UMA ANÁLISE DA REPRESENTAÇÃO DAS FRAÇÕES NA ARITMÉTICA EGÍPCIA1 Mariana Araújo Vieira – UnB-Brasília2 Thiago Viríssimo Pereira – UnB-Brasília3 [email protected] [email protected] 1. Introdução A civilização egípcia instalada no extremo nordeste da África, floresceu ás margens do rio Nilo. No início do terceiro milênio a.C. iniciou a mudança de uma sociedade primitiva para uma sociedade de classes, surgindo um avanço na arquitetura, na engenharia, na astronomia. Na hierarquia dos grupos sociais do Egito, encontra-se a baixa burocracia, formada pelos escribas, profissionais da administração do estado. Os escribas são grandes conhecedores da complexa escrita hieroglífica, são encarregados da coleta de impostos, trabalhos judiciais, fiscalizar o trabalho e a renda pública, entre outras tarefas (Wussing, 1998). Para a realização dos seus trabalhos era necessário um grande manejo e conhecimento da matemática. O que se conhece da matemática egípcia provém de cinco papiros, as maiores contribuições segundo Gillings (1972), provém dos papiros RHIND e o MOSCOU. O sistema de numeração egípcio é representado com símbolos próprios, figura 1, sendo decimal e aditivo. Figura 1- Símbolos egípcios para representação numérica 2. Operações Básicas Para representar os números os egípcios apenas agrupavam os símbolos em uma determinada ordem. Possuíam um sistema não posicional, ou seja, a ordem em que os símbolos apareciam não determinava o seu valor, como ilustrado na figura2. 1 Trabalho desenvolvido sob a orientação da Profa. Dra. Maria Terezinha Gaspar (MAT-UnB) Aluna de Graduação em matemática pela Universidade de Brasília 3 Aluno de graduação em matemática pela Universidade de Brasília 2 2 Figura 2 - Sistema não posicional A adição era realizada de forma direta, agrupam-se as unidades, as dezenas, as centenas e assim por diante. Quando um grupo de dez de um símbolo aparece, substituise por um único símbolo equivalente. A subtração é feita de modo análogo. A multiplicação e a divisão merecem mais atenção. O algoritmo egípcio para a multiplicação era baseado no processo contínuo de dobrar. Para multiplicar dois números c e b, o escriba escolhia aleatoriamente um dos números c ou b, para compor o par 1, c, por exemplo. Ele então dobrava cada número do par repetidamente, até o próximo dobro, derivado de 1, ser maior ou igual a b. Então, determinando as potências de 2 que somadas resultam b, o escriba soma os múltiplos correspondentes de c para obter a resposta. Por exemplo, para multiplicar 11 por 14 o escriba registra as seguintes linhas4: 1 /2 11 22 /4 /8 14 44 88 154 O próximo dobro produzirá 16 na primeira coluna, que é maior que 13, o escriba então checará na primeira coluna aqueles múltiplos que somam 14, no exemplo, 2, 4 e 8, e somará os números correspondentes na outra coluna obtendo o resultado da multiplicação. É possível utilizar o método para multiplicar dois números quaisquer n e m, já que todos os números podem ser escritos de forma única como soma de potências de 2, justificando assim o procedimento. Note que as linhas que estão marcadas com um traço (“/”) são as que irão ser somadas. Era com uma marca similar que os escribas marcavam as linhas que os interessavam. 4 3 Se quisermos multiplicar m por n teremos: 1 22 m m 22 23 24 m 23 m 24 2 m 2 Sendo 2 n . Existem 0 k1 , k 2 ,...., k j n tais que n 2 1 2 2 k k k 2 j . Assim, somando os valores correspondentes da segunda coluna se têm: k k m 2 1 m 2 2 m 2 k k Mas n 2 1 2 2 k k m 2 1 m 2 2 kj k k m 2 1 2 2 2 kj k 2 j , assim m 2 kj m n Logo, o método pode ser aplicado para determinar o produto de dois números naturais quaisquer. Como a divisão é o inverso da multiplicação, um problema como 154 11 pode ser resolvido respondendo a questão “qual número devo multiplicar por 11 para obter 154”. Esta era a forma como os egípcios travam o problema da divisão de números naturais [Katz, 1998]. Calcular 15 3 equivale a responder a questão “qual número devo multiplicar 3 para obter 15”? Pelo procedimento egípcio /1 2 3 6 /4 12 5 15 o resultado da multiplicação é 15. 