre essas terras, sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições. Estabelece ainda a obrigação de a União demarcar tais terras, além de proteger e fazer respeitar esses bens. 2.2.2 A Terra Indígena Raposa Serra do Sol Para se entender o contexto histórico-social que se deu a demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, importante o entendimento dos fatos ocorridos a partir do século XVIII, na região mais ao norte da Amazônia. O Rio Branco era uma importante via de acesso ao hoje estado de Roraima, bem como para quem queria se deslocar em direção às atuais Guiana, Venezuela e Suriname, sendo fundamental para a Coroa Portuguesa a conquista da região ao longo desse rio, além do controle e povoamento, tendo em vista o interesse e a presença estrangeira na região já àquela 62 época. Segundo Cardoso (apud VIEIRA e FILHO, 2013, p. 103) “no início do século XVII holandeses, irlandeses, ingleses e franceses conheciam melhor a região amazônica que portugueses e espanhóis ‘donos’ do território pelo Tratado de Tordesilhas, mas com o foco voltado para outros problemas nesse período”. Diante desse interesse e presenças estrangeiras na região, a Coroa Portuguesa estabelece, em 1.775, o Forte São Joaquim, à margem direita do rio Tacutu, no encontro com o rio Uraricoera, formadores do Rio Branco, com intuito de estabelecer sua presença na região e fazer frente à questão da presença estrangeira. Segundo VIEIRA (2003, p. 21) “A presença dos espanhóis já era visível, pois já estavam aquartelados no rio Uraricoera [...] quando as tropas portuguesas os alcançaram em 1.775”. Nesse contexto, surgem os aldeamentos junto aos fortes. No caso do Forte São Joaquim, a partir do forte saiam expedições de resgate, tendo como missões a fiscalização das fronteiras e desciam os índios para os aldeamentos. Nas lutas pela posse do território do Rio Branco a partir da década de 1770, os indígenas, seja sendo aldeados pelos portugueses, ou fazendo comércio com os holandeses do Essequibo, participaram ativamente da construção da fronteira colonial, procurando vantagens, e para os colonizadores a submissão política indígena significava a garantia da posse efetiva do território (FARAGE, 1991, p. 18). No final do século XVIII, com o fracasso dos aldeamentos no Rio Branco, a coroa portuguesa, com a finalidade de manter a posse do território, estabelece um novo modelo de ocupação. “Devido à falta de uma atividade mercantil que atraísse o não índio, efetivou-se a introdução da cultura da pecuária com a criação das ‘fazendas reais’ e a introdução do gado para tentar intensificar a presença do Estado português no alto Rio Branco” (VIEIRA, 2003, p. 33). A pecuária, que se revelou uma atividade lucrativa, embora ainda marginal, subsidiária à atividade extrativista, atraiu alguns não índios “pela grande quantidade de pastagens naturais existentes no vale do Rio Branco, a mão-de-obra indígena abundante e barata, e a possibilidade de que para iniciar sua atividade bastava capturar algumas cabeças de gado e se estabelecer em determinada área” (VIEIRA, 2002, p. 34). 63 No entanto, no final do século XIX, as fazendas particulares começaram a se multiplicar, tanto nas áreas antes ocupadas pelas fazendas reais, como em áreas fora delas. [...] o que significa que, com exceção da fazenda São Marcos, as fazendas São José e São Bento foram sendo ocupadas por posseiros no início do século XIX ou sendo usurpadas por seus antigos administradores e arrendatários que se tornariam assim grandes proprietários rurais se apropriando indevidamente do patrimônio público67, avançando também sobre as terras indígenas, o que tem gerado uma série de conflitos fundiários com reflexos até os dias de hoje (VIEIRA e FILHO, 2013, p. 116). As atividades de pecuária, inicialmente desenvolvidas pelas fazendas reais, tiveram forte incentivo da coroa portuguesa, sendo vetor de penetração, povoamento e de ocupação do território em Roraima. Paulatinamente, essa atividade foi-se privatizando, com fazendeiros se espalhando por grande parte da área do estado. A atividade pecuária no vale do Rio Branco, idealizada pelo Estado português, foi sendo levada adiante por particulares e gerando uma série de disputas que se refletem inclusive atualmente na sociedade roraimense. O primeiro campo de disputas foi entre os primeiros fazendeiros pela mão-de-obra indígena, e depois essa disputa passou a ser pelas terras dos índios que iam sendo expulsos de sua área de ocupação inicial, antes da chegada dos não índios. O resultado dessa conjuntura foi o surgimento de grandes fazendeiros na região e finalmente uma base de sustentação econômica para o Rio Branco entre o final do século XIX e o início do XX (VIEIRA, 2003, p. 36). Chega-se assim, ao século XX, com terras sendo ocupadas, fazendas se instalando, gado sendo inserido. A convivência entre índios e fazendeiros, gado e terras indígenas, atividades econômicas capitalistas e modo de produção indígena desaguou na disputa pela demarcação de várias terras indígenas no estado de Roraima, sendo objeto de estudo desta dissertação a Terra Indígenas Raposa Serra do Sol. 2.2.2.1 A demarcação. A demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol é emblemática para esse tipo de demarcações no Brasil. Devido ao longo processo que se arrastou por anos, devido também à grande repercussão na mídia nacional e internacional, essas terras indígenas se tornaram conhecidas por todo o planeta. Um dos principais responsáveis pela delimitação das terras foi o antropólogo Paulo José Brando Santilli, professor da Faculdade de Ciências e Letras da Unesp em Araraquara, também coordenador do Centro de Estudos Indígenas Miguel A. Menendéz. Após uma ausência de quase uma década, Santilli começou a fazer novamente visitas de campo à região em fins de 2012 64 (NOGUEIRA, 2013, p. 18). Seus estudos etnográficos na região, que começaram nos anos 1980, aproximaram-no das lideranças e o levou a colaborar intensamente na luta pela criação da terra indígena Raposa Serra do Sol. Figura 2 - Terra Indígena Raposa Serra do Sol Fonte: Geoprocessamento, Instituto Socioambiental (ISA), 2006. A área Raposa Serra do Sol pode ser descrita, a partir do limite norte, situado na Serra Pacaraima, junto à fronteira internacional Brasil/Venezuela/Guiana, tomando-se como referencial o ponto do marco fronteiriço instalado no Monte Roraima. Segue por linhas 65 naturais que definem as fronteiras entre Brasil e Guiana, a leste, e por linhas secas contínuas, que circunscrevem a área ao sul e a sudoeste, e, contorna, a oeste, subindo a montante dos rios Surumu/Miang e na linha seca que liga as suas nascentes, pela fronteira internacional Brasil/Venezuela, até o ponto inicial do limite norte, situado na Serra Pacaraima. (SANTILLI, 2001, p. 95). É dividida, de acordo com critérios políticos e administrativos, em quatro regiões: Raposa, Surumu, Baixo Cotingo e Serras (figura 1), sendo tais divisões administrativas utilizadas pelo CIR-FUNASA e na organização político-administrativa do Conselho Indígena de Roraima. As regiões de Raposa e Surumu ocupam as terras baixas predominantemente de Lavrado, recortadas por igarapés circundados de buritis e com inúmeras depressões no solo que formam lagos temporários no período de chuvas. A região do Baixo Cotingo está na transição entre as terras baixas e a parte montanhosa da região das Serras (FUNAI, 2007). Figura 3 - Localização das quatro regiões da Terra Indígena Raposa/Serra do Sol Fonte: FUNAI, 2007a. 66 Na figura 4 a foto do malocão situado na comunidade Serra do Sol, dentro da Terra Indígena Raposa Serra do Sol. Fotografia fornecida pela Funai-RR. Figura 4 - Malocão da Comunidade Serra do Sol (TI Raposa Serra do Sol) Fonte: Funai – Boa Vista-RR Na fotografia também fornecida pela Funai-RR (figura 5), nota-se a região do rio Cotingo, na região das Serras, também dentro da Terra Indígena Raposa Serra do Sol. 67 Figura 5 - Vista aérea do Rio Cotingo, na Região das Serras, TI Raposa Serra do Sol. Fonte: FUNAI-RR, 2013. 2.2.2.2 População. Sua população tem crescido em ritmo acelerado, principalmente após 1999, sendo que os dados atuais apontam para uma população de 21.362 pessoas em toda a Terra Indígena Raposa Serra do Sol, conforme se nota na tabela abaixo. Tabela 1 - População da Terra Indígena Raposa Serra do Sol (1993-2012). População 21.362 19.933 18.992 18.751 Ano 2012 2010 2008 2007 Fonte Siasi/Sesai CIR CIR Funasa/CIR 68 População 17.559 12.242 11.000 10.097 Ano 2006 1999 1994 1993 Fonte Funai/Boa Vista Funasa P. Santilli Funai Fonte: Instituto Socioambiental (ISA), 2013. Como se nota na tabela acima, de 1993 a 2012 houve um crescimento de 10.097 para 21.362 na população da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, o que representa um acréscimo de 11.265 no período, ou seja, crescimento de 111,568% num intervalo de 19 anos. O gráfico abaixo demonstra esse crescimento. Figura 6 – Dados demográficos Terra Indígena Raposa Serra do Sol (1993-2012) Fonte: Instituto Socioambiental (ISA), 2013. Com o crescimento da população, mais do que dobrando em menos de vinte anos, os impactos ambientais e os problemas sociais são importante fonte de preocupação socioambiental. Sobre o assunto, Paulo Santilli18, em visita de estudos à Terra Indígena Raposa Serra do Sol, em fevereiro de 2013, demonstrou sua preocupação com o fenômeno. 18 Conforme dito alhures, Paulo Santilli é professor da Faculdade de Ciências e Letras da Unesp em Araraquara e coordena o Centro de Estudos Indígenas Miguel A. Menendéz. Devido a seu engajamento em estudos e na luta pela causa indígena, principalmente quanto à demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, ficou conhecido entre os indígenas e tem grande autoridade moral entre eles, assim como perante a comunidade acadêmica. Santilli ficou quase uma década afastado da Raposa Serra do Sol, voltando no final de 2012, reiniciando sua atuação como antropólogo na região. 69 Segundo ele, o número de aldeias tem crescido. “Em 2006 eram menos de 170, hoje já são mais de 200 (NOGUEIRA, 2013, p. 18)”. Santilli se impressionou com a diminuição do espaço entre as aldeias. “Nem bem deixamos uma para trás, já aparece outra no horizonte”. Outro fato que lhe causou surpresa foi a quantidade de crianças. São comuns as famílias com oito, dez filhos. “Antes, a tendência era a redução da população, agora é o contrário”, constata o antropólogo. Segundo Cunha (1994), a previsão de desaparecimento dos índios brasileiros, desde os anos 80, cedeu lugar à constatação de uma retomada demográfica geral, devido ao atendimento médico e vacinação, dentre outros. Segundo informações fornecidas pela FUNAI-RR (2013), esse crescimento se deu pelos seguintes motivos: 1) A garantia da terra, por meio da homologação da área; 2) Melhoria nos serviços básicos de saúde, por meio do aumento do volume de recursos destinados a saúde indígena e os esforços para cumprimento das metas como vacinação infantil, acompanhamento nutricional regular, acompanhamento pré-natal; 3) Ampliação do acesso a direitos sociais, como documentação civil e acesso às políticas de distribuição de renda, como bolsa família; 4) Garantia dos direitos previdenciários, uma vez que os indígenas que desenvolvem atividades rurais são considerados segurados especiais da previdência, ou seja, tem direito aos benefícios de salário maternidade e aposentadoria, por exemplo; 5) Intensificação do apoio a atividades que visam o auto sustento alimentar, como criação de animais, roças irrigadas, piscicultura, plantio de monoculturas como melancia, mandioca para produção de farinha; 6) A FUNAI não incentiva ações de controle de natalidade, apenas promove e apoia ações de educação em saúde voltadas ao diálogo para proteção contra doenças e resguarda o direito individual da mulher e da família que pretenda utilizar métodos contraceptivos, como o uso de anticoncepcionais (informação via entrevista). Nota-se, pelas informações acima, que a presença do Estado é fator crucial para o aumento da população na área em estudo. As atividades de produção de alimentos, aliadas a assistência médica e vacinação fizeram com que a população tivesse mais qualidade de vida, menos doenças e prevenção de possíveis enfermidades. Como resultante desse rápido crescimento da população, a piora nas condições sanitárias e o aumento do lixo são mais presentes. Santilli busca, junto com os indígenas, opções para lidar com o crescimento da população de forma sustentável. Por parte dos indígenas, a preocupação é presente. Para Edinho de Souza, um dos coordenadores do Centro Indígena de Formação e Cultura, dentro da Terra Indígena Raposa 70 Serra do Sol: “O crescimento populacional é um fator de grande impacto ambiental. Isso aumenta a necessidade de alimentos, de terra... Não queremos ver roubo, fome e violência em nossas comunidades. Também estamos começando a debater o planejamento familiar” (NOGUEIRA, 2013, p. 27). As organizações indígenas que atuam nas Terras Indígenas Raposa Serra do Sol, segundo o Instituto Socioambiental (ISA), são: Tabela 2 - Organizações Indígenas na Raposa Serra do Sol. Nome Sigla Associação Agropecuária da Região Central Água Fria AARCAF Associação dos Povos Indígenas de Roraima APIRR Associação Regional Indígena do Rio Kinô, Cotingo e Monte Roraima ARIKON Conselho do Povo Indígena Ingarikó COPING Conselho Indígena de Roraima CIR Organização das Mulheres Indígenas de Roraima OMIR Organização dos Professores Indígenas de Roraima OPIRR Sociedade de Defesa dos Índios Unidos de Roraima SODIUR Fonte: Instituto Socioambiental (ISA), 2013. 71 3 A distribuição da terra em Roraima. Neste terceiro capítulo, optou-se pela coleta de dados junto aos órgãos atuantes na Terra Indígena Raposa Serra do Sol. Assim, dados originários do Ibama, Conselho Indígena de Roraima, Funai, Secretaria de Planejamento de Roraima e outras instituições ligadas às comunidades daquelas terras indígenas foram coletados, pessoalmente pelo autor ou através de publicações bibliográficas e webpages institucionais. A metodologia aplicada nesta parte do presente trabalho consistiu-se em coleta e análise de dados, utilizando-se de tabulação estatística, da confecção de gráficos e tabelas demonstrativas e apresentação de mapas ilustrados, objetivando demonstrar a função socioambiental desenvolvida pela Terra Indígena Raposa Serra do Sol. Passemos ao trabalho. Roraima, devido às recentes demarcações de terras pela União nesse estado, encontrase na seguinte situação fundiária (SEPLAN-RR, 2012): 46,14% de seu território constituemse em terras sob domínio da FUNAI, 7,61% sob administração da ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade), 13,81% são áreas de preservação (IBAMA), 6,6% das terras estão sob domínio do IBAMA, 5,98% sob o domínio do INCRA, 1,23% são áreas do Ministério da Defesa, totalizando 74,24% do território do estado sob domínio da União. Com tão peculiar distribuição de terras, sobram para o estado 25,76% do território, somando-se terras públicas e privadas. 