Cabe ou não cabe

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As realizações do verbo caber no processo de Aquisição de Linguagem: um
estudo de caso
Marian Oliveira (Uesb-Unicamp)1
Resumo: Neste trabalho, pretendemos apresentar as realizações do verbo irregular caber, no
processo de aquisição do português do Brasil como língua materna. Para tanto, analisaremos
dados, coletados longitudinalmente num período de mais ou menos um ano, considerando
que, quando da coleta da primeira amostra aqui analisada a criança em questão contava com
2 ;11.15, ao passo que a última amostra foi coletada quando a criança estava com 3; 09. 03.
Para análise dos dados de M, informante de classe média alta e sexo feminino, nos
orientaremos pelos pressupostos do Interacionismo, proposta de orientação estruturalista, que
busca explicar a relação da criança, em processo de aquisição, com a língua e o papel da fala
do adulto na fala da criança, tomando o diálogo como unidade de análise em aquisição, (cf.
De Lemos, 1981-1982).
1. Sobre Verbo e Flexão verbal
Poderíamos citar vários trabalhos que descrevem o sistema verbal português. Aqui,
nos restringimos em apresentar a proposta tradicional para a flexão dos verbos no português e
a proposta descritiva. Sigamos, pois, com as propostas.
1.1 Sobre Verbo e Flexão verbal: proposta tradicional
O
termo
“concordância”
alude
a
noções
como
harmonia,
conciliação.
Independentemente de qualquer alusão a que faça o termo, esse é um tema que tem lugar
específico nos estudos gramaticais. E, no português, pode-se falar em flexão de gênero de
número e de grau no caso dos nomes. Também é obrigatória a concordância número-pessoal,
que ocorre quando do uso de um verbo que deve manter uma flexão que denota a relação
entre número / singular ou plural do verbo com a pessoa a que está relacionado.
Cunha e Cintra (1985, p. 367) definem verbo como “[...] uma palavra de forma
variável que exprime o que se passa [...]” e afirmam que o verbo se flexiona em número,
pessoa, modo, tempo, aspecto e voz. Eles ainda afirmam que “a solidariedade entre o verbo e
o sujeito, que ele faz viver no tempo, exterioriza-se na CONCORDÂNCIA, isto é, na
variabilidade do verbo para conformar-se ao número e à pessoa do sujeito (p.485)”.
1
Aluna do Programa de Pós-Graduação em Lingüística da Unicamp.
Segundo esses autores, o verbo se estrutura em torno de um radical, parte invariável,
ao qual se junta uma terminação em que participa ao menos um dos elementos a seguir: vogal
temática, sufixo modo-temporal e desinência número-pessoal. (cf. p. 476)
Para Bechara (2001, p. 209), o “verbo é a unidade de significado categorial que se
caracteriza por ser um molde pelo qual organiza o falar seu significado lexical”. Baseado em
Jakobson (1970), afirma o gramático que essa palavra se combina a morfemas de tempo,
modo número e pessoa, categorias gramaticais. Acrescenta que, em português, estas
categorias não se separam, isto é, as categorias de número e pessoa estão ligadas entre si,
ocorrendo o mesmo com as de tempo e modo. A categoria de número é caracterizada por
afetar o número de participantes do ato comunicativo.
Por outro lado, Mira Mateus et alli (1983) apresentam os morfemas dos quais os
verbos são formados em: radical, vogal temática e os morfemas de tempo e pessoa.
De um modo geral, as gramáticas classificam os verbos em regulares, irregulares,
defectivos e abundantes e, para justificar tal classificação, explicam que os regulares
flexionam-se de acordo com o paradigma, ou modelo de um tipo comum de conjugação.
Dessa forma, são três as conjugações verbais, caracterizadas como primeira, cuja vogal
temática é –a, segunda com vogal temática em –e, e terceira, com vogal temática –i. Os
verbos que se afastam desse paradigma são chamados irregulares. Defectivos são os que não
apresentam certas formas e os abundantes, verbos que possuem duas ou mais formas
equivalentes.
Dessa forma, um verbo regular como cantar, por exemplo, a depender do tempo,
modo, número e pessoa pode se apresentar com as seguintes desinências se estiver conjugado
na primeira pessoa do plural do imperfeito do subjuntivo: cant + a+sse+mos. Neste caso,
dizemos que este verbo está flexionado em toda a sua plenitude, apresentando um radical
regular cant, uma vogal temática – a que o caracteriza como verbo da primeira conjugação,
uma desinência modo-temporal –sse que indica o imperfeito do modo subjuntivo, e uma
desinência – mos que caracteriza a primeira pessoa do plural nós. Se, por outro lado,
segmentássemos da mesma maneira um verbo classificado como irregular, tal como o verbo
caber, teríamos uma modificação no interior do radical: coub+e+sse+mos. Note-se que as
vogal temática e as desinências têm comportamento semelhante nos dois casos, mas que o
radical do segundo verbo apresenta uma forma diferente daquela que se espera, alternando –
coub para – cab.