2.1 - As frações Egípcias Os egípcios só possuíam símbolos para representar frações com o numerador igual a 1, ou seja, inversos de números naturais, com uma única exceção, o 2/3, que tinha uma representação especial. 4 Usa-se a notação n para representar 1/n e 3 para 2/3 para as demonstrações a seguir [Katz, 1998]. Analisando um exemplo que aparece no papiro RHIND [Katz, 1998], Dividir 6 pães entre 10 homens. no papiro RHIND a resposta encontrada é 2 10 , ou seja, cada um recebe uma metade e um décimo de pão. Para resolver esse problema os Egípcios utilizavam um procedimento análogo ao da multiplicação, como segue: 1 / 10 2 5 / 10 1 2 10 6 Uma forma de verificar a resposta do problema acima é: 1 2 10 / 2 1 5 4 2 3 15 / 8 4 3 10 30 10 6 Dobrar 2 10 é simples, uma vez que os denominadores destas frações são números pares e se n é um número natural o dobro da fração 1 1 é . Os egípcios 2n n provavelmente conheciam este resultado. Para dar continuidade ao procedimento é necessário dobrar n com n ímpar, e para isso usavam-se tabelas de dobros. Para encontrar o valor 6 na última linha é necessário o conhecimento de alguma tabela de somas e dobros que os egípcios possuíam. Não há um consenso entre os autores de como essas tabelas foram construídas. Algumas questões podem ser levantas em relação à importância dessas tabelas e possíveis métodos de construção. As tabelas de dobros são suficientes para a resolução de problemas que envolvem decomposição de frações da forma frações do tipo 1 2 e . n 3 m , (m < n) na soma de n 5 É possível demonstrar este resultado por indução. De fato, Se k = 1, utilizando as tabelas de dobro é possível escrever 2 como a soma de frações n 1 2 e . n 3 do tipo Suponhamos que 2k 2 1 com n , a = 0 ou a = 1. a n 3 n 1 2 2k 1 Afirmo que pode ser escrito como a soma de frações do tipo e . n 3 n De fato 2 2k 1 2k 2 2 onde b = 0 ou b = 1 e, é obtido por meio de 2 b n n n 3 n tabelas de dobros. Assim, se m m 1 k é uma fração irredutível menor ou igual a 1, então 2 j e n n n j as tabelas de dobro permitem escrever m 1 2 como soma de frações do tipo e . n n 3 Quais procedimentos eram utilizados para construir as tabelas de dobro? Apresentaremos a seguir alguns exemplos levantados por Robins & Shute (1987). O objetivo é escrever as frações da forma 2 n com n ímpar por meio de uma expressão envolvendo apenas a soma de no máximo 4 frações egípcias não repetidas. No papiro RHIND encontra-se tais expressões para n variando de 3 a 101. E isso resultará em uma decomposição de frações cujos denominadores devem ser menores que 1000. No caso n = 17 a solução a seguir é semelhante a que aparece nos papiros [Robins & Shute, 1987]. 6 1 17 3 11 3 / 1 17 3 53 / 2 34 6 223 12 1 4 6 / Total 3 3 4 Re sto 51 (em vermelho) 4 68 (em vermelho) A linha marcada a esquerda mostra que 17 12 1 4 6 . A soma 1 4 6 é um número compreendido entre 1 e 2, o objetivo é encontrar um número, o resto, que somado a 1 4 6 seja igual a 2. Para a soma 1 4 6 seja igual a dois, precisa-se completar 4 6 para 1. Logo, Escolhe-se um múltiplo comum entre 4 e 6 24 4 6 = 6 + 4 = 10 24 – 10 = 14 É necessário encontrar um valor que multiplicado por 24 seja igual a 14 Observe que 14 = 8 + 6, 8 3 24 e 6 4 24 . Utilizando a linguagem atual temos 24 14 8 6 3 4 Então, o resto é igual a 3 4 . Desse modo, o número dois pode ser decomposto em duas partes 1 4 6 3 4 . Ou seja: 2 1 4 6 3 4 17 1 4 6 12 5 5 Seria provável que os Egípcios utilizassem um procedimento equivalente a aplicar a propriedade distributiva? e 7 17 3 4 51 68 17 2 17 1 4 6 3 4 Portanto, 17 2 12 51 68 . Deve-se notar que a primeira fração na expressão para 17 2 é obtida pela multiplicação sucessiva de 17 pelos termos da série fracionária6 3 , 3 , 6 , etc., até encontrar um resultado que seja menor do que 2 e maior do que 1. As frações restantes são obtidas multiplicando 17 pelas frações que somadas a este resultado, o resto, dá 2. O resultado obtido anteriormente não é o único possível. Vamos refazer a multiplicação 17 2 usando a série de dobros 2 4 8 . 