por uma antropologia da condição humana nas organizações

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POR UMA ANTROPOLOGIA DA CONDIÇÃO
HUMANA NAS ORGANIZAÇÕES
Título original: Vers une anthropologie de rorganisation
Tradução: O/élia de Lanna Sette Tôrres
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Há mais de um século, nossa sociedade é palco de inúmeras transformações econõmicas, sociais,
políticas e culturais. Mudanças que têm suas origens em épocas mais antigas (Braudel, 1979) e desembocaram
sobre o acontecimento que o historiador e sociólogo americano I. Wallerstein qualificou de capitalismo
histórico (1985), que se caracteriza pela ascensão da racionalização (Weber, 1971), pela acumulação do capital
(Marx, 1970), pela hegemonia das categorias econõmicas (Polanyi, 1983), pelo desenvolvimento do
individualismo (Dumont, 1983), pela obsessão do progresso (Rostow, 1968), pela urbanização (Castells, 1975)
e pela explosão tecnológica (Ellul, 1964; Landes, 1975), Esta nova ordem social, em perpétuo movimento, viu
também nascer e proliferar grande número de organizações (Presthus, 1978). Estas organizações formais
tornaram-se um dos principais pontos de alavancagem e de estruturação individuais e coletivas (Meyer e
Rowan, 1977; Zucker, 1977) e por isso se transformaram em objeto de estudo, pesquisa e reflexão
independentes (Chanlat e Séghuin, 1983,1987; Morgan, 1986).
Este interesse por estruturas organizadas tomou diferentes caminhos: os da economia (Ouchi e Barnes,
1986; Williamson, 1985), da sociologia (Perrow, 1979; Crozier e Friedberg, 1977; Warriner, 1984;
Sainsaulieu, 1987; Balle, 1990), da psicologia (Schein, 1980), das ciências políticas (Hardy, 1987), das
ciências da administração (Koontz e O'Donnell, 1955; Mintzberg, 1973), e mesmo da antropologia (Warner e
Low, 1947; Whyte, 1948) e da psicanálise (Jaques, 1951; Zaleznik e Kets de Vries, 1985; Amado, 1980; Kets
de Vries e Miller, 1984), enquanto que o estudo do comportamento humano nas organizações transformou-se
gradativamente em um objeto de estudo científico específico (Audet e Malouin, 1986; Côté et al., 1986;
Lorsch, 1987; Cooper e Robertson, 1987).
Amplamente dominado pelos anglo-saxões e mais especificamente pelos norte-americanos, este campo
de estudo desenvolveu-se inicialmente à sombra de alguns departamentos universitários, principalmente os de
psicologia e de sociologia e, mais recentemente, pelas escolas de administração com o modismo das ciências
do managemente do culto da empresa (Rousseau, 1988).
O fenômeno se reproduz com maior ou menor amplitude na maioria dos países industrializados. Esta
disciplina, que pertence, antes de tudo, ao universo das ciências administrativas, está atualmente em plena
expansão. Caracteriza-se ao mesmo tempo pela sua preocupação com a eficácia organizacional, sua vontade de
mudança, sua inspiração predominantemente comportamental e positivista, seu caráter aplicado e
pluridisciplinar. Seus métodos são diversos, bem como os contextos organizacionais estudados. Sua teoria é
igualmente marcada pela heterogeneidade (Lorsch, 1987; Cooper e Robertson, 1987; Staw et Cummings, 1987,
1988). "Definindo brevemente, como escreveram recentemente dois autores de um manual americano, o
comportamento organizacional é um campo que é orientado
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\~
\para o desenvolvimento da melhor compreensão do comportamento humano e que utiliza este saber para
tornar as pessoas mais produtivas e mais satisfeitas nas organizações" (Mitchell e Larson, 1987: 4). Uma
revisão sistemática das publicações neste campo nos últimos sete anos confirma este ponto de vista, como
confirma também a focalização dos autores sobre os temas que, para vários deles, datam ainda dos anos
cinqüenta - é o caso, principalmente, da motivação e da liderança - enquanto outros temas remontam aos anos
sessenta - como, por exemplo, o papel exercido pelas estruturas e pela tecnologia, sendo ressaltados alguns
aspectos nos últimos anos - , é o caso em particular das noções de stress e de cultura organizacional.
o COMPORTAMENTO ORGANIZACIONAL, UM CAMPO HETEROGÊNEO E
lThfDESENVOLVIMENTO ISOLADO
Herdeiro simultaneamente das relações humanas, de alguns ramos da psicologia industrial, da sociologia
e das teorias das organizações, da abordagem sociotécnica, da dinâmica de grupos, do behaviorismo anglosaxão, das diferentes correntes do management, o comportamento organizacional apresenta-se hoje como uma
imensa colcha de retalhos, um campo aberto a quase todos os ventos teóricos. Porque, além do ecumenismo
aparente, completamente relativo sem sombra de dúvida, observa-se no interior desse conjunto teórico
heterogêneo, mesmo heteróclito, a ocultação ou ausência de certas dimensões humanas que são objeto do
presente livro: a dimensão cognitiva e da linguagem, a dimensão espaçotemporal, a dimensão psíquica e
afetiva, a dimensão simbólica, a dimensão da alteridade, a dimensão psicopatológica. Como as ciências
administrativas, o campo do comportamento organizacional parece ter se desenvolvido até o presente isoladamente, negligenciando em larga medida os conhecimentos mais recentes das ciências humanas básicas
(Audet e Malouin, 1986; Déry, 1988a, 1988b; Whitley, 1984).
Este isolamento da produção intelectual tem duas causas: de um lado, tendo instalado o econômico, o
quantitativo e as organizações no centro de seu universo, nossa sociedade parece ter esquecido o resto, isto é,
tudo o que não é redutível à formalização (Gorz, 1988; Caillé, 1989); por outro lado, como todo recurso a um
pensamento externo e forçosamente crítico pode sempre ameaçar a ordem organizacional estabelecida, o
mundo da gestão tem com freqüência preferido as visões que lhe são menos incômodas. Esta profunda
economicidade do mundo organizado moderno, esta "economização", diria Gorz (988) - fenômeno
relativamente recente na história da humanidade - e esta vontade de assegurar um sistema de controle de
inspiração taylorista ou burocrática produziram alguns impactos perversos sobre a orientação tecnocrática
desta disciplina, antes de tudo gerencial.
.,
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"O interesse da psicologia organizacional pela motivação e sua falta de interesse pelo simbólico no trabalho caracterizam bem
sua orientação tecnocrática. Os objetos de estudo abordam questões estreitas e bem definidas, as respostas a estas questões constituem a
base de um fragmento de engenharia social cujo objetivo é amortecer as tendências nascidas da divisão do trabalho e do
empobrecimento das tarefas" (M. Alvesson, 1987: 105).
Ou seja, a obsessão pela eficácia, pelo desempenho, pela produtividade, pelo rendimento a curto prazo
que encontramos até hoje nas nossas organizações e na sociedade levou a maioria dos pesquisadores a
concentrar seus interesses nestas questões e a reduzir seus esforços a simples técnicas de controle (Alvesson,
1987; Desmarez, 1986; Dufour e Chanlat, 1985; Rose, 1988; Villette, 1988).
Desde então, pode-se compreender por que, a partir de alguns anos, cada vez mais os pesquisadores em
geral, e, mais particularmente na cultura latina, contestam esta concepção instrumental, adaptativa, e mesmo
manipuladora do ser humano, interrogando-se sobre as dimensões esquecidas, voltando-se para outras disciplinas ou outras perspectivas teóricas. Deste modo, procuram, cada um a seu modo, tornar compreensível a
experiência humana e captar sua complexidade e riqueza. Estes questionamentos tornam-se cada vez mais
pertinentes à medida que as críticas são mais numerosas em relação à formação que recebem os futuros gestores e quando os problemas que surgem no cotidiano não são resolvidos de acordo com o que se pensa ou se
ensina.
o QUESTIONAMENTO DA FORMAÇÃO DO ADMINISTRADOR
Vinte e cinco anos após o famoso relatório da Fundação Ford que reivindicava uma real formação
acadêmica e profissional em que as ciências do comportamento ocupassem seu justo lugar (Pierson, 1959;
Gordon e Howell, 1959), o ensino e a formação do administrador são novamente contestados. Seja nos Estados
Unidos (Herzberg, 1980; Behrman e Lévi, 1984; Porter e McKibbin, 1988), no Canadá (Chanlat, 1984; Chanlat
e Dufour, 1985; Association des Manufacturiers Canadiens, 1986; Devlin, 1986) na França (Galambaud, 1988;
Delwasse, 1988) ou em outros países (Le Monde Campus, 1988), não se hesita em denunciar em graus
diversos o elevado grau de especialização, a rigidez, o antiintelectualismo, o etnocentrismo, o quantitativismo,
o economismo, a incultura, a ausência de consciência histórica, a inaptidão para comunicar ou interagir nos
programas e no comportamento dos estudantes.