Diante de situações desse tipo, os gramáticos classificam o verbo cantar como regular
e o verbo caber como irregular. Contudo, propostas outras têm apresentado uma classificação
e explicação mais coerente para tal fenômeno.
1.2 Sobre Verbo e Flexão verbal: proposta descritiva
Em 1970, Mattoso Câmara faz uma descrição da “estrutura da língua portuguesa” e,
nela, uma descrição do verbo. Sua descrição é feita a partir de duas perspectivas, uma em que
ele parte dos verbos regulares, chamados por ele de “padrão geral”; e outra em que ele
descreve os irregulares, ou “padrão especial”.
No quadro flexional dos verbos, descrito por Câmara Jr. (1992), existem, portanto,
treze sufixos modo-temporais e seis número-pessoais. Estes últimos indicam, conforme o
autor, a pessoa do falante, ou P1, o falante e mais alguém, ou P4, um ouvinte, ou P2, e mais
de um, ou segunda pessoa do plural, ou P5, um outro ser distinto do falante, ou P3; um ou
mais seres distintos do falante, ou P6. Essa flexão se distribui nos vários tempos em que os
verbos podem ser flexionados. O quadro a seguir resume um pouco da proposta do autor para
o padrão geral dos verbos:
PESSOAS
P1
P2
SNP
SNP
GERAL
ALOMÓRFICO
Ø
-s
-o
IdPr
-i
IdPt2
-i
IdFt1
-ste
IdPt2
Ø
Sb1
P3
Ø
-u
IdPt2
P4
-mos
-
-
-stes
IdPt2
-des
Sb2Ft
-i
Sb1
P5
P6
-is
-m
/uN/
Sempre que estiver
diante de /a /
Quadro 5: resumo dos Sufixos Número Pessoal (SNP) gerais e alomórficos
(adaptado de CÂMARA Jr., 1992, p. 108 -109)
Como bom estruturalista que foi, o seu interesse incide no verbo enquanto vocábulo
mórfico, que pode ser subdividido em suas unidades menores, os morfemas. Assim, para os
chamados irregulares, Câmara Jr. propõe que sejam denominados de padrões especiais,
ratificando que eles devem ser entendidos como um desvio do padrão geral morfológico, uma
vez que também são passíveis de uma padronização.
Segundo o pesquisador, a irregularidade nesses verbos pode estar relacionada ao
sufixo flexional, bem como a mudanças que ocorrem no interior do radical, criando,
conseqüentemente, uma série de padrões morfológicos uma vez que passa a contribuir para as
noções gramaticais.
Seguindo em sua análise ele aponta a existência de oposição entre o radical IdPt2,
IdPt3, Sb2Pt e Sb2Ft e as demais formas verbais. Tal diferença transita entre uma mudança no
tema (radical + vogal temática) a mudanças profundas no radical. Neste caso, todos os verbos
pertencem à segunda conjugação, mas a vogal temática deixa de ser uma vogal média
fechada, realizando-se como média aberta. Além disso, as formas P1 e 3 de IdPt2 são
rizotônicas sem sufixo ou vogal temática. Ele salienta ainda que se retirarmos o sufixo –ste da
segunda pessoa do singular do pretérito perfeito do indicativo (IdPt2), chegaremos ao tema
teórico dos verbos
Também Pontes, em 1972, faz uma análise da estrutura do verbo. A autora propõe-se a
analisar o português coloquial, partindo da fala espontânea de falantes cultos cariocas. Para
ela, no sistema verbal, a flexão começa na vogal temática (VT). A partir da consideração dos
tempos verbais, ela estabelece três paradigmas para o sistema flexional de número e pessoa:
a) paradigma com distinção de três pessoas flexionadas, que inclui as formas
empregadas no imperfeito do indicativo, presente, pretérito e futuro do subjuntivo
e infinitivo. Ela exclui o tu e o vós e nota que há uma neutralização entre P1 e P2
nestes tempos. Segundo ela, essa neutralização só ocorre nos verbos regulares,
uma vez que nos irregulares a distinção é feita pela VT;
b) paradigma com distinção de quatro formas flexionadas, que tem o presente e o
pretérito perfeito do indicativo inclusos. Esse se distingue daqueles, porque não
apresenta neutralização entre P1 e P2 que se realizam normalmente;
c) paradigma sem distinção de pessoa, composto pelas formas nominais gerúndio e
particípio.