1 17 2 8 2 4 44 8 28 /16 1 16 Resto 2 4 8 16 Para a soma 1 16 seja igual a dois, precisa-se completar 16 para 1. Logo, Escolhe-se um múltiplo de 16. 32 16 = 2 32 – 2 = 30 É necessário encontrar um valor que multiplicado por 32 seja igual a 30. 32 30 16 8 4 2 2 4 8 16 6 Os Egípcios usavam muito as seqüências de metades, de terços e também a de décimos. 8 Então, o resto é igual a 2 4 8 16 . O número dois pode ser decomposto em duas partes 1 16 e 2 4 8 16 . Ou seja: 2 1 16 2 4 8 16 17 1 16 16 17 2 4 8 16 34 68 136 272 17 2 17 1 16 2 4 8 16 Portanto, 17 2 16 34 68 136 272 Comparando os dois resultados encontrados anteriormente, o segundo é rejeitado porque contém mais de quatro frações. Logo o mais adequado é o primeiro. No RMP7, para 2 n quando n é múltiplo de 3 os cálculos obedecem a um único padrão. Dobrar 3 não apresenta dificuldade, uma vez que 3 2 3 . No caso n = 9, a solução a seguir é semelhante a que aparece nos papiros [Robins & Shute, 1987]. 1 3 9 6 3 6 1 2 Re sto 18 3 Para a soma 1 2 seja igual a dois, precisa-se completar 2 para 1. O complemento de 2 é 2 . Então, o resto é igual a 2 . O número dois pode ser decomposto em duas partes 1 2 e 2 . Ou seja: 7 Significa papiro matemático RHIND. 9 2 1 2 2 9 1 2 6 9 2 18 9 2 9 1 2 2 Portanto, 9 2 6 18 2.3 - Um problema histórico sobre áreas e proporções Os agricultores que plantavam a margem do rio Nilo pagavam impostos proporcionais à área que ocupavam. Era comum que o rio inundasse parte dessas propriedades, quando isso acontecia fazia-se o cálculo da nova área que o agricultor tinha e reduziam-se os impostos cobrados de forma proporcional. Suponha que eles usassem o nosso sistema métrico e que um agricultor tivesse uma área de 15m² e pagasse por essa área 1/15 da sua produção. Em um determinado ano de seca seu território dobrou, e assim, os impostos que ele pagava deveriam também dobrar. Qual a nova fração da produção desse agricultor que ele pagaria como impostos? Aplicando as regras egípcias tem-se que: Para resolver o problema é necessário calcular 2 15 , n é múltiplo de 3 e 5. 1 15 3 10 3 5 6 22 12 1 4 Re sto 24 Para a soma 1 4 seja igual a dois, precisa-se completar 4 para 1. Logo, 10 Escolhe-se um múltiplo de 4: 8 4 = 2 8–2=6 É necessário encontrar um valor que multiplicado por 8 seja igual a 6 8 6 2 4 24 Então, o resto é igual a 2 4 . O número dois pode ser decomposto em duas partes 1 4 e 2 4 . Ou seja: 2 1 4 2 4 15 1 4 12 15 2 4 30 60 15 2 15 1 4 2 4 Portanto, 15 2 12 30 60 Logo, ele deve pagar 12 30 60 da sua produção total. Existem procedimentos para calcular 2 n com n múltiplo de cinco ou sete que se assemelham em parte ao procedimento apresentado neste trabalho. É nossa intenção dar continuidade a análise e construção de uma tabela de dobros para n variando de 3 a 101, e a busca de uma generalização para os procedimentos egípcios. 4 – Referências Bibliográficas GILLINGS, R. J. Mathematics in the time of the pharaohs. Nova York: Dover Publications, 1972. 277 p. 11 KATZ, V. J. A History of mathematics, an introduction. USA: Addison-Wesley Eeducational Publishers, 1998. 864 p. ROBINS, G. & SHUTE, C. The Rhind Mathematical Papyrus, an ancient Egyptian text. Nova York: Dover Publications, 1987. 59 p. WUSSING, H. Lecciones de Historia de las Matematicas. Madri: Siglo XXI de España Editores, 1998. 345 p.