72 Figura 7 - Mapa das áreas pretendidas do estado de Roraima. Fonte: Centro de Geotecnologia e Ordenamento Territorial – CGOT – Roraima, 2013. Muitos são os óbices ao desenvolvimento econômico do estado, uma vez que restaram dificultadas diversas iniciativas por parte dos governos locais ou de empresas que tenham interesse em exploração econômica de alguma dessas áreas afetadas, e ainda, a área que não sofreu afetação por parte da União representa menos de um terço do território. Além disso, a insegurança jurídica estabelecida pelo apetite demarcatório do poder público federal rumo às terras roraimenses provoca desconfiança de empresários que tinham ou poderiam ter planos 73 de investimento na região, a exemplo do agronegócio. A imagem que ficou mais forte no imaginário nacional, relativa à demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, foi a retirada dos fazendeiros, nacionalmente conhecidos por “arrozeiros”, em uma operação da Polícia Federal, determinada pelo Supremo Tribunal Federal, em 2009. Fugura 8 - Terras indígenas demarcadas em Roraima. Fonte: Ecoamazônia, 2013. A questão da terra é, pois, fator preponderante de desenvolvimento para estados pouco ou nada industrializados, como o caso de Roraima, uma vez que o agronegócio é vocação natural, e mesmo desejável, como motor de alavancagem do crescimento econômico da região (SILVEIRA, 2010). 3.1 A questão da agricultura e as terras afetadas O estado de Roraima detém apenas um quarto de seu território efetivamente passível de exploração pelo poder público e pela iniciativa privada. Devido à economia essencialmente agrícola e pecuária, o estado, nas últimas décadas, teve período de desenvolvimento considerável na produção de arroz, até a demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, consolidada em 2009 com a decisão final da questão e consequente 74 retirada dos não índios da região. A agricultura rizicultora sofreu acentuada queda no nível de produção e em sua área plantada. Em dados disponibilizados pelo governo de Roraima (SEPLAN-RR/CGEES, 2011) a área plantada de arroz no estado em 2004 era de 26.300 hectares, caindo para 15.500 hectares em 2010. Quanto à produção de arroz, em 2004 foram colhidas 136.630 toneladas contra 85.325 toneladas em 2010. A produção de milho também sofreu drástica redução. Ainda segundo o governo de Roraima (SEPLAN-RR/CGEES, 2011), a área plantada caiu de 12.200 hectares em 2004 para 6.500 hectares em 2010. A produção de milho caiu de 24.000 toneladas em 2004 para 12.800 toneladas em 2010. Segunda a mesma fonte, a produção de soja tinha área plantada de 12.000 hectares em 2004, caindo para 1.400 hectares em 2010. A produção desse cereal caiu de 36.400 toneladas em 2005 para 3.920 toneladas em 2010. A produção de limão tinha área plantada de 271 hectares em 2006, caindo para apenas 44 hectares em 2010. Sua produção caiu de 371 toneladas em 2008 para apenas 13 toneladas em 2010. Os 14 produtos agrícolas mais importantes para o estado tinham uma área plantada de 66.749 hectares em 2004 para 42.193 em 2010. A produção total desses produtos foi de 319.126 toneladas em 2004, caindo para 246.342 toneladas em 2010. 3.2 As demarcações de terras indígenas Com a demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, numa área de aproximadamente 1,7 milhão de hectares, ocorrida em 2005, uma grande discussão sobre a questão espalhou-se pelo Brasil e pela mídia internacional, tomando o noticiário por alguns anos. Como exemplos, (Survival for trible peoples, 2009): “After years of conflict and tension, rice farmers are finally leaving the indigenous territory known as Raposa-Serra do Sol (the Land of the Fox and Mountain of the Sun) in northern Brazil”. Também (BBC NEWS, 2008): “Indigenous leaders in Brazil say they have won an important victory for the rights of their community, at a key hearing of the Supreme Court”. 75 Já no Brasil, (FOLHA, 2008) esse jornal trás duas ideias que simbolizam o embate que se estabeleceu ao redor da demarcação: “’Por que o caso da Raposa despertou tanto interesse? Porque estava a se julgar, pela primeira vez, o estatuto da demarcação de terras. ’ (Gilmar Mendes, presidente do STF)”; “Há grandes reservas minerais no subsolo das reservas indígenas. Há uma coincidência entre as áreas indígenas e as áreas ricas em minerais. E com certeza não foram os índios que fizeram prospecção para descobrir que lá existiam grandes reservas minerais. (José de Anchieta Júnior – PSDB-, governador de Roraima)”. Essa atenção dispensada pela imprensa nacional e internacional tem razão de ser. Como se pretendia estabelecer uma demarcação de dimensões gigantescas na Amazônia, tendo os indígenas como protagonistas históricos, misturando terra, Amazônia e índios, já é assunto suficiente para atrair a atenção de tanta gente. Essa questão da demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol é antiga. Data de 1919 a primeira tentativa de demarcação, passando praticamente um século de indefinição e uma interminável batalha jurídica em defesa de interesses que se situavam basicamente em dois grupos: de um lado havia os defensores dos direitos de exclusividade da posse da terra pelos indígenas e, por outro, os que defendiam o direito dos produtores de continuarem a explorar as terras, gerando divisas para o país, alimentos, etc. Simplificando, havia os que defendiam a forma contínua, ou seja, que toda a área em questão fosse demarcada como um todo, retirando-se os não índios da referida área, e havia a corrente que defendia a definição descontínua (por ilhas), que manteria as fazendas e a exploração econômica dessas áreas pelos fazendeiros. Venceu a ideia da demarcação contínua, atendendo, em tese, a todos os anseios dos indígenas e indigenistas. Sobre essa discussão, coletamos o discurso do Deputado Estadual Sérgio Ferreira (2001): Mas, há tempos, Senhor Presidente, quero aqui, publicamente, postergar o meu apoio a esses bravos irmãos índios que compõem esse segmento lúcido que é contra a demarcação enorme das terras do Estado de Roraima, pois inviabiliza o desenvolvimento do Estado. Essa é uma iniciativa brilhante de Vossa Excelência, com apoio de inúmeros Parlamentares, colegas nossos, lúcidos, que têm um pensamento único, como Vossa Excelência teve, que estão representando bem o povo de Roraima, votando “sim” a esse Projeto, que torna a SODIUR uma entidade de utilidade pública, pois isso já deveria ter sido feito, há muito tempo. Mas nunca é tarde para quem quer trabalhar em prol do desenvolvimento do Estado de Roraima. (Deputado Estadual – RR - Sérgio Ferreira – PDT, 1033ª sessão, 30.05.2001). 76 Refere-se o Deputado à Sociedade de Defesa dos Índios do Norte de Roraima (SODIUR), entidade que se posicionou contra a demarcação contínua dessas terras, pois muitos de seus integrantes trabalhavam em fazendas da região e temiam que, com a demarcação e consequente retirada dos fazendeiros, fossem privados de sua fonte de renda. Por outra via, com visão oposta: Muito mais do que as garantias da lei, é o desinteresse econômico que assegura ao índio a posse do nicho em que vive. A descoberta de qualquer elemento suscetível de exploração – um seringal minérios, essências florestais ou manchas apropriadas para certas culturas, equivale à condenação dos índios, que são pressionados à desocupá-las ou nelas morrerem chacinados. (...) Este tem sido o processo natural de expansão da sociedade brasileira, que, ainda no século XX, em muitas áreas, continua a crescer às custas dos territórios tribais. Mesmo as ínfimas porções do antigo território, aqui e ali concedidas aos índios com toda a proteção possessória (...), mesmo destas tem sido espoliados quando atingem certo valor.” (RIBEIRO, 1986, p. 199). No caso da Raposa Serra do Sol, os adeptos da causa indígena alegam que o fato de haver diversas riquezas minerais, sem contar a biodiversidade na área, atiça o interesse dos não índios em busca de enriquecimento, sejam empresas, pessoas físicas e mesmo dos governos. Foram, então, demarcadas a Terra Indígena de forma contínua, conforme publicado no DOU (15.04.2005): Fica homologada a demarcação administrativa (...) da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, destinada à posse permanente dos Grupos Indígenas Ingarikó, Makuxi, Patamona, Taurepang e Wapixana (...) tem a superfície total de um milhão, setecentos e quarenta e sete mil, quatrocentos e sessenta e quatro hectares, setenta e oito ares e trinta e dois centiares (...). Essa dimensão deixa clara a intenção de se limitar um espaço geográfico que possibilitasse a livre manifestação da cultura, os costumes e tradições de vida dos indígenas. 77 Tabela 3 – Povos, línguas e população. Família Povo Língua Linguística População no Brasil Ingarikó Karib Ingarikó 1.271 Makuxi Karib Macuxi 29.931 Patamona Karib Patamona 128 Taurepang Karib Wapixana Aruak Taulipáng (Pemóng) Wapixana 673 7.832 Fonte: Instituto Socioambiental (ISA), 2013. Essa demarcação foi ferozmente combatida por parte da sociedade local, principalmente pelos arrozeiros e pelo governo de Roraima, sendo a questão decidida pelo Supremo Tribunal Federal, em 2009. Não é facilmente aceita, até hoje, essa postura estatal, sendo que grande número de pessoas, sobretudo as ligadas aos produtores rurais dali retirados, em que pese à decisão da Suprema Corte, ainda contesta publicamente essa demarcação. Os argumentos mais recorrentes são ligados à suposta falta de exploração econômica da terra pelos indígenas, que não estariam produzindo alimentos como dantes se fazia nessas terras, também se alega que essa demarcação prejudica enormemente a economia de Roraima, uma vez que o estado fica com parcas porções de terra disponíveis para a exploração econômica. Com mais essa demarcação, a situação das áreas indígenas em Roraima ficou da seguinte forma: Tabela 4 - Povos Indígenas em Roraima, segundo terras, população, áreas e grupos indígenas – 2008. Terra Indígena Ananás Grupo Indígena Macuxi Município Amajari Área (ha) População 1.769 29 78 Terra Indígena Grupo Indígena Município Área (ha) População Anaro Wapixana Amajari 30.474 58 Aningal Macuxi Amajari 7.627 184 Anta Macuxi/Wapixana Alto Alegre 3.174 154 Araçá Macuxi/Wapixana Amajari 50.018 399 Barata/Livramento Macuxi/Wapixana Alto Alegre 12.883 596 Bom Jesus Wapixana Bonfim 859 45 Boqueirão Macuxi/Wapixana Alto Alegre 15.860 366 Cajueiro Macuxi Amajari 4.304 25 Canauanim Macuxi/Wapixana Bonfim 11.182 818 Jabuti Macuxi/Wapixana Bonfim 14.210 313 Jacamim Wapixana Bonfim 189.500 588 Malacacheta Wapixana Bonfim 28.632 895 Mangueira Macuxi Alto Alegre 4.064 96 Manoá/ Pium Macuxi/Wapixana Bonfim 43.337 809 Moskow Macuxi/Wapixana Bonfim 14.200 385 Muriru Wapixana Bonfim 5.520 110 Ouro Macuxi Amajari 13.573 113 Pium Macuxi Alto Alegre 4.608 323 Ponta da Serra Macuxi Amajari 15.597 114 Raimundão Macuxi/Wapixana Alto Alegre 4.277 258 Raposa /Serra do Sol Mac./ Wap./Ingaricó 1.747.464 20.488 Santa Inês Macuxi 29.698 106 São Marcos Mac./Wap./Taurepang Pacaraima/ Boa Vista 654.110 1.835 Serra da Moça Macuxi/Wapixana Boa Vista 11.626 167 Sucuba Macuxi Alto Alegre 5.983 209 Tabalascada Wapixana Cantá 13.024 432 Truaru Macuxi/Wapixana Alto Alegre 5.653 317 Normandia/Uiramutã/ Pacaraima Amajari Trombeta/Mapuera Wai-Wai Caroebe 663.775 418 Waimiri/Atroari Rorainópolis 666.311 (*1) Waimiri/Atroari 79 Terra Indígena Grupo Indígena Município Área (ha) População Terra Indígena Caroebe/S.João Baliza/ Wai-Wai Wai-Wai 405.000 616 5.792.669 10.598 10.470.981 41.864 S.Luiz Anauá Iracema/Amajari/Caracaraí/ Yanomani Yanomani Mucajaí/ Alto Alegre Total - - Fonte: Fundação Nacional do Índio, FUNAI-RR; Elaboração: SEPLAN-RR/CGEES Nota-se pela tabela que as áreas demarcadas somam um total de 10.470.981 hectares para uma população de 41.864 indígenas. Isso representa 250,12 hectares por pessoa, ou seja, uma área de aproximadamente 500 campos de futebol para cada um. Essa distribuição causa reclamações generalizadas por parte daqueles não alinhados à causa indígena. De qualquer forma, os não índios foram retirados, a área foi entregue à exploração exclusiva dos indígenas e a imprensa diminuiu a intensidade das matérias sobre esse tema. Ainda, há as demarcações de terras destinadas à preservação ambiental que ocupa grandes porções de áreas do estado de Roraima. A situação atual do estado é a seguinte: Tabela 5 - Unidades de conservação da natureza, área total, municípios abrangidos e decretos de criação. DENOMINAÇÃO ÁREA (ha) MUNICÍPIO ABRANGIDO DECRETO / LEI PARQUES NACIONAIS Monte Roraima 117.147,44 Uiramutã 97887/89 Viruá 215.917,78 Caracaraí S/Nr./98 Serra da Mocidade 377.937,49 Caracaraí S/Nr./98 ESTAÇÕES ECOLÓGICAS Ilha de Maracá 103.976,48 Amajarí 86061/81 Niquiá 286.049,62 Caracaraí 91306/85 Caracaraí 87.195,54 Caracaraí 87222/82 80 DENOMINAÇÃO MUNICÍPIO ABRANGIDO DECRETO / LEI 3.215.507,94 Amajarí‚ Alto Alegre‚ Mucajaí‚ Iracema‚ Caracaraí 97.545/89 260.559,61 Rorainópolis S/Nr/05 ÁREA (ha) PARQUES NACIONAIS FLORESTA NACIONAL Roraima Anauá Fonte: Instituto Brasileiro do Meio Ambiente-IBAMA; Elaboração: SEPLAN-RR/CGEES Pela tabela publicada pela SEPLAN-RR, nota-se que a área total destinada a tais unidades soma 4.664.291,9 hectares. Para um estado que conta com uma área total de 22.411.800 hectares, somando-se as terras indígenas e as unidades de conservação tem-se 15.135.272,90 hectares de terras afetadas apenas com terras indígenas e reserva ambiental, o que representa bem mais da metade da área total do estado. Isso demonstra um estado fortemente demarcado, com grande parte de seu território afetado por decisões da União, por vezes sendo chamado de “estado virtual”, pois as terras, em que pese a área total de Roraima ser grande, praticamente metade encontra-se sob desígnios de outro ente senão o poder público local. Reclamam políticos e governos pela situação peculiar que se tornou a realidade de Roraima, se transformando em uma unidade virtual da federação, pois suas terras têm designação federal em grande parte. 