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Considerações iniciais sobre a produção histórico-sociológica de Clóvis Moura.*
Autoria: Christian Carlos Rodrigues RIBEIRO**
A obra, de recorte histórico-sociológica, de Clóvis Moura (1) embora tenha marcado sua importância
nos processos investigativos acerca da questão negra no Brasil na área das Ciências Sociais, não é um
referencial plenamente reconhecido no universo acadêmico, sendo muito mais correto afirmarmos que
tornou-se um modelo seguido por parte da sociologia contemporânea, em especial a que exerce sua ação
científica de interpretar a questão do negro como não subordinada a questão social, em especial nas
produções sociológicas realizadas nas Universidade Estadual Paulista (UNESP); Universidade Federal de
São Carlos (UFSCAR); Universidade Federal da Bahia (UFBA) e na Universidade Candido Mendes (Centro
de Estudos Afro-Asiático) no Rio de Janeiro.
Essa situação ocorre, ressaltamos; pela postura da academia que em geral opta por destacar,
enfatizar a incorporação da massa negra ao operariado urbano, como forma de superação das iniqüidades
geradas pelo racismo brasileiro, em contraposição ao pensamento mouriano que apontava a superação
destas pela constituição de uma sociedade organizada por um viés socialista, tal qual grande parcela da
sociologia acadêmica, (BASTIDE & FERNANDES, 1959; LIMA, 1999; FERNANDES, 1964), mas em que a
luta, o protesto político negro, dentro de um universo popular de contestação social seria peça fundamental
nesse processo.
Mas não como elemento amalgamado ás ações proletárias e sim enquanto elemento destacado,
específico, nessa etapa transformadora da sociedade nacional. Esta característica da obra mouriana, essa
especificidade, ante ao universo do denominado "pensamento social brasileiro" (IANNI, 2004) acreditamos
seja um dos motivos da marginalização de sua produção intelectual.
Nesse sentido é que a obra de Moura pode ser interpretada como aquela que destaca, coloca em foco
de maneira pioneira a questão racial e social como cotidianamente interligadas, embora distintas entre si,
pela complexa constituição histórica/social/cultural/econômica da sociedade brasileira.
O que distingue a obra de Clóvis Moura é que ela compreende toda uma original e
fundamental interpretação do Brasil, na qual predomina a perspectiva dos setores
sociais subalternos, das classes populares, dos humilhados e ofendidos; povoando
a história do Brasil. Mais do que outras interpretações do Brasil, a de Clóvis Moura
está enraizada na longa gesta do escravo e ex-escravo, espelhando a grande
maioria dos que trabalham no eito, na mineração, engenho e usina, fazenda e
fábrica, campos e construções. A sua interpretação assume a densidade, o
sofrimento e a radicalidade do negro brasileiro, desde o escravo ao livre,
compreendendo o quilombola, o da tocaia, o fugitivo, o suicida, o enlouquecido, o
que protesta, o que nega a ordem social estabelecida. Ressoa sempre o presente
e o passado, a herança e o fardo, o desespero e a indignação, o protesto e a
revolta, a história e a memória. É desde essa perspectiva que o negro brasileiro
revela-se o fermento insdispensável da revolução social.
Sob vários aspectos, a interpretação da sociedade brasileira desenvolvida por
Clóvis Moura em seus livros pode ser tomada como a mais radical arquitetura da
formação social brasileira. (IANNI, 2004: 148)
Mas a grande questão da não aceitação da obra mouriana, em nossa interpretação, ocorre quando
esta coloca em xeque o processo formalista de nossa historiografia nacional(2) passando a desenvolver um
método de busca por novas fontes de pesquisa ou a (re)interpretar por um "outro olhar" as opiniões
formadas/consagradas e reproduzidas como verdades incontestes, quando não absolutas, sobre a questão
negra (racial/social) pelas ciências humanas em geral, e em especial sua faceta sociológica. (3)
Sua busca em exercer uma sociologia independente acabaria por caracterizar sua obra enquanto uma
eterna voz de confrontação ante a incapacidade da produção intelectual da área de humanas - baseada em
fontes históricas "consagradas" tradicionais ou em métodos de investigações "importadas" (estrangeiras)
aplicadas diretamente a nossa realidade nacional (MOURA, 1994; MOURA, 1978) - em questionar os
valores excludentes, discriminatórios, tão característicos da sociedade brasileira.
