UM ESTUDO DO TERMO LETRA NOS DOIS PRIMEIROS TEXTOS

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UM ESTUDO DO TERMO LETRA NOS DOIS PRIMEIROS TEXTOS
GRAMATICAIS PRODUZIDOS SOBRE O QUÉCHUA NO SÉCULO XVI
Por Roberta Ragi1
“... no ay cosa en que más se conozca el
ingenio del hombre que en la palabra y
lenguaje que usa, que es el parto de los
conceptos del entendimiento.”
Domingo
de
Santo Tomás
1. INTRODUÇÃO
Este trabalho está contextualizado pelo projeto Documenta gramaticae et
historiae, projeto
de documentação
lingüística e historiográfica
(CNPq
–
CEDOCH/DL-USP), coordenado pela professora Drª Cristina Altman (CEDOCH/DLUSP). O Documenta visa, de um lado, à construção e disponibilização eletrônica de
corpora representativos da tradição gramatical-colonial ibérica e, de outro, à
constituição de dicionário histórico de termos gramaticais dessa tradição. Como
pesquisadores do Centro de Documentação em Historiografia Lingüística da
Universidade
de
São
Paulo
(CEDOCH/DL-USP),
desenvolvemos
atividades
relacionadas à digitalização e ao estudo da metalinguagem descritiva constituída na
emergência da tradição gramatical quéchua no século XVI.
Os materiais de análise aqui utilizados compreendem os dois primeiros textos
gramaticais produzidos nessa tradição descritiva: o primeiro é escrito em 1560, pelo
dominicano Domingo de Santo Tomás (1499-1570); o segundo, publicado em 1586,
embora anônimo, surge como resultado das atividades do jesuíta José de Acosta (15301598) à frente do Terceiro Concílio Limenho (1582-1583). Ambos têm um valor
historiográfico evidente: além de inaugurarem uma tradição gramatical, atraem o
interesse de historiadores, antropólogos e quechuístas. Ambos estão contextualizados no
período renascentista, em que se concretiza a gramatização massiva dos vernáculos
1
Pesquisadora do CEDOCH/DL-USP, bolsista CNPq, mestranda em Semiótica e
Lingüística Geral, na área de Historiografia Lingüística, orientada pela professora Drª
Cristina Altman, do CEDOCH/DL-USP. Graduanda em Filosofia pela Universidade de
São Paulo.
europeus ao mesmo tempo em que se dá a gramatização de boa parte das línguas
indígenas americanas, tal como descreve Auroux2.
As duas primeiras gramáticas produzidas sobre o quéchua alinham-se entre os
primeiros trabalhos lingüísticos efetivados sobre línguas indígenas no contexto político
da colonização americana. E quais são as especificidades históricas que determinam os
contextos de produção nos dois casos?
O primeiro momento, que vimos denominando como “herança dominicana”, é
representado pelos missionários mendicantes da primeira geração, que alcançam o Peru
imediatamente após o período da conquista, empreendida entre os anos de 1531 e 1533.
Nesse período, os dominicanos têm uma presença decisiva. Amigo pessoal e
colaborador do também dominicano Bartolomé de Las Casas (1474-1566), Santo Tomás
opõe-se aos encomendeiros, que deflagram uma rebelião contra a coroa castelhana,
entre 1546 e 1548, a partir do assassinato do vice-rei peruano, Blasco Núnez Vela
(1490-1546). O prefácio da primeira gramática quéchua, bem ao gosto da estética
humanista utópica dos dominicanos, registra uma exaltação à língua e ao homem
quéchua, elevado, nessa perspectiva, à condição de ser racional, detentor de uma alma
imortal, que, por isso mesmo, não poderia ser escravizado, ao contrário do que
pregavam os encomendeiros.
O contexto de produção da segunda gramática, que vimos intitulando como
“herança jesuítica”, coincide com o período conhecido como Pacificação. Aos poucos,
controlada a rebelião dos encomendeiros, a coroa retoma e reforça o controle políticoadministrativo das terras peruanas e uma outra geração de missionários é chamada a
coordenar atividades catequéticas na América Andina: os jesuítas. O Terceiro Concílio
Limenho, que se desenvolve nesse período, é liderado por um jesuíta, padre José de
Acosta, e representa um esforço de normatização das tarefas evangelizadoras nos
Andes. A segunda gramática quéchua emerge, nesse novo contexto, como resultado das
atividades desse importante Concílio, muitas vezes reconhecido como uma extensão do
Concílio de Trento (1545-1563) na América Colonial.
O objetivo específico deste trabalho é mapear os conceitos formalizados para o
termo letra na emergência da tradição gramatical quéchua. As duas gramáticas
examinadas seguem o modelo clássico das oito partes do discurso, a exemplo das
2
Cf. AUROUX, Sylvain. 1992. A revolução tecnológica da gramatização. Campinas: Editora da
Unicamp.
Introductiones latinas, de Nebrija (1441-1522), publicadas em 1481. Como veremos, a
adoção desse modelo descritivo, que remonta à Idade Clássica e atravessa toda a Idade
Média, não se dará impunemente: há toda uma concepção de língua e linguagem,
historicamente construída, que, de uma forma ou de outra, será recuperada, atualizada,
de maneira a adequar-se, o mais possível, à nova realidade lingüística que se apresenta.