3.3 A situação após a demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol. A mídia, como dito acima, deixou de dar a mesma importância à notícia da Terra Indígena Raposa Serra do Sol após a retirada dos fazendeiros. Mesmo assim, alguns meios de comunicação ainda dispensam atenção para o assunto. Em matéria publicada na Revista Veja on-line, Azevedo (2011), citando matéria publicada na versão impressa daquela revista, de autoria de Leonardo Coutinho, critica a suposta situação de índios e não índios, dois anos após a retirada dos fazendeiros: omo os índios não têm dinheiro, tecnologia ou assistência técnica para cultivar as lavouras, os campos onde o peão trabalhava foram abandonados. Silva preferiu C 81 construir uma maloca sobre uma montanha de lixo a viver na aldeia. Agora, ganha 10 reais por dia coletando latinhas de alumínio, 40% menos do que recebia para tocar boiada. Ainda assim, considera sua vida no lixão menos miserável do que na reserva. Ele é vizinho do casal uapixana Roberto da Silva, de 79 anos, e Maria Luciano da Silva, de 60, que também cata latas e comida no aterro. “O lixo virou a única forma de subsistência de muita gente que morava na Raposa Serra do Sol”, diz o macuxi Sílvio Silva, presidente da Sociedade de Defesa dos índios Unidos do Norte de Roraima. Essa suposta situação, indesejável sob qualquer ideologia ou ideal filosófico, despertou a indignação de muitos dos atores sociais que haviam se engajado na luta pela questão. Azevedo19, ele mesmo um intenso crítico da demarcação nos moldes que foi realizada, na mesma matéria assim demonstra sua indignação: A mesma quase unanimidade estúpida que se vê na imprensa agora contra o relatório correto e decente de Aldo Rebelo (PC do B) para o novo Código Florestal se via em março de 2009 em relação à demarcação contínua da reserva e à expulsão dos arrozeiros. Assim como jornalistas que nunca viram um pé de feijão estão convictos hoje de que é preciso reflorestar as margens de rios que abrigam agricultura há 200 anos, estavam então convictos de que os agricultores tinham de sair da dita reserva indígena. Eram as mesmas ONGs, os mesmos terroristas midiáticos, os mesmos vagabundos. Mais de mil ONGs atuam na Amazônia. MIL!!! Nota-se que, segundo a visão desse articulista, a forma que foi conduzida a demarcação das terras indígenas foi equivocada, pois ao invés de gerar paz e desenvolvimento, gerou injustiças inúmeras e pobreza humilhante. Esse ponto de vista, ressalte-se, é uma concepção diferente da indígena de terra. Se para os críticos da demarcação e desintrusão dos arrozeiros o que se fez foi um erro, pois teria deixado um vazio social, visto a retirada de fazendeiros que produziam alimentos e davam empregos até para índios ter causado desemprego, por outro lado, há os que aplaudem o mesmo fato, visto por outra ótica. 19 Em que pesem o teor jornalístico engajado do autor, optou-se por manter as informações baseadas em Azevedo como forma de demonstrar outro lado da mesma história. Há jornalistas a favor e contra as demarcações em ilhas, bem como de forma contínua. 82 Figura 9 - Mapa Etno-Região Roraima. Fonte: FUNAI-Roraima, 2013. Por outro lado, diferente olhar sobre a demarcação e seus efeitos é apresentado por Gomes (2013), para o qual a reserva Raposa Serra do Sol, com seu 1,7 milhão de hectares a 83 nordeste de Roraima, vem aos poucos se tornando produtiva nas mãos dos indígenas. Segundo o autor, a agricultura se expandiu nas aldeias, principalmente mandioca, feijão e milho. A piscicultura também foi se expandindo, principalmente no Lago Caracaranã, que era um ponto turístico, passou a produzir tambaqui, com a adoção de tanques-rede. Também culturas de hortaliças foram implementadas, principalmente com a contratação pelo governo de Roraima de 26 técnicos agrícolas indígenas, estes os primeiros do Brasil. O Senador por Roraima, Mozarildo Cavalcanti, em discurso no Senado Federal, proferido em 30 Mai. 2011, cita a mesma matéria da Revista Veja, no seguinte teor: [...] Vou falar também como médico. Estamos em uma realidade, Senador Paim. Vamos tratar desta realidade. Não é possível ver brasileiros, índios e não índios, índios se transformando em favelados na periferia da cidade. Aliás, a fotografia que a revista Veja publica diz tudo: o casal de índios com a sua filha num barraco de madeira, porque ele não aguentou ficar lá.[...] (CAVALCANTI, 2011) Essa posição do Senador demonstra o descontentamento pela situação gerada pela retirada dos fazendeiros, pois, segundo a visão de Cavalcanti, econômica e humanamente todos perderam com essa demarcação, uma vez que tanto índios (muitos deles), quanto não índios (todos eles) tiveram que sair da área demarcada. Uns por imposição da demarcação e suas consequências jurídicas e determinações judiciais, outros pela dura realidade apresentada após a desativação das fazendas geradoras dos empregos. Ainda na mesma matéria de Veja, o autor trás o caso de um ex-fazendeiro que tinha uma fazenda de 50 quilômetros quadrados e criava 1.300 cabeças de gado. Segundo a matéria, as edificações existentes na terra teriam sido avaliadas em 350.000 reais, sendo que a FUNAI deu-lhe apenas 72.000 reais pelas benfeitorias e nada pela terra. Em consequência, o rebanho definhou e hoje esse ex-próspero fazendeiro sobrevive vendendo churrasquinho no centro de Boa Vista. Azevedo conclui seu artigo: Os novos favelados de Roraima são uma criação das ONGs, da Fundação Ford, da Funai, do Ibama, do Ministério do Meio Ambiente, da esmagadora maioria da imprensa — os mesmos conjurados agora contra o Código Florestal — e, obviamente, do STF. Os versos que poetizam essa miséria são de Ayres Britto. Ele exaltou tanto os índios ideais. O chato é que eles eram reais. Para o articulista, tratando o assunto de forma romântica e ideologizada não resolveu o problema da terra. Os índios, segundo aquele autor, já viviam de forma capitalista, já tendo 84 absorvido o estilo de vida dos “civilizados”, acostumados a obter seu sustento trabalhando em fazendas e recebendo dinheiro em troca. Em decorrência desse fato, de que diversos indígenas que vivem nessas terras ora demarcadas, sendo os não índios, chamados de “desintrusados” retirados, ficou o grande desafio de viver em área indígena, mas com conhecimentos mesclados com modos de vida capitalista. 3.3.1 As dezenove condições do Supremo Tribunal Federal relativas às Terras Indígenas Raposa Serra do Sol: possibilidades e dificuldades de exploração pelos indígenas A Pet 3388 se originou de uma ação popular ajuizada na Justiça Federal de primeiro grau em Roraima, em que o senador Augusto Botelho (PT-RR), com assistência do senador Mozarildo Cavalcanti (PTB-RR), contesta o decreto demarcatório e a homologação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol. Segundo notícia do STF (BRASIL, 2009), publicada em 19 de março de 2009, trata-se da portaria demarcatória da área, de nº 534/2005, editada pelo então ministro da Justiça Márcio Thomaz Bastos, e do decreto de sua homologação, baixado pelo presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, de 15 de abril de 2005. Posteriormente, o processo foi transferido para o STF, por envolver conflito entre a União, o estado e os municípios de Roraima, sendo autuado na Suprema Corte como Petição (PET). Em 2009 o Supremo Tribunal Federal proferiu a decisão sobre a demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol. Essa decisão se deu como um momento de firmação de posição por parte do poder judiciário brasileiro. Como corolário daquela decisão, o STF estabeleceu dezenove condições para a exploração daquelas terras pelos indígenas, sinalizando a determinação de se fazer cumprir à Constituição Federal Brasileira , bem como deu o norte principiológico que deveria ser seguido daquele momento em diante. Traz-se aqui, um trecho do voto do ministro relator, Carlos Ayres Britto: 85 [...] Daqui se infere o despropósito da afirmação de que “índio só atrapalha o desenvolvimento”, pois o desenvolvimento como categoria humanista e em bases tão ecologicamente equilibradas quanto sustentadas bem pode ter na cosmovisão dos indígenas um dos seus elementos de propulsão. Por isso que ao Poder Público de todas as dimensões federativas o que incumbe não é hostilizar e menos ainda escorraçar comunidades indígenas brasileiras, mas tirar proveito delas para diversificar o potencial econômico dos seus territórios (territórios dos entes federativos, entenda-se) e a partir da culturalidade intraétnica fazer um desafio da mais criativa reinvenção da sua própria história sócio-cultural. Até porque esse é o único proceder oficial que se coaduna com o discurso normativo da Constituição, no tema. Um discurso jurídico-positivo que já não antagoniza colonização e indigenato, mas, ao contrário, intenta conciliá-los operacionalmente e assim é que nos coloca na vanguarda mundial do mais humanizado trato jurídico da questão indígena (BRASIL, 2009). Para o ilustre Ministro do STF, os habitantes da Terra Indígena Raposa Serra do Sol devem ser aceitos como elementos positivos do desenvolvimento, não antagonistas deste, uma vez que podem contribuir com uma cosmovisão de desenvolvimento diferente da dos não índios. Aqui, analisar-se-ão as condições estabelecidas pelo STF, no que concerne às possibilidades em se dar uma função socioambiental àquelas terras. Esse exame buscará entender o fundamento sobre o qual o STF se baseou. A primeira condição remete ao que já se encontra estabelecido na Constituição Federal: Condição 1 – O usufruto das riquezas do solo, dos rios e dos lagos existentes nas terras indígenas pode ser relativizado sempre que houver como dispõe o artigo 231 (parágrafo 6º, da Constituição Federal) relevante interesse público da União na forma de Lei Complementar. O Art. 231 da Constituição Federal estabelece que: “São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”. Neste artigo, o constituinte estabelece que serão respeitados os índios em seus valores. Também estabelece a obrigatoriedade da União em realizar a demarcação das terras indígenas, fazendo a todos guardar o devido respeito aos bens indígenas ali existentes. O STF, ao estabelecer a condição 1, reafirma a intenção de se garantir aos indígenas o usufruto das terras, mas reservando ao poder público a possibilidade de alocar partes daquelas terras quando houver interesse social que justifique tal interferência. 86 No parágrafo 6o, desse mesmo artigo, fica estabelecido que: São nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras a que se refere este artigo, ou a exploração das riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes, ressalvado relevante interesse público da União, segundo o que dispuser lei complementar, não gerando a nulidade e a extinção direito a indenização ou a ações contra a União, salvo, na forma da lei, quanto às benfeitorias derivadas da ocupação de boa fé (grifo nosso). Na verdade, o que o STF fez, nessa primeira imposição, foi apenas reafirmar o que a própria Constituição já estabelecia. Para José Afonso da Silva (2008), em parecer requerido pelo Conselho Indígena de Roraima-CIR [...] “São terras vinculadas ao cumprimento dos direitos indígenas sobre elas, reconhecidos pela Constituição como direitos originários (art. 231), que, assim, consagra uma relação jurídica fundada no instituto do indigenato, como fonte primária e congênita da posse territorial”. Ainda no mesmo parecer, Silva afirma que “quanto às benfeitorias, não autoriza ações e pedido de indenização contra os índios, pois não são acionáveis, mas apenas contra a União a que cabe velar e impedir a prática de atos atentatórios aos direitos dos índios sobre as terras por eles ocupadas, que são bens dela”. As segunda, terceira e quarta condições estabelecidas pelo STF abordam a questão da extensão do direito de exploração das terras permitida aos índios. Aqui também, a Suprema Corte repete o que preceitua a Constituição Federal. Condição 2 – O usufruto dos índios não abrange o aproveitamento de recursos hídricos e potenciais energéticos, que dependerá sempre da autorização do Congresso Nacional; Condição 3 – O usufruto dos índios não abrange a pesquisa e a lavra de riquezas minerais, que dependerá sempre de autorização do Congresso Nacional, assegurando-se-lhes participação nos resultados, na forma da lei; Condição 4 – O usufruto dos índios não abrange a garimpagem nem a faiscação, dependendo-se o caso, ser obtida a permissão da lavra garimpeira. O Art. 231 da Constituição Federal estabelece, nos parágrafos 2o e 3o o mesmo que o STF preceituou nestas condições: § 2o - As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se a sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes. § 3o - O aproveitamento dos recursos hídricos, incluídos os potenciais energéticos, a pesquisa e a lavra das riquezas minerais em terras indígenas só podem ser efetivados com autorização do Congresso Nacional, ouvidas as comunidades afetadas, ficando-lhes assegurada participação nos resultados da lavra, na forma da lei (grifo nosso). 87 Sobre o assunto, José Afonso da Silva afirma que “A posse das terras indígenas tratase de um instituto que não visa somente o poder de fato sobre a terra, mas sim uma possessio ab origine” (SILVA apud DI PIETRO, 2008, p. 657). Ainda, a Constituição Federal, no art. 49 prevê a competência do Poder Legislativo para autorizar esse tipo de atividade: “É da competência exclusiva do Congresso Nacional: XVI - autorizar, em terras indígenas, a exploração e o aproveitamento de recursos hídricos e a pesquisa e lavra de riquezas minerais”. Assim, não há de se perquirir a competência do Congresso Nacional para tais autorizações. O Art. 176 da Constituição Federal, no parágrafo 1º (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 6, de 1995) estabelece condições especiais para a exploração de recursos hídricos e minerais em terras indígenas. Art. 176. As jazidas, em lavra ou não, e demais recursos minerais e os potenciais de energia hidráulica constituem propriedade distinta da do solo, para efeito de exploração ou aproveitamento, e pertencem à União, garantida ao concessionário a propriedade do produto da lavra. § 1º A pesquisa e a lavra de recursos minerais e o aproveitamento dos potenciais a que se refere o "caput" deste artigo somente poderão ser efetuados mediante autorização ou concessão da União, no interesse nacional, por brasileiros ou empresa constituída sob as leis brasileiras e que tenha sua sede e administração no País, na forma da lei, que estabelecerá as condições específicas quando essas atividades se desenvolverem em faixa de fronteira ou terras indígenas. Na verdade, ainda há celeuma quanto a esse tema, mesmo com a legislação brasileira sendo clara a tal respeito, e com o posicionamento do STF, muitos são os interessados em que a exploração dos recursos hídricos ou minerais seja possibilitados, sem que haja a necessidade de autorização do Congresso Nacional. Em andamento atualmente no Congresso Nacional, o Projeto de Lei 1610/96 tem como condão a regulamentação da exploração e o aproveitamento de recursos minerais em terras indígenas, de que tratam os art. 176, parágrafo primeiro, e 231, parágrafo terceiro, da Constituição Federal. De autoria do senador Romero Jucá - PFL/RR, foi apresentada ao Congresso em 11.03.1996. Atualmente o relator do projeto, Deputado Edio Lopes (PMDBRR), autor de substitutivo ao projeto, afirma que20 “o objetivo principal de seu substitutivo é 20 Em matéria publicada no site da Câmara dos Deputados Federais, o deputado Edio Lopes afirma que "Em nenhum momento nós levamos em consideração os interesses das mineradoras. Mesmo porque, durante todo o nosso trabalho, esse foi o segmento que menos procurou a comissão, que menos debateu o assunto" (AMATE, 2012). 