Science Fiction Studies Nº 1 = Volume 1, Parte 1 = Primavera de 1973 ----------------------------------------------------------------------- Ursula K. Le Guin Sobre O Sonho de Ferro de Norman Spinrad Traduzido por Alexis B. Lemos ([email protected]) O romance vencedor do Hugo de 1954, Lord of the Swastika (O Senhor da Suástica), de Adolf Hitler, apresentado por Norman Spinrad como The Iron Dream (O Sonho de Ferro, Avon, 1972), é um livro extraordinário. Talvez ele mereça o Hugo de 1973, também. Na contra-capa, Michael Moorcock compara o livro com "os trabalhos de J.R.R. Tolkien, C.S. Lewis, G.K. Chesterton e Sir Oswald Mosley... É a verdadeira quintessência da espada e feitiçaria". Nenhum dos autores mencionados é relevante, exceto Mosley, mas a referência à espada e feitiçaria é exata. O Sonho de Ferro pode ser lido como uma tremenda paródia do sub-gênero representado pela própria saga Runestaff de Moorcock, e por Conan, o Bárbaro, e Brak, o Bárbaro, e aqueles livros de Gor, e assim por diante - "fantasia heróica" ao nível do sub-solo, os escritos que parecem serem motivados por uma mistura de escapismo ingênuo e cinismo monetário. Interpretado como uma paródia de E&F, o livro atinge todos os seus objetivos. Há o Herói, o Macho Alfa com seus músculos de aço, seus olhos claros e seu destino manifesto; existem os Amigos do Herói; existem os inimigos vis, sub-humanos; há a Espada do Herói, neste caso um porrete de interessante construção; existem os testes, buscas, batalhas, vitórias, culminando numa super-vitória final celestial do Super-Homem. Não existem mulheres de forma alguma, nem palavras sujas, nem sexo de nenhum tipo: o livro é um exemplo impecável de obscenidade limpa. Passará por qualquer censor, exceto aquele que se senta dentro da sua alma. Uma paródia de E&F, todavia, está auto-condenada. Você não pode exagerar o que já é estupidamente exagerado; você não pode distorcer para efeito cômico algo que já é distorcido além de toda a realidade. Tudo o que Spinrad pode fazer é igualar o mais crasso tipo de E&F; ninguém conseguiria ultrapassá-lo. Mas afortunadamente ele tem um jogo mais amplo em mente. Há um outro tipo de livro do qual pode ser dito ser uma paródia ou crítica oblíqua, e que é o Conto de Aventura de FC Correta, como é chamado, numa renúncia virilmente modesta de possuir qualquer mensagem filosófica/intelectual pretensiosa, embora, de fato, ele geralmente contenha uma forte dose de ideologia concentrada. Este é o tipo de história melhor exemplificada por Robert Heinlein, que acredita no Macho Alfa, no papel do homem inatamente (geneticamente) superior, nas virtudes heróicas do militarismo, no charme e na necessidade do controle autoritário, etc, e que é um argumentador muito persuasivo para todas estas coisas. Aqui, O Sonho de Ferro pode ter moral como contra-peso moral: ao lê-lo, lendo todas as coisas familiares sobre a glória da batalha, a corrupção dos inimigos da verdade, as alegrias da obediência a um verdadeiro líder, o leitor é forçado a lembrar que é Hitler dizendo estas coisas - e deste modo questionar o que é dito, repetidamente. A tensão e o desconforto assim ativados podem se provar salutares para pessoas que costumam engolir a coisa toda. E, de fato, o livro não está meramente satirizando o machismo de certos gêneros literários menores, mas o saco autoritário inteiro. Ele é, como todos os trabalhos sérios de Spinrad, um enunciado moral. A beleza da coisa é a idéia dela: um romance por um obscuro escrevinhador chamado Hitler. O perigo, o risco disto é que a idéia é expressa em 255 páginas de - inevitavelmente - prosa de terceira qualidade. Isto pode não incomodar Spinrad. Existem elementos paródicos óbvios no estilo, o qual é afetado, ligeiramente rígido e cheio de locuções como "apenas nada"; mas de fato o estilo é raramente muito pior do que o do próprio Spinrad antes da hitlerização. Dado que ele é um dos melhores contistas de FC, talvez o melhor, duvidei do meu próprio instinto aqui, e conferi com as histórias na coleção The Last Hurrah of the Golden Horde (Avon 1970). Vívida, imaginativa e poderosa, as histórias criam seu impacto através de suas idéias e a despeito de sua prosa. Elas são freqüentemente escritas ao nível desta sentença de "Once More, With Feeling": "Havia uma tensão expectante na voz dela que não podia sondar, mas que ondulava a carne das coxas dele". Como muita prosa descrita como "forte", "raçuda... agressiva", a de Spinrad é realmente um estilo altamente