Estas críticas e lamentações que, em certos casos, poderiam ser menos ferozes, não estão isentas de uma
ligação com a situação observada no mundo do trabalho. Com efeito, mesmo se alguns acreditam que a
condição humana nas organizações parece satisfatória, resta a evidência de alguns estudos realizados em
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profundidade que nos mostram que a realidade não é tão rósea assim (Aktouf, 1989; Bouchard, 1985;
Chanlat, 1984; Linhart, 1978; Pages et aI., 1979; Dejours, 1987, 1978; Terkel, 1976; Applebaum, 1984; Kanter
e Stein, 1979; Kets de Vries e Miller, 1984; ]ones, Moore e Snyder, 1988). Contrariamente à idealização que
aparece com freqüência no mundo dos negócios, a organização aparece freqüentemente como um lugar
propício ao sofrimento, à violência física e psicológica, ao tédio e mesmo ao desespero não apenas nos
escalões inferiores, mas também nos níveis intermediário e superior. Segundo a imagem da célebre peça de
Arthur Miller, A morte do caixeiro viajante, a organização não é sempre a boa mãe que ela gostaria de ser. A
nostalgia dos operários, o desconforto existencial em relação ao trabalho dos executivos, mencionados com
freqüência, são ao mesmo tempo o reflexo da formação geralmente recebida nas universidades e a imagem que
se cultiva na sociedade global. Em um mundo essencialmente dominado pela racionalidade instrumental e por
categorias econômicas rigidamente estabelecidas, os homens e as mulheres que povoam as organizações são
considerados, na maioria das vezes, apenas recursos, isto é, como quantidades materiais cujo rendimento deve
ser satisfatório do mesmo modo que as ferramentas, os equipamentos e a matéria-prima. Associados ao
universo das coisas, as pessoas empregadas nas organizações transformam-se em objetos. Em alguns casos só
acontecimentos extraordinários fazem emergir sua condição humana. "Na maioria das sociedades c...) as
relações entre as pessoas são mais importantes e mais valorizadas que as relações entre pessoas e coisas. Esta
primazia é invertida na sociedade moderna em que as relações entre pessoas são, ao contrário, subordinadas às
relações entre pessoas e coisas" (Dumont, L. 1977, Homo aequalis: genese et épanouissement de l'idéologie
économique: 13). A principal causa da inversão dessa primazia nas organizações pode ser atribuída, então, à
sua subordinação ao universo dos objetos-mercadorias e à racionalidade econômica.
Logo, pode-se compreender melhor por que, no momento atual, numerosos trabalhadores, sobretudo os
mais jovens, procuram cada vez mais realizar-se enquanto pessoas fora do trabalho tradicional (Adret, 1977;
Gorz, 1988; Offe, 1985), e também numerosos executivos e golden boys das finanças não parecem mais manter
nenhuma lealdade com relação às instituições para as quais trabalham (Porter e McKibbin, 1988; Davis, 1986).
Eles refletem a imagem de uma sociedade que levou o individualismo às suas últimas conseqüências (Sennet,
1979; Lasch, 1981); de uma sociedade em que reina o pensamento a curto prazo e que não se preocupou em
transformar o trabalho em um meio de vida, ocupada que estava antes de tudo em acumular riqueza (Gorz,
1988; Le monde diploma tique, 1988a).
Atualmente, tudo nos conduz a olhar mais longe: a complexidade dos proble
mas tanto em nível nacional como internacional (crise ecológica, desemprego, endividamento dos países,
precariedade dos empregos, dualização da sociedade), a primazia do cultural, as aspirações à individualização
que Michel Foucault tinha carinhosamente chamado de "cuidado de si mesmo", a exigência de certa solidarie
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dade, os imperativos éticos, a revolução da informática, tudo nos conduz com efeito a impulsionar as
modalidades de gestão que se apóiam atualmente sobre uma verdadeira antropologia da organização.
A UNIDADE FUNDAMENTAL DO SER HUMANO
o
saber em geral e as ciências humanas em particular (Gusdorf, 1967) têm sido submetidos até o presente às
leis da divisão intelectual do trabalho e as ciências do comportamento organizacional não escaparam a esta
regra. Tal dispersão do conhecimento teve por conseqüência, como todos sabem, fechar os pesquisadores num
mundo intelectual relativamente estreito e mesmo microscópico, tendo igualmente como conseqüência uma
imagem fragmentada do ser humano. Esta concepção da pessoa em pedaços provocou um duplo efeito: no
plano disciplinar, conduziu vários pesquisadores pelos caminhos do reducionismo e do imperialismo biológico,
psicológico ou sociológico e, no plano organizacional, freqüentemente desembocou em ações e práticas sociais
que ocultam grande número de dimensões humanas. O desejo de tudo explicar através de um enfoque
científico particular é fenômeno característico da sociedade moderna. Toda visão intelectual não apresenta
tendência a ser hegemônica? (Kuhn, 1972; Lakatos e
Musgrave, 1970; Chalmers, 1987.) Ora, atualmente, os conhecimentos acumulados tanto no domínio das
ciências humanas como no da história das ciências deveria nos conscientizar sobre estas tendências e nos
permitir evitá-Ias e até mesmo eliminá-Ias. Este imperativo impõe-se quando se observa que as visões
científicas particularizantes não são nunca neutras e enraízam-se no tecido social da época em que surgem
(Foucault, 1975; Chalmers, 1987; Holton, 1981; Whitley, 1984). Esta afirmação é particularmente verificável
nas ciências da administração ou da organização (Audet, 1986; Déry, 1987), principalmente na área que nos
interessa mais de perto - o comportamento organizacional. A concepção dominante de um ser humano Homo
economicus, racional, reagindo a estímulos externos e cuja universalidade americana não se questiona deve ser
inteiramente revista (d'Iribarne, 1986; Hofstede, 1987). Não é ela uma concepção ideológica cujo objetivo é
legitimar as ações empreendidas e manter a ordem organizacional estabelecida? (Alvesson, 1987; Bendix,
1974; Chanlat e Séguin, 1987; Merkle, 1980; Gorz, 1988).
Se o saber no domínio do "comportamento organizacional" desenvolveu-se antes de mais nada com o
desejo e a vontade de melhorar a produtividade e a satisfação no trabalho, esta contaminação de categorias
econômicas não teve por único efeito desenvolver uma concepção do ser humano isoladamente; ela freqüentemente desembocou em perspectivas simplistas, mecânicas, instrumentais, elitistas, utilitaristas e
universalistas. Com visões assim tão míopes, alguns pesquisadores e consultores em comportamento
organizacional não hesitaram, como lembra Herzberg (1980), em exigir que os executivos e demais
empregados reproduzissem
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/
,\
o comportamento das traças ou como exprimiu muito bem Gorz (1988), "reduzissem o vivido ao silêncio
tumular".
Ora, o ser humano é muito mais complexo para se deixar resumir em uma tal concepção (Morin, 1973).
Realmente, é chegado o momento para se tentar fundar uma verdadeira antropologia da organização que,
restituindo sua unidade e sua especificidade ao ser humano, destaque também as dimensões fundamentais e os
diversos níveis de análise. O termo antropologia é aqui tomado em seu sentido etimológico. Nós partimos da
idéia de que existe um mundo próprio do homem e que o estudo deste universo singular constitui o objeto
privilegiado da ciência do humano que é a antropologia. Por sugestão de Mauss (1968) e outros pesquisadores,
esta antropologia a ser criada no campo organizacional deve reagrupar o conjunto de conhecimentos existentes
sobre o ser humano. Apoiando-nos sobre essa massa de conhecimentos, deveríamos perceber melhor a
experiência humana exatamente como ela é vivenciada no universo organizacional. Propomos também um
duplo deslocamento do objeto de estudo. De uma parte, em lugar de nos centrarmos primordialmente no modo
de tornar as pessoas mais satisfeitas e com bom desempenho, como faz atualmente a corrente ortodoxa, nós
vamos centrar nossa atenção sobre o fato humano nas organizações, a partir de conhecimentos desenvolvidos
por todas as disciplinas que se ocupam do assunto. De outra parte, em lugar de considerar a organização como
um conjunto fechado e auto-suficiente, procuraremos colocar em cena as relações com o meio ambiente que
percorrem ou atravessam longitudinalmente a vida das organizações. Esta posição fundamentase, aliás, sobre
certo número de considerações de ordem epistemológica e metodológica relativas ao ser humano e ao modo de
estudá-Io.
o SER HUMANO, UM SER AO MESMO TEMPO GENÉRICO E
SINGUlAR
O ser humano, acima da diversidade das disciplinas que o estudam, é uno. Ele é único enquanto espécie.