A questão é: qual o lugar ocupado pelo conceito letra nos modelos gramaticais que
organizam as duas primeiras gramáticas produzidas sobre o quéchua? Que quer dizer
letra nesses dois contextos? Como o capítulo De la ortographia, em Santo Tomás,
dedicado especificamente ao estudo das letras, circunscreve esse nosso termo-objeto na
rede conceitual aí sistematizada? Quais as continuidades e as descontinuidades no
tratamento desse metatermo gramatical nos dois textos analisados?
2. DESENVOLVIMENTO
Partindo de um levantamento exaustivo das ocorrências explícitas do termo letra
em seus respectivos co-textos de realização, foram identificadas 47 ocorrências, na
gramática de Santo Tomás, e 10 ocorrências, no texto anônimo de 1586.
Nos dois contextos indicados, tanto no dominicano quanto no jesuítico, o termo
letra apresenta um tratamento peculiar: às vezes, designa som; outras vezes, aproximase do conceito que modernamente denominamos como grafema; ou, ainda, associa-se a
uma informação de ordem morfológica.
2.1. Exemplos da constituição dos dados de análise
2.1.1. Exemplos do termo letra designando som
● “... es de notar que muchos términos los pronuncian los indios de una
provincia distinctamente que los de otra. Exemplo: unos indios de una
provincia dizen xámuy que significa ‘venir’; otros en otra provincia dizen
hámuy en la misma significación; unos en una provincia dizen çára, que
significa ‘trigo’; otros en otra dizen hára en la misma significación; ... Y lo
mismo se dize de otros muchos términos, que siendo los mismos los
pronuncian y profieren /
[fol. 2] com diversas letras y en diversa
manera...” (SANTO TOMÁS: [1560] 1995, p. 18)
● “... los indios carecen en su pronunciación de las letras B, D, G, R, X,
Z... La R no la pronuncian ásperamente, sino suave, como en estos
vocablos: claridad, caridad.” (ANÔNIMO: [1586] 1966, p. 19)
Os excertos demonstram, nas duas gramáticas, o uso do termo letra como som,
isto é, como informação de ordem fonético-fonológica. É significativo observar que
verbos como dizer, pronunciar e proferir acompanham esse tipo específico de uso do
termo letra enquanto som, como demonstram os fragmentos transcritos.
2.1.2. Exemplos do termo letra designando informação de caráter grafemático
● “... los indios y naturales de la tierra del Perú no usavan de scriptura ni
jamás entre ellos huvo memoria della, por tanto ni tenían letras ni caracteres
para escrivir ni manifestar sus conceptos y antigüedades...”
(SANTO TOMÁS: [1560] 1995, p. 17)
● “En esta lengua no hay letras proprias para escribir, porque los indios y
naturales de esta tierra no tenían uso de escritura, ni jamás entre ellos hubo
memoria de ella.” (ANÔNIMO: [1586] 1966, p. 19)
Nesses outros exemplos, o termo letra aproxima-se do nosso moderno conceito de
grafema. Aqui, as letras são instrumento da escrita. Como os índios peruanos não
desenvolveram uma variedade escrita para a língua quéchua, o texto gramatical
anônimo, como seu antecessor, indica o uso das letras do castelhano para escrever em
quéchua. O verbo escrever ou o substantivo escritura acompanham todas as ocorrências
do termo letra nesse contexto específico, sem exceção.
2.1.3. Exemplos do termo letra designando informação de caráter morfemático
● “Hase de notar más otra cosa en esta lengua, que no solamente en ella ay
la derivación, composición de los verbos unos de otros, como está dicho:
más aún cáusase alguna manera de diversidad en la significación / [fol. 41]
en sólo añadir o quitar una letra.Y assí, aunque la s de suyo nada significa,
mas de ser letra, todas las vezes que se añade al cabo de algún nombre o
verbo haze que la tal dictión a que se añade tenga outra dictincta manera de
significar de la que tenía antes que se añadiesse. Exemplo del verbo:
micungui significa ‘comes’, añadida aquella s al cabo, diziendo micunguis,
significa ‘dize, o dizen que comes’. Item micurcángui significa ‘comiste’,
diziendo micurcánguis significa ‘dizen o dize que comiste’.”
(SANTO TOMÁS: [1560] 1995, p. 89)
A letra s, tal como descrita nesse outro fragmento, remete a uma informação
morfológica. O fato lingüístico reconhecido pelo dominicano, nesse caso, está associado
ao reportativo s, que, na lingüística contemporânea, é também denominado como
morfema discursivo ou como sufixo independente3. Os conceitos de morfema, fonema e
grafema, evidentemente, não se encontravam sistematizados nos textos gramaticais à
época, e é por isso que utilizamos, com bastante cautela, essa terminologia moderna,
preferencialmente em forma de adjetivo. Assim, diremos, sempre, “informação de
caráter grafemático ou morfemático”, por exemplo.
É interessante observar que o dominicano registra particularidades lingüísticas de
sua língua-objeto muito distantes das observadas nas línguas européias, como o trecho
anterior denuncia.
● “Los indios para significar el afecto o deseo, suelen anteponer a cada una
de las personas esta letra A, que significa, ojalá...”
