INCÓGNITAS GEOGRÁFICAS: FRANCISCO BHERING E OS

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INCÓGNITAS GEOGRÁFICAS: FRANCISCO BHERING E OS PLANOS
PARA O BRASIL DO INÍCIO DO SÉCULO XX
Rildo Borges Duarte
Universidade de São Paulo
[email protected]
Introdução
A República Velha (1889 – 1930) aparece como um momento singular na
história brasileira, marcada pela tentativa de quebra com o conservadorismo do Império
– a chamada “revolução burguesa no Brasil” – e a introdução de novas idéias de
modernização do Brasil como país do futuro. Temos assim um período importante para
a compreensão dos discursos que legitimaram certo tipo de modernização / civilização e
que fundamentaram políticas e idéias posteriores como a “marcha para o oeste” e os
principais estudos geopolíticos brasileiros (empreendidos por figuras como Terezinha
de Castro, Everardo Beckheuser e Mário Travassos).
O objetivo central deste trabalho é compreender e analisar a geografia como
catalisadora destes discursos sobre o território brasileiro, no período de 1889 – 1930, a
partir das realizações empreendidas por personagens e instituições (que compunham
uma verdadeira “ilha de letrados”) interessados em empreender, a partir do modelo
europeu de ciência e desenvolvimento, os processos de integração e modernização.
Dentre estes ganham destaque no período aqueles ligados à chamada Comissão
Rondon de Linhas Telegráficas (1900 – 1915). Sob as ordens da Diretoria Geral dos
Telégrafos (ligada ao Ministério da Viação e Obras Públicas), da Divisão Geral de
Engenharia (Ministério da Guerra) e do Ministério da Agricultura, Indústria e do
Comércio (MAIC) o então Major Cândido Mariano Rondon, engenheiro militar
formado na Academia da Praia Vermelha, comandou diversas expedições pela região
noroeste do país visando integrar, via telégrafo, o estado do Mato Grosso e a região dos
Altos Juruá e Purus (atuais Acre e Rondônia) à capital do país, a partir de projeto
idealizado pelo engenheiro Francisco Bhering.
Assim, os discursos geográficos produtores (produzidos) destas (por essas)
expedições não podem ser explicados sem a análise de alguns pontos fundamentais
como: (1) o contexto histórico retratado das articulações políticas de Francisco Bhering,
Rondon e dos outros engenheiros, cientistas, naturalistas e instituições envolvidas no
projeto; (2) as polêmicas envolvendo o projeto de integração via telégrafo,
principalmente as que envolviam os engenheiros Francisco Bhering e Leopoldo Weiss;
(3) as concepções de país; (4) que tipo de modernização ou civilização seria imposta e
(5) a importância da geografia nestes projetos de modernização.
Tessituras Históricas
O problema que a nossa Commissão resolve sobre via de comunicação
é complexo. Estabelecemos não só a ligação Telegraphica – a
aproximação do pensamento – como a vida de communicação
terrestre – a diffusão da sociabilidade humana – neste caso tão
importante como a primeira. E assim fomentamos o povoamento deste
vasto trecho do território nacional, conservado até hoje desconhecido
e ignorado da capacidade política do povo brasileiro. (RONDON,
p.99, 1915)
O período pós-independência (a partir de 1822) foi marcado pela árdua tarefa
de construir um ideário nacionalista, um projeto de nação num país de grandes
contrastes sociais e geográficos. Não por acaso, a estratégia foi de criar uma identidade
nacional, certo sentido de destino amparado no passado. Assim, os mitos fundadores do
país basearam-se no continuísmo, sendo o Brasil independente uma reafirmação do
Brasil português (MAGNOLI, 1997).
O processo de construção da nação passa, como herança portuguesa, pela
conquista e submissão, pela colonização dos vastos fundos territoriais. É nesse sentido
que o território surge como elemento de coesão, pois
A idéia de que o país não está pronto e de que urge construí-lo permite
uma série de desdobramentos lógicos bastante úteis para o exercício
do poder estatal e privado. De imediato, qualquer contestação poderia
ser qualificada como separatista e antinacional, pelo fato de que põe
em perigo uma obra política ainda frágil, pois em formação recente.