Ele o é igualmente enquanto indivíduo. Se, por razões bem evidentes, os cientistas fragmentaram o saber em
partes distintas - biologia, psicologia, psicologia social, psicanálise, sociologia etc., não é menos verdadeiro
que, quando se observa o Homo humanus, ele aparece como um todo cujos diferentes elementos estão
intimamente interligados. Ser fundamentalmente biopsicossocial, o homem aparece também profundamente
ligado à natureza e à cultura que o envolve e que ele transforma (Moscovici, 1972; Ruffié, 1976; Morin, 1973;
Fondation Royaumont, 1974). Baseado nesta afirmação, torna-se evidente que todo reducionismo, quer seja de
ordem biológica, psicológica ou sociológica, não tem nenhum sentido. Todo o saber que se pode acumular
sobre um aspecto da vida humana não pode servir para explicar os outros aspectos. Só uma concepção unitária
pode fazê-Io, mesmo sabendo que esta representação permanecerá sempre uma constru
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ção imperfeita e inacabada. Portanto, numerosos são os que, ainda hoje, fecham o ser humano em esquemas
redutores e que freqüentemente têm a impressão simplória de ter captado a essência do ser humano. A
realidade humana que encontramos na organização não poderá jamais ser reduzida a tais esquemas. Só uma
concepção que procura apreender o ser humano na sua totalidade pode dele se aproximar sem, contudo, jamais
o esgotar completamente.
O ser humano que acabamos de definir é um ser genérico, isto é, uma pessoa que se define por pertencer
à espécie humana, pelas características que são sua conseqüência - bipedia, pensamento, linguagem, liberação
das mãos etc. - e pelo fato de que cada indivíduo carrega consigo, para citar Montaigne, o formato inteiro da
humanidade. Aliás, este ser genérico se encama sempre em um ser concreto: homem ou mulher, adulto ou
criança, pai ou marido, professor ou executivo, operário ou camponês, africano ou ocidental. É esta existência
singular do indivíduo no mundo que lhe confere sua especificidade. Ou seja, se o homem abstrato existe
enquanto representação e categoria intelectual, em troca ele aparece sempre na realidade quotidiana sob uma
forma concreta particular, numa situação de fato. Toda pessoa tem assim ao mesmo tempo o genérico e o
específico. Os fenômenos que se estudam refletem sem sombra de dúvida estas duas ordens da realidade. O
estudo do fato humano nas organizações não pode, portanto, abstrair-se desta dupla dependência.
o SER HUMANO, UM SER ATIVO E REFLEXIVO
Um dos traços característicos da espécie e de todo ser humano é pensar e agir. A reflexão e a ação são
duas das dimensões fundamentais da humanidade concreta. Negar a reflexibilidade do humano é jogar o
homem no mundo pavloviano onde os reflexos condicionados exercerão a tarefa de socialização. Se podemos
afirmar que não existe nenhuma dúvida que aprendemos também por condicionamento, o que Pavlov chamava
o primeiro sistema de sinalização (963), sistema que nós temos em comum com outras espécies (Fondation
Royaumont, 1974; Ruffié, 1976), em oposição, nós não poderemos jamais reduzir o ser humano a esta visão
estritamente objetivista (Harré, 1979; Giddens, 1987). O aprendizado mobiliza nos humanos um segundo
sistema de sinalização: a linguagem e o pensamento consciente (Pavlov, 1963; Cosnier, 1966). Este sistema,
muito mais complexo do que o primeiro, estabelece nossa singularidade enquanto espécie e enquanto indivíduo
(LeroiGouhran, 1964; Benveniste, 1966). Ele é a base de todas as transformações sociais que os humanos
conheceram até aqui (Ruffié, 1976) e particularmente de todos os desenvolvimentos que se conhece hoje nas
ciências, e, principalmente, nas ciências cognitivas (Le Débat, 1987), estando, além do mais, indissoluvelmente
ligado àação.
Em relação a certos autores que vêem o ser humano determinado socialmente em todas as suas ações ou
que, segundo Giddens, "ostentam um imperialismo
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L
\
societal" 0987: 50), a sociologia nos mostra muito bem que são indivíduos através dos seus atos que
constroem a própria realidade social (Crozier e Friedberg, 1977; Giddens, 1987; Bourdieu, 1987; Touraine,
1984; Berger e Luckmann, 1986; Garfinkel, 1967; Boudon, 1984). É claro que esta realidade social não é
construída ex
nihilo, mas a partir de uma trama já existente. Porém, não se trata jamais de uma reconstrução completa e total,
mas sempre de uma transformação parcial da realidade (Sahlins, 1989). Em todo sistema social, o ser humano
dispõe de uma autonomia relativa. Marcado pelos seus desejos, suas aspirações e suas possibilidades, ele
dispõe de um grau de liberdade, sabe o que pode atingir e que preço estará disposto a pagar para consegui-Io
no plano social. O universo organizacional é um dos campos em que se pode observar ao mesmo tempo esta
subjetividade em ação e esta atividade da reflexão que sustenta o mundo vivenciado da humanidade concreta.
i~
o SER HUMANO, UM SER DE PALAVRA
A construção da realidade e as ações que pode empreender o ser humano não são concebidas sem se
recorrer a uma forma qualquer de linguagem. É graças a esta faculdade de expressar em palavras a realidade,
tanto interior quanto exterior, que se pode aceder ao mundo das significações.
O universo do discurso, da palavra e da linguagem inerente ao ser humano transforma-se então em um
ponto-chave indispensável à sua compreensão (Benveniste, 1966; Hagege, 1985). Passagem obrigatória para a
compreensão humana, a linguagem constitui um objeto de estudo privilegiado e sua exploração no contexto
organizacional é permitir que se desvendem as condutas, as ações e as decisões. Reduzir então a comunicação
humana nas empresas a uma simples transmissão de informação, visão diretamente inspirada pela engenharia,
como se pode ver com freqüência nos manuais de comportamento organizacional, é elidir todo o problema do
sentido e das significações. É esquecer que todo discurso, toda palavra
-pronunciada ou todo documento escrito se insere em maior ou menor grau na esfera do agir, do fazer, do
pensar e do sentimento (Grize, 1985). É condernar-se a não poder apreender em profundidade nem o simbólico
organizacional nem a identidade individual e coletiva. Este estudo tornou-se em nossos dias tão prioritário que
as ciências que se ocupam dele estão em plena expansão (Habermas, 1987; Giddens, 1987; Hagege, 1987) e os
especialistas do comportamento organizacional até recentemente, mesmo sensibilizados pelo tema da
comunicação (Jablin et aI., 1987), não se ocuparam do caráter intrínseco da fala no ser humano, dimensão
considerada indispensável em nossos dias (Girin, 1982).
29
,
o SER HUMANO, UM SER DE DESEJO E DE PULSÃO
Contrariamente à visão que podem ter alguns pesquisadores em ciências humanas, o ser humano não
pode reduzir-se a um organismo submetido a um bombardeamento de estímulos (Skinner, 1968). Ele é também
um ser de desejo, de pulsão e de relação. É através das relações que ele mantém com o outro pelo jogo de
identificações - introspecção, projeção, transferência etc. - que ele vê seu desejo e sua existência reconhecidos
ou não. A realidade social transforma-se em suporte da realidade psíquica. Como mostrou Freud e seus
sucessores, o outro é ao mesmo tempo um modelo, um objeto, uma sustentação ou um adversário (Freud,
1981). A constituição de todo ser humano enquanto sujeito passa por esta relação poliforme com o outro. É
através dele que ele se constitui, se reconhece, sente prazer e sofrimentos, satisfaz ou não seus desejos e suas
pulsões. O ser humano aparece assim com seu cortejo de racionalidade e de irracionalidade que se enraiza ao
mesmo tempo na vida interior e no mundo exterior. Lugar por excelência do imaginário, do inconsciente, de
defesas, de processos de identificação, a vida psíquica exerce um papel fundamental no comportamento
humano, de ordem individual ou coletiva (Bion, 1972; ]aques, 1972b, Hirschhorn, 1988). Não dar importância
a esta realidade é condenar-se a uma visão incompleta do humano que pode conduzir a conseqüências
patológicas cujos exemplos podem ser encontrados na história social (Enriquez, 1983) e na vida organizacional
(Jaques, 1972b; Bion, 1972; Dejours, 1980, 1987, 1988; Kets de Vries e Miller, 1985).