(ANÔNIMO: [1586] 1966, p. 33)
Nesses contextos em que o termo letra designa informação morfemática, tal como
observamos nesse outro fragmento acima, extraído do texto anônimo de 1586, constatase, de modo recorrente, a presença do substantivo significação ou do verbo significar.
Nas duas primeiras gramáticas do quéchua, o termo letra só estará associado a
informações morfológicas quando o morfema a ser descrito for constituído por um
único fonema. Quando, ao contrário, o morfema descrito possuir dois ou mais fonemas,
serão utilizadas as expressões artículo, dictión, señal ou partícula, indistintamente,
como no exemplo a seguir:
● “La partícula o señal del genitivo es este artículo pá, que quiere dezir
tanto como ‘de’, con possessión: como el genitivo de yayánc es yayáncpa,
que significa ‘del señor’.” (SANTO TOMÁS: [1560] 1995, p. 25)
2.2. Análise descritiva dos dados
Concluído o levantamento do termo em seus respectivos co-textos de realização,
procedemos ao agrupamento das ocorrências, tendo por base critérios de ordem
semântica, explicitados nos gráficos que se seguem:
3
Cf. CERRÓN-PALOMINO, Rodolfo. 2003. Lingüística quechua. Cuzco: Centro de Estudios
Regionales Andinos ‘Bartolome de las Casa’, p. 267.
LETRA - SANTO TOMÁS - 1560
18
20
15
12
10
7
10
5
0
LETRA - INFORMAÇÃO GRAFEMÁTICA
LETRA - INFORMAÇÃO INDEFINIDA
LETRA - INFORMAÇÃO FONÉTICO-FONOLÓGICA
LETRA - INFORMAÇÃO MORFEMÁTICA
Em Santo Tomás, de um total de 47 ocorrências, 7 aproximam-se do nosso
moderno conceito de grafema (grupo LETRA – INFORMAÇÃO GRAFEMÁTICA), 12
designam som (grupo LETRA – INFORMAÇÃO FONÉTICO-FONOLÓGICA) e 18
designam informação de natureza morfemática (grupo LETRA – INFORMAÇÃO
MORFEMÁTICA). No grupo LETRA – INFORMAÇÃO INDEFINIDA, são
informadas as ocorrências do termo que, na gramática dominicana, apresentam certa
instabilidade. Nesses casos, o termo pode ser interpretado, ao mesmo tempo, como
informação de caráter fonético-fonológico ou grafemático, por exemplo, uma vez que
não remete, exclusivamente, a nenhum dos co-textos de realização, tal como
apresentados anteriormente. Podemos encontrar exemplos desse tipo de ocorrência em
subtítulos como “De las letras s, c” (TOMÁS: [1560] 1995, p. 136), em que o termo
letra não está definido por termos como escritura, pronúncia ou significação.
LETRA - ANÔNIMO - 1586
5
6
3
4
2
2
0
0
LETRA - INFORMAÇÃO GRAFEMÁTICA
LETRA - INFORMAÇÃO INDEFINIDA
LETRA - INFORMAÇÃO FONÉTICO-FONOLÓGICA
LETRA - INFORMAÇÃO MORFEMÁTICA
No texto anônimo de 1586, de um total de 10 ocorrências, duas designam som
(grupo LETRA – INFORMAÇÃO FONÉTICO-FONOLÓGICA), três aproximam-se do
nosso
moderno
conceito
de
grafema
(grupo
LETRA
–
INFORMAÇÃO
GRAFEMÁTICA) e cinco designam informações de ordem morfemática (grupo
LETRA – INFORMAÇÃO MORFEMÁTICA). Nessa gramática, não foram
identificadas ocorrências que justificassem a constituição do grupo LETRA –
INFORMAÇÃO INDEFINIDA: todas as realizações do termo podem ser classificadas
em um dos três co-textos de realização descritos anteriormente.
Do total de 57 ocorrências levantadas, portanto, 17,5% designam informação
grafemática, 24,5% designam som e 40,3% designam informação morfemática:
LETRA - TOTAL DE OCORRÊNCIAS
(SANTO TOMÁS + ANÔNIMO)
50
10
10
14
23
0
LETRA - INFORMAÇÃO GRAFEMÁTICA
LETRA - INFORMAÇÃO INDEFINIDA
LETRA - INFORMAÇÃO FONÉTICO-FONOLÓGICA
LETRA - INFORMAÇÃO MORFEMÁTICA
Pelo exposto até aqui, podemos observar uma continuidade bastante marcante no
tratamento dado ao termo letra nas duas primeiras gramáticas produzidas sobre o
quéchua no século XVI. À exceção das ocorrências em que não se pode identificar o
tipo de informação designada pelo co-texto de realização, ocorrências essas inexistentes
na gramática anônima de 1586, verificamos regularidades expressivas no emprego do
nosso termo-objeto: ambas as gramáticas empregam-no, prioritariamente, designando
informação morfemática; ambas utilizam-no, ainda, com menor freqüência, designando
informações fonético-fonológicas ou grafemáticas. Desse ponto de vista, portanto, não
há grandes especificidades a serem consideradas nos dois casos.