[...] Em síntese, ali onde a história pouco fornece para a elaboração de
uma identidade nacional, os argumentos de índole geográfica vão
possibilitar a elaboração de discursos legitimadores onde o país é visto
como um espaço, e mais, um espaço a ser conquistado e ocupado.
(MORAES, 2005, p.94-95)
O Segundo Império (1840 – 1889) segue a trajetória herdada da fase colonial,
buscando intensificar a compilação de conhecimentos sobre o território brasileiro, além
de priorizar a consolidação das fronteiras. Estes fatos acompanham o processo de
modernização, legitimado pela maior inserção da economia brasileira no sistema
capitalista mundial e pelos discursos sobre os avanços técnicos científicos1. Conhecer e
“Além dos esforços visando a promoção de progressos materiais, o Segundo Império distinguiu-se por
uma política consciente de desenvolvimento científico, caracterizada pelo sistemático intercâmbio de
nossos profissionais e estudantes com o meio científico internacional, por reformas nas instituições
científico-culturais existentes ou pela criação de novas.” (MARTINS FILHO, 2001, p.18)
1
modernizar o território se torna imperativo e ponto de coesão entre as elites. Telégrafos,
ferrovias, iluminação pública, participação em feiras científicas, modernização e criação
de novos centros de ensino superior2 são algumas das realizações do período que tentam
solucionar os problemas pertinentes à sociedade brasileira da época. Essas realizações,
contudo, só foram possíveis graças à ampliação da importância do papel do engenheiro.
O último quartel do século XIX conhece um verdadeiro boom da engenharia
nacional, no qual seus profissionais assumem o papel de pensar não apenas as questões
de resolução dos impasses técnicos relacionados ao seu campo profissional, mas
também “ao diagnóstico e à proposição de soluções aos mais diversos problemas
pertinentes ao conjunto da sociedade. Recursos e riquezas naturais, [...] ocupação dos
sertões eram alguns dos vários temas recorrentes em seus discursos.” (MARTINS
FILHO, 2001, p.22)
Em meio a esse turbilhão de novidades é que se processa a transição do
Império para a República.
No decorrer dos sessenta anos que separam a promulgação da “Lei do
Ventre Livre” (1871) da Revolução de 1930, momento que os
historiadores costumam apontar como sendo o marco da ascensão de
um “projeto de modernização” no Brasil, completou-se a transição do
trabalho escravo para o trabalho livre, as diferenças econômicas e
sociais entre as regiões brasileiras se aguçaram, a monarquia foi
sucedida pela república e o principal mercado para os produtos
brasileiros se deslocou da Europa para os Estados Unidos.
Examinadas em retrospectiva, a última década do século 19 e as três
primeiras do século 20 podem ser vistas como uma época de
redefinição da identidade nacional. (MACHADO, 1995, p.309)
A República Velha (1889 – 1930) marca a transição do pensamento político
sobre o Brasil, rompendo com o equilíbrio conservador do Império. Surge um novo
espírito “burguês” que se mantivera em um plano secundário durante o século XIX: a
prosperidade material, a busca do enriquecimento3. A própria influência dos
engenheiros na política nacional e nos discursos sobre o território começava a ganhar
importância numa sociedade que via o trabalho como sinônimo de servidão e que
creditava o comando da política nacional aos bacharéis (e em menor medida aos
médicos) 4.
2
Destacamos aqui a criação da Escola Central (1858) que separa o ensino militar do ensino de engenharia
civil e a implantação da Escola Politécnica (1874). Esta última representava “toda a tradição militar da
engenharia luso-brasileira, desde o período colonial, e a modernização proporcionada pelo ensino
técnico.” (MARTINS FILHO, 2001, p.22)
3
Ver: PRADO JÚNIOR, 1967.
4
Ver: TELLES, 1984.
Porém, essa “revolução burguesa” brasileira viria, como em todo processo de
transição, acompanhada de dualidades e contradições como federalismo / centralismo
ou região / nação. Temos uma elite que busca a modernidade material em uma
sociedade que ainda é marcada pelo autoritarismo do “mando e desmando”. Dessa
maneira “predominam a economia primária exportadora, a política de governadores
manejados pelo governo e o patrimonialismo em assuntos privados e públicos.”