O SER HUMANO, UM SER SIMBÓUCO
o universo humano é um mundo de signos, de imagens, de metáforas, de emblemas, de símbolos, de
mitos e de alegorias. Objeto de estudo da antropologia, da etnologia, da história das religiões, da mitologia, das
artes e da literatura, da filosofia e da sociologia, "o simbólico confunde-se com a evolução total da cultura
humana" (G. Durand, 1984: 130). Todo ser humano e toda sociedade humana produziram uma representação
do mundo que lhe confere significação. A imaginação simbólica busca representar para si antes de mais nada o
ausente, o imperceptível, o indescritível. Mais ou menos arbitrárias, estas representações simbólicas que
calcam sua existência nas relações com o mundo vão participar da construção deste universo de significações
inerentes ao ser humano. Esta gestação do simbólico, para retomar aqui uma expressão de Cassirer,
característica de toda uma vida coletiva, não escapa ao universo organizacional (Durand, 1984).
A organização, enquanto espaço particular da experiência humana, é um lugar propício à emergência do
simbólico (Chanlat e Dufour, 1985; Bouchard, 1985). Este simbólico é marcado por uma tensão característica
das sociedades industrializadas em que, de um lado, existe a razão econômica que reduz a signifi
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/
cação
atribuída ao trabalho e, do outro lado, aparece a existência humana na procura ininterrupta do
simbólico. O modismo atual de busca da cultura da empresa é sinal ao mesmo tempo deste desconforto
existencial em relação ao trabalho e do caráter eminentemente simbólico da atividade humana (Deal e
Kennedy, 1982; Schein, 1985; Smircich e Calas, 1987). Produtor de símbolos, o Homo simbolicus procura
emergir de um mundo organizacional que, atualmente, tem tendência a querer reduzir a cinzas a imaginação
simbólica, condenada pela razão e pela ciência (Sievers, 1986a). Ora, "a razão e a ciência estabelecem apenas
uma relação entre os homens e as coisas, mas o que estabelece uma relação entre os homens, na relação de
satisfações e penas quotidianas dos homens entre si, é esta representação afetiva, exatamente porque é vivida e
constitui o domínio secreto das imagens" (G. Durand, 1984: 124).
o SER HUMANO, UM SER ESPAÇO-TEMPORAL
Todo ser humano está inserido no espaço e no tempo. Estas duas dimensões, que são inseparáveis,
definem os quadros geo-históricos da ação humana, pois um movimento no espaço é também um movimento
no tempo. O tempo remete aos ritmos biológicos, psicológicos e sociais que marcam nossas atividades
individuais e coletivas. O tempo marca igualmente nossas relações com o cosmos e o universo (Hawking,
1989). Toda e qualquer coletividade tem memória de um passado, tem um presente, terá um futuro e insere ou
não suas atividades em um ciclo. Mas o tempo de uns não é o mesmo tempo de outros, pois é função da
sociedade na qual se vive. Basta se pensar nas diferentes concepções da temporalidade no ocidente (Attali,
1982; Gasparini, 1986), ou às diferenças que podemos observar em países ocidentais ou não (Hall, 1984;
Kamdem, 1986) para se concluir que a seqüência dos dias não é percebida da mesma forma nos diferentes
países e mesmo regiões e o universo organizacional não escapa a esta diferenciação.
O espaço nos envia a nossa especialidade, ou seja, aos diferentes lugares que constituem nossa geografia
ao mesmo tempo pessoal e social. Todo indivíduo é com efeito originário de determinado lugar, desenvolveuse em um meio particular, ocupa uma posição profissional, trabalha em determinada organização e desaparece
algum dia em algum lugar. Estes lugares estão por sua vez integrados a espaços mais amplos. Este
enraizamento espacial pode ser mais ou menos forte, mas não se pode conceber um ser humano ou uma
coletividade que não tenha nenhum tipo de vinculação espacial, por mais ínfima que seja. É por esta razão que
os lugares e as posições que ocupamos a título individual ou coletivo são objeto de diversos investimentos:
afetivo, material, profissional, político e outros mais. Fontes de enraizamento, estes investimentos reafirmam a
identidade pessoal e coletiva. A organização enquanto lugar privilegiado de enraizamento fornece também
inúmeros exemplos espaço-temporais (Fischer, 1989).
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o SER HUMANO, OBJETO E SUJEITO DE SUA CIÊNCIA
Algumas considerações que apresentamos nos indicam claramente que, quando estudamos o ser humano,
não podemos analisá-Io como se analisaria um objeto inerte, um átomo ou uma molécula. A grande diferença
entre as ciências físico-químicas e as ciências humanas reside justamente no fato de que nas últimas o ser
humano é ao mesmo tempo objeto e sujeito de sua ciência. É preciso ter sempre em mente esta particularidade,
não como um desestímulo aos nossos conhecimentos, mas, ao contrário, como um elemento suplementar para
melhor compreender a dinâmica humana como tão bem assinalou G. Devereux (1980:60):
"A principal vantagem c...) é reintroduzir o observador na situação experimental tal como ele é realmente, não enquanto fonte de
constrangedoras perturbações, mas enquanto fonte importante e mesmo indispensável de novos dados comportamentais pertinentes. Isto
permite a exploração de efeitos sui generis da observação sobre o observador e observado simultaneamente, efeitos que consideramos
como informações indispensáveis."
Infelizmente, até o presente, esta concepção subjetivista e interativa da pesquisa em ciências humanas
não foi dominante. Ao contrário, influenciados pelo modelo cienÍlfico ortodoxo, numerosos são os
pesquisadores que não hesitaram em tratar os humanos como objetos de pesquisa destituídos de
subjetividade e .
afetividade. Esta hegemonia da concepção ortodoxa das ciências em geral sobre as ciências humanas
desembocou e desemboca ainda sobre o que Sorokin qualificou de "quantofrenia galopante". Entretanto, o
recuo de certas concepções empiristas no campo das ciências sociais está ligado à redescoberta do indivíduo,
da experiência, do ator e do self.
Este retorno do indivíduo, do ator à cena das ciências sociais atingiu também o campo de estudos das
organizações. Pouco a pouco, em vários lugares, pesquisadores tentam, há alguns anos, elaborar suas hipóteses
de trabalho levando em consideração a subjetividade, conferindo-lhe um espaço amplo no enunciado de suas
pesquisas.
Esta particularidade inerente às ciências humanas deve levar-nos a olhar o ser humano tanto interna como
externamente. É respondendo a esta dupla exigência que estaremos mais bem colocados para percebermos
fenômenos organizacionais. Devemos, com efeito, ultrapassar o debate já antigo, para não dizer arcaico, que
opõe os partidários do quantitativo aos do qualitativo (Morgan, 1983) através de uma tomada de consciência
simultânea e concomitante dos elementos subjetivos e objetivos (Giddens, 1987; Bourdieu, 1987). Então,
estaremos aptos a interpretar e compreender o sentido que as pessoas dão aos seus gestos, às suas ações e aos
seus sentimentos.
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Aliás, esta recuperação só pode ser feita através de abordagens clínicas e
etnográficas, em que o pesquisador é também observador, usando entrevistas prolongadas, histórias de vida,
apoiadas em análises de conteúdo e decodificações simbólicas. É somente assim que se poderá atingir o sentido
que as pessoas dão à sua existência e à sua experiência organizacional (Applebaum, 1984; Berry, 1986;
Aktouf, 1987; Friedberg e Crozier, 1977; Sainseleu, 1987; Kanter e Stein, 1979; Morgan, 1983; ]ones, Moore e
Snyder, 1988). Essas abordagens não excluem certamente o recurso a métodos quantitativos quando eles são
pertinentes, podendo mesmo tornar-se complementos indispensáveis aos métodos qualitativos.
INTERDISCIPUNARIDADE
A complexidade do comportamento humano e as exigências metodológicas que acarreta desembocam
naturalmente numa economia da explicação (Devereux, 1972; Chanlat, 1984). Esta economia explicativa só
pode existir pelo respeito aós diferentes níveis de análise e à interdisciplinaridade de abordagens. Se, por
exemplo, um pesquisador se interessa pela situação das enfermeiras em hospitais, ele poderá abordar a questão
do ponto de vista econômico de salários, bonificações, mercado de trabalho, ou político, analisando seu poder
em relação a outras categorias profissionais, ou, ainda, do ponto de vista psicológico, procurando compreender
suas personalidades, e cada ponto de vista iluminará uma parte da realidade. Entretanto, só o conjunto
interdisciplinar de abordagens poderá delinear uma imagem menos parcelada do indivíduo na organização,
porque somente cruzando e multiplicando os diferentes níveis é que se poderá interpretar a realidade
observada, buscando reconstruí-Ia em sua integralidade. Infelizmente, a divisão do conhecimento em
disciplinas e territórios científicos isolados impede uma abordagem interdisciplinar simultânea do mesmo
fenômeno observado, especialização que reforça freqüentemente concepções monocausais e nenhuma área do
conhecimento escapa a esta tendência. Ora, esta visão estreita e parcelada deve ser combatida porque nenhuma
abordagem isolada esgotará sozinha a apreensão da totalidade do indivíduo nas organizações.