Quanto à inexistência do termo letra como INFORMAÇÃO INDEFINIDA, na
segunda gramática quéchua, é significativo considerar que esse fato ajusta-se ao caráter
mais conciso e normativo do texto anônimo, enquanto produto do Terceiro Concílio
Limenho. Sabe-se que o Concílio esforçou-se, sobretudo, na fixação rígida de uma
norma do quéchua como língua geral, depurada das “imperfeições” e das “esquisitices”
observadas nas variedades lingüísticas faladas pelos naturais 4. Dessa forma, os produtos
gerados a partir do Concílio, dentre eles o vocabulário e a gramática anônima de 1586,
são indicados como apoio às tarefas catequéticas em detrimento dos textos anteriores.
Observemos, por exemplo, as edições das duas primeiras gramáticas produzidas sobre o
quéchua no século XVI: o texto dominicano é publicado apenas uma vez no período
4
LAGORIO, Consuelo Alfaro. 2003. Elementos de política Lingüística colonial hispânica: o Terceiro
Concílio Limense. In: FREIRE, José Ribamar Bessa & ROSA, Maria Carlota. Línguas Gerais. Política
lingüística e catequese na América do Sul no período colonial. Rio de Janeiro: Editora da UERJ, pp. 4355.
colonial, em 1560, e recebe outra edição somente em 1891, aos cuidados de Julio
Platzmann (Leipzig: B.G. Teubner); o texto anônimo, ao contrário, pelo que afirma
Páez5, serve de base para a gramática e o vocabulário quéchua de 1603, para o
vocabulário de 1604 e para a arte e vocabulário quéchua de 1614. O número de páginas
de cada uma dessas obras também ilustra essa natureza sintética a que nos referimos em
relação à gramática de 1586: enquanto o texto de Santo Tomás contém 179 páginas, a
gramática anônima organiza-se em apenas 60.
Por outro lado, é possível relacionar a maior proficiência do termo letra
designando informação morfemática ao modelo gramatical clássico das oito partes do
discurso, que serve como base para a elaboração das duas gramáticas. É coerente que
reputemos, ao instrumental metodológico utilizado, que prioriza, como se sabe,
descrições de natureza morfossintática, esse tratamento majoritário do nosso termoobjeto designando informações morfemáticas. Desse ponto de vista, então, constatamos
uma visível continuidade dos traços conceptuais que definem o termo letra nas duas
primeiras gramáticas dessa tradição descritiva.
2.3. O capítulo De la ortographia, de Santo Tomás
As descontinuidades observadas no tratamento metalingüístico do nosso termoobjeto estão ligadas, basicamente, ao primeiro capítulo da gramática de Santo Tomás,
dedicado à ortografia. A gramática anônima, em sua lógica mais pragmática, mais
normativa, não institui um capítulo específico para tratar das letras. O texto dominicano
de 1560, entretanto, surpreendentemente, tece comentários e descrições de ordem
morfossintática e sintática que ocupam quase metade do capítulo destinado ao estudo
das letras. Observemos, a seguir, o longo parágrafo, desse capítulo, em que Santo
Tomás descreve as oito partes do discurso na língua quechua, tal como Nebrija o faz
para a latina:
“También assí mismo es de notar que en esta lengua, como en la latina y en
las demás, ay todas las ocho partes de la oración o habla: porque en ella ay
nombres que significan las cosas y pronombres que se ponen en lugar de
5
PÁEZ, Rafael Aguilar. 1966. Gramática quechua y vocabularios (adaptación de la
primera edición de la obra de Antonio Ricardo “Arte y vocabulario en la lengua general
del Peru llamada quichua, y en la lengua española”. Lima, 1586). Lima, Universidad
Nacional Mayor de San Marcos, p. 215.
los nombres; ay preposiciones, que determinan los nombres y pronom /
[fol. 2v.] bres a ciertos y determinados casos de la declinación; ay también
interjectiones, que declaran los affectos humanos interiores del anima; ay
verbos, que explican y significan sus actiones y passiones, y particípios
que en la siginificación, cuyos son participios, se ponen en su lugar. Ay assí
mismo advérbios que modifican y limitan las significaciones de los
nombres y verbos. También ay conjunctiones, que ayuntan las partes dichas
de la oración y habla entre sí. Por manera que en esta lengua ay todas las
ocho partes de la oración, y em ella se usa de todas ellas, como claramente
parecerá en el presente tratado y discurso de él.”
(SANTO TOMÁS: [1560] 1995, p. 19)
As partes da oração aí descritas são – nomes, pronomes, preposições, interjeições,
verbos, particípios, advérbios e conjunções. A conclusão do capítulo De la ortographia
é feita com uma definição para oração:
“Por tanto, me paresció que no ay para qué gastar más tiempo en declarar a
la larga qué sea cada una destas partes ni aun me paresce que lo ay de
declarar qué sea oración, mas de dezir que en el propósito entendemos por
oración qualquer plática o razonamiento congruo compuesto de términos.
Exemplo: ‘yo amo’, dezimos ñóca cóyani.’”
(SANTO TOMÁS: [1560] 1995, pp. 19-20)
O percurso do dominicano, nesse capítulo, é o seguinte: inicia-se falando das
letras, enquanto informação grafemática; em seguida, descrevem-se algumas variações
alofonéticas e, com elas, o termo letra é considerado como som, no interior dos termos
ou palavras; passa-se, então, à descrição das partes do discurso; e, no parágrafo
conclusivo, deparamo-nos com uma definição para oração.