(IANNI, 2004, p.22)
Neste contexto ganha destaque o processo de apropriação territorial, em conjunto com a
fixação dos limites internacionais (a questão acreana é um exemplo claro). Busca-se
consolidar o território para a República. O discurso do Império de conhecer e
sistematizar informações sobre o território, tentando dar (coesão a uma nação em que)
uma coesão à nação que a diversidade étnica não poderia oferecer, se refaz no período
republicano5, via aceleração na implantação de objetos técnicos, como o telégrafo.
Assim
Associando o atraso do país à centralização monárquica, a República
cunhou uma imagem do Império como sinônimo de estagnação,
monotonia e letargia à qual se contrapunha um novo tempo, ágil e
vivaz, trazido pela descentralização, pelo regime representativo, pela
participação política e pela reunião de Estados autônomos na
constituição da nação brasileira. Estas argumentações serviram para
cobrar maior agilidade e desempenho das comunicações telegráficas,
de modo a atender o rápido crescimento do número de telegramas e
promover a interiorização da nação via telégrafo. (MACIEL, 2001,
p.134)
O discurso modernizador, de notada influência positivista, seria materializado
através do telégrafo, sendo que este se torna a principal bandeira de alguns republicanos
e engenheiros militares6 para integrar os ditos espaços vazios ainda presentes no
território brasileiro7.
“As concepções do Brasil como sendo seu território, e da ocupação do espaço como a construção do
país, estão entre estes juízos reificados no pensamento das elites brasileiras do período. Por serem
dominantes numa época tais juízos projetam-se nas formulações posteriores que os superam, constituindo
o conteúdo do velho pensar que se reproduz (ao menos como referência negativa) nos novos discursos.”
(MORAES, 2005, p.96)
5
6
Nas cidades ele revolucionaria o comércio, a indústria e o mercado financeiro, agilizando a troca de
informações e auxiliando no transporte de mercadorias. No interior ou nos sertões, sua utilidade estaria
associada às noções militares de defesa do território, do governo e administração de populações dispersas,
de manutenção da ordem e progresso da nação. Esta era a visão do marechal Rondon, comandante de
expedições militares que construíram milhares de quilômetros de linhas telegráficas nos Estados de Mato
Grosso, Acre e Amazonas nos primeiros anos do século XX. (MACIEL, 2001, p.138)
7
O maior exemplo é a região amazônica que no início do século XX ganhava importância política
(questão acreana) e econômica com o crescente valor que o látex alcançava no mercado internacional.
Entre 1901 e 1910 a exportação de borracha alcançou 34.500 toneladas (com destaque para a região dos
Ciência e modernização do território: Engenheiros, militares, telegrafia e
geografia.
Ao assumir o discurso modernizador, no final do século XIX, as elites
brasileiras estavam atendendo aos interesses econômicos advindos da maior inserção do
país na economia mundial.
[...] a história do século XIX pode ser apreendida como a história do
triunfo e da escalada planetária da economia capitalista industrial, e de
uma sociedade que acreditava que o crescimento econômico
repousava na competição da livre iniciativa privada num mundo de
contínuo e acelerado progresso material e moral. Norteado pela
convicção nutrida por certos segmentos morais de que nos saberes da
ciência residia o fundamento do progresso. (MARTINS FILHO, 2001,
p.8)
Há uma contínua integração econômica mundial, onde a expansão geográfica
da economia capitalista estava totalmente ligada à revolução técnica e expansão dos
meios de comunicação8. É neste contexto que os avanços científicos9 aliados a um
bando de idéias novas10 no seio do Segundo Império respondem pelo projeto
civilizador, principalmente aquele ligado à integração do sertão incivilizado ao litoral,
tendo por base ideologias importadas da Europa (e assimiladas a um contexto
completamente novo) como o darwinismo social, o evolucionismo e o positivismo.