Em sua gramática descritiva do Português Padrão do Brasil Escrito (PPBE), Perini
(2000) admite que, levando em consideração os traços morfossintáticos, é fácil estabelecer um
conceito para esse lexema: “verbo é a palavra que pertence a um lexema cujos membros se
opõem quanto ao número/pessoa” (p. 320), sendo a única palavra que pode se constituir em
predicado de uma oração. Por fim, adota a seguinte definição, considerando o radical do
verbo: “verbo é toda palavra cujo radical pode co-ocorrer com os sufixos de modo-tempo e
pessoa-número”. (p. 321)
Quando trata da concordância, ele o faz rotulando-a como uma espécie de regência,
sendo um dos tipos de concordância aquele em que um sujeito apresenta traços comuns com o
seu predicado através da CV. As pessoas são os itens em que se manifesta melhor a
concordância. Ele revê os casos particulares de violação da regra de concordância e, como
não poderia deixar de ser, dada a orientação gerativista dessa sua gramática, ele explica os
“erros” de concordância, a partir das propostas de “restrições” que tal teoria postula.
Seguindo o raciocínio de Câmara Jr., o verbo caber estaria incluído entre aqueles do
padrão especial, precisamente, se incluiria entre os que estabelecem uma oposição entre o
radical de IdPt2, IdPt3, Sb2Pt e Sb2Ft. Neste caso, o verbo em questão se alternaria em pelo
menos três radicais: cab, caib e coub. Assim, temos uma forma em que há um –e átono final,
com confluência entre as duas formas número-pessoais: para o verbo caber há o radical coub
como em (tu coub+e+ste) e (ele coub+e), sendo –e a desinência número-pessoal que se
confluem nos dois casos, mas que são pronunciadas como média aberta no primeiro caso e
como média fechada ou mesmo como vogal alta no segundo.
Esse mesmo verbo pode ter ainda o seu radical alargado, mediante uma ditongação
com um /i/ assilábico com a vogal do radical, fazendo surgir para o radical cab um outro caib,
como em ( eu caib+o) do presente do indicativo e ( que eu caib+a) do presente do subjuntivo.
Diante disso, podemos afirmar que o radical cab (ele cab+e) se modifica em mais dois
radicais - coub e caib – incluindo-se, portanto, no grupo dos verbos que pertencem ao padrão
especial, ou verbos irregulares.
De todo o exposto sobre o verbo e / ou concordância verbal, percebe-se que esse é um
tema que tem suscitado reflexões e discussões por parte, principalmente, dos lingüistas. Notese que, nesta seção, há posicionamentos que transitam do estruturalismo mais ortodoxo, por
exemplo em Mattoso Câmara, a elaborações cuja orientação tem base gerativista, como em
Perini (2000).
2. Sobre Aquisição de Linguagem
Como área legitima de investigação da linguagem, a Aquisição de Linguagem busca
descrever, analisar e explicar a fala da criança como objeto de pesquisa, uma vez que como se
pode perceber, no dia a dia, os enunciados infantis diferem dos do adulto. Dessa forma, não é
exagero afirmar que, a especificidade da fala da criança é o que a constitui como objeto de
estudo em aquisição de linguagem, até porque esta é uma questão central para o ser humano,
isto é, estudar como a linguagem emerge na criança é uma questão que até os leigos se
aventuram em interrogar.
Contudo, nos debates sobre o tema, este nunca foi um lugar de parcimônia, suscitando
embates e abrindo fossos teóricos, muitas vezes, intransponíveis. Não entraremos aqui no
mérito dessa questão, visto não ser este o objetivo desse trabalho, porém é necessário, até para
justificar a filiação teórica desse trabalho, que citemos as duas principais correntes que
atualmente têm se dedicado ao estudo da aquisição da linguagem pelo infante, ou seja, por
aquele que, embora ainda não fale por isso mesmo um infans, em algum momento do seu
desenvolvimento, será um falante em toda a sua potencialidade, quais sejam Interacionismo e
Gerativismo.
Neste trabalho, trataremos da aquisição da linguagem a partir dos pressupostos
teórico-metodológicos do Interacionismo, sobre o qual em seguida abordaremos. Mais
precisamente, analisaremos os dados a partir de um viés interacionista proposto, no Brasil,
por Cláudia Lemos (1981-1982) e amplamente desenvolvido pelos pesquisadores do Grupo de
Pesquisa em Aquisição da Linguagem (GPAL), formado por pesquisadores em sua maioria
professores do IEL-Unicamp. Antes, porém, uma rápida passagem pelo Gerativismo.
2.1 Sobre Aquisição de Linguagem: a proposta gerativa
Mesmo considerando que até os anos de 1950, o Estruturalismo dominou inconteste na
Lingüística, inspirado no racionalismo e na tradição lógica dos estudos da linguagem,
Chomsky (1957), antes discípulo dessa linha de pensamento, propõe uma teoria gramatical,
centrando seu olhar na sintaxe, pois, segundo ele, esta constituía e constitui um nível
autônomo e central para a explicação da aquisição da linguagem.