Ora, por que tratar das letras, das partes do discurso e da oração em um único
capítulo destinado à ortografia? É nesse ponto que o historiógrafo se questiona: quais as
motivações que determinam esse uso tão particular do termo letra no contexto
dominicano? Como compreendia, Santo Tomás, a tarefa de inaugurar um modelo
descritivo para uma língua original? De que maneira o modelo das oito partes do
discurso interfere nessa aproximação do termo letra às informações de caráter
morfossintático e sintático?
2.4. Nebrija, a ortografia e as letras no método humanista
Para encaminharmos hipóteses interpretativas a partir desses questionamentos,
examinemos, de forma um pouco mais detalhada, o modelo gramatical e as idéias
lingüísticas, inerentes a ele, das quais Santo Tomás se serve na estruturação de sua
gramática. Herdeiro de Nebrija, o dominicano cede às sistematizações típicas do
humanista espanhol e o enuncia textualmente, no Prologo del autor al christiano lector:
“Porque, como el Antonio de Nebrissa, varón eruditíssimo y de gran
ingenio, dize en el prólogo del suyo que de la lengua latina hizo,
emendándolo la tercera vez, nada al principio se haze tan perfecto que el
tiempo inventor de todas las cosas no descubra qué añadir o quitar... Y
porque, como se ha tocado, este arte se haze para ecclesiásticos que tienen
noticia de la lengua latina va conforme a la arte della.”
(SANTO TOMÁS: [1560] 1995, p. 15)
Segundo Esparza Torres6, o modelo das oito partes do discurso, em Nebrija,
insere-se no quadro universalista que já o determinara, em grande parte, nos estudos
lingüísticos da Idade Média. Nesse contexto, a estrutura da razão impõe, à linguagem,
determinados modos de expressar que são independentes das diferenças e das
particularidades observadas entre os códigos lingüísticos. As partes do discurso, ou
partes da oração, são modos de significação que expressam, em todas as línguas, os
diversos aspectos do ser e da racionalidade humana. Conforme assinala Esparza Torres,
Nebrija, ao adotar o modelo das partes do discurso, assume que a linguagem verbal é
capaz, por analogia, de representar, de um lado, a essência das coisas no mundo real,
extralingüístico, e, de outro, a estrutura própria dos conceitos humanos. Essa concepção
de linguagem é possível graças aos universais lingüísticos:
“Nebrija acepta la existencia de universales lingüísticos que pueden ser
determinados en cada una de las consideraciones de la gramática metódica...
se divide la gramática metódica o doctrinal en ortografía, prosodia,
etimología y sintaxis. Cada una de estas partes difiere por su objeto: letra,
sílaba, dicción y oración respectivamente. Obviamente aquí aparecen
enumerados los primeros universales lingüísticos.”
(ESPARZA TORRES: 1995, p. 85)
6
ESPARZA TORRES, Miguel Ángel. 1995. Las ideas lingüísticas de Antonio de
Nebrija. Münster: Nodus Publikationen, p. 75-76.
Pela leitura de Esparza Torres, Nebrija afasta-se dos métodos tipicamente
medievais, ao introduzir, em seus trabalhos lingüísticos, estudos sobre a ortografia,
desprezados, em boa medida, pelos autores medievais, que se detinham, sobretudo, na
análise do sermo interioris7. Para o historiógrafo, esta é uma característica
marcadamente humanista: estender o recurso da analogia ao plano fônico e grafemático,
incluindo estudos ortográficos que concebem as letras como universais lingüísticos.
Para sistematizar essa postura típica do método humanista, Nebrija retoma os estudos
clássicos e aplica as categorias universais de Aristóteles, a substância e os acidentes,
para descrever as letras. Vejamos o que o próprio gramático sevilhano nos diz a
respeito:
“Que assi como los conceptos del entendimiento responden a las cosas que
entendemos, i assi como las bozes i palabras responden a los conceptos, assi
las figuras de las letras han de responder a las bozes. Por que se assi no
fuesse en vano fueron halladas las letras, i la escriptura no menos seria falsa
... Assi que sera este el primero principio el qual ninguno que tenga seso
comum puede negar: que las letras i las bozes i los conceptos i las cosas de
ellos han de concordar.”
(NEBRIJA. Reglas de orthographia fol. 3V. Apud ESPARZA TORRES:
1995, p. 76)
Entre os conceitos figura de letra e voz, temos, aqui, uma relação de similitude.
Nebrija distingue a substância e os acidentes das letras, como princípio configurador da
realidade. Como acidentes da letra, destaca a figura, o poder, o parentesco, e a ordem8.
Por ordem, o gramático espanhol compreende a propriedade das letras de se antepor e
pospor umas às outras. A partir desse acidente, o autor explica a capacidade das letras
de referirem-se às coisas do mundo ou aos conceitos do pensamento, sempre que
devidamente ordenadas no interior da palavra. Com o acidente parentesco, Nebrija
acomoda as possíveis variantes que hoje chamamos alofonéticas. Descrito como um
fenômeno que explica a corrupção das línguas, o parentesco é resultado da proximidade
de alguns sons com outros. Através dele, falantes de línguas estrangeiras, por exemplo,
por influência de sua própria língua materna, desviam-se do padrão de pronúncia e de
7
ESPARZA TORRES, Miguel Ángel. Idem, p. 77.