UMA CONCEPÇÃO DIALÉTICA DOS FENÔMENOS
Agora retomamos o caráter dialético do comportamento humano, da pesquisa e da relação pesquisarealidade (Gurvitch, 1972). Pensamos que os seres humanos constroem seu mundo e seu universo social
influenciando-os reciprocamente, do mesmo modo que os conflitos e as contradições estão no cerne da história
das sociedades e das organizações (Chanlat e Seghin, 1987; Sahlins, 1989; Godelier, 1984).
33
A pesquisa não escapa também à regra de que existe uma relação de natureza dialética entre o
pesquisador, seu objeto de pesquisa e a realidade social (Gidden, 1987). Com efeito, a determinação de um
objeto, de um fenômeno de pesquisa, sua apreensão e sua interpretação vêm freqüentemente modificar a idéia
que as pessoas e os pesquisadores têm a priori sobre a realidade de determinado fenômeno. Compreende-se
então por que, nos países de regime totalitário, as ciências humanas e as ciências sociais em particular são
controladas pelo poder ou consideradas ilegais, pois todo conhecimento novo corre o risco de ser
revolucionário, modificando a representação que se faz da realidade, vai de encontro às concepções
estabelecidas e legitimadoras do status quo. Fazendo emergir alguns mecanismos, processos e realidades até
então escondidas, a emergência de idéias novas permite a outros tomar consciência e inferir as conseqüências.
Foi assim que a filosofia iluminista minou gradativamente na França o Antigo Regime (Vovelle, 1988; Furet,
1978; Winock, 1988), podendo-se citar também outros exemplos históricos - Galileu, Descartes, Newton,
Voltaire, Darwin, Marx, Weber, Einstein, que contribuíram com seus trabalhos para modificar a representação
que seus contemporâneos faziam do mundo e do espaço por eles ocupados, participando, também, da
emergência de novos questionamentos e transformações sociais. Se esta dialética existe em todos os níveis,
quer seja da sociedade ou da pesquisa, ela permanece esquecida e não integrada nas reflexões teóricas das
ciências da administração, com exceção de alguns exemplos (Audet, 1986; Morgan, 1986). Os demais preferem uma concepção mais ortodoxa e menos confrontadora entre o real e o status quo nas organizações.
POR UMA TEORIA ANTROPOLÓGICA DAS ORGANIZAÇÕES
Uma vez admitidos alguns postulados, torna-se importante passar à apresentação de álguns elementos
para uma teoria antropológica das organizações. Procuraremos apreender a realidade humana nas organizações
e apresentar os primeiros elementos de uma teoria antropológica ainda em construção, distinguindo cinco
níveis estreitamente correlacionados: do indivíduo, da interação, da organização, da sociedade e do mundo.
Cada nível é ao mesmo tempo dissociável e concretamente indissociável dos quatro outros. Cada um destes
níveis faz emergir uma ordem determinada, isto é, dispõe de elementos próprios segundo relações aparentes e
relativamente estáveis. Se um nível e uma ordem podem exercer, em alguns momentos, um papel
preponderante, isto não significa que se postule uma hierarquia imutável entre eles, pois as relações entre os
níveis podem tomar várias direções na teoria e na prática. Enfim, a ordem que se constrói em cada um dos
cinco níveis é contingente, o que não significa que tudo seja possível na prática. Ela é o resultado da
confrontação permanente entre o imaginário e a experiência que o ser humano vivencia em um contexto
espaço-temporal, dado que Sahlins (989)
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qualificaria de "estrutura da conjuntura". Como assinalamos diversas vezes, os seres humanos constroem,
destroem e reconstroem sempre sua realidade a partir de experiências ao mesmo tempo antigas e novas: "a
transformação de uma cultura", segundo Sahlins, "é um modo de sua reprodução".
o NÍVEL DO INDIVÍDUO
o indiVíduo é por definição um ser biopsicossocial, tríplice origem que lhe confere uma complexidade
singular (Morin, 1973; Ruffié, 1976). Se se pode estudar o indivíduo isoladamente, segundo um dos três
aspectos, na realidade é sempre difícil ignorar os dois outros. O biológico, o psíquico e o social contribuem,
cada um a seu modo, para a edificação da ordem individual, a colocar o indivíduo enquanto indivíduo e ator de
sua própria história e fixar igualmente os limites. O biológico pode influenciar o psíquico, e mesmo o
componente social. Por exemplo, uma pessoa atingida por uma perturbação funcional qualquer pode rever sua
posição no trabalho, suas atividades e suas relações sociais. O inverso é igualmente verdadeiro - o psíquico e o
social podem ter conseqüências biológicas. Por exemplo, uma pessoa de certa cultura pode encontrar-se em
uma situação paradoxal de alteridade, entrando em contato com outra cultura. Esta situação que Devereux
qualificou de aculturação antagônica pode provocar, às vezes, disfunções psíquicas ou orgânicas (Bateson,
1979; Devereux, 1972).
Esta tríplice composição está presente quando se estudam os seres humanos nas organizações. Na escala
individual, o biológico, o psíquico e o social exercem um papel mais ou menos importante segundo o contexto
e as pessoas envolvidas. A herança biológica, os traços de caráter, a história pessoal, as origens socioculturais
deixam sua marca ao sabor dos eventos e condutas individuais. A realidade humana observada neste nível,
conjugando sutilmente estes três elementos, explica em certa medida por que em situações organizacionais
similares, alguns se comportarão ou reagirão diferentemente no plano individual - o conformismo ou a revolta, a
aceitação ou a crítica, a resistência ou a autodestruição têm suas raízes em grande parte no arcabouço
biopsicossocial de cada um, ou seja, o eu é indissociável da própria história, da própria experiência e das
vivências.
Até o momento, o indivíduo tem sido objeto privilegiado de estudo da psicologia, da psicanálise, da
psicologia social e também da filosofia e, como mencionamos anteriormente, passa também a ser valorizado
pelas ciências sociais (Ewald et ai., 1989). Há alguns anos, a imagem de um indivíduo massacrado pelo
coletivo, socialmente determinado, cede progressivamente lugar para outra representação: aquela de um
indivíduo que participa da construção e destruição da realidade, de uma pessoa que é ao mesmo tempo sujeito
em ato e um ;;ltor de sua historicidade:
"Um membro não é apenas uma pessoa que respira e que pensa, é uma pessoa dotada de um conjunto de
procedimentos, de métodos, de atividades, de
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vivências, que a torna capaz de inventar dispositivos de adaptação para dar sentido ao mundo que a cerca" (Coulon, A.
L'Ethnométhodologie, 1987: 45).
Esta mudança de perspectiva não ocorre no vazio. Ela se insere nas estruturas sociais que predeterminam
em certa medida as respostas que cada indivíduo pode dar às situações que vive. Por isso o estudo do indivíduo
não é totalmente dissociado dos outros níveis.
o NÍVEL DA INTERAÇÃO
o ser humano não vive em círculo fechado, pois é na relação com o outro que o ego se constrói. A
alteridade é assim a consubstância da identidade pessoal como acentuava Laing (1971: 99) "Toda identidade
requer a existência de um outro: de algum outro em uma relação graças à qual se atualiza a identidade de si
próprio." O outro, como já afirmamos é ao mesmo tempo um modelo, um objeto, uma sustentação ou um
adversário. Um modelo, quando constitui um objeto de identificação, um objeto, quando sujeito de
investimento do tipo libidinal, transformando-se em objeto de amor ou ódio, uma sustentação ou um
adversário, quando permite a construção de ligações de solidariedade ou de ódio. Como define bem Enriquez
(1983: 57) "O outro não existe enquanto existe apenas para nós, o que significa que uma forma de
relacionamento - identificação, amor, solidariedade, hostilidade - é indispensável para construir o que quer que
seja com o outro." É justamente este universo da relação com o outro que fundamenta o segundo nível da
análise: o da interação.