Parte-se, então, do método dedutivo para dar conta do que é abstrato: de um axioma e
um sistema de regras, para se chegar ao concreto, que são as frases existentes na língua. Com
isso, segundo Chomsky (1959), a lingüística não apenas descreve, mas explica
cientificamente a língua.
Ao tentar dar conta do que é abstrato, o gerativismo parte de uma natureza mentalista,
ou seja, da “concepção de que o seu objeto de estudo consiste num sistema de regras e
princípios radicados em última instância na mente humana”, assinala Raposo (1992, p. 25).
Assim, preocupa-se com o aspecto psicológico e com a aquisição da linguagem.
O modelo de princípios e parâmetros parte da premissa de que apenas os homens
aprendem e falam as línguas naturais, donde se conclui que as propriedades da linguagem são
determinadas pela mente humana.
Nos estudos gerativistas acredita-se que os produtos do pensamento, inclusive a
linguagem, radicam na natureza biológica dos seres humanos, tal como as estruturas atômicas,
pois segundo Chomsky (1966a), os que negam essa questão o fazem tão somente porque
consideram apenas o seu caráter social, por isso vêem a linguagem como um produto
convencional e não natural.
Chomsky (1966b; 1975) define o programa de investigação da Gramática Gerativa
(GG) a partir de questões do tipo: qual é o conteúdo do sistema de conhecimentos do falante
de uma determinada língua particular, isto é, o que existe na sua mente que permite que fale e
compreenda as expressões e tenha intuições de natureza fonológica, sintática e semântica
sobre sua língua? Como esse sistema de conhecimento se desenvolve na mente do falante e o
que se pode pressupor que a criança traz de conhecimento para explicar o desenvolvimento da
língua no processo de aquisição? Como o sistema de conhecimentos adquiridos é utilizado
pelo falante e quais sistemas físicos no cérebro servem de base ao sistema de conhecimentos
lingüísticos?
As questões referentes ao conteúdo do sistema de conhecimento do falante, bem como
referentes à aquisição, são centrais nas discussões gerativas, pois, para os gerativistas,
qualquer teoria lingüística deve dar conta da aquisição da linguagem pela criança.
Uma questão, entretanto, é crucial para os gerativistas: como a gramática se
desenvolve na mente do sujeito falante, isto é, como o indivíduo adquire a língua, questão
essa já bastante debatida na história do pensamento filosófico e lingüístico ocidental.
Busca-se descobrir qual é o papel da mente no processo de aquisição da linguagem.
Alguns acreditam que isso decorre de fatos externos à mente, pelo contato da criança com o
mundo, com a fala de outras pessoas e suas intervenções nela. Os que assim se posicionam
acreditam que a linguagem é uma questão de aprendizagem.
A tradição racionalista, na qual Chomsky (1966) se inscreve, defende que a mente
desempenha papel fundamental em tal processo. Acredita-se, conforme Raposo (1992, p. 35),
que “as propriedades centrais da linguagem são determinadas por princípios e estruturas
mentais e conteúdo especificamente lingüístico” que funcionam como o alicerce durante a
aquisição. Essa posição, contudo, não nega o papel do meio ambiente na aquisição. Ao
contrário, considera que a fala dos que rodeiam a criança nesse período, bem como as
interações verbais da criança, são fundamentais para iniciar o mecanismo de aquisição,
embora não determinem as propriedades finais atingidas pelo sistema gramatical dela.
Considera, ainda, que os meios lingüístico, emocional e educativo determinam o grau de
desenvolvimento da GU pela criança.
Os gerativistas, então, buscam elucidar questões como “o problema da projeção”, ou
seja, qual a relação entre “os dados primários”, que não exigem propriedades mais complexas
da criança, durante a aquisição, e o sistema final da competência do adulto, sistema esse mais
complexo.
Disso se conclui que há um mecanismo mental inato de aquisição que estabelece uma
ligação entre os dados primários e esse sistema, procedendo à projeção quantitativa e
qualitativa que o caracteriza. Logo, a resolução para o problema da projeção está em
determinar “as responsabilidades respectivas do mecanismo de aquisição e dos dados
primários no processo de aquisição e desenvolvimento do sistema final da competência do
sujeito falante”, (RAPOSO, 1992, p. 38).
Para Chomsky (1981), os dados primários são insuficientes para explicar o sistema
final. Ele acredita que a mente põe à disposição da criança um conjunto de princípios
lingüísticos complexos: LAD - Language Aquisition Device - ou GU, que guia a aquisição e o
desenvolvimento da linguagem.
Estudos voltados para essas indagações endossam a crença de Chomsky (1981) sobre a
pobreza dos estímulos iniciais e confirmam que o meio ambiente lingüístico de uma criança,
em fase de aquisição, é formado por expressões gramaticais da língua - informação positiva –
que fazem com que ela desenvolva a gramática interiorizada, o que é informação negativa; as
correções, por sua vez, têm papel inexpressivo nesse processo. Donde surge outro
questionamento: como a criança desenvolve o conhecimento negativo acerca de uma ou outra
expressão que não existe na sua língua? Essa questão só pode ser respondida se for levada em
conta a existência de um mecanismo inato, complexo, que possibilite a aquisição e o
desenvolvimento da linguagem.