Por isso desenvolvendo seu próprio processo de investigação social histórico-sociológico (4) de
caráter não estatal, não institucionalizada, uma "Sociologia de práxis" que se opusesse ao:
formalismo que capeia a maioria dos trabalhos de Sociologia acadêmica e o
empirismo de outro lado, formam dois pólos de uma contradição: a impossibilidade
dessa ciência ver e interpretar em termos de devir o processo antinômico,
contraditório, que caracteriza o desenvolvimento do seu próprio objeto de
investigação. (MOURA, 1978: 25)
Como classifica toda sociologia acadêmica como restritiva a produção de críticas geradas ao
questionamento do "status quo" dominante, devido a sua institucionalização, tornando-se assim parte do
sistema, perdendo sua independência cientifica, isolando-se cada vez mais de sua realidade, fechando-se
em um mundo acadêmico fechado em si mesmo, cada vez mais especializado, fragmentado:
Em um mundo em que tudo se inter-relaciona, a Sociologia transformou-se na
ciência dos grandes isolados e dos grandes temas atomizados. Quando dizemos
isolados levamos em conta inclusive a atividade de grupos e equipes que
trabalham subvencionados, dentro de critérios rigidamente universitários, nos seus
diversos departamentos de pesquisas. Apesar de aparentemente trabalharem em
equipe são cada vez mais introvertidos, virados para dentro de si mesmos, vendo
em cada colega mais um concorrente na carreira universitária do que um
colaborador científico. (MOURA, 1978: 27)
Outra questão que opunha Moura a sociologia acadêmica, era o fato que para esta, toda produção
sociológica produzida fora da universidade não era sociologia, o que para ele demarcava a efetiva
superação, sobreposição da figura do modelo de intelectual acadêmico, em detrimento da figura do
intelectual publico, processo este que representa, em sua opinião, um afastamento da sociologia de sua
práxis política, um afastamento de seu humanismo histórico, reafirmando desse modo á estrutura
conservadora em que esta baseada a sociedade brasileira.
O que, remetendo ao recorte sociológico de sua obra, revela a inserção da sociologia acadêmica quando esta não interpreta os negros enquanto sujeitos políticos de transformação social e histórica e não
aceita a produção cientifica realizada fora da universidade - como racista, tal qual a de viés integralista da
era Vargas, ou das primeiras décadas do século XX, e por isso desqualificando os processos de resistência
negra ao longo da historia nacional. Fazendo com que na interpretação mouriana á Sociologia acabe por
(re)afirmar e não questionar o "status quo" dominante conservador, elitista e discriminatório típico da
sociedade brasileira, enquanto nação incompleta.
Moura na introdução mexicana de seu livro "A Sociologia posta em questão" enfatiza que sua criticas
não têm nenhum valor pessoal, quanto a qualquer pessoa, inclusive faz questão de enaltecer o caráter de
Florestan Fernandes, principal representante da escola uspiana de sociologia, mas sem deixar de evidenciar
seu descontentamento a postura cientifica da sociologia acadêmica.
Quando fazemos a crítica de princípios e métodos de outros sociólogos não os
estamos atacando pessoalmente. Muitos deles, pelo contrário, são donos de
magnífica dignidade intelectual, como é o caso específico de Florestan Fernandes.
A nossa crítica visa apenas esclarecer o perigo das suas posições metodológicas,
especialmente quando, por não compreenderem o caráter altamente político da
sociologia, prostram-se ante correntes de opinião e técnicas de análise que nos
chegam exatamente objetivando a impedir o aceleramento do processo social que
se desenvolve no Brasil. Não visamos, portanto, pessoas, mas simplesmente
posições no plano do conhecimento cientifico. (MOURA, 1978: 22)
A postura intelectual, sociológica, de Moura, não se coadunava aos rigores institucionais vigentes,
era uma postura cientifica que não se fazia referendar em gabinetes, ou laboratórios, sua ação se dava no
dia a dia, na realidade empírica dos conflitos sociais, onde intelectualmente se realizava por completo, tendo
por isso sua postura sociológica sendo consideradas por muito como não científica, mas sim militante (5).