As interações com o outro concentram-se principalmente em três categorias. Inicialmente, podem
consistir em um face a face com um pequeno número de pessoas. Esta relação "selfoutro" que constitui a
relação social básica, é objeto de várias disciplinas, principalmente da psicologia social (Harré, 1979; Fischer,
1987), da microssociologia (Goffman, 1973, 1974b, 1988) e da etnometodologia (Garfinkel, 1967; Coulon,
1987). Elas podem, por sua vez, remontar à relação que um indivíduo pode manter com a multidão; é a relação
ego-massa, que deu nascimento à sociologia do mesmo nome (Le Bon, 1963; Moscovici, 1981). Enfim, ela
pode se referir à relação que um grupo mantém com Qutro grupo. Esta relação nós a nós, c'onstituindo o
universo das relações sociais (Padioleau, 1986), permanece no campo privilegiado da sociologia (Rocher,
1968, ]aveau, 1976) e da antropologia social (Evans-Pritchard, 1969),
Estes três diferentes tipos de interação contribuem, cada um à sua maneira, para construir uma certa
ordem. O primeiro, segundo Goffman (1988) é o universo relacional do face à face que coloca em jogo atores,
atividades, rituais, gestos, convenções, palavras e papéis num quadro espaço-temporal determinado (Harré,
1979; Goffman, 1973). A noção de face remete de um lado à fisionomia, à expres
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são, e de outro lado, à estima de si próprio (Giddens, 1987). O contexto organizacional produz um grande
número de situações deste gênero. Basta pensar em numerosas reuniões, encontros quotidianos, entrevistas
entre superiores e subordinados, trocas de informações entre colegas, conversas de corredor etc.
O segundo tipo de interação é um universo relacional efêmero e muito circunscrito no tempo, que
pressupõe a existência de uma multidão onde as relações que se estabelecem são mais de ordem de fusão do
que de qualquer outro tipo de interação. Nas organizações, tal interação pode ser vista por ocasião de
manifestações que mobilizam o pessoal no todo ou em parte - greves, desfiles, ocupação de fábrica,
assembléias gerais, mas também manifestações sindicais, políticas, esportivas ou religiosas.
O terceiro e último tipo relaciona-se com a esfera das identidades coletivas que delimitam as origens
sociais dos indivíduos, onipresente igualmente nas organizações. Ele cria numerosas relações e clivagens nóseles/elas que recortam universos sociais distintos: direção superior-base, executivos-operários, grupos sócioprofissionais, universo masculino-feminino, nacionais-estrangeiros, velhosjovens etc. Estas relações sociais,
colocando em jogo as relações de poder e de significados (Sainsaulieu, 1987; Clegg, 1989), contribuem para
edificar o que nós qualificaremos de ordem organizacional.
Estes três grandes tipos de interação podem ser formais, isto é, codificados por um conjunto de regras e
procedimentos explícitos, estabelecidos em quadro claramente definido, ou ainda informais, originários de
relações que são tecidas espontaneamente nos locais de trabalho, a realidade combinando sem cessar as duas
formas.
Para existir, este mundo da interação necessita e coloca em jogo certo número de mecanismos ou modos
de comunicação, ritos de interação e de processos psíquicos com estreita relação entre si.
INTERAÇÃO E MODO DE COMUNICAÇÃO
Como o ser humano dialoga, e todo comportamento é comunicação (Bateson, 1979), toda interação,
qualquer que seja, supõe por definição um modo de comunicação, isto é, um conjunto de disposições verbais e
não verbais que se encarregam de exprimir, traduzir, registrar, em uma palavra, de dizer o que uns querem
comunicar aos outrOs durante uma relação. Ao mesmo tempo locutor, ouvinte e interlocutor, todo indivíduo
exprime no quadro da interação ao mesmo tempo o que ele é, o que faz, o que pensa, o que sabe, o que deseja,
o que gosta, assim agindo, ele se coloca cada vez mais como pessoa, como assinala Benveniste (1966: 259) "É
um ser humano falando que nós encontramos no mundo, um ser humano falando a outro ser humano e a
linguagem explica sua própria definição." A
37
comunicação verbal não é, entretanto, o único modo de comunicação. A comunicação não verbal constitui um
outro modo ao mesmo tempo particular, complementar e simultâneo da comunicação (Feyereisen e de Lannoy,
1985). Segundo a distinção estabelecida por Cosnier e Brossard (984), este modo de comunicação envolve, ao
mesmo tempo, elementos contextuais, isto é, elementos mimogestuais (mímicas, movimentos corporais etc.) e
elementos vocais (timbre de voz, entonação etc.), que acompanham o texto falado propriamente dito, e os
elementos contextuais, que reagrupam todos os marcadores e índices de contextualização: espaços corporais,
distintivos de origem (vestuário, insígnias, uniformes etc.) e marcadores relacionais (signos hierárquicos,
sobrenomes etc.). O conjunto destes marcadores associados às características espaciais e temporais do lugar
onde se situa o ato de comunicação, define o contexto situacional. Assim, "texto" e "contexto", como escrevem
os dois autores, associam-se para constituir o enunciado total da linguagem heterogênea formada pela sinergia
dos três subsistemas - "verbal, vocal e gestual". Este enunciado total só terá significação em determinado
contexto organizacional.
INTERAÇÃO E RITUAUZAÇÃO
Se, para existir, toda interação necessita de um modo de comunicação, ela coloca igualmente em jogo
alguma forma de ritualização que não é exclusiva do ser humano (Huxley, 1971; Fondation Royaumont, 1974),
mas nele toma formas bem particulares, quando a expressão ritualização é considerada em sua dimensão
antropológica e não etológica (de Heustch, 1974). Como sublinhou com ênfase Goffman C1974b, 1988), a vida
quotidiana é o teatro permanente de tal ritualização. Estes ritos de interação, mobilizando todo um conjunto de
obrigações, de expectativas e de figurações, têm por função preservar a face de cada um ou ainda restituí-Ia
quando perdida durante um reencontro. As sociedades para se manterem como tais, devem mobilizar seus
membros para torná-Ios participantes de reencontros autocontrolados. O ritual é um dos meios de conduzir o
indivíduo a este objetivo: sendo ensinado a ser atento, a se prender a seu eu e a expressar este eu através da
fisionomia, a mostrar-se orgulhoso, honrado e digno, a ser diferente, habilidoso e seguro. Estes são alguns
comportamentos elementares que é preciso desenvolver numa pessoa para que ela possa interagir (Goffman, E.
Les rites d'interaction, 1974b: 41).
Em outras palavras, a polidez, o tato, a cortesia, o que podemos chamar savoir
vivre, são meios universais para exprimir nosso savoir faire e assegurar o que Devreux (980) qualificou de
reciprocidade conveniente. Em um nível mais ontológico, estes ritos, nos protegendo e protegendo o outro, tem
por função assegurar a perenidade da confiança mútua (Giddens, 1987). Sem esta ritualização das relações
quotidianas, a existência seria insustentável. As situações de crise nos confir
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mam constantemente tanto em nível das sociedades CLévi, 1987; Antelme, 1957) quanto ao nível das
organizações CWeil, 1951; Linhart, 1978; Aktouf, 1987; Terkel, 1976; Goffman, 1974b). Os ritos de interação,
como os rituais coletivos, contribuindo à manutenção da sociabilidade, transformam-se assim em verdadeiros
indicadores do estado qualitativo das relações humanas.
INTERAÇÃO E PROCESSOS PSÍQUICOS
Toda interação mobiliza processos psíquicos. Estes processos que se situam na origem do
desenvolvimento cognitivo e afetivo do ser humano representam a parte imersa da interação, objetos
privilegiados de estudo da psicologia e da psicanálise, processos que subentendem e acompanham toda
palavra, todo discurso e toda ação.
Tanto em nível interpessoal como intergrupal, os processos de identificação, de introspecção, de
projeção, de transferência, de contra-transferência, de idealização, de clivagem, de repressão etc., para falar
como os psicanalistas CLaplanche e Pontalis, 1967), são onipresentes. Freqüentemente imperceptíveis, eles são
a base de numerosos problemas, mal-entendidos, qüiproquós e conflitos que encontramos nas organizações.