88 garantir um ponto de equilíbrio entre os interesses econômicos do País e os direitos dos povos indígenas”. O parlamentar explica que o seu texto regulamenta o artigo 231 da Constituição, que reconhece os direitos indígenas. "O que nós estamos regulamentando e, por certo, o novo Código Minerário não poderia tratar, é da regulamentação do parágrafo terceiro do artigo 231, cujos três fundamentos são: consulta às comunidades indígenas para que ocorra a exploração mineral; participação no resultado da lavra; e autorização do Congresso Nacional." Tabela 6 - Situação do Projeto de Lei 1610/96 no Congresso Nacional. Em análise na Câmara dos Deputados Federais (em 30.03.2013) Proposta Autoria Ementa Estágio atual Projeto de Lei Senado Regulamenta a mineração em terras Aguarda parecer de indígenas e assegura a participação comissão especial. 1610/96 econômica das comunidades afetadas. Fonte: Câmara dos Deputados Federais, 2013. Quanto às condições cinco, seis e sete, o STF estabeleceu seu entendimento da forma com que deverá ser explorada a Terra Indígena Raposa Serra do Sol pelos índios. Estabeleceu os limites do direito de exclusividade de exploração pelos índios, à convivência harmônica com os interesses nacionais, bem como a presença das forças federais de segurança. Condição 5 – O usufruto dos índios não se sobrepõe ao interesse da Política de Defesa Nacional. A instalação de bases, unidades e postos militares e demais intervenções militares, a expansão estratégica da malha viária, a exploração de alternativas energéticas de cunho estratégico e o resguardo das riquezas de cunho estratégico a critério dos órgãos competentes (o Ministério da Defesa, o Conselho de Defesa Nacional) serão implementados independentemente de consulta às comunidades indígenas envolvidas e à FUNAI; Condição 6 – A atuação das Forças Armadas e da Polícia Federal na área indígena, no âmbito de suas atribuições, fica garantida e se dará independentemente de consulta a comunidades indígenas envolvidas e à FUNAI; Condição 7 – O usufruto dos índios não impede a instalação pela União Federal de equipamentos públicos, redes de comunicação, estradas e vias de transporte, além de construções necessárias à prestação de serviços públicos pela União, especialmente os de saúde e de educação; 89 A condição 5, bem como a condição 6, veio para esclarecer uma interpretação que se dava à época da discussão, segundo alguns intérpretes dos efeitos da demarcação, que entendiam que mesmo as Forças Armadas não teriam acesso às Terras Indígenas Raposa Serra do Sol. Para o General Luiz Gonzaga Schroeder Lessa, ex-Comandante Militar da região, durante o I Seminário Nacional de Produtores Rurais e Desenvolvimento Sustentável em Áreas Fronteiriças, em 04.08.2008, em Boa Vista, Roraima: “nestas áreas não será permitida a entrada de produtores rurais e Forças Armadas” (FAEP, 2008). Apreensivo quanto ao futuro do Brasil, o general afirmava, pouco antes da decisão do STF que "o Brasil poderá se tornar alvo de outros países" (FAEP, 2008), se referindo à situação de fragilidade que se instalaria nas fronteiras sem a presença das Forças Armadas nas terras indígenas demarcadas. Em matéria publicada no jornal Folha de São Paulo, em 29 de junho de 2008, o então general-de-brigada Luiz Eduardo Rocha Paiva, instrutor da Academia Militar das Agulhas Negras, da Escola de Aperfeiçoamento de Oficiais e da Escola de Comando e Estado-Maior do Exército, afirmou que, como estão pouco povoadas, as reservas na área de fronteira podem virar territórios autônomos: "Se o brasileiro não índio não pode entrar nessas reservas, daqui a algumas décadas a população vai ser de indígenas que, para mim, são brasileiros, mas para as ONGs não são. Eles podem pleitear inclusive a soberania” (LIMA, 2008). Com a decisão do STF de asseverar o ingresso de forças de segurança nas terras indígenas demarcadas, sem a necessidade de consulta à FUNAI ou à comunidade indígena, a Corte Suprema brasileira pacifica o entendimento da função de caráter nacional e perene das Forças Armadas, estabelecida no Art. 142 da Constituição Federal, bem como a função e atribuições da Polícia Federal: Art. 142. As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem. Art. 144. A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos: I - polícia federal. [...] 90 § 1º A polícia federal, instituída por lei como órgão permanente, organizado e mantido pela União e estruturado em carreira, destina-se a: (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998). I - apurar infrações penais contra a ordem política e social ou em detrimento de bens, serviços e interesses da União ou de suas entidades autárquicas e empresas públicas, assim como outras infrações cuja prática tenha repercussão interestadual ou internacional e exija repressão uniforme, segundo se dispuser em lei; II - prevenir e reprimir o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o contrabando e o descaminho, sem prejuízo da ação fazendária e de outros órgãos públicos nas respectivas áreas de competência; III - exercer as funções de polícia marítima, aeroportuária e de fronteiras; Sobre esse tema, o ministro do STF Ayres Britto, relator do processo, em seu voto assim se manifestou (BRASIL, 2009): Afinal, nada juridicamente impede, mas antes obriga, que o Poder Público brasileiro, sob a liderança institucional da União (nunca é demais repetir), cumpra o seu dever de assistir as populações indígenas. Dever que não se esgota com o ato em si de cada demarcação por etnia, pois ainda passa pela indispensável atuação das nossas Forças Armadas, isolada ou conjuntamente com a Polícia Federal, sempre que em jogo o tema fundamental da integridade territorial do Brasil (principalmente nas denominadas faixas de fronteira). Muito ao contrário do que temiam alguns, o entendimento da Suprema Corte se firmou no sentido de que, não apenas as forças de segurança deveriam ter livre acesso às terras indígenas demarcadas, mas têm o dever constitucional de ali estarem presentes, pois, no entendimento do relator, as Forças Armadas e Polícia Federal desempenham um papel de integração nacional, principalmente em regiões longínquas, como no caso de fronteira. As condições 8, 9 e 10 estão ligadas à forma de controle pelo Instituto Chico Mendes na área afetada por unidades de conservação. As condições 11, 12 e 13 estabelecem que a FUNAI controlará a entrada de visitantes, vedando a cobrança de ingressos ou cobrança de tarifas para utilização de eventuais aparelhos ou vias públicas ali existentes ou instaladas: Condição 8 – O usufruto dos índios na área afetada por unidades de conservação fica sob responsabilidade do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade; Condição 9 – O Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade responderá pela administração da área de unidade de conservação, também afetada pela terra indígena, com a participação das comunidades indígenas, que deverão ser ouvidas, levando em conta usos, tradições e costumes dos indígenas, podendo, para tanto, contar com a consultoria da FUNAI; 91 Condição 10 – O trânsito de visitantes e pesquisadores não índios deve ser admitido na área afetada à unidade de conservação nos horários e condições estipulados pelo Instituto Chico Mendes; Condição 11 – Deve ser admitido o ingresso, o trânsito e a permanência de não índios no restante da área da terra indígena, observadas as condições estabelecidas pela FUNAI; Condição 12 – O ingresso, o trânsito e a permanência de não índios não pode ser objeto de cobrança de quaisquer tarifas ou quantias de qualquer natureza por parte das comunidades indígenas; Condição 13 – A cobrança de tarifas ou quantias de qualquer natureza também não poderá incidir ou ser exigida em troca da utilização das estradas, equipamentos públicos, linhas de transmissão de energia ou de quaisquer outros equipamentos e instalações colocadas a serviço do público tenham sido excluídos expressamente da homologação ou não; Ao analisar a condição 14, tem-se uma ideia da forma pensada pelo STF da exploração econômica e social das terras demarcadas. Condição 14 – As terras indígenas não poderão ser objeto de arrendamento ou de qualquer ato ou negócio jurídico, que restrinja o pleno exercício do usufruto e da posse direta pela comunidade jurídica ou pela comunidade indígena; Nota-se que o Supremo Tribunal Federal seguiu à risca o que preceitua o Estatuto do Índio (Lei nº 6.001, de 19 de dezembro de 1973), em seu artigo 18: “As terras indígenas não poderão ser objeto de arrendamento ou de qualquer ato ou negócio jurídico que restrinja o pleno exercício da posse direta pela comunidade indígena ou pelos indígenas”. A jurisprudência também tem se posicionado neste sentido. TRF4 - APELAÇÃO CRIMINAL. Processo: ACR 80440 RS 2001.04.01.080440-0. Relator (a): MANOEL LAURO VOLKMER DE CASTILHO. Julgamento: 24/07/2002. Órgão Julgador: TURMA ESPECIAL. Publicação: DJ 14/08/2002 PÁGINA: 397. Ementa: ESTELIONATO. ARRENDAMENTO DE TERRAS INDÍGENAS. ART. 171, § 2º, I, CP. 1. As terras indígenas, sendo patrimônio da União, são inalienáveis e indisponíveis, insuscetíveis à exploração de terceiros senão pelos próprios índios, observando as regras estabelecidas pela FUNAI. Arrendamento irregular em favor de terceiro. 2. Os réus tinham plenas condições de conhecer a ilicitude de suas condutas, já que, sendo lideranças indígenas, deveriam ser conhecedores dos limites entre o lícito e o ilícito em se tratando de arrendamento de terras indígenas. Condenação adequada e pena de reclusão bem substituída. Multa mantida, ressalvado o parcelamento. Também o próprio STF assim se posicionou: 92 STF - RECURSO EXTRAORDINÁRIO RE 204647 BA - 25/02/2010 Ementa. JENER PEREIRA ROCHA E O ESTADO DA BAHIA interpõem recursos extraordinários (folhas 2148 a 2166 e 2177 a 2184, respectivamente) contra acórdão proferido pela Segunda Seção do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, assim do:"CIVIL E ADMINISTRATIVO. DIREITO AGRÁRIO. OCUPAÇÃO SOBRE TERRAS INDÍGENAS. ÍNDIO PATAXÓ. DIREITO A INDENIZAÇÃO.1. A aquisição (‘compra’) de arrendamento feito em terra indígena, de terceiros, sem o controle do órgão de proteção ao índio, descaracteriza a sua finalidade, ainda que originalmente se trate de ato legítimo. Depreende-se do exposto acima que a opção de exploração que destine parte de terras para terceiros não integrantes das terras indígenas demarcadas está fora da possibilidade jurídica. Constata-se que os índios não têm a possibilidade jurídica de explorar suas terras demarcadas através da terceirização ou arrendamento dessas terras, por expressa vedação legal e entendimento jurisprudencial. Nesse sentido, o Estatuto do Índio, no art. 22 estabelece que “Cabe aos índios ou indígenas a posse permanente das terras que habitam e o direito ao usufruto exclusivo das riquezas naturais e de todas as utilidades naquelas terras existentes”. O que se questiona nesse artigo é a extensão do usufruto exclusivo, pois quais seriam os limites de exploração dessas áreas, uma vez que, como no caso da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, tais terras foram demarcadas e todos os não índios retirados, ficando realmente a exploração somente para os índios ali presentes. Em matéria veiculada pelo Jornal O Estado de São Paulo, em março de 2012, aquele veículo de comunicação afirma que (SALOMON, 2012): “Por US$ 120 milhões, índios da etnia mundurucu venderam a uma empresa estrangeira, direitos sobre uma área com 16 vezes o tamanho da cidade de São Paulo em plena floresta amazônica, no município de Jacareacanga (PA)”. Segundo a reportagem, “O negócio garante à empresa ‘benefícios’ sobre a biodiversidade, além de acesso irrestrito ao território indígena”. Criou-se, neste caso, uma situação contrária ao que se pretendeu ao demarcar a área indígena, uma vez que, no contrato, ao qual os índios se comprometem a não plantar ou extrair madeira das terras nos 30 anos de duração do acordo. Inversamente do que se espera de terras indígenas demarcadas, no que tange a uma função socioambiental dessas terras, os indígenas devem tratar a terras e o meio ambiente de forma tradicional, dando utilidade que beneficie sua própria comunidade, que tenha o condão de preservar o modo de vida que mais se adeque aos anseios indígenas. Sobre o assunto, a FUNAI se manifestou no dia 14 de março de 2012, através de seu site, afirmando que a maioria dos contratos a que a FUNAI teve acesso “impedem os índios 93 de executarem suas práticas tradicionais, como, por exemplo, plantação de roças e corte de árvores para subsistência sem prévia autorização da empresa” (FUNAI, 2012). Segundo declaração da FUNAI, esses contratos perpassam por mais de uma geração e não preveem cláusulas de rescisão contratual, caso haja algum prejuízo para a comunidade indígena. Segundo aquela Fundação, “a FUNAI, que tem como missão precípua a defesa dos direitos dos povos indígenas, é contra esses contratos” e afirma que tem informado às lideranças indígenas sobre a “nulidade jurídica deles, tendo em vista que são terras da União e que a segurança jurídica exigida por esses contratos não pode ser dada pelos indígenas e sim pelo Estado brasileiro”. 