Urge a realização do processo de
[...] domestificação do sertão e de seus habitantes, o estabelecimento e
manutenção de uma sociedade ordenada, capaz de se contrapor à
barbárie que a rodava, impunha-se como uma tarefa tão crucial quanto
aquelas destinadas à edificação material dos marcos fronteiriços.
(GALETTI, 2000, p.43)
A realização desta tarefa contou com a articulação de um conjunto de
personagens, instituições e saberes que mantiveram relações em torno de objetivos e
altos rios Purus e Juruá na Amazônia Ocidental), o que representava 28% do valor total das exportações
brasileiras. (PRADO JÚNIOR, 1967) As mudanças na Amazônia também estavam relacionadas ao
aumento populacional da região, pois a expansão na produção de borracha era uma questão de suprimento
de mão de obra. (FURTADO, 1995)
8
Assim o importante não era apenas o invento em si da ferrovia, mas sua utilização como rede ferroviária
associada à navegação a vapor e ao telégrafo, unificando materialmente o mundo. Ver: HOBSBAWN,
1988.
9
O Brasil participou de 7 das 8 Exposições Universais realizadas entre o final do século XIX e início do
século XX e incorporou ao seu território, mesmo que em pequena escala, boa parte das novidades
tecnológicas apresentadas nas exposições.
10
Branqueamento, imigração, higienismo, melhoramentos das vias de comunicação.
projetos comuns, porém num permanente jogo de alianças e conflitos. Nossos
personagens faziam parte de um restrito círculo de ilustres letrados e técnicos,
principalmente engenheiros11, que foram chamados a resolver os problemas de
articulação do território brasileiro, tornados muito evidentes durante a guerra do
Paraguai12.
Esta elite técnica foi formada graças a instituições que cuidavam da formação,
socialização e até do exercício profissional. Ganham destaque a Escola Central (1858) e
sua substituta a Escola Politécnica (1874), a Academia Militar da Praia Vermelha –
instituições formadoras –, o Instituto Politécnico (1862) e o Clube de Engenharia (1880)
– socialização e exercício profissional. Nestes locais os engenheiros militares ou civis
concebem uma formação enciclopédica e científica, tendo na grade curricular além da
formação técnica, o domínio de outras áreas das ciências e humanas naturais
representado em disciplinas como astronomia e geodésia, botânica e zoologia, desenho
geográfico, história natural, filosofia, línguas estrangeiras, latim e grego13.
Dessa maneira, nossos personagens acabam se conformando no único corpo
técnico capaz de produzir conhecimentos e cartografar o território brasileiro.
[...] naquela ilha de letrados, esses portadores dos saberes técnicos
modernizadores iam acabar se assumindo, nos dois decênios do
Segundo Reinado, como os únicos capazes de resolver os problemas
técnicos de integração e dotação de infra-estrutura do território
brasileiro. (SOUSA NETO, 2005, p.44-45)
São estes personagens e instituições, em íntima relação com o Estado, que
promoveram as tentativas de reformas e modernização, aliando saber enciclopédico,
domínio das ciências naturais (e da chamada geografia exata) e progresso técnico. Isto
fica claro na tentativa de integração nacional via linhas telegráficas14, cuja expansão
acompanhava as linhas férreas no final do século XIX. Apenas com o advento da
“Os engenheiros brasileiros forjariam, a seguir, um importante instrumento de legitimação do saber,
fazendo, assim, parte de um conjunto das instâncias formais de “consagração” dos engenheiros
intelectuais da segunda metade do século XIX. Demonstravam, desta maneira, vontade para, na sociedade
civil, criar espaços onde sua prática profissional uniria saber e poder, possibilitando maior capacidade de
intervenção e legitimação de suas aspirações em ocupar posições de destaque no conjunto geral das
relações sociais.” (MARINHO, 2008, p.19)
11
12
A precariedade ou inexistência de vias de comunicação tornava difícil e onerosa a tarefa de mobilizar
tropas, máquinas de guerra, provisões. Boa parte das tropas brasileiras teve de ser deslocada via território
argentino. Ver: COSTA, 1996.