Aliás, a presença destes mecanismos, na maioria das vezes inconscientes, exerce maior ou menor influência na
qualidade da comunicação que se pode estabelecer entre duas ou mais pessoas:
"Toda comunicação é sempre parcial, e mesmo tendenciosa em razão dos mecanismos de repressão, clivagem,
necessidades de proteção e de transferências negativas que podem estabelecer-se em relação a alguns objetos (...) o que é
possível, pela própria obrigatoriedade de se viver e trabalhar com os outros, é a tentativa arriscada e retomada
quotidianamente de uma comunicação que não choque nem confronte violentamente os mecanismos de segurança
narcisista e
as necessidades de identidade dos indivíduos, ou seja, que estabeleça um equilíbrio entre o reconhecimento desejado e o
desejo de se fazer reconhecer de cada um." (Enriquez, E. De Ia horde à l'Etat: Essai de psychanalyse du Lien Social,
1983: 391)
Toda comunicação jamais é totalmente enfática. A significação que se dá a alguns gestos, a algumas palavras, deve
sempre ser inserida nos quadros psíquicos onde surgiram. Agindo desta maneira, podemos apreender melhor alguns
comportamentos que poderiam parecer à primeira vista ambíguos, paradoxais e mesmo totalmente irracionais. A tomada
de consciência de tais processos tem o mérito de lembrar a todos e a cada um que a afetividade é uma dimensão
incontornável das relações humanas, seja face a face, em grupo ou na multidão.
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o NÍVEL DA ORGANIZAÇÃO
No aspecto que nos interessa, a organização constitui o terceiro nível de
análise, pois ela forma o quadro social de referência no qual se inscrevem os fenômenos humanos objetos do
presente livro - de uma parte, um subsistema estrutural e material, de outra parte, um subsistema simbólico.
Enquanto o primeiro subsistema remete às condições eco geográficas, aos meios materiais para assegurar a
função de produção de bens ou de serviços, o segundo subsistema remete ao universo das representações
individuais e coletivas que dão sentido às ações, interpretam, organizam e legitimam as atividades e as relações
que homens e mulheres mantêm entre si. A interação entre estes dois subsistemas, mediatizados pelas relações
de poder, contribui para edificar a ordem organizacional.
Esta ordem organizacional é por definição sempre instável. As tensões, os conflitos, a incerteza, a
ambigüidade, as desigualdades, as contradições de origens exógenas e endógenas variadas encarregam-se de
alimentar esta instabilidade (Dupuy, 1982; Balandier, 1988). Claro, as organizações não evoluem do mesmo
modo, algumas são mais dinâmicas que outras. Tomando-se emprestado a terminologia de Lévi-Strauss, podese mesmo dizer que existem organizações "quentes", àsemelhança das empresas orgânicas descritas por Burns
e Stalker (961) e organizações "frias", à semelhança de burocracias analisadas por numerosos autores (Merton,
1952; Selznick, 1966; Gouldner, 1964; Mintzberg, 1982).
Pelo seu quadro original de ação, o nível organizacional introduz as dimensões que lhe são apropriadas e
que influenciam as condutas humanas observáveis internamente. As exigências econômicas do ambiente, os
modos de dominação utilizados, a história da organização, os universos culturais que se cruzam, as
características sociodemográficas do pessoal dão à cada organizaçãó uma configuração singular e influenciam
os comportamentos individuais e coletivos. Se se pode tentar estabelecer parâmetros comuns (Mintzberg,
1982) acima e além desta diversidade, é imprescindível constatar que existe seguramente uma variedade não
sóentre as organizações diferenciadas, mas também entre organizações similares. Por exemplo, se todo mundo
concorda que o exército e a Universidade são duas organizações distintas, todo observador destas duas
realidades notará com facilidade que existem diferentes componentes no exército - infantaria, artilharia e
cavalaria - e na universidade, composta por diversas faculdades.
Por outro lado, as organizações contemporâneas exercem influência cada vez maior sobre as condutas
individuais, sobre a natureza, as estruturas socioeconômicas e a cultura, o que as leva a se transformar em
elementos-chave das sociedades, contribuindo dessa forma a edificar uma ordem social mundial. De fato, não é
raro hoje se constatar quantos sucessos econômicos, financeiros, industriais, técnicos, científicos e culturais de
um país podem ser diretamente associados à organizações públicas ou privadas. Para se convencer, basta
lembrar o famoso slogan americano dos anos sessenta: "O que é bom para a General Motors é bom para os
Estados
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Unidos", ou ainda, as múltiplas declarações recentes relacionadas com empresas nacionais no Canadá,
França, Japão e em outros países. Coca-Cola, Lévi-Strauss, McDonald's, Boeing, NASA, as produções Walt
Disney não contribuem apenas para o desenvolvimento econômico dos Estados Unidos, estas empresas são
também a imagem do American way of life. As empresas multinacionais transformam-se assim em vetores da
cultura de seus países de origem. Em contato com outras realidades culturais, elas são vistas tanto como
modelos a seguir, tanto como antimodelos, como agentes estrangeiros e mesmo como inimigos poderosos (Servan-Schreiber, 1967; Le monde diploma tique, 1988b). A empresa japonesa, háalguns anos, parece cada vez
mais exercer também este papel (Ouchi, 1982; Pascale e Athos, 1981). No topo do mundo dos negócios, a
imagem da "empresa samurai" parece com efeito ter substituído a "empresa yankee', embora esta última ainda
possua numerosos adeptos, pois não originou esta nova arte de gestão, intraduzível em outras línguas, e que se
convencionou chamar management.
Criando assim um espaço particular, de uma parte, entre os níveis do indivíduo e da interação e, de outra
parte, entre os níveis da sociedade e do mundo, a organização representa também um nível isolado.
o NÍVEL DA SOCIEDADE
A sociedade forma o quarto nível de análise. Objeto privilegiado da antropologia e da sociologia, seu
estudo exige um ponto de vista sistemático ou totalizante 0aveau, 1976). Toda sociedade é com efeito um
conjunto econômico, político, social e cultural, situado em um contexto espaço-temporal dado. É o que nos
leva a afirmar com freqüência, por exemplo: "A Itália não é a França", "O Canadá não é os Estados Unidos" ou
ainda "A República dos Camarões não é a Argélia". Mais ou menos homogênea, pois existem com freqüência
sociedades distintas na sociedade, uma sociedade é antes de tudo marcada, qualquer que seja o seu tamanho,
por sua complexidade e sua maior ou menor coesão. Ela pode igualmente tomar formas muito variadas: de um
lado, a comunidade, onde as ligações se estabelecem numa base familiar ou de clã, universo por excelência de
relações "tricotadas apertadas" (Rioux, M., 1965) e onde as organizações não são consideradas o fundamento
da sociedade. Por outro lado, o universo da sociedade pós-moderna, onde as ligações se estabelecem numa
base orgânica, são mais distendidas e as organizações são o fundamento mais importante da modernidade.
Tanto quanto no nível precedente, o nível da sociedade possui um subsistema estrutural-material e um
subsistema simbólico que articulam as relações sociais que são tecidas entre os diferentes indivíduos e grupos
que compõem a sociedade. Se a sociedade pode ser o lugar de algumas características socioculturais comuns
(hábitos, língua, tradições, leis etc.), de algumas especificidades sociopolíticas (estrutura de classes, modo de
reprodução das elites, modos de organizações políticas), de
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união em torno de símbolos coletivos (bandeira, hino nacional, clubes de futebol e outras instituições fetiches),
que conferem uma certa coesão à identidade social, ela fixa igualmente o quadro de conflitos, de tensões e de
mudanças identificáveis isoladamente. O nível da sociedade engloba, penetra e irriga o universo dos
indivíduos, das interações e da organização, pois a sociedade é sentido, domínio e condição do sentido. Todo
ser humano é de fato o socializado de determinado meio. Este processo de socialização ou de aculturação
permite amoldar o indivíduo ao seu grupo, ensinar-lhe um conjunto de gestos, de atitudes, de comportamentos
que lhe permitirão ao mesmo tempo atuar em conformidade com as normas não escritas (Sahlins, 1989), ser
reconhecido como um membro do grupo e, portanto, distingüir-se das pessoas pertencentes a outros grupos.
Este processo está na base da identidade e da alteridade, estes dois elementos constituindo as duas faces de
um mesmo fenômeno: a realidade identitária (Todorov, 1989; Kristeva, 1988; Memmi, 1972). Lugar
privilegiado para a aprendizagem de habitus (Bourdieu, 1979), a socialização não apenas marca o indivíduo
dando-lhe uma identidade sociocultural, mas codifica igualmente as interações, impregna as organizações de
todos os valores que são encontrados no universo social mais amplo e que transferem sem cessar a seus
membros, usuários, clientes e fornecedores. É por esta razão que não se pode tornar inteligível a dinâmica
humana nas organizações sem conhecer a cultura e a sociedade na qual ela se inscreve (Adler, 1986; Hofstede,
1987; d'Iribarne, 1989). A empresa japonesa não funciona como uma empresa americana (Oucchi, 1982;
Pascale e Athos, 1981; Nakane, 1974) e nem como uma empresa francesa (Crozier, 1963; d'Iribarne, 1989) ou
como uma empresa quebequense (A. Chanlat, 1988), ou ainda como uma empresa soviética (Bhérer, 1982).