A GU, portanto, resulta da soma dos princípios lingüísticos geneticamente
determinados, específicos e uniformes à espécie humana. Trata-se de algo biológico que
evolui e culmina na gramática final do adulto. Para Chomsky (1981), é o estado inicial da
faculdade da linguagem.
Dessa maneira, o problema que surge na construção de uma GU é conciliar a
diversidade das línguas com a rigidez do desenvolvimento das gramáticas individuais. Ora, a
GU deve ser flexível, para que possa acomodar a variação entre as diferentes línguas, mas
rígida o suficiente para explicar as propriedades específicas, características do conhecimento
final do falante.
Inicialmente, com a Teoria Standard (1965), o Gerativismo apenas descrevia a língua.
Devido a muitas dúvidas e questionamentos que tal teoria suscitava, a insatisfação por parte
de seus próprios pesquisadores fez surgir a Teoria Standard Alargada, durante os anos 70. O
primeiro passo foi reduzir o número de regras categoriais de reescrita. Isso é feito por
Chomsky (1975) através dos princípios da teoria X-barra. Ele, então, propõe que os
fenômenos deixem de ser tratados de modo transformacional, passando à caracterização
através da relação entre o léxico e o sistema de regras de reescrita. Seguindo essa concepção,
a gramática tem um número distinto e autônomo de componentes, caracterizados por regras e
princípios que restringem a sua aplicação.
Em 1981, é proposto o modelo de Princípios e Parâmetros, que incorpora os resultados
daquela teoria. De um modelo de regras e princípios, eliminam-se as regras e mantêm-se
apenas os princípios.
A concepção de princípios universais da GU, entretanto, é modificada. A GU, nesse
modelo, tem dois tipos de princípios: princípios rígidos, invariáveis; e o princípio que
determina que as regras movem apenas constituintes sintáticos - Princípio de Dependência
Estrutural. Inclua-se, aí, também, um sistema de princípios abertos: os parâmetros, espécie de
comutadores lingüísticos.
A criança não é mais vista como um pequeno lingüista. Apenas quando todos os
parâmetros estão ligados, ela adquire uma “gramática nuclear”. Digamos, por exemplo, que
uma criança em fase de aquisição esteja exposta a uma gramática que contém um princípio
rígido que determina a existência da posição de sujeito, mas essa mesma GU não obriga o
preenchimento dessa posição, isso significa que existe um parâmetro que determina que essa
posição pode ser nula, isto é, não ser preenchida. Ou seja, o princípio é respeitado, pois a
posição é respeitada; ela existe, mas a criança pode ou não preenchê-la. Numa língua como o
inglês, por exemplo, o parâmetro não permite essa liberdade, isto é, a criança em fase de
aquisição não tem como escolher entre uma categoria preenchida vs uma categoria vazia.
Dessa forma, no período de aquisição, a decisão da criança depende de, na sua
experiência lingüística, ter sido exposta a dados positivos (+), ou negativos (-). Em relação à
questão acima, o falante do português fixa positivamente a informação de que pode preencher
ou não a posição de sujeito na sentença. Mas, o falante do inglês recebe um input negativo
que não toca no parâmetro da ausência, de evidência lingüisticamente contrária aos dados
primários.
Dada essa explanação, percebe-se que os problemas teóricos da postura gerativa dizem
respeito às formas das regras lingüísticas e suas restrições; à combinação e ordenamento das
regras em sistemas; à determinação das formas subjacentes sobre as quais operam; à
coexistência dos sistemas e, com o tempo, à mudança das regras e sistemas.
2.2 Sobre Aquisição de Linguagem: a proposta interacionista
Conforme de Lemos (1986), há várias décadas o termo interacionismo designa uma
posição epistemológica que se diferencia tanto do racionalismo quanto do empirismo,
assumindo “a interação entre o organismo humano e o ambiente [...] como matriz de
transformações qualitativas desse organismo, capaz, por isso, de explicar a gênese das
atividades mentais superiores e do conhecimento (de Lemos, 1986, p.231).”
Dessa maneira, o termo, em princípio, aplica-se a obras as mais variadas. Sem entrar
no mérito dos equívocos que essa abrangência possa gerar, pode-se afirmar que no campo das
investigações sobre a aquisição da linguagem, o interacionismo surge num momento em que
há um grande interesse voltado para o desenvolvimento humano. Trata-se de um debate
profícuo entre o empirismo, que vê a linguagem como resultante de um processo indutivo de
aprendizagem, e o inatismo, que propõe que o conhecimento da linguagem é inato e que a sua
aquisição ocorre via processo lógico-dedutível.