94 4 Socioambientalismo e a função socioambiental da terra Idêntico ao capítulo anterior, neste buscou-se a coleta de dados como metodologia analítica. Em que pese à fundamentação teórica permear esta parte, embasando as informações trazidas pelo autor, procurou-se apresentar os projetos e programas desenvolvidos nas terras indígenas, utilizando a comparação estatística como metodologia analítica para esta parte do trabalho. Senão vejamos. Sustentabilidade é um termo que encontrou eco mundial, sobretudo com as modificações climáticas das últimas décadas, estabelecendo uma discussão supostamente em prol da própria sobrevivência do planeta. Vozes como Bertha K. Becker, Ignacy Sachs, Cristovam Buarque, Bill Clinton e Al Gore se destacaram nesse tema. A preocupação com o planeta e com os recursos naturais tidos como inesgotáveis torna-se presente, pois se fez urgente encontrar uma forma de se explorar economicamente o planeta de forma sustentável. O mundo científico se debruçava sobre um problema que não era discutido, pois até ali, “[...] a natureza era a despensa – de onde tiraríamos, sem parcimônia, o máximo possível – e o depósito de lixo – onde poderíamos jogar todos os resíduos do processo produtivo" (SACHS, 2008, p. 14-15). A primeira iniciativa concreta nesse sentido foi a criação do Parque Yellowstone, nos Estados Unidos, em 1872. Essa criação “se dá em meio a um amplo questionamento do antropocentrismo que, ao longo de toda a história da cultura ocidental, tem predominado como orientador de representações e práticas humanas em relação à natureza” (SERRANO. 1997, p. 104). Com a Conferência das Nações Unidas sobre o Ambiente Humano, em 1972, em Estocolmo, colocou-se a dimensão do problema para o planeta. Essa conferência foi precedida pelo encontro de Founex, de 1971, onde foram discutidas as dependências entre o desenvolvimento e o meio ambiente (SACHS, 2008). A partir desse momento, surgem por todo o planeta discussões e movimentos de proteção ao meio ambiente, estabelecendo na agenda mundial o assunto como tema obrigatório nos programas de desenvolvimento regional, local e mesmo global. O ambientalismo torna-se fator fundamental nas políticas de desenvolvimento, tendo a Organização das Nações Unidas alcançado sucesso proeminente na 95 conscientização da conservação, dando espaço para grandes eventos mundiais para discussão do tema, como Rio de Janeiro, em 1992 (Eco-92), Johanesburgo, em 2002 (Rio+10) e Rio de Janeiro 2012 (Rio+20). “Nos 20 anos decorridos entre as conferências de Estocolmo e a do Rio (Eco-92), alcançou-se um substancial progresso em termos da institucionalização do interesse pelo meio ambiente” (SACHS, 2008). Na verdade, a crítica ambiental surgiu no Brasil ainda no século XVIII, como reação ao modelo de exploração colonial, que se caracterizava pela mão-de-obra escrava, monocultura e pelos maus-tratos a terra e a consequente devastação ambiental (SANTILLI, 2005). Sobre esse tema, Pádua (2002, apud SANTILLI, 2005) afirma que estudos recentes apontam que o surgimento de uma posição crítica às devastações ambientais não surgiram na Europa ou nos Estados Unidos, e sim no Caribe, na Índia, na África do Sul e na América Latina. Surge, então, o movimento ambientalista, mundialmente presente, buscando encontrar opções desenvolvimentistas que desse conta do desafio do crescimento econômico e o meio ambiente equilibrado. No Brasil, na década de 1930 surgiu a Sociedade Amigos de Alberto Torres, inspirada no homônimo jurista e conservacionista, como a embrionária entidade ambientalista brasileira. Ainda naquela década, o Código de Águas e o primeiro Código Florestal (1934), bem como o Decreto-Lei 25 (1937), que ficou conhecido como “Lei do Tombamento” de bens culturais, foram medidas legais no sentido de impor restrições ao uso da propriedade, visando à proteção do meio ambiente. Já em 1965, o Novo Código Florestal (lei 4.771) e em 1967 a nova lei de proteção à fauna (lei 5.197), estabeleciam maiores restrições às atividades danosas ao meio ambiente (SANTILLI, 2005). Com o regime militar (1964-1984) não houve espaço para atividade reivindicatória social, o que acabou por desacelerar o movimento ambiental brasileiro. Não havia monitoramento por parte de movimentos sociais sobre as obras governamentais, principalmente as usinas hidrelétricas, polos industriais, estradas, portos e refinarias de petróleo. Santilli (2005) trás como exemplo disso a inundação do Parque Nacional de Sete Quedas para a construção da Usina Hidrelétrica de Itaipu. Nas palavras de Viola (1987), esses pioneiros fazem parte da pré-história do ecologismo brasileiro, pois os objetivos e forma de atuação “foram estritamente conservacionistas, na linha das sociedades protetoras de animais surgidas em vários países no 96 século XIX”. O autor chama esse período (1974 a 1981) de Período Ambientalista, já a fase de 1982 a 1985 é chamada de Fase do Ecologismo de Transição, culminando com a Ecopolítica em 1986. Este inicia intensa movimentação com finalidade de intervenção no processo Constituinte, defendendo: [...] ecodesenvolvimento, pacifismo, descentralização das fontes energéticas (contra as usinas nucleares e as grandes hidroelétricas), qualidade de vida, função social e ecológica da propriedade, justiça social, democracia participativa, reforma agrária ecológica, descentralização e democratização do sistema de comunicação de massa, educação ambiental generalizada (VIOLA, 1987). Nasce, assim, o ambientalismo brasileiro, já neste momento, fundado no desenvolvimento sustentável. 4.1 Socioambientalismo Nas palavras de Ela Wiecko V. de Castilho, ainda no prefácio do livro de Santilli (2005, p. 19): “Escrever sobre socioambientalismo, como o faz Juliana Santilli, significa difundir a ideia de que o desenvolvimento deve promover não só a sustentabilidade de espécies, ecossistemas e processos ecológicos, mas também a sustentabilidade social. A primeira sustentabilidade baseia-se na biodiversidade e a segunda na sociodiversidade”. O socioambientalismo nasceu na segunda metade dos anos 80, com as articulações políticas entre os movimentos sociais e o movimento ambientalista. Identifica-se com a redemocratização do país, fim do regime militar e se consolida com a Constituição Federal de 1988. Houve, nesse espaço temporal, maior abertura para atuação de grupos de defesa da sociedade civil, dando-se a articulação e alianças estratégicas entre o movimento social e ambientalista (SANTILLI, 2005). O socioambientalismo fortaleceu-se com a Eco-92, quando os conceitos socioambientais passaram claramente a influenciar a edição de normas legais. Para Eduardo Viola (apud, SILVEIRA, 2009, p. 17), “[...] constituído por organizações não-governamentais e movimentos sociais que têm outros objetivos precípuos, mas incorporam a proteção ambiental como uma dimensão relevante de sua atuação”. Na Amazônia brasileira, essa articulação deu origem à Aliança dos Povos da Floresta, que defendia o modo de vida das populações tradicionais amazônicas, cuja continuidade dependia da conservação da floresta que estava ameaçada pelo desmatamento e pela 97 exploração predatória de seus recursos naturais, impulsionada pela abertura das grandes rodovias rumo à Floresta Amazônica (Belém-Brasília, Transamazônica, Cuiabá-Porto VelhoRio Branco, Cuiabá-Santarém). A defesa dessa causa ensejou aliança entre os povos tradicionais da floresta, principalmente os índios e seringueiros, liderados por Chico Mendes, fundador do Conselho Nacional dos Seringueiros. Outra liderança que emergiu dessa causa foi Marina Silva, que atuou fortemente para a formação das reservas extrativistas. Surge assim a aliança entre índios, seringueiros, castanheiros e outras populações da floresta (que têm seu modo de vida ameaçado pela devastação) com os ambientalistas, que passaram a apoiar a luta política e social daqueles povos, que viviam da atividade extrativista de baixo impacto ambiental. Esse modo de vida é adotado nas reservas extrativistas, para que pudessem continuar a coletar a seringa, colher a castanha, pescar, caçar e explorar a água e o solo, como alternativa de desenvolvimento ao modo predatório do capitalismo (SANTILLI, 2005). Nasce, assim, o socioambientalismo com base na ideia de que as políticas públicas ambientais devem incluir e envolver as comunidades locais, pois essas têm largo conhecimento ambiental e de exploração econômica. Deve-se promover não só a sustentabilidade ambiental, mas também a sustentabilidade social – redução da pobreza e das desigualdades sociais e promover valores como justiça social e equidade. É um novo paradigma de desenvolvimento, ecossocialista, se contrapondo ao paradigma capitalexpansionista. Do socioambientalismo, surge o direito socioambiental, que nas palavras de Santilli: [...] é o direito que nasce da constatação que o ambientalismo, desprovido dos anseios das gentes que conformam nossos ambientes, e o socialismo, sem compromisso com o estado geral da terra, não são politicamente sustentáveis e não podem superar as feridas coloniais, ou reverter o massacre à natureza, que caracterizaram a nossa formação histórica e social. (SANTILLI, 2002, p. 9). Dessa forma, o socioambientalismo surge em momento de forte mobilização social, juntamente com a discussão ecológica decorrente da necessidade de preservação, conjugada com atividade econômica sustentável. O socioambientalismo, neste trabalho evocado, vem de encontro às atividades que se prestem para proporcionar desenvolvimento social com exploração econômica e atividade cultural que sejam equilibrados com o meio ambiente. 98 4.2 Função socioambiental da terra Conforme já citado acima, a função social da propriedade é obrigação de qualquer propriedade, móvel ou imóvel. Neste trabalho, centramos o assunto “terra”, tendo sua função social estabelecida no art.5º, XXIII da Constituição Federal. Ainda, a mesma Constituição estabeleceu que todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, sendo esse um “bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida”. O mesmo artigo impõe ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações (art.225, caput). Assim, “sendo um bem de todas as pessoas, o mandado constitucional tornou uma obrigação ou dever, não só do poder público (governos), mas também da coletividade, não apenas preservar e sim também defender o meio ambiente, reforçando a função socioambiental da terra” (SAUER; FRANÇA, 2012). Ainda, para Paulino (2002), mesmo em uma lógica capitalista, como um bem da natureza, como um bem finito, o uso da terra (privado ou individual), bem como sua transformação em mercadoria, deve reverter em algum benefício para o conjunto da sociedade. A Constituição Federal de 1988 estabelece em seu art. 186 que a função social da terra é cumprida quando a se atende, simultaneamente, ao aproveitamento racional e adequado, utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente, observância das disposições que regulam as relações de trabalho e exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores. Importante interpretar que a Constituição Federal estabelece o caráter socioambiental, e não somente ambiental, da função social da terra, impondo uma preocupação por parte de todos com o equilíbrio do meio ambiente, em consonância com desenvolvimento social. Como define o documento “Carrying for the Earth” (IUCN, Unep e WWF, 1991, p.198), uma sociedade é ecologicamente sustentável quando “conserva os sistemas de suporte de vida e a biodiversidade; garante que o uso de recursos renováveis seja sustentável e minimiza o esgotamento de recursos não renováveis; mantém dentro da capacidade de carga dos ecossistemas de suporte” (tradução do autor). 99 4.2.1 Função socioambiental das terras indígenas O discurso capitalista em torno das demarcações de terras indígenas traz em si, evidentemente, a visão mercadológica do termo “terra”. Para estes, como dito alhures, “terra” tem conotação econômica, tanto quanto possível ser explorada, para extração de riquezas a serem acumuladas. Nessa vertente, importante discurso proferido pelo deputado Aldo Rebelo, para quem: O Brasil perdeu mais de 23 milhões de hectares de agricultura e pecuária, em dez anos, para unidades de conservação, terras indígenas ou expansão urbana. Acham pouco. Querem escorraçar plantações de mais de 40 milhões de hectares e plantar mata no lugar (REBELO, 2011). Porém, a relação homem-terra depende grandemente das concepções que esses homens têm do significado do termo “terra”, conforme visto no capítulo 1, supra. A emergência da questão ambiental nos últimos anos jogou ainda uma outra luz sobre esses modos “arcaicos” de produção. Ao deslocar o eixo de análise do critério da produtividade para o do manejo sustentado dos recursos naturais, evidenciou a positividade relativa dos modelos indígenas de exploração dos recursos naturais e desse modelo da cultura rústica, parente mais pobre, mas valioso dos modelos indígenas (ARRUDA, 1999). Nota-se que o manejo da terra pelas comunidades indígenas, com suas tradições, seus modos de vida e, principalmente sua cosmovisão de “terra” muito tem a contribuir para o desafio da sustentabilidade. Nesse sentido, forçoso admitir que as populações “tradicionais”, seringueiros, castanheiros, ribeirinhos, quilombolas, mas principalmente as sociedades indígenas, desenvolveram através da observação e experimentação um extenso e minucioso conhecimento dos processos naturais e, até hoje, as únicas práticas de manejo adaptadas às florestas tropicais (MEGGERS, 1977; DESCOLA, 1990; ANDERSON & POSEY, 1990, apud ARRUDA, 1999). Ainda para Arruda (1999, p. 89): A análise dos conhecimentos, técnicas e mecanismos socioculturais característicos das sociedades indígenas e das “culturas rústicas” pode apontar caminhos mais adequados para um modo de ocupação do espaço com base no manejo sustentado do meio ambiente. Por outro lado, os resultados da análise dos modos de ocupação do espaço das sociedades nacionais e o aporte de perspectivas econômico-sociais 100 alternativas podem possibilitar novos caminhos às sociedades indígenas e às comunidades tradicionais, já articuladas com o mercado e fortemente pressionadas para que adotem práticas econômicas que promovem a devastação ambiental. Ainda nas palavras de Arruda (1999), embora estas populações corporifiquem um modo de vida tradicionalmente mais harmonioso com o ambiente, vêm sendo persistentemente desprezadas e afastadas de qualquer contribuição que possam oferecer à elaboração das políticas públicas regionais, sendo as primeiras a serem atingidas pela destruição do ambiente e as últimas a se beneficiarem das políticas de conservação ambiental, Ao abrir o debate na Rio+20, Sônia Guajajara, vice-coordenadora das Organizações Indígenas da Amazônia brasileira – COIAB, disse que as lideranças indígenas estão na Rio+20 mostrando seu jeito de ser sustentável: “Comprovadamente, as terras indígenas são as mais preservadas, a Mãe Terra é sagrada para os povos indígenas” (MARTINS, 2012). A sustentabilidade ambiental e social das terras indígenas tem demonstrado uma forma de exploração econômico-social a inspirar o próprio movimento socioambiental brasileiro. Nesse diapasão, a relevância do papel conservacionista desenvolvido pelos indígenas da Amazônia foi apontada pelo seminário “Consulta de Macapá”, promovida pelo Ministério do Meio Ambiente, por meio do Programa Nacional de Diversidade Biológica, segundo o qual as áreas identificadas como prioritárias para a biodiversidade da Amazônia, 38,4% estão em terras indígenas (BRASIL, 2001). No gráfico da figura 10, o Instituto Socioambiental demonstra As vinte Terras Indígenas na Amazônia Legal com maior número de projetos. 