Esta diferença é em grande parte a expressão de uma história, de uma cultura, de um modo de organização
social, de um contexto jurídico próprio a cada uma destas sociedades. Isto não significa, porém, que a empresa
enquanto tal deixa de participar da construção da realidade social e cultural de um país, ou seja, de estabelecer
a ordem social (Padioleau, 1986), e mesmo, nos casos extremos, de absorvê-Ia completamente, um pouco à
imagem descrita por Orwell (984).
Concluindo, se a ordem organizacional exerce um papel na edificação da ordem societal, a ordem social
perpassa de uma maneira ou de outra a ordem organizacional. Esta relação de natureza dialética é capital para
compreender o universo das organizações e o das sociedades estudadas. Como a ordem organizacional, a
ordem societal é também palco de afrontamentos, conflitos, contradições e desigualdades e os conflitos não
estão isentos da ressonância que se observa no interior das organizações (Clegg e Dunkerley, 1980; Edwards,
1979; Clegg, 1989). A ordem societal, fundamentalmente histórica, aparece como um conjunto dinâmico, uma
ordem em movimento, em que o equilíbrio é sempre instável (Balandier, 1988). Todavia, esta instabilidade não
pode ser atribuída unicamente a numerosas origens internas, mas também às múltiplas relações que são
mantidas com o sistema mundial.
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o NÍVEL MUNDIAL
Em algum momento de sua história, toda sociedade se insere em uma rede de relações econômicas,
sociais, políticas e culturais mais ampla. Esta rede ou esta área de civilização (Mauss, 1969a) pode ser menos
ou mais extensa, menos ou mais importante e mais ou menos densa. Ela pode ir de um sistema de relações
localizadas mais próxima - como algumas sociedades caçadoras primitivas (Sahlins, 1976) - até o sistema de
economia mundial descrito pelo historiador francês Braudel (979) ou ao sistema mundial já então proposto
pelo historiador americano Wallerstein 0980, 1985).
O lugar que uma sociedade ocupa no que chamamos hoje o concerto das nações pode ser atribuído a
grande número de variáveis: geográficas, demográficas, históricas, militares, econômicas, políticas, sociais e
culturais. É a interação entre todas estas variáveis que determinará em grande parte a posição que ela vai
ocupar no sistema mundial (Aron, 1968; Braudel, 1979; Wallerstein, 1985).
Este lugar e este papel não são, entretanto, determinados de forma permanente. A situação pode mudar
segundo a dinâmica própria à sociedade e segundo o sistema internacional ao qual ela pertence, e a história nos
ensina isto, principalmente a história do ocidente pois em alguns séculos ela foi testemunha de uma sucessão
de pólos hegemônicos: Veneza e Gênova nos séculos XIII e XIV, Espanha, século XVI, Flandres na primeira
metade do século XVII, França no século XVIII, Inglaterra no Século XIX e Estados Unidos no século XX
(Braudel, 1979; Wallerstein 1980, 1985). Hoje já se fala de um novo deslocamento do centro de gravidade, do
Atlântico para o Pacífico.
Se a cada época se observa uma tal configuração, deve-se ressaltar também que diferenças importantes
existem entre a situação atual e aquela observada nos séculos precedentes. A primeira distinção é de natureza
ao mesmo tempo geográfica e socioeconômica. Enquanto as sociedades que nos precederam pertenciam a uma
economia regional, pois a maior parte dos intercâmbios era feita entre um conjunto de cidades, regiões ou
países situados em uma mesma área geográfica, por exemplo, a região mediterrânea, com características
bastante homogêneas quanto ao desenvolvimento e nível de vida, as sociedades contemporâneas encontram-se
todas integradas, de uma maneira ou de outra, a um sistema que engloba atualmente o planeta observando-se,
entretanto, desigualdades consideráveis de nível de vida (Brandt, 1980; Le monde diplomatique, 1988).
A segunda distinção relaciona-se com a lógica de funcionamento dessa mundialização. Desde o
aparecimento do capitalismo histórico, no século XV, até os nossos dias, o sistema passou por uma economia
mercantilista, dominante do século XVI ao século XVIII, seguido pelo industrialismo, que vem até os nossos
dias. Atualmente, segundo alguns analistas, este capitalismo cederá lugar ao capita
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lismo cada vez mais financeiro (Halberstam, 1986; Le monde diploma tique, 1988b), o que transformará de
novo, sem dúvida, a realidade socioeconômica.
Enfim, a terceira distinção relaciona -se com as organizações de representações e o quadro jurídico.
Desde o fim da segunda guerra mundial, a nova ordem internacional fez emergir grande número de
organizações supranacionais (FMI, ONU, UNESCO, Banco Mundial, FAO, Bancos de Regulamentação
Internacionais, CEE etc.). Foi também estabelecido um conjunto de regulamentações comerciais, bancárias e
jurídicas (Acordo GATI, Acordo Bretton Woods, lATA etc.) com objetivos de supervisionar, regular,
coordenar e mesmo intervir nos negócios mundiais.
Esta proeminência da ordem mundial é hoje mais forte do que ontem e pode-se assinalar vários sintomas
dessa tendência. A economia não cessa de se mundializar e as empresas, através dessa mundialização, se
consolidam (Goldberg e Negandhi, 1983; Lall, 1983; Casson, 1983), As fronteiras nacionais desaparecemEuropa 1992, Acordo de Livre Comércio Canadense-Americano, Negociações do GATI etc. As ameaças
ecológicas mundializam-se também. As distâncias entre os países desenvolvidos e os em desenvolvimento
aumentam e as relações leste-oeste são um contraponto inevitável. Constituindo assim uma dimensão
incontornável da existência humana contemporânea, a ordem do mundo atual pelas suas características globalização, desigualdades, rivalidade, cooperação e lógica econõmico-financeira - desenha os contornos nos
quais as sociedades, as organizações e os indivíduos devem cada vez mais se inserir e se movimentar. Esta
mundialização das trocas, que assistimos, não estrutura apenas o mundo econômico, contribui também, pela
via de multinacionalização das empresas e dos movimentos migratórios internacionais, para desestabilizar as
identidades coletivas (Todorov, 1989; Kristeva, 1988), para redefinir os universos culturais (Bourgoin, 1984) e
à reinterpretar os imaginários (Eudes, 1982; Le monde diploma tique, 1988a). Neste contexto, a dinâmica
humana nas organizações será profundamente afetada.
COMPLEXIDADE E INTERDEPENDÊNCIA ENTRE OS NÍVEIS
Os cinco níveis que mencionamos estão em constante interação. O indivíduo constrói-se em sua relação
com o outro, mais freqüentemente em um quadro de relações organizadas, na relação que ele mantém com a
sociedade e que essa última mantém com outras sociedades (Memmi, 1972). A ordem de interação é
influenciada pelos indivíduos presentes, a ordem organizacional é ao mesmo tempo o produto e o produtor da
ordem societal e da ordem mundial. Inversamente, a ordem mundial repercute sobre os outros níveis.
Esta concepção, um pouco circular, indica claramente que não queremos estabelecer a priori uma
hierarquia entre os cinco níveis (Bateson, 1979), Também
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significa que o universo que queremos estudar através deles, no nosso caso o fator humano nas
organizações, não é uma simples justaposição de estratos independentes uns dos outros, redutível a uma só
dimensão ou dependente de um nível determinado. Ao contrário, ele procura ressaltar a complexidade, ou seja,
"reconhecer o que é 'uno' e múltiplo" (Morin, 1986) e mostrar como todo fenômeno estudado é perpassado por
elementos transversais (Goffman, 1988).
Esta visão ao mesmo tempo unidimensional e pluridimensional dos seres humanos se integra também em
um movimento contemporâneo mais amplo, cujo objetivo é ultrapassar as oposições clássicas: indivíduosociedade, ordem-desordem, autonomia-dependência, cooperação-competição, estrutura-história, separações
que na realidade estão intimamente ligadas através de configurações múltiplas (Dupuy, 1982; Morin, 1986;
Bourdieu, 1987; Giddens, 1987; Balandier, 1988; Sahlins, 1989).
Reunir o que estava até agora separado, colocar em evidência as dimensões esquecidas, reafirmar o papel
do indivíduo, da experiência, do simbólico nas organizações e ao mesmo restituí-l os ao seu quadro sóciohistórico, é a ambição desta antropologia das organizações que procuramos construir. Esperamos que este livro
convença o leitor de que estamos trilhando o bom caminho: a unidade e a interdisciplinaridade ao mesmo
tempo.
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