Na Escola Central, por exemplo, “os alunos tinham direito, no fim do 4º ano, ao título de Engenheiro
Geógrafo e de Bacharel em Matemática e Ciências Físicas e Naturais.” (TELLES, 1984, p.85)
13
14
Desenvolvido por Charles Wheatstone (1836), o telégrafo elétrico chega ao Brasil em 1852 ligando o
Quartel General ao Paço da Boa Vista no Rio de Janeiro.
República, o telégrafo ganha ares de elemento de segurança e ocupação das fronteiras,
sendo constantemente citado em relatórios sobre áreas “pouco” conhecidas e povoadas
do norte/noroeste brasileiro.
Temos como exemplo a criação da “Comissão Construtora de Linhas
Telegráficas do Mato Grosso (1900 – 1906), que buscava integrar Mato Grosso à capital
federal. Como seqüência deste processo, surge o projeto do engenheiro Francisco
Bhering (em meio a polêmicas com o então diretor do Departamento Geral dos
Telégrafos, Leopoldo Weiss) que visava integrar a região Amazônica (principalmente
os Altos Juruá e Purus) ao restante do país, que é materializado na “Comissão de Linhas
Estratégicas do Mato Grosso ao Amazonas” (1907 – 1915) sob responsabilidade do
major e engenheiro militar Cândido Mariano Rondon15, formado na Academia Militar
da Praia Vermelha.
Nesta Comissão, Rondon contou em suas viagens exploratórias com a ajuda de
alguns cientistas, naturalistas e engenheiros, produzindo um vasto material sobre esse
fundo territorial brasileiro, amplamente discutido, nos anos posteriores, por instituições
como o Instituto Histórico e Geográfico (IHGB) e a Sociedade Geográfica do Rio de
Janeiro (SGRJ). Podemos dizer que “Foi, portanto, a Comissão Rondon um
experimento de controle territorial que condensava noções de militarismo, diplomacia
[e] estratégia governamental.” (MENEZES, s/p., 2006)
É a partir desta estreita relação entre Estado, instituições e engenheiros (civis e
militares) que emergem os temas de integridade e integração nacional no período da
República Velha. A análise das ações e dos conhecimentos produzidos, a partir dos
projetos e expedições realizados nesta conjuntura, ajudam a esclarecer alguns pontos
das políticas territoriais do período, caracterizadas pelas tentativas de incorporação e
modernização, de fato, dos vastos sertões “desocupados” e “incivilizados” 16.
Desbravar esses sertões, torná-los productivos, submettel-os á nossa
actividade, aproximal-os de nós, ligar os extremos, por elles
interceptados, aproveitar a sua feracidade e as suas riquezas, estender
até os mais recônditos confins dessa terra enorme, a acção
civilizadora do Homem, eis a elevada meta de uma política sadia e
diligente, eis a obra de um estadista que tenha a comprehensão nítida
das necessidades primordiaes do desenvolvimento material desta
15
[...] foi Cândido Mariano Rondon, militar brasileiro, que, durante a Primeira República, chefiou os
principais projetos, cujos objetivos eram realizar o desenvolvimento da região amazônica e efetivar a
construção de aparatos militares que garantissem a integridade territorial do Brasil. Positivista convicto e
defensor das idéias de Augusto Comte, acreditava que a sociedade humana estivesse dividida em três
estados evolutivos: o estado teológico ou fetichista, o estado metafísico ou abstrato e o científico ou
positivo.” (BIGIO, 2003, p.23-24)
16
Ver: LIMA, 1998.
Pátria, bem merecedora de ser muito amada e carinhosamente servida!
(RONDON, s/p, s/d)
Nas palavras de Rondon, um homem nascido no sertão, mas formado no litoral,
encontramos certas determinações. Estar no litoral, muito mais próximo da Europa (e de
suas idéias) do que do interior do país mostra o porquê de suas afirmações de um Brasil
cingido entre litoral (civilizado, moderno) e sertão (incivilizado, atrasado) e a
importância de um projeto de integração nacional. É dentro deste debate que emergem
as noções de regionalismos, de quem seria o brasileiro típico (o sertanejo ou o
litorâneo), de que povo e que território contávamos para a construção de uma nação
moderna.