101 Figura 10 - As vinte Terras Indígenas na Amazônia Legal com maior número de projetos. Fonte: Instituto Socioambiental (ISA), 2013. Neste outro gráfico, da mesma fonte, apresentam-se As quinze Terras Indígenas mais desmatadas da Amazônia Legal: 102 Figura 11 - As quinze Terras Indígenas mais desmatadas da Amazônia Legal. Fonte: Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) 2011/ Organização: Instituto Socioambiental (ISA) Deste modo, em que pesem as pressões para a diminuição do ritmo de demarcações das terras indígenas, sob o argumento da ineficiência tecnológica desses no lidar com a terra, ou sob o argumento de que o capitalista deve retirar florestas, índios e o que mais estiverem em seus caminhos para implantação de seu modo de produção capitalista, não encontram respaldo fático, uma vez analisadas suas capacidades – dos indígenas - e aptidões em lidar com a terra. 4.2.1.1 O caso da Terra Indígena Raposa Serra do Sol - função socioambiental O desafio de os indígenas explorarem as terras outrora exploradas pelos fazendeiros apresenta reptos a serem trabalhados pelas comunidades, os órgãos estatais e os não estatais ali atuantes. Projetos de exploração econômica, de educação, de proteção e educação ambiental têm sido desenvolvidos, visando, primordialmente, dois fatores: desenvolvimento social e proteção ambiental. Em verdade, o que se tem buscado estabelecer nas Terras 103 Indígenas Raposa Serra do Sol é um equilíbrio socioambiental entre homem-natureza. Se por um lado se busca o desenvolvimento das comunidades, a preocupação com a preservação ambiental, por parte dos indígenas ali estabelecidos, é contínua. Para Viveiros de Castro, professor do Museu Nacional da UFRJ, sobre as possibilidades de exploração da Terra Indígena Raposa Serra do Sol pelos indígenas, após a desintrusão dos fazendeiros: Digamos que os não índios deixem a Raposa. Os índios de lá poderão plantar e fazer lucro? Poderiam virar arrozeiros? Sim, podem plantar e vender. Podem até virar arrozeiros. Mas terão de produzir dentro de limites muito estritos, sujeitos a leis ambientais severas, não se esqueça de que a reserva integra o Parque Nacional de Roraima. Também não podem explorar o subsolo, a não ser o que há no solo de superfície. Mas francamente acho que a população indígena jamais entrará de cabeça no modo de produção do agronegócio, que eu chamo de modelo gaúcho, porque isso simplesmente não bate com seu modelo de civilização (CASTRO, 2008). Os índios da Terra Indígena Raposa Serra do Sol desenvolveram um plano para a recuperação do meio ambiente e produção, pensando nas gerações futuras, que está em fase de implantação. Esse plano contempla medidas para os próximos 30 anos. “A perspectiva é que a produção focada na agricultura, pecuária e piscicultura, seja aliada a ações de reflorestamento e preservação do meio ambiente” (NASCIMENTO, 2013). Como principal atividade econômica, a pecuária é o ponto forte do plano. “O rebanho atual chega a 70 mil cabeças, o dobro do que havia antes da decisão do STF de homologar a terra de forma contínua” (NASCIMENTO, 2013). No mesmo sentido, afirma Gomes (2013) “A pecuária é a principal atividade econômica. O rebanho atual chega a 70 mil cabeças, o dobro do que havia antes da decisão do Supremo, sob administração de fazendeiros”. A forma com que os índios conduzem a produção pecuária na Terra Indígena Raposa Serra do Sol demonstram a preocupação em manter uma atividade socioambientalmente sustentável. "Aqui é capim natural, capim nativo, o gado vive mesmo comendo capim. Então não precisa desmatar pra fazer os pastos né, aqui já era tudo assim", diz Gregório Alexandre de Lima, da comunidade Pedra Branca que conta com um rebanho de pouco mais de mil cabeças de gado (NASCIMENTO, 2013). 104 4.2.1.2 Projetos e programas de exploração econômica na Raposa Serra do Sol e seus impactos ambientais A Terra Indígena Raposa Serra do Sol, assim como as demais, foi concebida como espaço demarcado para possibilitar às comunidades ali fixadas as manifestações culturais, os seus costumes e o modo de vida dessas populações. As atividades econômicas ali desenvolvidas o são, de acordo com seus conhecimentos, técnicas e tradições, mormente ligadas à agricultura, caça, pesca e, mais recentemente, ligadas à pecuária, ovinocultura, caprinocultura e criação de outros animais, além de hortaliça. O impacto ambiental resultante dessas atividades econômicas, em que pese o pequeno impacto devido a técnicas tradicionalmente empregadas pelos índios, é analisado nesta parte deste trabalho, levando em consideração os dados coletados junto aos órgãos públicos de controle das atividades indígenas (Fundação Nacional do Índio – FUNAI e Conselho Indígena de Roraima - CIR), dos órgãos responsáveis pelo controle ambiental (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente - IBAMA e Fundação Estadual do Meio Ambiente e Recursos Hídricos de Roraima – FEMARH). Tabela 7 - Projetos na Terra Indígenas Raposa Serra do Sol. Nome Piscicultura Convênio SEI (RR) 42ª Assembleia Geral dos Povos Indígenas de Roraima CEF (RR) Atividades Produtivas Auto Sustentáveis em Terras Indígenas do Estado de Roraima Anna Morì - Centro Indígena de Formação e Cultura Raposa Serra do Sol Pata Ewan Ingarikó (coração do mundo Ingarikó) Projeto Makunaima Projeto Chuva na Roça Fortalecimento da Gestão Social e da Gestão do PST - Plano Safra Territorial Estratégias e programas de desenvolvimento territorial Ano de Início Enfoque 2013 Ambiente Cidadania e 2013 Representação Política SEI (RR) 2013 Geração de Renda PCI 488 (RR) 2011 Cultura PCI 459 (RR) 2011 Cultura SEI (RR) SEI (RR) PRONAT 0312.07046/2009 (RR) PRONAT 0311.612- 2010 2010 Cultura Geração de Renda 2009 Ambiente 2009 Território 105 Nome Espimim Yanku Kuina Convênio 73/2009 (RR) PDPI 450 (RR) Ano de Início 2008 Enfoque Ambiente Fonte: Instituto Socioambiental (ISA), 2013. Assim, neste trabalho apresentar-se-ão os principais projetos e programas destinados ao desenvolvimento socioambiental da Terra Indígena Raposa Serra do Sol. Salienta-se que há muitas outras iniciativas não mencionadas por este trabalho, bem como diversas outras possibilidades de pesquisa. Como recorte didático, os programas aqui apresentados foram escolhidos pela relevância que têm para o objeto de pesquisa. 4.2.1.2.1 O projeto Cruviana O projeto é resultado de uma parceria entre o Instituto Socioambiental (ISA), a Universidade Federal do Maranhão (UFMA) e o Conselho Indígena de Roraima (CIR) e tem como objetivo estudar as potencialidades de geração de energia eólica na Terra Indígena Raposa Serra do Sol. Iniciado em fevereiro de 2013, o projeto instalou torres para medição do vento nas comunidades Tamanduá, Maturuca e Pedra Branca, localizadas na região das Serras, município de Uiramutã, contando com indígenas como pesquisadores bolsistas (LIMA, 2013). Tendo como principal objetivo uma possível implantação de um sistema de geração de energia eólica, como forma de evitar construções de usinas hidrelétricas e mini usinas e diminuição das usinas termoelétricas, uma vez que a geração de energia por meio do vento causa muito menor impacto ambiental, dentro e fora das Terras Indígenas. 106 Figura 12 - Instalação de torre para medição do vento na comunidade Tamanduá Fonte: Aldenir Cadete - ISA/CIR O projeto Cruviana, que conta com apoio da Igreja da Noruega, é baseado na experiência bem-sucedida na Ilha de Lençóis, na Reserva Extrativista de Cururupu/MA. Para chegarem ao estágio atual de pesquisa, o ISA realizou audiências com os índios da Terra Indígenas Raposa Serra do Sol, esclarecendo as possibilidades de implantação desse tipo de geração de energia para a região. “A Terra Indígena Raposa-Serra do Sol está em uma região com grande potencial para energias alternativas, com muito vento, sol e cachoeiras. Até hoje, entretanto, o sol e o vento ficaram de fora dos planos do governo [...]” (CAMPOS, 2011). 4.2.1.2.2 Projeto uma vaca para cada índio Um dos principais projetos que dão sustentação econômica à Terra Indígena Raposa Serra do Sol, “Projeto uma vaca para cada índio”, também conhecido “Projeto do gado”, tem suas raízes ainda no final da década de 1970, por inciativa da Igreja Católica (Ordem da Consolata) 21, tendo como objetivo primeiro libertar os índios da dependência econômica dos 21 A chegada dos missionários da Ordem da Consolata em 1948, substituindo os beneditinos, não trouxe, inicialmente, grandes mudanças na forma de relação com as populações indígenas. Suas preocupações foram praticamente as mesmas: casar, batizar e confessar; ou seja, não tinham qualquer tipo de projeto diferenciado da Ordem anterior, demonstrando também que havia um bom relacionamento com as elites locais. 107 fazendeiros. Para o ilustre professor Jaci Guilherme Vieira, da Universidade Federal de Roraima (VIEIRA, 2003, p. 190-191): Nas primeiras reuniões, nos encontros regionais e nas Assembléias (sic), a partir de 1969 e 77, iniciava-se a discussão para se promoverem importantes projetos, como o "“ Projeto da Cantina “" e o "Projeto do Gado", cuja finalidade era dar sustentação ao movimento indígena, como também, construir a própria auto-sustentação das comunidades. Os dois, criados pela Diocese, tiveram como objetivo diminuir a influência dos fazendeiros sobre os índios da região. Esse Projeto buscava evitar ou eliminar o trabalho indígena nas fazendas de gado da região. O fato é que os fazendeiros abasteciam os índios de produtos industrializados, tornando-os dependentes deles. A ideia da Igreja Católica era doar aos índios algumas reses, sendo que estes teriam total controle e administração sobre o gado. “Visava ainda proporcionar soluções efetivas aos problemas da terra e da própria alimentação, na perspectiva de um trabalho comunitário, com o objetivo de emancipação e autodeterminação das comunidades indígenas” (VIEIRA, 2003, p. 192). Para viabilizar o Projeto, a Consolata buscou recursos financeiros, realizando uma forte campanha na Itália, mais precisamente na cidade italiana de Turim, onde a Consolata tem uma forte penetração, em inícios de 1978. Com o tempo, a caça e a pesca foram escasseando, e os habitantes foram se tornando mais e mais acostumados à carne do gado (NOGUEIRA, 2013). Segundo a FUNAI-Roraima, atualmente há em torno de trinta mil cabeças de gado dentro da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, sendo que somadas às Terras Indígenas São Marcos, ultrapassam as cinquenta mil cabeças. Para o diretor de defesa animal da Agência de Defesa Agropecuária de Roraima (ADERR), Silvio Botelho Neto, “Tradicionalmente esses povos convivem com gado há mais de 300 anos e hoje a pecuária faz parte da comunidade deles. Então é importante nos fazermos presente lá para conscientizá-los sobre a importância de manter o gado livre da aftosa” (LIMA, 2011). [...] Por meio de uma nova concepção do que seria uma pastoral indígena, a Diocese passou a desenvolver uma atividade centrada, principalmente, na ética social e a colocar em primeiro plano da vida religiosa a libertação e a organização política das populações indígenas de Roraima. Acompanhada por um movimento nacional, que passou a ter como objetivo final a demarcação de suas terras e o respeito as suas formas de existência (VIEIRA, 2003, p. 138). 108 Para o Conselho Indígena de Roraima (CIR, 2013), a quantidade atual de gado na Terra Indígena Raposa Serra do Sol é de 37 mil rezes, sendo que todas as famílias são responsáveis pelo cuidado e o manejo fica a cargo de uma ou mais família com decisão de todos os membros da comunidade. Ainda segundo o CIR, o papel do tuxaua é de coordenar as atividades gerais, mas as deliberações são feitas pela comunidade. Ainda, segundo o CIR (2013), “o gado existente nas comunidades e terras indígenas coordenados pelo CIR tem uma rigorosa avaliação anual que vai desde a produção, manejo e uso adequado do território e meio ambiente”. Acrescenta ainda aquela entidade que a cada cinco anos cada comunidade tem obrigação de fazer repasse de gado para outra comunidade na quantidade do projeto, que seria de 50 matrizes e 02 touros. Segundo Nogueira (2013) em estudo publicado pela revista UnespCiência, atualmente a estimativa é de que existem 70 mil cabeças de gado naquelas terras indígenas, sendo que há quatro anos não chegavam a metade desse numero. Uma das vozes mais conceituadas no assunto de Terra Indígena Raposa Serra do Sol é do antropólogo Paulo Santilli22. Em recente estudo feito na região, Santilli afirma que “Esse é um caso único de índios que estão se tornando pecuaristas (NOGUEIRA, 2013, p. 24)”. Na matéria publicada por Nogueira, que acompanhava Santilli em fevereiro de 2013 (p.24), o autor mostra os retiros de gado do macuxi Inácio Brito: Professor aposentado, ele é apontado por diversos moradores da Raposa Serra do Sol como exemplo de homem bem-sucedido. Professor Inácio, como é conhecido, participou desde o início da organização da mobilização pela terra, tendo levado até um tiro na coxa durante um enfrentamento. Também foi um dos pioneiros na educação indígena no Estado. Hoje, ele possui um rebanho de cerca de 500 cabeças, guardadas em dois retiros e cuidadas por dois indígenas. “Fiz isso por orientação das lideranças indígenas. O gado foi uma ferramenta que nos ajudou a reocupar nossa terra”, diz. Está-se criando na Raposa Serra do Sol um modelo de desenvolvimento fortemente baseado na pecuária, com um aumento muito rápido do rebanho, mas também com o possível surgimento de classes sociais entre os próprios índios, dentro da sua terra indígena demarcada. Santilli diz que o surgimento dos primeiros grandes rebanhos de propriedade de indígenas, assim como a contratação de alguns indígenas como empregados de outros, são novidades importantes. “Aqui, essa é uma nova forma de apropriação do trabalho. Mas, 22 Para melhor entendimento, ver páginas 61 e 62 deste trabalho. 