Segundo Pereira de Castro e Figueira (2006), Piaget postula a língua como um entre
todos os objetos de conhecimento alcançado pela criança. Conhecimento este que depende de
estruturas cognitivas construídas ao longo do desenvolvimento infantil. Ele defende uma
interação que, segundo as autoras, nada mais é do que uma relação entre o bebê e o objeto do
conhecimento. Contudo, a interação aqui se dá entre a criança e suas próprias sensações; o
sujeito não se separa do objeto, uma vez que não há consciência nem de si mesmo nem de
objetos. Apenas no estágio sensório-motor se darão as construções iniciais, nas quais o nível
da ação determina a função simbólica e/ou semiótica. Para Piaget, nos esquemas motores
estão as raízes da linguagem devido à sua função simbólica. Ao atingirem certo equilíbrio, os
esquemas motores passam a esquemas mentais o que leva ao surgimento da função semiótica
ou de representação. Piaget acredita num modelo de desenvolvimento cognitivo, e este
precede e determina o desenvolvimento lingüístico.
Ressalte-se que é no interacionismo de Vygotsky e Wallon, que privilegia a interação
da criança com o adulto que os estudos sobre aquisição, que se rotulam como interacionistas
ou sócio-interacionistas, se filiam. Contudo, é necessário dizer que aqueles autores estão
ausentes das reflexões teóricas de investigação em aquisição.
Contudo, a partir do momento em que se passa a considerar a relação entre a fala do
adulto e a fala da criança, a proposta piagetiana é colocada em xeque, sendo, pois, mais tarde,
ultrapassada por outras propostas. O interacionismo, modelo que se opõe ao behavorismo,
incorpora o sujeito e a língua como saída para o problema na descrição da fala da criança
considerando a sua relação com a língua. Já em 1981 e 1982, Cláudia Lemos considera tal
relação quando propõe que o diálogo entre a criança e o adulto seja tomado como unidade de
análise, conforme salientam Pereira de Castro e Figueira (2006).
À margem de propostas como esta, vários estudos em aquisição e sob o rótulo de
interacionistas pouco ou nada contribuem “para o entendimento da relação entre interação
social e desenvolvimento lingüístico” (De Lemos, 1986, p. 238). Tais propostas não
explicitam como “a interação modifica e amplia os recursos da criança, ou suas capacidades
iniciais, biologicamente dadas” (De Lemos, 1986, p. 241).
Pesquisadores, como de Lemos e tantos outros, elegeram o diálogo adulto-criança
como objeto de análise por detectarem nos enunciados dali resultantes as pistas necessárias o
entendimento da aquisição da sintaxe. Em de Lemos, entretanto, o interesse incide na sintaxe
dialógica que precede a sintaxe em si que se manifesta no enunciado. Para ela, nesse diálogo a
interpretação do adulto não se restringe a atribuição de um estatuto sintático à contribuição
infantil. O processo interpretativo constante e os processos dialógicos dessa interpretação
“ganham eficácia cognitiva a comunicativa”, por isso o diálogo é apontado como espaço para
“reflexão sobre os vários aspectos da construção da linguagem pela criança” (De Lemos,
1986, p. 244).
Se por um lado de Lemos (2000) avalia que há um reducionismo na dicotomia língua
vs fala e diacronia/sincronia na proposta de Ferdinand de Saussure (1916), é de um dos seus
axiomas – a língua tem ordem própria – bem como do que preconiza Jakobson (1974) que
parte a autora ao propor que na transição dos esquemas interacionais é impossível demonstrar
como certas estruturas se transformam em estruturas lingüísticas, cujas unidades detêm
operações próprias e específicas. Para ela, tanto em Saussure quanto em Jakobson o sujeito
está implicado na descrição de um estado de língua.
Conforme de Lemos a proposta piagetiana não explica como se dá a continuidade
entre os processos não lingüístico para o lingüístico. Além disso, em sua proposta Piaget
desconsidera o fato de a língua ter sua própria ordem.
A hipótese saussureana da não interferência do falante na língua ratifica a dicotomia
língua vs fala, porém nela, bem como na idéia de que o falante não tem completo domínio da
língua, percebe-se que o próprio Saussure interroga a posição do falante.
Problematizando ainda mais a relação estruturalismo vs interacionismo, verifica-se que
aquele acarreta em um problema para a fala e para a posição do falante na sua relação com a
língua, se se considerar que dizer que a língua é um sistema de signos implica na
reciprocidade significante vs significado e que a existência do significado prescinde a do
significante, pois é na relação de um signo com outros que a unidade se mantém.