super-intelectualizado. Ninguém que responda sensualmente e perceptivamente ao som e significado das palavras poderia escrever ou ler esta sentença com satisfação. Como você sonda uma tensão? com um prumo? Como a tensão dela ondulava as coxas dele? ela criava pequenas ondas como grama ao vento na pele, ou pequenos sulcos como os de uma tábua de lavar roupa? De fato, não se espera que ninguém faça essas perguntas, não é esperado que ninguém reaja à falsa concreticidade dos verbos exceto do modo mais generalizado e difuso - exatamente como com slogans políticos e burocratês. O que Spinrad busca é uma idéia, uma idéia moral; do mundo de emoções e sensações, nada existe exceto uma vaga atmosfera de violência carregada, através da qual o leitor é arremessado perigosamente para a frente rumo ao objetivo. Ler um conto de Spinrad é dirigir em alta velocidade através de uma salina num carro de corrida. É um carro poderoso e ele é um grande piloto. Ele deixa os outros corredores bem para trás. Mas um romance não é um carro de corrida. Ele é muito mais como uma caravana de camelos, um navio de carreira ou o Graf Zeppelin. Por essência ele é vasto, longo, vagaroso, intrincado, confuso e propenso a chegar onde está indo seguindo um Grande Círculo. Variedade de passo, variedade de tom e humor e acima de tudo complexidade do assunto, são absolutamente essenciais para o romance. Eu não penso que Spinrad tenha encarado isso ainda. Seus três livros de grande extensão são contos super-estendidos. E eles têm sido relativos fracassos, por que você não faz um romance apenas esticando uma história. Mas neste caso, isso importa? Como pode um romance de Adolf Hitler ser bem-escrito, complexo, interessante? De fato, não pode. Isso arruinaria a piada amarga. Por outro lado, por que alguém deveria ler um livro que não é interessante? Um conto, sim. Mesmo um livro de cem ou cento e vinte páginas. Nesta extensão, a idéia poderia conduzir alguém; o interesse essencial do efeito do distanciamento, a força da ironia, seriam delongados. E tudo que é dito em 255 páginas poderia ter sido dito. Ninguém pediria a Spinrad para sacrificar cenas tais como a conquista do Grande Porrete pelo herói Feric e o subseqüente beijo do Grande Porrete pelos Vingadores Negros, ou a espantosa cena final. Elas são magníficas. Elas são horrivelmente engraçadas. São tours de force totalmente bem sucedidas. Mas os longos incrementos até elas não são necessários, como seriam num romance; antes, eles enfraquecem o efeito total. Somente os pontos altos importam; somente eles suportam a tensão irônica. Do jeito que está, a tensão patina; e eu tenho medo de que aqueles que lerem o livro todo possam fazê-lo por que sua insensibilidade permite-lhes ignorar o distanciamento que é a força e a justificação do livro. Eles o leriam como leêm Conan, ou Tropas Estelares ou Goldfinger - como diversão limpa, boa. Qual o dano nisso? não é tudo fabricado, tudo não é apenas fantasia? E então eles concordarão com "Homer Whipple" de N.Y.U., que provê, na Palavra Final, a última mexida da faca de Spinrad. Depois de tudo isso, diz o Dr. Whipple, não pode acontecer aqui. Este - a suspensão errônea da descrença - é o estava correndo. Se ele perde, perde o jogo (diferentemente da maioria dos praticantes que seriedade moral é intensa e inteligente, mas ele aposta; ele tenta nos engajar. Em outras palavras, risco que Spinrad corre, e certamente sabia que todo. E isso seria um desastre, pois ele está agora escrevem FC) fazendo apostas altas. Sua não tenta nos moralizar ou pregar para nós. Ele ele trabalha como um artista. Ele fêz, em O Sonho de Ferro, algo tão escandaloso quanto o que Borges fala sobre a feitura de "Pierre Menard" (a reescrita do Don Quixote, palavra por palavra, por um francês do século XX): ele empreendeu um ato incrivelmente ousado de extremo distanciamento forçado. E distanciamento, o afastar-se da "realidade" para vê-la melhor, é talvez o gesto essencial da FC. É pelo distanciamento que a FC alcança a alegria estética, a tensão trágica e o rigor moral. E é ao último que Spinrad mira e alcança. Somos forçados, enquanto continuemos a ler o livro seriamente, a pensar, não sobre Adolf Hitler e seus crimes históricos - Hitler é simplesmente o meio distanciante - mas a pensar sobre nós mesmos: nossas concepções morais, nossas idéias de heroísmo, nossos desejos de liderar ou sermos liderados, nossas guerras justas. O que Spinrad está tentando nos contar é que isto está acontecendo aqui. Portland, Oregon.