109 embora os rebanhos possam ser herdados, a terra necessária para criá-los não é”, pondera. Ou seja, ainda é cedo para avaliar se o processo poderá implicar no aparecimento de verdadeiras diferenças de classe (NOGUEIRA, 2013, 24). Este tema, em especial o modelo de produção pecuária na Terra Indígena Raposa Serra do Sol, é muito relevante do ponto de vista socioambiental, pois poderá acarretar uma desfiguração da própria terra indígena, fazendo com que as florestas tenham que ceder espaço para os pastos, assim como tem ocorrido nas terras exploradas pelo agronegócio. Para o índio Inácio: Antes, fazendeiros e garimpeiros levavam nossas reses. O rebanho não crescia. Agora o número de comunidades está crescendo, e elas precisam de espaço para a lavoura. Estamos discutindo se deve haver um limite para o tamanho do rebanho que cada comunidade pode ter. Eu sou a favor (NOGUEIRA, 2013, p. 24). Dessa forma, o gado tem importância crucial para a economia das comunidades naquelas terras indígenas. O crescimento, desde a implantação do projeto pela Igreja Católica em 1978 até os resultados obtidos atualmente, demonstram uma vocação dos indígenas nestas terras para a atividade. Se há mais de trezentos anos o gado tem sido criado por esses indígenas e, levando em consideração o crescimento acima demonstrado, o sucesso da atividade aponta para uma região (Terra Indígena Raposa Serra do Sol) fortemente vocacionada para a criação de gado. Neste trabalho não é possível dar a profundidade e destaque que o assunto merece. A questão da criação de gado nestas terras indígenas carece de outro estudo, especificamente elaborado para esta questão em particular. 4.2.1.2.3 Projeto Mandala Procurando o desenvolvimento econômico e a produção de alimentos de forma sustentável, planejada, preservando o meio ambiente e respeitando os conhecimentos e saberes tradicionais dos povos indígenas, o Projeto Mandala está sendo implantado pelos estudantes do Centro Indígena de Formação e Cultura Raposa Serra do Sol (CIFCRSS), antiga Missão do Surumu. 110 Tendo como participantes cinco alunos do Centro Indígena de Formação, das áreas de agropecuária, gestão e manejo ambiental, que realizaram o plantio de algumas mudas num período de apenas um mês. Foram plantadas 50 espécies entre tomate, alface, cebola, maxixe, batata e macaxeira; na medicina tradicional: anador, babosa, gengibre, hortelã e boldo; frutíferas: laranja, abacaxi, graviola e melancia; e madeiras: buriti, açaí e cedro (CIR, 2013). 4.2.1.3 Acertos e Desacertos Devido às plantações de acácias em larga escala, no estado de Roraima, a partir de 1997, houve um aumento da população de abelhas nas terras indígenas próximas a essas plantações, pois essas abelhas passaram a infestar os buritizais, dificultando a coleta da palha do buriti, essencial para o artesanato das comunidades indígenas da região, configurando esse fenômeno como a principal preocupação das lideranças indígenas em Roraima. Iniciam-se, assim, as primeiras discussões entre os povos indígenas e as entidades ambientais e assistenciais indígenas sobre o meio ambiente e os impactos dai decorrentes. Destaca-se a atuação do Conselho Indígena de Roraima, que nas palavras de Oliveira (2012, p. 93): A partir destes casos as discussões sobre a temática ambiental começaram a ganhar espaço na agenda do CIR. Em 2003 foi realizado o “1º Seminário Etnoambiental Indígena de Roraima”. Naquele evento os representantes indígenas chegaram à conclusão que, em relação ao meio ambiente, os povos indígenas continuavam “invisíveis” para o governo e o Estado brasileiro e que a configuração jurídicoinstitucional do Sistema Nacional de Meio Ambiente (SISNAMA) apresentava uma lacuna fundamental na consideração dos povos indígenas, não reconhecendo suas terras como espaço cultural e juridicamente diferenciado. Com relação ao SISNAMA, consideraram fundamental o reconhecimento do papel e da importância dos povos indígenas no uso e manejo adequado do meio ambiente; o reconhecimento das terras indígenas como unidades jurídico-administrativas específicas na gestão territorial, ambiental e dos recursos naturais. E, sobretudo, expressavam a reivindicação de que o tema “meio ambiente” nas Terras Indígenas fosse adotado como tema estratégico da política nacional do Meio Ambiente e a garantia de que os modelos e as políticas de gestão do meio ambiente não prejudiquem o direito de usufruto exclusivo indígena dos recursos naturais das terras indígenas, garantidos pela Constituição. Como corolários do posicionamento de entidades de assistência aos índios, como o CIR, ações objetivando o desenvolvimento das comunidades, com preocupação ambiental cresceram. O CIR cria, em 2008, o Núcleo Ambiental, buscando proporcionar educação ambiental para os indígenas, como forma de buscar-se desenvolvimento de atividades com menor potencial danoso ao meio ambiente. Foi criado o Programa de Formação de Agentes 111 Ambientais Voluntários, sendo formados os Agentes Ambientais Voluntários Indígenas. Nesses cursos de qualificação ambiental, são ministrados temas como ecologia, flora, fauna, riquezas biológicas e proteção ambiental, cidadania e meio ambiente e as relações destes temas com a segurança alimentar, a saúde e riscos ambientais (OLIVEIRA, 2012). Um exemplo dessa bem-sucedida ação das lideranças foi o caso de Jacir José de Souza, da etnia Macuxi, vencedor da 9ª edição do Prêmio Chico Mendes de Meio Ambiente (Liderança Individual). Jacir atuou com destaque na luta em favor da Terra Indígena Raposa Serra do Sol. Nascido no dia 07 de setembro de 1947, na comunidade indígena do Lilás, de etnia Macuxi, localizada na Terra Indígena Raposa Serra do Sol. Despontou como liderança aos 20 anos de idade após ter-se mudado para a comunidade de Maturuca, centro de resistência indígena em favor da terra. Em 1997 foi eleito tuxaua e entre suas iniciativas se destacam a proibição da venda e do consumo de álcool nas comunidades indígenas, o trabalho de conscientização ambiental, a partir da abordagem sobre os malefícios causados ao meio ambiente pela atividade garimpeira, a criação de conselheiros para ajudar os tuxauas a lidar com as dificuldades no comando de seu povo. Os conselheiros foram o embrião para a criação do Conselho Indígena de Roraima (CIR), do qual Jacir foi coordenador no período de 2000-2004. Na área ambiental, seu trabalho foi fundamental para a retirada dos garimpeiros da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, através de denúncias de degradação ambiental praticadas por arrozeiros e fazendeiros. Jacir percorreu o Brasil e vários outros países, onde manteve contatos com autoridades nacionais e internacionais, políticas e religiosas, às quais levou a reivindicação dos povos indígenas contra a violência e a discriminação, o que também lhe proporcionou manter contato com vários outros povos indígenas e trocar experiências sobre iniciativas voltadas para a defesa do meio ambiente. (IBAMA, 2009). O Prêmio Chico Mendes de Meio Ambiente foi vencido pelo Tuxaua Jacir José de Souza, fundador do CIR e principal liderança na luta pela homologação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, em novembro de 2009. Isso representou para aquela entidade o reconhecimento pela luta que vem desenvolvendo em favor da causa indígena, ainda mais por ser de iniciativa do Ministério do Meio Ambiente (MMA) em nível nacional e se destinar ao reconhecimento de iniciativas exemplares na superação e substituição de modelos predatórios e danosos ao meio ambiente. (CIR, 2010). 112 4.2.1.4 Problemas socioambientais. Os impactos ambientais, resultantes das atividades desenvolvidas na Terra Indígena Raposa Serra do Sol foram listados pela FUNAI em 2007 em decorrência do estudo nominado “Levantamento Etnoambiental do Complexo Macuxi-Wapixana, Roraima” Fundação Nacional do Índio - Projeto Integrado de Proteção às Populações e Terras Indígenas da Amazônia Legal (PPTAL). Nesse estudo, foram levantados dados de 9 Terras Indígenas do Complexo Macuxi-Wapixana (FUNAI-RR, 2007b). A Terra Indígena Raposa Serra do Sol foi uma das áreas pesquisadas. No documento, à página 6, a tabela abaixo demonstra ocorrências de impactos socioambientais na Terra Indígena Raposa Serra do Sol (foram suprimidas as informações sobre as demais terras indígenas): Tabela 8 - Matriz de impactos socioambientais em nove Terras Indígenas do Complexo. IMPACTO OCORRÊNCIA Descarte de lixo por transeuntes SIM ou vilas Entrada de caçadores NÃO Entrada de pescadores SIM Entrada de turistas/lazer SIM Fazendas/Invasões SIM Fogo (incêndios florestais) SIM Gado de fazendas SIM Vizinhas Garimpo SIM Monoculturas de Acacia mangium NÃO Monoculturas de arroz SIM Poluição hídrica SIM Retirada de madeira NÃO Retirada de pedras/cascalho SIM Fonte: FUNAI-RR, 2007b. Ainda, segundo o Levantamento Etnoambiental do Complexo Macuxi-Wapixana, realizado pela FUNAI em 2007, foram apontados os seguintes problemas socioambientais, 113 relatados naquela área, os quais são aqui reproduzidos ipsis literis (FUNAI, 2007a, p. 42 a 44), seguido de notas do autor desta dissertação: 1. Problemas de falta de água para consumo da comunidade e irrigação, especialmente na época do verão: (a) comunidade Camará, na região do Baixo Cotingo; (b) pólo-base Santa Cruz (comunidades Santa Cruz, Macaco, Serra Grande, Cueira - Antiga Fazenda Guanabara) e comunidades Raposa II, Jacarezinho, Jauari, Júlia, Prainha e Rego Fundo, na região da Raposa. Este problema socioambiental é cíclico, natural e, em grande parte, inevitável. O ciclo das águas na região afeta a todas as atividades agropecuárias, independentemente de serem estas indígenas ou não. O fato de as fazendas irrigadas terem sido desativadas faz com que este impacto seja diminuído, porém não eliminado. 2. Riscos de contaminação do lençol freático: (a) pólo-base Santa Cruz, na região da Raposa, tem problema da disposição das fossas, já alertado por outros agentes; (b) há várias comunidades que estão fazendo poços artesianos sem manilhas, e esses estão desbarrancando: por exemplo, comunidades Jacarezinho e Júlia, na região da Raposa. Essas práticas não apontam para uma atividade ecologicamente sustentável. Deve-se incentivar a adoção de técnicas socioambientalmente equilibradas. Iniciativas como a do Doutor Paulo Santilli23, com palestras educativas devem ser seguidas. Problemas associados à agricultura: 1. Perdas de roçados no inverno de 2006: (a) comunidades Jauari, Coqueirinho, Prainha, Raposa II, Serra Grande, Santa Cruz, Macaco e Jibóia, na região da Raposa; (b) várias comunidades da região do Surumu; (c) comunidade Camará, na região do Baixo Cotingo. Em que pesem as práticas agrícolas dos indígenas na região terem causado baixo impacto ambiental, ao longo dos séculos de presença na região, devem ser adotadas práticas que tenham como condão a preservação ambiental e a prevenção de desequilíbrios e degradações ambientais. O IBAMA, juntamente com a Embrapa locais, além de entidades como o Conselho Indígena de Roraima (CIR) tem desenvolvido atividades visando evitar tais ocorrências. 23 Ver páginas 61 a 64 deste trabalho. 114 2. Presença da doença da banana: citada como existente nas comunidades Prainha e Rego Fundo, na região da Raposa. 3. Presença de doença que ataca as raízes das manivas: relatada na região das Serras, em área Ingarikó, durante a reunião realizada na comunidade Serra do Sol, em 11/01/2007. Alternativas sustentáveis estão disponíveis em entidades locais como a Embrapa-RR. Para tais casos, sejam os problemas de pragas, produtividade ou dificuldades técnicas dessas culturas, estudos como os de Cravo et al. (2005) apontam para uma cultura de rotação/consórcio com arroz, milho, mandioca e feijão-caupi que tem grandes possibilidades de resolver este caso. 4. Reclamações de falta de apoio e projetos: apontada por lideranças das regiões da Raposa, das Serras, do Baixo Cotingo e do Surumu. Há atualmente, conforme já apresentado em tabela à página 96, diversos projetos e programas de desenvolvimento destinados aos indígenas na Terra Indígena Raposa Serra do Sol. São muitas as entidades estatais e não estatais atuantes naquelas terras, nacionais e internacionais, dedicadas ao desenvolvimento sustentável. Problemas com recursos variados: 1. Fauna silvestre: (a) existência de comércio ilegal de fauna em Uiramutã, apontada na reunião da Coordenação Regional das Serras, em 19/12/2006, em Maturuca; (b) redução de animais de caça: apontada nas comunidades Maturuca, na região das Serras; em Santa Maria e Camará, na região do Baixo Cotingo; na área Ingarikó, na região das Serras; na comunidade Barro, na região do Surumu; nas comunidades Jacarezinho, Prainha, Jauari e Coqueirinho, além das comunidades do pólo-base Santa Cruz, todas na região da Raposa. Com a desintrusão ocorrida em 2010 e consequente desativação das fazendas ali presentes, parte deste problema foi arrefecida. Há de se notar que a diminuição dos animais silvestres, bem como peixes em regiões como Roraima são consequências naturais da urbanização do capitalismo. Considerando o crescimento populacional do estado de Roraima, e ainda mais o crescimento extraordinário da população da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, este problema continua um óbice ao equilíbrio socioambiental da área. 2. Pescado: (a) redução apontada em: comunidade Maturuca, na região das Serras; área Ingarikó, também na região das Serras; região do pólo-base Santa Cruz, na 115 região da Raposa; (b) problemas derivados da introdução de espécies exóticas na área Ingarikó, na região das Serras24. 3. Palha de buriti: redução apontada nas comunidades Maturuca, na região das Serras; na comunidade Santa Maria, na região do Baixo Cotingo; nas maiores comunidades da região da Raposa, tais como Guariba, Napoleão e Raposa. O problema das palhas de buriti25, essencial à própria sobrevivência cultural dos índios da região teve seu início em 1997, com as plantações de acácias em regiões próximas aos buritizais. 4. Madeira: (a) redução apontada na comunidade Maturuca e na maloca de Uiramutã, na região das Serras, e na comunidade Camará, na região do Baixo Cotingo; (b) roubos de madeira na região do pólo-base de Santa Cruz, em 2006, atribuídos a moradores de Normandia; (c) ausência de árvores às margens do Rio Maú, na região da Raposa. O problema da madeira está, evidentemente, ligado à existência das florestas. Roraima tem na madeira seu principal produto de exportação, sendo que a exploração da madeira é fator primordial para a economia do estado. (AGOSTINHO, 2013) Esgoto, lixo e saúde: 1. Preocupação das lideranças das Serras com esgoto e lixo produzidos pelo município de Uiramutã. Preocupação apontada na reunião da Coordenação Regional, em 19/12/2006, em Maturuca e, em 05/01/07, na comunidade Barro. 