8
ESPARZA TORRES, Miguel Ángel. Idem, p. 135.
escrita de uma língua original, à medida que não a utilizam como um falante nativo.
Assim, as variações de natureza alofonética são incorporadas ao modelo universalista,
de tal modo que os conceitos scribendi ratio e loquendi ratio coincidam perfeitamente.
O acidente de letra parentesco é capaz de acolher e domesticar as irregularidades no
plano fônico.
A figura da letra (ou pintura gráfica) é, nesse modelo, como dissemos, o acidente
pelo qual se representa graficamente a voz: “tenemos de escrivir como pronunciamos, i
pronunciar como escrivimos, por que en otra manera en vano fueron halladas las letras”,
diz o gramático sevilhano9. O poder das letras identifica e concentra, segundo Esparza
Torres10, a substância de cada letra, uma vez que é responsável por articular uma figura
de letra a uma dada pronúncia, isto é, a um som.
Esse quadro conceptual e metodológico orienta a posição normativa de Nebrija,
interessado em fixar uma norma padrão ao vernáculo. Figuras de letras associam-se a
determinados sons, a pronúncias específicas. Quando as pronúncias de uma mesma letra
divergem, devem ser tratadas como um fenômeno de “corrupção” da língua, que jamais
alcança ou altera a figura da letra, ou a sua substância, conceito esse “incorruptível”,
que valida o modelo humanista e as similitudes que o alimentam.
2.5. O metatermo letra no capítulo De la ortographia, da gramática dominicana de
1560
Retomemos, então, os problemas colocados anteriormente. O que explica o fato
de Santo Tomás ocupar quase metade do seu capítulo, destinado à ortografia, com
descrições das partes do discurso e da oração? Quais as motivações do autor nessa
abordagem específica de nosso termo-objeto? O capítulo De la ortographia, na
gramática dominicana, do modo com está estruturado, contextualiza uma acepção
particular do termo letra na rede conceitual aí sistematizada? Poderemos reconhecer,
desse ponto de vista, uma descontinuidade no tratamento do termo em questão, da
primeira para a segunda gramática quéchua, produzidas no século XVI?
A hipótese interpretativa deste trabalho baseia-se na idéia de que as concepções
lingüísticas de Nebrija, no tocante às letras, subsidiam as abordagens descritivas de
9
ESPARZA TORRES, Miguel Ángel. Idem, Ibidem.
10
ESPARZA TORRES, Miguel Ángel. Idem, p. 85.
Santo Tomás. No que concerne ao capítulo De la ortographia, nossos levantamentos
atestam uma proximidade do termo letra em relação a descrições de ordem
morfossintática e sintática, exatamente como faz Nebrija, ao considerar as letras como
universais lingüísticos, aproximando-as, assim, a outros universais lingüísticos, como
dicción e oración. Talvez esteja, aí, uma boa explicação para o fato de Santo Tomás
tratar, indiscriminadamente, letras, palavras ou termos, partes do discurso e oração, em
um único capítulo destinado à ortografia.
Será que o dominicano não estaria nos apresentando, nesse capítulo introdutório,
os mesmos universais lingüísticos de Nebrija, como uma espécie de fundamento para a
descrição gramatical desenvolvida posteriormente? Se assim o for, letra, em Santo
Tomás, poderá ser lida como som, como informação de natureza grafemática ou
morfemática e, mais do que isso, como um universal lingüístico capaz de traduzir,
quando ordenado no seio da palavra, a estrutura racional humana e a estrutura
ontológica das coisas no mundo, bem ao gosto da estética universalista do
Renascimento.
Como último argumento em defesa dessa hipótese interpretativa, propomos uma
análise das variantes alofonéticas descritas por Santo Tomás, no mesmo capítulo, De la
ortographia, às páginas 18 e 19. A citação é extensa, mas significativa:
“es de notar una sola cosa que me parece ser necessaria advertir a los
lectores y auditores nuevos, que al principio comiençan a aprenderla y
tratarla (a língua quéchua), porque no estando los tales advertidos en ello
podríanse enganar y tener unos términos por otros, por la distincta
pronunciación que en algunos dellos suele aver: por tanto, es de notar que
muchos términos los pronuncian los indios de una provincia distinctamente
que los de otra. Exemplo: unos indios de una provincia dizen xámuy que
significa ‘venir’; otros en otra provincia dizen hámuy en la misma
significación; unos en una provincia dizen çára, que significa ‘trigo’; otros
en otra dizen hára en la misma significación; unos en una provincia dizen
xúllull, que significa ‘en verdad’; en otra dizen súllull, que significa lo
mismo; unos dizen póri, que significa ‘andar’; y otros en otras provincias
dizen póli en la misma significación [.] Cóai dizen unos, que significa
‘dame’; otros dizen cómay,que significa lo mismo. Item dizen en unas
provincias los naturales delas macáuay, que significa ‘hiéreme’,
pronunciando aquella u vocal; otros en otras dizen macámayen la misma
significación . Y lo mismo se dize de otros muchos términos, que siendo los
mismos los pronuncian y profieren / [fol. 2] com diversas letras y en
diversa manera, no porque sean distinctos ni de distincta significación sino
por la distincta manera de pronunciarlos; lo qual procede de un defecto
general y común en todas las naciones y lenguas del mundo, donde vemos
que una misma lengua hablada de diversas naciones y gentes, cada uno la
habla y pronuncia conforme a la pronunciación de la suya propria materna,
como vemos en la lengua latina: que el de nación portugues[a], la pronuncia
de una manera, y de outra el castellano; y de distincta que ambos el francés ;
y assí de todas las demás naciones que la pronuncian cada uno a su manera,
no porque ella sea en si distincta sino porque cada nación, como está dicho,
la profiere y pronuncia conforme a la pronunciación de la suya. Lo mismo
acontesce acá en lengua general de los indios, que quando la hablan los
indios de las provincias (a quien ésta no es natural) muchos nombres y
términos della los pronuncian y profieren cada uno conforme a la
pronunciación de su propria materna y natural lengua; pero, aunque se
pronuncie assí distinctamente, toda es una y de una misma significación.”