E é pelo fio do telégrafo que essas idéias também vão tomando forma, em um
duplo movimento de tentar levar a modernidade às regiões mais afastadas da capital da
República e de trazer as características dessas regiões para o conhecimento da
intelligentsia brasileira. Esta tentativa de integração material do Brasil via
comunicações é a base da representação geográfica sobre a identidade nacional. Eis o
início de um pensamento estratégico sobre o Brasil, que envolve as noções de povo,
território, comunicações e geografia17.
É nesta perspectiva que a geografia, por meio da assimilação e incorporação
das idéias dos principais teóricos da época como Ratzel e La Blache, é a todo momento
invocada pelos atores envolvidos nestes projetos. Pretende-se aqui analisar este período
a partir das novas perspectivas teóricas em história da geografia no Brasil 18, buscando
romper com as noções de simples importação de idéias advindas da Europa (sendo os
intelectuais do período considerados meros repetidores das teorias européias, algumas
delas contraditórias e não adequadas ao contexto brasileiro), de difusão da ciência
centro-periferia, aspectos que contribuíram para qualificar este período como de présistematização (ou pré-história) da geografia no Brasil19.
Nossos personagens “não estavam a embaraçar-se com palavras pomposas e
importadas, mas a pleitear a adoção de um novo modelo de atividade intelectual.” (SÁ,
2006, p.31).
17
Mobilidade, movimento, de um lugar a outro lugar: deslocamento. Os lugares em relação, em ligação,
em conexão: os fluxos. Movimentam-se capitais, em suas diferentes formas: dinheiro, tecnologias, bens
de produção. Há também a comunicação, e de um lugar a outro movimentam-se informações, e com elas
elementos diversos: universos culturais em movimento, de princípios éticos à manifestações artísticas.
[...] Enfim, os lugares e suas relações: eis a Geografia. (MARTINS, s/p, 2001)
18
Ver trabalhos de: ANSELMO, 2000; MACHADO, 1995; PEREIRA, 2002; SOUSA NETO, 2005.
Ver as antigas perspectivas em história da geografia no Brasil em: AB’SABER & CHRITOFOLETTI,
1979; ANDRADE, 1982 MONTEIRO, 1980; PETRONE, 1979; PEREIRA, 1955.
19
Francisco Bhering e os planos para o Brasil republicano
Nascido em 1867, Bhering se formou na Escola Politécnica em fins de
1885, nos cursos de ciências físicas e matemáticas e de engenharia.
Em 1889, chegou a lente substituto dessa mesma escola, cargo que
exerceu até 1894. Durante os anos de 1891 a 1893, viajou pela
Europa, a fim de realizar estudos de astronomia e geodésia.
Regressando ao Brasil em 1893, foi nomeado em 1895 engenheiro dos
Telégrafos. Radicando-se em São Paulo, foi nomeado lente catedrático
de mecânica e astronomia pela Congregação da Escola Politécnica de
São Paulo, em 1899. (OLIVEIRA; VIDEIRA, p. 48, 2003)
O engenheiro Francisco Bhering foi responsável por desenvolver o principal
projeto de integração e reconhecimento do território brasileiro do período da República
Velha, a ligação telegráfica entre o Cuiabá e os territórios recém incorporados dos altos
Purús e Juruá. A aplicação de seu projeto se deu na forma da Comissão de Linhas
Telegráficas Estratégicas do Mato Grosso ao Amazonas (CLTEMA) sob o comando do
então major Cândido Mariano Rondon20.
Como membro do corpo de engenheiros da Divisão Geral dos Telégrafos, além
de sua atuação junto ao Clube de Engenharia e à Sociedade de Geografia do Rio de
Janeiro, Bhering pode desenvolver as alianças e articulações políticas necessárias à
aprovação de seu projeto. Seu livre acesso a essas intuições é exemplificado em um
discurso que proferiu em 1917 na SGRJ, onde ao demonstrar preocupação com a
“geografia brasílica”, disse que esta estava sendo desenvolvida sobretudo “na Sociedade
de Geographia, no Instituto Histórico e Geographico, no Club de Engenharia, no
Instituto Polytechnico, no Estado Maior do Exército, na Superintendencia de
Navegação.” (BHERING, p.31-32, 1912-22)). Seu acesso aos meios civis e militares
talvez explique a adoção do projeto de Bhering, mesmo com as polêmicas em que se viu
envolvido com o então diretor geral do telégrafos Leopoldo Weiss21, pois a CLTEMA
estava submetida tanto ao Ministério da Agricultura, Industria e Comércio quanto ao
Ministério da Guerra.