Essa atitude, essa radicalidade, das posições de Clóvis Moura, aliada a especificidade, e pioneirismo
de sua obra, já discorridas ao longo do artigo, acreditamos tenha contribuído em muito para o não
reconhecimento, mais que devido em nossa opinião, acadêmico a sua produção cientifica.
O que revela uma contraposição ao que acontece ante ao reconhecimento constante de sua obra
pelos movimentos sociais, em especial os movimentos negros (6). Destacando em nosso entendimento o
maior mérito de sua obra, o aceite de sua militância/produção intelectual, o referendo de sua Sociologia da
práxis por aqueles em que optou defender, em inserir dignamente no contexto histórico-social da sociedade
brasileira, enquanto cidadãos plenos em direitos e agentes políticos transformadores de sua própria
realidade mundo (IANNI, 2004; MESQUITA, 2003; MOURA, 1981).
Pela magnitude, importância e impacto da obra mouriana, ante ao universo do chamado
"pensamento social brasileiro" (IANNI, 2004), não pretendemos aqui apresentar considerações definitivas
sobre a mesma, mas sim dividir (nossas) opiniões, interpretações geradas sobre a mesma.
Dessa maneira terminamos nosso artigo esperando, modestamente, termos contribuído em despertar
o interesse acerca da produção intelectual de Clóvis Moura e assim contribuir para que sua obra passe a ser
mais lida, estudada, valorizada, em vista de que a problematização da questão negra, e do racismo
brasileiro, se faz mais do que atual em nossa sociedade e nesse aspecto revela-se a produção
histórico-sociológica mouriana mais do que contemporânea ao debate acerca da (nossa) complexidade
racial-social nacional.
Sua postura crítica e radical de entender e analisar a história social do país, com
certeza contribuiu para que além de compreendermos melhor o passado,
possamos vislumbrar uma outra história para o futuro. (MESQUITA, 2003: 574)
__________________________________________________________
Notas:
(*) Artigo publicado originalmente no sítio digital "CMI Brasil - Centro de Mídia Independente"
sob o título "A questão negra na obra sociológica de Clóvis Moura." no endereço:
http://www.midiaindependente.org/pt/blue/2008/02/412343.shtml, postado em 21/02/08.
A versão aqui apresentada foi acrescida e alterada. Reiteramos que as considerações presentes são
resultantes de pesquisa histórica desenvolvida para a eleboração do projeto de
doutorado "O pensamento social brasileiro e a especificidade histórico-sociológica da obra de Clóvis Moura."
(**) Sociólogo, bacharel com licenciatura plena em Ciências Sociais, mestre em Urbanismo pela Pontifícia
Universidade Católica de Campinas, professor de História da Rede Pública do Estado de São Paulo. Email:
[email protected]
(1) Clóvis Steiger de Assis Moura - nascido na cidade de Amarante (PI) em 1925, falecido em 2003 na
cidade de São Paulo (SP) - foi jornalista, poeta, historiador e sociólogo, tornando-se um dos mais
importantes intelectuais do país acerca dos estudos de caráter afro-brasileiros, tendo sua obra como uma
das principais influências dos movimentos negros nacionais.
(2) Para Clóvis Moura a origem da historiografia nacional em não valorizar, ou reconhecer, a contribuição
afro-brasileira a construção/formação da sociedade brasileira se dá na passagem entre os séculos XIX e XX,
em que as teorias antropológicas e sociológicas de caráter biológicas, influenciadas pela obra de Spencer,
passam a balizar como causas de nossa incompletude enquanto nação nossa herança africana e os
elementos afro-brasileiros da sociedade nacional. Reafirmando de maneira direta ou indireta, o elemento
negro como o fator responsável por nossas mazelas sociais e nosso fracasso civilizatório. Nesse sentido é
importante ressaltar que para Moura a historiografia é um referencial teórico formada pelo uso,
(re)interpretação de fontes históricas por pesquisadores das áreas mais variadas, fazendo essa distinção,
portanto, entre História e historiografia.
(3) Para um maior aprofundamento sobre essa temática, tão importante para entendimento da obra
mouriana, indicamos a leitura das obras, do próprio autor: "Dialética radical do Brasil negro." (1994); "As
injustiças de Clio. O negro na historiografia brasileira." (1990); "Sociologia do negro brasileiro" (1988) e a
leitura das obras " Pensamento social no Brasil" (2004) de IANNI, Octavio; "Clóvis Moura e a Sociologia da
Práxis. " (2003) de MESQUITA, Érika.