(SANTO TOMÁS: [1560] 1995, pp. 18-19)
Com efeito, segundo Cerrón-Palomino11, esta é a primeira informação sobre
variação dialetal de que dispomos sobre o quéchua, estruturada, na sistematização
própria do dominicano, a partir da descrição de variantes que, modernamente,
definiríamos como alofonéticas. É significativo observar que Santo Tomás compreende
como “defecto general” as diferentes pronúncias observadas para uma mesma palavra
quéchua. O dominicano descreve as variações alofonéticas, como seu mestre Nebrija,
como um efeito comum da corrupção lingüística propiciada pelo acidente de letra
parentesco. Embora não o enuncie textualmente, Santo Tomás faz uso da idéia de
parentesco, tal como Nebrija, para justificar as variações lingüísticas aí descritas. As
diferentes pronúncias dos termos indicados são explicadas pela influência que a língua
materna impõe aos diversos falantes do quéchua na condição de estrangeiros. Validada
a argumentação, apenas os falantes nativos do quéchua poderiam pronunciá-lo sem
“defecto”. A expressão “defecto general”, utilizada pelo dominicano para caracterizar o
11
CERRÓN-PALOMINO, Rodolfo. 2003. Lingüística quechua. Cuzco: Centro de Estudios Regionales
Andinos ‘Bartolome de las Casa’, pp. 84-85.
evento que descreve, indica que Santo Tomás, como Nebrija, concebe o fato descrito
como uma corrupção da pronúncia autorizada.
Desse modo, ao utilizar o critério do parentesco para justificar e acomodar as
variações alofonéticas apontadas, o missionário assume, junto a Nebrija, que a cada
letra corresponde um único som. Outras pronúncias, associadas a uma mesma figura de
letra, deverão ser compreendidas como desvio da língua ideal. Essa postura do
dominicano aproxima-o, uma vez mais, do quadro universalista de Nebrija no tocante às
letras. A idéia veiculada pelo acidente parentesco, presente na argumentação
dominicana, é mais uma evidência de que o tratamento dado ao nosso termo-objeto,
nesse contexto, é particular. No texto anônimo, diferentemente do que observamos aqui,
não há quaisquer referências explícitas a variações de ordem alofonética.
As relações de analogia entre letra e som, na emergência da tradição gramatical
quéchua, ajustam-se bem à necessidade de formalizar uma escrita para a língua-objeto,
preocupação central entre os autores do método humanista. Fixar figuras de letras e
sons, de maneira unívoca, formaliza uma estratégia de cunho normativo bastante
eficiente no contexto da colonização peruana.
3. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os levantamentos e as análises empreendidas neste trabalho identificam
continuidades e descontinuidades no tratamento do termo letra na emergência da
tradição gramatical quéchua no século XVI.
Constatamos que 40,3% das ocorrências do nosso termo-objeto, nos dois
contextos examinados, no dominicano e no jesuítico, designam informações
morfemáticas, enquanto uma porcentagem menor de ocorrências designa informações
fonético-fonológicas e grafemáticas, 24,5% e 17,5%, respectivamente. A maior
proficiência do termo letra designando informação morfemática é coerente em um
modelo descritivo de natureza essencialmente morfossintática e registra uma
continuidade no tratamento de nosso termo-objeto nas redes conceituais formalizadas
para as duas primeiras gramáticas produzidas sobre o quéchua.
Há, entretanto, descontinuidades metodológicas no que diz respeito ao
tratamento desse metatermo gramatical. No texto anônimo de 1586, não há evidências
textuais, como no capítulo De la ortographia, de Santo Tomás, que permitam uma
interpretação do termo letra mais aproximada do quadro metodológico do humanismo.
A metodologia muito mais econômica e normativa da segunda gramática quéchua,
como conseqüência inequívoca dos trabalhos do Terceiro Concílio Limenho, talvez
encaminhe um modelo gramatical mais prático, mais voltado para a sistematização da
escrita e da fala quéchua, e menos afeito a aproximações de natureza universalista. Na
gramática dominicana, ao contrário, observamos, no capítulo destinado ao estudo das
letras, a presença recorrente dos universais lingüísticos enumerados por Nebrija, além
de reconhecermos o uso do conceito parentesco para justificar e acomodar as variações
alofonéticas mencionadas. Essas constatações, ainda que por hipótese, aproximam
nosso termo-objeto das concepções universalistas típicas do Renascimento, no contexto
dominicano.