20
Na introdução do volume I (estudos e reconhecimentos) dos relatórios produzidos por Rondon, este
ressalta que o projeto de Bhering foi apresentado a ele pelo presidente Afonso Pena em conjunto com
outros projetos de integração. Ao ser indagado pelo presidente sobre qual seria o melhor, Rondon se
mostrou favorável a Bhering. (RONDON, s/d, s/p).
21
Bhering e Weiss travaram verdadeira batalha, em artigos publicados no Jornal do Commercio entre os
meses de janeiro e março de 1907. As polêmicas envolviam principalmente fatores técnicos (se deveriam
ser adotados cabos térreos ou submarinos) e econômicos (cálculos do custo do projeto). Interessante
ressaltar que os dois engenheiros utilizam como justificativa para seus argumentos conhecimentos sobre a
região, tanto pessoais (como no caso de Weiss) quanto a partir de observações feitas por personalidades
(os dois citam um artigo de Euclides da Cunha, escrito e publicado no Jornal do Comércio após sua
passagem pela região amazônica com a comissão de demarcação de limites entre Peru e Colômbia).
O grande objetivo de Bhering com seu plano de interligar a capital do país às
áreas recém incorporadas do noroeste brasileiro e posteriormente a Manaus, através dos
cabos do telégrafo, seria reconhecido alguns anos depois, quando o governo federal
encomenda ao Clube de Engenharia a produção da carta do Brasil ao milionésimo.
Nesta ocasião, Bhering é escolhido para chefiar a organização desta carta. Assim,
possivelmente sua preocupação em projetar linhas terrestres (afinal, já era conhecida a
tecnologia de radiotelegrafia) estava no processo de reconhecimento e inventário de
partes do território consideradas poucos conhecidas. A partir da CLTEMA, foi
produzido um vasto material topográfico, geológico, botânico sobre a região.
Diretriz ministerial mencionada no ofício que a criou, o inventário
científico das riquezas da porção norte do território era absoluta
prioridade nas diferentes viagens dos membros da Comissão do Mato
Grosso ao Amazonas. Para realizá-lo, aos seus integrantes agregaramse séries de naturalistas, sobretudo do Museu Nacional do Rio de
Janeiro. (SÁ; SÁ; LIMA, p.783, 2008)
É devido ao envolvimento de Francisco Bhering neste grandes projetos do
Brasil do início do século XX (CLTEMA e Carta do Brasil ao milionésimo) que deve-se
buscar as matrizes de pensamento que orientavam suas atividades como engenheiro, que
concepções tinha de geografia e qual matriz teórica deixou para a consolidação de um
pensamento que articulasse território, comunicação e geografia.
Considerações Finais
Compreender o atual processo de modernização e de tentativas de integração
do território brasileiro passa pela consciência histórica dos discursos e ações que o
antecederam. Assim, este artigo procurou mostrar algumas das marcas deixadas no
território pelas tentativas de modernização, no período de transição do Segundo Império
para a República, ressaltando a importância atribuída à ciência, à revolução tecnológica
e à atuação de militares e engenheiros.
Apesar de transparecerem como discursos absolutamente técnicos, nenhum dos
projetos ou ações desenvolvidas pelos engenheiros e militares estava desvinculada de
ideologias ou de discursos notadamente políticos e, as tentativas de modernização,
apesar de travestidas de certo discurso social, em nenhum momento deixaram de
atender, prioritariamente, aos anseios econômicos das elites locais.
Talvez como uma história que se refaz, alguns projetos que hoje se impõem
sobre o território amazônico (como aqueles ligados ao IIRSA – Iniciativa de Integração
de Infra-Estrutura da América do Sul), considerado ainda isolado e “pouco” conhecido,
guardam muitas semelhanças com os do período aqui analisado.
Referências:
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