(4) O recorte histórico-sociológico da obra mouriana pode ser entendido enquanto um amalgáma que o autor
desenvolveu para sua produção e desenvolvimento intelectual que se baseia inicialmente ante a primazia da
História em ser um ciência para muito além de simples disciplina acadêmica, mas sim enquanto parte das
denominadas Ciências Sociais "que assim marca e delimita objetivos para o homem, generaliza os fatos,
aponta as tendências do futuro, baseada no passado." (MOURA, 1990) e a partir dessa realidade possibilita
que a Sociologia exerça sua capacidade de problematizar, questionar a ordem vigente em busca da
contrução de uma nova forma de organização social mais justa e igualitária, para isso utilizando os fatos
passados apresentados, (re)trabalhados pela História, dessa forma a Sociologia de práxis pondo em dúvida,
colocando-se em posição de confrontamento as estruturas sociais características da sociedade brasileira.
Uma sociologia que através do uso das fontes históricas:
"age levando em consideração o caráter contraditório da sociedade e que atua sobre aquelas contradições
que são imanentes, proporcionando a possibilidade de elevar o conhecimento e, ao mesmo tempo, resolver
os problemas sociais que nascem dessas contradições..." (MOURA, 1978: 68)
(5) Essa questão é magistralmente abordada e interpretada por Érika Mesquita em sua dissertação "Clóvis
Moura: uma visão crítica da história social brasileira." (2002)
(6) Nesse sentido é importante destacar a influência não só da obra, mas da presença intelectual militante
de Clóvis Moura durante o processo de constituição do denominado Movimento Negro Unificado (MNU),
fundado em 07 de Julho de 1978 com o nome de Movimento Negro Unificado Contra a Discriminação Racial,
e a sua influência teórica para a constituição e atuação política ideológica da União dos Negros pela
Igualdade (UNEGRO)fundado em 18 de Julho de 1988.
Referências Bibliográficas
BASTIDE, Roger; FERNANDES, Florestan. Brancos e Negros em São Paulo. Ensaio sociológico sobre
aspectos da formação, manifestações atuais e efeitos do preconceito de cor na sociedade paulistana. 2.
edição revista e ampliada. São Paulo:Companhia Editora Nacional. 1959, 371p. (Brasiliana, vol, 305)
FERNANDES, Florestan. A integração do negro à sociedade de classes. São Paulo: Boletim n. 31,
Sociologia / n. 12. 1964, 738p.
IANNI, Octavio. Pensamento social no Brasil. Bauru: EDUSC, 2004.
LIMA, Nísia Trindade. Sob o signo de Augusto Comte ou sob o signo de Karl Marx: a vocação das ciências
sociais nas perspectivas de Costa Pinto e Florestan Fernandes. In: MAIO, Marcos Chor; BÔAS, Gláucia
Villas (organizadores). Ideais de modernidade e sociologia no Brasil. Ensaios sobre Luiz de Aguiar Costa
Pinto. Porto Alegre: Editora Universidade/UFRGS, 1999. p. 251 – 274.
MESQUITA, Érika. Clóvis Moura e a Sociologia da Práxis. Estudos Afro-Asiáticos, Rio de Janeiro, n. 03, p.
557-577, ano 25, 2003.
MESQUITA, Érika. Clóvis Moura: uma visão crítica da história social brasileira. Campinas, Dissertação
apresentada ao Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas. 2002.
MOURA, Clóvis. Dialética radical do Brasil negro. São Paulo: Editora Anita, 1994.
MOURA, Clóvis. As injustiças de Clio. O negro na historiografia brasileira. Belo Horizonte: Oficina de Livros,
1990. (Coleção Nossa Terra)
MOURA, Clóvis. Sociologia do negro brasileiro. São Paulo: Editora Ática S. A., 1988. (Série Fundamentos, n.
34).
MOURA, Clóvis. A nação afro-brasileira. Movimento UNE, revista bimensal da União Nacional dos
Estudantes. P. 34-38, novembro-dezembro de 1981. (Entrevista)
MOURA, Clóvis. A sociologia posta em questão. São Paulo: Livraria Editora Ciências Humanas LTDA, 1978.
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