Contudo, mesmo partindo-se do estruturalismo é possível reconhecer a fala da criança
como objeto de indagação, ou seja, como empiria possível em aquisição. Capturada pela
língua antes mesmo de falar, a criança confere à fala da mãe um lugar pelo qual é interpretada
e significada. É a mãe que lhe atribui intenções, sentido e referência. E nessa relação, a
mudança na aquisição da linguagem vai sendo identificada através das diferentes posições da
criança em uma estrutura.
Defende-se, então, o diálogo como a unidade de análise por excelência, uma vez que
há uma dependência estrutural da fala da criança em relação à do adulto, o que permite a
contemplação das relações entre língua, discurso e texto. Nessa relação, comparecem a língua
como funcionamento lingüístico-discursivo, o outro (a mãe) como instância discursiva e a
própria criança.
A depender do pólo que predomine nessa estrutura, as posições do sujeito se
diferenciam: quando há predominância da língua, há também a dominância da fala do outro;
quando a predominância é do outro há a dominância da língua em seu funcionamento, donde
emergem os erros; e quando quem predomina é a criança há, consequentemente, a dominância
da relação do sujeito com a sua própria fala e isso fica evidente nas retomadas e correções que
ela faz.
Assim, considerando-se que a aquisição da linguagem “é [...] a passagem do infans,
daquele que não fala para sujeito falante (De Castro (2006, p.1)”, compreende-se a
importância da consideração do diálogo nas investigações em aquisição uma vez que nas
vocalizações e balbucios reconhecem-se partes da fala adulta. Mesmo quando diferente, a fala
infantil é interpretada, pois a língua determina culturalmente seu percurso na aquisição.
Também aqui é possível resgatar Saussure já que, para ele, a língua é um objeto cultural,
formado pelo simbólico; precede o indivíduo.
Conforme Pereira de Castro e Figueira (2006), a noção de processos dialógicos
proposta por de Lemos inaugura mudanças radicais no interacionismo, sendo a especularidade
– incorporação de fragmentos da fala do adulto pela criança o processo que mais se destaca
em tal proposta, pois a fala da criança promove efeitos sobre o adulto que reconhece e
estranha, mas interpreta o enunciado da criança. Com isso surge uma questão a ser respondida
nos estudos de aquisição “qual o efeito da fala do adulto sobre a criança?”.
O diálogo mãe-bebê é marcado pela assimetria: inicialmente, só o adulto fala; é
também ele quem fala pela criança, na medida em que interpreta os gritos infantis como voz,
sendo, pois, tal atitude aquilo que abre o caminho para a aquisição da linguagem, para uma
relação da criança com a língua.
É nessa relação mãe-bebê que este se vê capturado pela língua, uma vez que devido a
sua ordem própria, a língua garante unidade à linguagem e captura o sujeito. Este, por sua
vez, uma vez capturado ele a registrará passivamente já que a aquisição não se dá num
processo em desenvolvimento como se a língua se construísse como um objeto de
conhecimento.
Para de Lemos (1994), na relação sujeito-objeto a criança é capturada por um
funcionamento lingüístico discursivo que a significa como sujeito falante.
Se por um lado, inicialmente, cabe ao adulto a sustentação do diálogo com a criança,
dando-lhe estruturação gramatical e semântico, já que as produções iniciais do infans são
destituídas de palavras relacionais, o que garante ao adulto o papel de interpretante, por
outro, é necessário, como adverte Figueira (1997) que se registre que o adulto nunca
conseguirá interpretá-lo com exatidão. Muitas vezes, imaginam-se o querer dizer da criança,
suas intenções o que pode acarretar em descrições/explicações pouco relevantes das emissões
sonoras da criança.
Em situações como essas o que ocorre é uma projeção semântica da intenção orientada
pelas crenças do interpretante que preenche de significado tais produções e só quando estiver
pronta para rebater uma interpretação equivocada a criança poderá se manifestar.
Naturalmente, não se pode desconsiderar que a língua em constituição na criança e constituída
no adulto abre espaço para múltiplas leituras.
2.2.1 Sobre Aquisição de Linguagem: a proposta interacionista e o estatuto do erro
Durante a fase de aquisição do sistema verbal é comum o aparecimento de formas que,
por vezes, levam o adulto primeiro ao riso e em seguida à correção, pois tais formas são vistas
como incorreções lingüísticas que precisam ser corrigidas. Assim, o erro, para além da
galhofa, ganha o estatuto de algo que está, de alguma forma, atrapalhando o avanço
lingüístico do infante.
Assim, não é por acaso o erro ao longo do tempo vem despertando interesse e
alcançando um espaço privilegiado nos estudos em aquisição da linguagem. Embora nem
sempre tenha sido assim, atualmente, o erro é visto como constitutivo do processo de
aquisição e indica um movimento em direção ao desenvolvimento lingüístico e revela o
conhecimento que a criança tem sobre a língua.