2. Preocupação com o lixão da vila de Pacaraima, localizado na Terra Indígena São Marcos: que polui o Igarapé do Myang, juntamente com o matadouro de Pacaraima, como apontado na reunião da Coordenação Regional, em 05/01/07, na comunidade Barro. Conforme ouvimos em campo, e também consta no documento da 36ª Assembleia dos Povos Indígenas de Roraima, os índios solicitavam que o órgão ambiental competente verificasse a causa do envenenamento de urubus que frequentavam os lixões de Pacaraima, situados nas proximidades do Myang. 3. Preocupação com os lixões da comunidade Barro, antiga vila Pereira, apontada na reunião da Coordenação Regional, em 05/01/07, na comunidade Barro. A cidade de Uiramutã está situada em segundo lugar no ranking nacional das cidades com pior tratamento de esgoto. Essa situação é endêmica, uma vez que a atividade urbana é naturalmente agressiva ao meio ambiente. Medidas de saneamento devem ser adotas com 24 Segundo a FUNAI-RR, foi alertado que, durante a estadia na comunidade Maturuca, na região das Serras, existiam vários açudes individuais e um coletivo que estava em fase de construção, para a criação de tilápias. Como reconheceu a própria técnica agrícola ali atuante, Marisete, em 21/12/2006, outros técnicos advertiram que se as tilápias passassem para os igarapés e rios acabariam com as espécies de peixes regionais. 25 Ver neste trabalho, página 102 sobre o assunto. 116 máxima preocupação com o lixo doméstico, seu acondicionamento e depósito, tendo em vista a cidade estar envolvida pelas comunidades indígenas. A questão de lixo de áreas urbanas, dentro de terras indígenas é delicada do ponto de vista cultural e ecológico. O fato de haver cidades e vilas encravadas no interior de terra indígena demarcada, (em decorrência da opção pela demarcação contínua e não em ilhas), causa esse tipo de efeito colateral. O lixo, assim como todas as manifestações urbanas da cidade e das vilas, impacta o modo de vida indígena. 4.2.1.2 O desmatamento na Terra Indígena Raposa Serra do Sol e nas áreas fora da Terra Indígena. A questão do desmatamento é atualmente das mais importantes nas discussões acerca da preservação do planeta, sobretudo na região amazônica. O tema da conservação e uso dos recursos naturais da Amazônia está ligado às políticas de desenvolvimento estabelecidas para a região, tais como especulação de terra ao longo das estradas, crescimento das cidades, aumento dramático da pecuária bovina, exploração madeireira e agricultura familiar (mais recentemente a agricultura mecanizada), principalmente ligada ao cultivo da soja e algodão (Fearnside, 2003, Alencar et al., 2004 e Laurance et al., 2004). Nota-se pelas informações disponíveis sobre desmatamento que as áreas desmatadas nas terras indígenas são muito menores do que fora delas. A seguir, serão apresentados gráficos referentes a dados coletados acerca do tema, que demonstram esse fato. Tabela 9 – Desmatamento na Amazônia Legal (2004-2012). Estados\Ano 2004 (km2) 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 AC AM AP MA MT PA RO 592 775 33 922 7145 5899 3244 398 788 30 674 4333 5659 2049 184 610 39 631 2678 5526 1611 254 604 100 1271 3258 5607 1136 167 405 70 828 1049 4281 482 259 595 53 712 871 3770 435 728 1232 46 755 11814 8870 3858 280 502 66 396 1120 3008 865 Var. 2012 20122011 305 9% 523 4% 27 -59% 269 -32% 757 -32% 1741 -42% 773 -11% Var. 20122004 -58% -58% -41% -64% -94% -80% -80% 117 Estados\Ano 2004 (km2) RR TO Amazônia Legal 311 158 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 Var. 2012 20122011 133 271 231 124 309 63 574 107 121 61 256 49 124 52 -12% 30% -60% -67% 7464 7000 6418 4571 -29% -84% 27772 19014 14286 11651 12911 141 40 Fonte: PRODES-INPE, 2013. Observa-se pelas informações na tabela 9 que o desmatamento na Amazônia Legal diminuiu proporcionalmente no período de 2004 a 2012, sofrendo ligeiro aumento em 2008, mas retomando a queda no ritmo de desmatamento dai até 2012. No estado de Roraima, vê-se pela tabela abaixo, houve variação no período de 2001 a 2011, mas houve maior desmatamento nos anos de 2001, 2003 e 2008. Em uma análise geral, o desmatamento foi mais intenso no início da década, diminuindo ao final da mesma, sendo que no ano de 2011 a área desmatada no estado de Roraima foi de 131,1 km2, representando 13,33% da área desmatada no ano de 2001. Tabela 10 - Distribuição Incremento 2000 a 2011 no estado de Roraima. Ano 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 Área em km2 0,0 983,2 275,5 556,6 309,9 127,2 213,1 265,3 672,5 106,0 239,1 131,1 Fonte: PRODES-INPE, 2013. As terras indígenas apresentam baixíssimos níveis de desmatamento, uma vez que as atividades econômicas ali desenvolvidas, via de regra, são protetivas do meio ambiente. Para Molinero (2010), ao se comparar o desmatamento atual com o de dez anos atrás se observa que “os locais cuja derrubada de floresta praticamente não ocorreu são demarcações de terras indígenas”. Para Molineto, as populações nativas se revelam fundamentais na preservação Var. 20122004 118 ambiental da Amazônia, sendo que atualmente as demarcações de suas terras passam a ter “papel prático essencial para pulsação da floresta”. No caso da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, o desmatamento pode ser medido pela tabela abaixo: Tabela 11 - Desmatamento na Terra Indígena Raposa Serra do Sol (1997-2011). CAMPO VALOR Nome TI Raposa Serra do Sol Estado RR 2 Área km 17.472,3 Categoria Terra Indígena Total Desmatado 72.8 (2.3 %) Desmatamento ate 1997 36.2 (1 %) Incremento 2000 0.0 (0.0%) Incremento 2001 0.3 (0.0%) Incremento 2002 0.8 (0.0%) Incremento 2003 0.3 (0.0%) Incremento 2004 5.7 (0.2%) Incremento 2005 0.5 (0.0%) Incremento 2006 9.9 (0.3%) Incremento 2007 0.5 (0.0%) Incremento 2008 0.8 (0.0%) Incremento 2009 2.1 (0.1%) Incremento 2010 14.9 (0.5%) Incremento 2011 0.7 (0.0%) 2 Total Floresta em 2011 (km ) 1601.1 (9 %) 2 Total Nuvem em 2011 (km ) 1369.6 (7.84 %) Total Não Observado em 2011 (km2) 137.8 (0.79 %) Total Não Floresta em 2011 (km2) 14261.7 (81.62 %) (*) A base de Unidade de Conservação utilizada nesta página foi fornecida pelo Departamento de Áreas Protegidas - Secretaria de Biodiversidade e Florestas do Ministério de Meio Ambiente/MMA. Fonte: INPE, 2013 Nota-se pelos dois gráficos anteriores que o desmatamento na Terra Indígena Raposa Serra do Sol, no período analisado, é muito menor do que a comparação com os estados. Ao analisarem-se os dados acima, nota-se que: 1. Em 2006, no período em que a TIRSS ainda estavam sendo ocupada pelos fazendeiros, o desmatamento nessas terras foi de 9,9 km2, contra 213,1 km2 no estado de Roraima, o que representa 4,65% de toda a área desmatada no estado. 119 2. Em 2008, o desmatamento na TIRSS foi de 0,8 km2, contra 672,5 km2 no estado de Roraima, representando 0,19%. 3. Em 2011, o desmatamento na TIRSS foi de 0,7 km2 contra 131,1 km2 no estado de Roraima, representando 0,53%. Conclui-se que: 1. A área desmatada dentro da TIRSS representa uma mínima parte do desmatamento do estado de Roraima, principalmente depois da retirada dos fazendeiros dessas terras (20092010). 2. Quando comparado com toda a área da Amazônia legal, a porcentagem é ainda mais irrisória. 3. A função socioambiental da Terra Indígena Raposa Serra do Sol é demonstrada pelo baixo impacto na vegetação pelas atividades econômicas ali desenvolvidas, pela preocupação social e ecológica por parte das comunidades e pelas entidades de apoio aos índios ali atuantes, como a preocupação com reflorestamento e busca de exploração da pecuária e agricultura de baixo impacto. 120 CONCLUSÃO Não se pretende, neste trabalho, chegar-se a conclusões definitivas acerca do tema aqui tratado, bem como não se objetiva esgotar o assunto. Contudo, não é atrevimento concluir que as terras indígenas são espaços socioambientalmente importantes para o Brasil e a discussão acerca da função socioambiental que desempenham é contemporânea e socialmente relevante. As ditas terras indígenas sofreram regulação estatal ao longo da história brasileira, inicialmente sem efetividade, evoluindo historicamente para reconhecimento constitucional e legal. Contudo, apesar da consideração jurídica, sua importância para a sociedade brasileira não alcança o mesmo patamar. Dessa forma, a disputa pela terra no Brasil, a luta indígena por seu espaço territorial e a busca dos capitalistas do agronegócio por sempre mais lavouras e pastos, no Brasil, constituem-se em conflito dos mais importantes e preocupantes. Em Roraima, esse conflito culminou com a demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, confirmada pelo Supremo Tribunal Federal, o qual estabeleceu dezenove condicionantes para tal terra indígena e a consequente retirada dos fazendeiros de uma área demarcada, para usufruto exclusivo dos indígenas, estabelecendo um marco jurisdicional sobre o tema, reconhecendo os direitos originários daqueles povos sobre suas terras, confirmando os mandamentos estabelecidos na Constituição Federal Brasileira, ratificando o indigenato como fundamento para os direitos dos índios às suas terras. Essa posição do STF proporcionou para as comunidades indígenas ali presentes a conservação de suas tradições, os costumes e valores ligados a suas raízes, bem como trouxe proteção ambiental para a área. Essas terras indígenas desempenham uma função socioambiental importante para o país, uma vez que as comunidades ali residentes adotam práticas agrícolas, extrativistas, de caça, pesca e pecuária em harmonia com o meio ambiente, além de conservarem os valores, a cultura, os costumes e conhecimentos ancestrais indígenas. Os projetos de desenvolvimento econômico e social implantados pelos órgãos de proteção indígena na Raposa Serra do Sol, em consórcio com o conhecimento indígena, têm obtido sucesso respeitável, uma vez que os resultados econômicos são positivos e crescentes e os impactos ambientais são cada vez 121 menores, como no caso da piscicultura, hortaliças, plantações tradicionais de milho, mandioca e frutas. No tocante aos projetos sócio-econômico-ambientais ali implantados, destaca-se a criação de gado, que teve seu início com a iniciativa da igreja católica, através de um projeto que objetivava a libertação dos índios da dependência econômica dos fazendeiros, tendo enorme sucesso econômico ao longo das últimas décadas, encontrando-se em pleno desenvolvimento. Essa atividade econômica é tão plena de êxito quanto preocupante do ponto de vista ambiental, pois o crescimento em número de rezes, que alcança cerca de 70 mil cabeças, pode forçar a degradação das áreas de lavrado ou mesmo o desmatamento para dar lugar às pastagens. Outro projeto que merece destaque pelo objetivo estabelecido é o Projeto Mandala, pois seus idealizadores têm como principais intenções o desenvolvimento de produção de comida, vegetal e animal, aliando tecnologia e preservação ambiental, visando dar sustentabilidade econômica às comunidades, além de proteção à flora e fauna e de causar baixo impacto no meio ambiente. Quanto à floresta, a Terra Indígena Raposa Serra do Sol apresenta índices de desmatamento muito inferiores às terras particulares no seu entorno, bem como em comparação às demais áreas do estado de Roraima. Em verdade, em comparativo destas terras indígenas com as demais na Amazônia, a Raposa Serra do Sol apresenta desmatamento muito inferior do que as outras terras amazônicas. Essa situação demonstra clara diferenciação de convivência com o meio ambiente, uma vez que a visão que os indígenas têm da terra aponta para harmonia de convivência homem-terra, sentido nato de conservação e uma função socioambiental muito importante para o Brasil que se pretende uma potência ambiental, sobretudo na Região Amazônia. Ainda, com o fim da presença de fazendeiros nestas terras indígenas, a função socioambiental da Raposa Serra do Sol se aperfeiçoa, sendo implantado, mesmo que paulatinamente, mas constante, o modo de ser e de viver dos povos indígenas, os mesmos povos que têm convivido harmonicamente com o meio ambiente há tempos imemoriais. Esse modo de ser do índio, vivendo em seu habitat natural, inegavelmente trás como benefício para sua gente a felicidade de viver em seu lar. Por outro lado, para a população não índia, os benefícios são indiretos, pois a preservação ambiental ali conseguida trás certeza de um 122 planeta mais equilibrado no presente e proporciona segurança em uma herança positiva para futuras gerações. Quanto aos problemas ambientais enfrentados pelas comunidades locais, o lixo produzido pelas cidades e vilas presentes na Raposa Serra do Sol é um dos fatores mais preocupantes, uma vez que o impacto ambiental que causa é prejudicial ao equilíbrio do meio ambiente. Esse problema, embora tenha ligação profunda com o meio ambiente da Raposa Serra do Sol, sua solução está umbilicalmente ligada aos não índios. Outro problema importante é a falta de água para consumo da comunidade e irrigação, especialmente na época do verão, uma vez a característica artesanal das atividades de produção ser fortemente atingida pela falta de água. Apesar da sazonalidade natural dos fluxos de chuvas e dos rios e lagos, o problema é preocupante, pois pode desencorajar projetos importantes para o equilíbrio ecológico, como no caso do Projeto Mandala. Por fim, pode-se afirmar que a Raposa Serra do Sol desempenha enorme função socioambiental nas terras demarcadas, apesar das condicionantes estabelecidas pela Corte Suprema e os entraves ocasionados pelos problemas ambientais acima expostos. A contribuição ambiental que esses povos indígenas prestam ao estado de Roraima, ao Brasil e ao planeta é inegável, pois sabem como ninguém como conservar o meio ambiente, ao mesmo tempo em que buscam o desenvolvimento social e econômico de seu povo, de forma sustentável. 123 REFERÊNCIAS AGOSTINHO, Jaime de. Deputados visitam reserva Raposa Serra do Sol. 13 Abr. 2013. Disponível em: <http://www.ecoamazonia.org.br/2013/04/deputados-visitam-reservaraposa-serra-sol/>>. Acesso em 14 Jun. 2013. ALENCAR, A.; NEPSTAD, N; MCGRATH, D; MOUTINHO, P; PACHECO, P; DIAZ, M. D. C. V e FILHO, B. S. Desmatamento na Amazônia: indo além da emergência crônica. Manaus: Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam), 2004, 89 p. AMATE, Tiago. Relator recebe sugestões sobre mineração em terras indígenas até o dia 24. Câmara dos Deputados Federais. Publicado em 15 Out. 2012. 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