A melhor análise, do nosso ponto de vista, para o problema da descontinuidade
do tratamento do termo letra na emergência da tradição gramatical quéchua, deve ser
feita em termos de escala. Parece-nos bastante apropriado assumir que o texto
dominicano aproxima-se bem mais, em escala, do ideário universalista que enquadra a
concepção de língua e linguagem no modelo humanista de Nebrija. Por outro lado, o
texto anônimo de 1586 afasta-se, em escala, dessa concepção, utilizando o modelo das
oito partes do discurso de forma mais mecânica, apartada das diretrizes filosóficas e
universalistas originais. Assim, o termo letra, em Santo Tomás, aproxima-se, em escala,
do termo letra em Nebrija, enquanto universal lingüístico. Na gramática anônima,
entretanto, nosso termo-objeto afasta-se das concepções universalistas.
Por fim, gostaríamos de ressaltar que, no contexto de produção e circulação da
gramática dominicana, é bastante significativo que termos como letra ou língua sejam
enquadrados em uma metodologia de viés universal. Como indicamos na introdução
deste trabalho, os dominicanos opunham-se, no primeiro momento da pós-conquista
peruana, aos encomendeiros que disputavam o controlo político e econômico na colônia
em detrimento dos interesses da coroa castelhana. Os encomendeiros defendiam, a
despeito do que determinava a empresa colonial, a escravização dos nativos e a posse
definitiva dos territórios conquistados. Com a conhecida rebelião dos encomendeiros,
entre 1546 e 1548, deflagrada a partir do assassinato do vice-rei peruano, Blasco Núnez
Vela, a retórica dominicana de exaltação ao índio, contra os interesses escravocratas dos
encomendeiros, torna-se poderosa aliada da coroa castelhana no Peru. Nesse momento
da colonização, os dominicanos ganham poder e influência nas decisões religiosas,
políticas e administrativas da coroa.
O maior representante do discurso dominicano de exaltação ao índio foi, sem
dúvida, Bartolomé de Las Casas, amigo pessoal de Santo Tomás. Ambos utilizavam
argumentos lingüísticos para demonstrar que os nativos americanos eram seres
humanos, racionais, detentores, portanto, de uma alma imortal, fato que impedia, por si
só, que os indígenas fossem escravizados. Esses argumentos lingüísticos, desenvolvidos
por Santo Tomás no prefácio da primeira gramática quéchua, partiam da idéia de que as
línguas ameríndias, por organizarem-se de maneira similar à língua latina ou à língua
castelhana, constituíam a prova cabal da racionalidade do homem americano. Não
temos a pretensão de descrever, em detalhes, esses argumentos, dados os limites
específicos deste trabalho. No entanto, é significativo observar que, na retórica
dominicana, se o nativo peruano é um ser dotado das qualidades universais que
caracterizam o humano, sua língua igualmente o será. O modelo universalista das partes
do discurso, que remonta à Idade Clássica e perpassa toda a Idade Média, adequa-se, na
gramática dominicana, à necessidade de descrever o homem e a língua quéchua como
entidades universais. Não causa espanto, nesse contexto, que o termo letra sofra os
reflexos naturais desse gesto metodológico.
A situação de produção e circulação da segunda gramática quéchua é bastante
diversa. Controlada a rebelião dos encomendeiros, restituído o controle burocrático e
administrativo da coroa castelhana no Peru, os dominicanos perdem influência política e
religiosa na colônia. Outro grupo de missionários é, então, convidado a gerenciar as
tarefas catequéticas nos Andes. Os jesuítas, representados, sobretudo, pelo padre José de
Acosta, organizam e lideram o Terceiro Concílio Limenho, fórum responsável pela
elaboração do texto anônimo de 1586. Nesse outro momento histórico, denominado
como Pacificação, os objetivos principais da empresa colonial visam a converter,
pacificar e disciplinar os nativos, que se mostram, na maioria das vezes, irredutíveis à
ideologia monárquica católica. Desse modo, afastada a ameaça concreta ao controle
político e econômico da coroa sobre terras peruanas, o discurso humanista utópico dos
dominicanos torna-se inadequado. Acosta afirma exatamente isso, de maneira velada,
em Historia natural e moral de las Indias12. Nesse contexto, portanto, a necessidade de
12
ACOSTA, P. Joseph de. 1961 [1590] Historia natural y moral de las Indias (com
prefácio de Edmundo O’ Gorman). México – Buenos Aires: Fondo de Cultura
Econômica, p. 373.
situar o homem e a língua quéchua como entidades atravessadas por valores universais,
tal como faziam os dominicanos, está, em grande parte, superada.
Reconhecemos, por fim, que as hipóteses interpretativas aqui apresentadas não
esgotam o problema em questão e exigem, ainda, desenvolvimentos mais detalhados.
Entretanto, as evidências e as análises aqui esboçadas sugerem um caminho a ser
percorrido. Parece-nos bastante razoável admitir, enfim, que o termo letra, na
emergência da tradição gramatical quéchua no século XVI, sujeita-se a tratamentos
lingüísticos diferenciados, que refletem, por sua vez, contextos políticos específicos.
Dessa forma, as continuidades e descontinuidades no tratamento dado ao nosso termoobjeto sinalizam o movimento próprio do fazer científico, enquanto produto histórico.
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