Singer Paul. “O Brasil à luz do neoliberalismo” Rio de Janeiro: Valor Econômico, 14 de maio. Jel: HeL O Brasil à luz do neoliberalismo Paul Singer O início da próxima recessão já tem data marcada: 01/06, quando deveremos entrar no regime dos apagões, eufemicamente chamados de "racionamento". Espanta o tamanho do corte de suprimento de eletricidade: nada menos de um quinto do uso de energia terá de ser eliminado de um momento para o outro. O que, inevitavelmente, implica em redução proporcional de produção, emprego e consumo, ou seja, em aumento também proporcional de desemprego e miséria. Como sempre acontece no capitalismo, são os economicamente mais frágeis os que pagarão o preço. Os que dispõem de dinheiro comprarão geradores próprios para evitar qualquer incômodo. A crise aguda de energia elétrica é o desenlace, há muito tempo aguardado, de políticas inacreditavelmente míopes. Cumpre lembrar que o Brasil possuía um excelente sistema hidroelétrico que acompanhou, sem falhas, o imenso crescimento do consumo durante décadas. O país se industrializou e se urbanizou. Dezenas de milhões de residências se equiparam com toda a sorte de aparelhos movidos à eletricidade, sem a ocorrência de apagões, programados ou não. Tudo isso se logrou pela quase completa estatização do sistema de geração, transmissão e distribuição de energia, que possibilitou o planejamento nacional da expansão do sistema com um horizonte de décadas, tempo necessário para medir a vazão dos rios, projetar e executar a construção de barragens, usinas, linhas de transmissão e de distribuição. Mas, de repente, o governo brasileiro descobriu que tudo o que é estatal é ineficiente e simplesmente destruiu o planejamento energético existente para poder retalhar o sistema e vender os pedaços transformados em companhias "independentes" ao capital privado. Só que não foi fácil vencer todas as resistências e, sobretudo, encontrar compradores privados que dispusessem de capitais para arrematar todo o setor elétrico de uma economia do tamanho da nossa. Portanto, entre a decisão de privatizar, adotada no início do primeiro mandato de Fernando Henrique Cardoso, e a sua execução já se passaram mais de seis anos, durante os quais as empresas de eletricidade ainda estatais foram proibidas de investir para que a oferta de energia acompanhasse a procura. Durante esses anos, cresceu a insuficiência de oferta de energia que foi ocultada mediante o uso da água que deveria servir de reserva estratégica para períodos de estiagem. O sistema hidroelétrico é, no fundo, movido à energia solar, que evapora a água do mar e a traz, sob a forma de chuva, às cabeceiras dos rios. A chuva é intermitente, mas o consumo de energia é contínuo, o que obriga o sistema a usar represas que regularizam o fornecimento. A falta de chuva nunca forçou o Brasil a "racionar" energia antes, por causa dessa reserva de água nas represas. Pois bem, essa água foi usada para produzir a energia que deveria ser produzida por capacidade adicional, que não foi erguida. A atual crise de energia viria inevitavelmente. Os conhecedores da economia de energia estavam alarmados há anos e trataram de alertar as autoridades e a opinião pública da crise em que mergulhamos agora. A cada privatização, a ameaça de estrangulamento da economia por falta de energia vinha à tona e era negada como mera fantasia dos adversários da privatização. Agora, o presidente da República tenta se isentar, responsabilizando os governos anteriores, o que os dados de investimento em eletricidade prontamente desmentiram. Na verdade, não há desculpas para um erro que, pelas suas conseqüências para o brasileiro, é pior do que um crime. É importante não esquecer que a privatização da maior parte do sistema energético brasileiro ainda não aconteceu e não deverá acontecer, se a sociedade brasileira for capaz de aprender com o desastre anunciado. O Brasil precisa urgentemente reconstruir o planejamento dos macrosistemas de serviços públicos, dos quais o elétrico, por motivos óbvios, deve ser o primeiro. Para que isso se torne possível, é fundamental frear as privatizações. E autorizar as elétricas que continuam públicas a retomarem os investimentos programados para atender o crescimento da demanda. A Agência de Energia Elétrica terá de ser reformulada para receber a incumbência e os poderes correspondentes de planejar a longo prazo o suprimento de eletricidade para o país. Nesse momento, o Brasil está impossibilitado de crescer, travado pelo serviço do passivo externo, que se tornou exorbitante, e pela escassez de energia elétrica que se explicitou subitamente. Destravar a economia nacional é a grande tarefa imediata e inadiável, cujo cumprimento é condição "sine qua non" para tudo o mais. Paul Singer , economista, ex-secretário municipal do Planejamento de São Paulo (na gestão de Luiza Erundina), é professor titular da FE A-USP. E-mail: [email protected]