No tocante aos verbos, o erro além de comum na fala da criança sempre provoca
polêmica entre os estudiosos. Entre as várias propostas existentes, as quais não explanarei
aqui, destaco a assumo para análise a proposta interacionista, uma vez que esta privilegia o
diálogo como unidade de análise, ou seja, privilegia a fala da criança e a do adulto.
A premissa interacionista é a de que no início da aquisição a criança é falada pelo
outro, em virtude de uma dependência dialógica. Essa noção proposta por De Lemos (1985)
não deixa de fora nem o sujeito e nem a língua e visa demonstrar de que forma as
propriedades lingüísticas da criança derivam-se de processos dialógicos.
Também é o erro o lugar onde a relação criança e linguagem se torna transparente;
nele é possível surpreender tal relação. Entre os processos dialógicos é a especularidade que,
além de central nos estudos da área, abre espaço para a noção de “imitação” e para a noção de
dependência dialógica. Os processos metafóricos e metonímicos também propostos por De
Lemos (1992) surgem como uma condição para o entendimento da criança como falante, pois
os processos dialógicos mostravam a criança falada pelo outro, mas eram insuficientes para
mostrar como a partir do diálogo as propriedades estruturais da linguagem podem se derivar.
Reconhecida a heterogeneidade da fala infantil, foi preciso apoiar-se na Teoria do
Valor proposta por Saussure (1916), a qual propõe que o signo não tem valor em si mesmo,
mas só quando colocado em relação a outro. Com isso, foi possível considerar as relações
sintagmáticas e paradigmáticas nos estudos. Além disso, valeu-se também da ampliação de
sintagma e paradigma para metáfora e metonímia feita por Jakobson, da qual surgem a
reelaboração dos processos metafóricos e metonímicos de de Lemos (1992) “como modos de
emergência do sujeito na cadeia significante” (Maldonade, 2003, p.60). Enquanto a metáfora
produz uma relação de semelhança, a metonímia possibilita a combinação de entidades.
Conforme Maldonade (2003, p.60), com o estruturalismo, percebia-se que os
processos metafóricos e metonímicos evidenciavam a solidariedade entre “entidades que
levam à construção de subsistemas na fala da criança”. Os enunciados infantis, então,
passaram a ser interpretados como um produto de relações, que permitiam inferir, “através das
relações, um movimento de ressignificação dos fragmentos que compareciam na fala da
criança” (p.60).
Mais tarde, a própria Claudia Lemos avalia a limitação de sua proposta e novamente é
a consideração do erro como espaço privilegiado na fala da criança que permite isso, pois
como afirma Maldonade (2003, p. 61), baseada em De Lemos (1995), o erro “mostra um
cruzamento entre cadeias, em que o processo metafórico estabelece, pela substituição, uma
relação de semelhança”.
Era preciso então repensar a teoria. Dessa forma, De Lemos integra os processos
metafóricos e metonímicos à especificidade de seus efeitos e a sua articulação com a posição
do sujeito na língua, isto é, a semelhança e a diferença da fala da criança em relação à do
adulto representam os dois lados de uma subjetividade emergente, afirma Maldonade (2003).
Disso resulta o seguinte entendimento: i) a fase inicial de acertos na fala da criança, que
indica a dependência desta em relação à fala do outro e que permite observar a semelhança
como efeito de substituição realizada entre cadeias foi definida como primeira posição; ii) os
processos metonímicos e metafóricos que eram vistos como efeito de espelhamento e ou de
semelhança entre cadeias que estavam fora da esfera do outro levaram à caracterização da
segunda posição, a criança como falante submetido ao movimento da língua; e iii) a fase
marcada pela estabilidade, pelos acertos e na qual se nota a ocorrência de reformulações,
pausas, correções provocadas pela reação do outro e na qual se verifica não uma relação de
dependência mas de semelhança foi caracterizada como terceira posição, a da criança como
falante.
Mais tarde, refinando ainda mais a proposta e influenciada por Lacan, a autora vai
propor que as mudanças na trajetória da criança em sua constituição como falante são
mudanças de posição em uma estrutura. É embasada nessa proposta que passo a seguir à
análise dos dados de M. Antes, porém, de forma sucinta apresento um pouco da metodologia.
3. Sobre Aquisição de Linguagem: Apresentação e Análise dos Dados
3.1 Aquisição de Linguagem: Metodologia
Segundo Pereira de Castro e Figueira (2006), a fala da criança é objeto antigo de
curiosidade, observação e registro embora só no século XIX passe a ser sistematizada com
aparecimento dos “diaristas”, sendo mais tarde, no século XX resgatados nos trabalhos da
Psicolingüística. Eram dados anotados a lápis, em papel por pais de crianças ou curiosos que
se interessavam pelo desenvolvimento infantil.
O advento do gravador e do vídeotape trouxe um avanço para este método que
originou o que se conhece atualmente como estudo longitudinal obsercacional, método que
visa a acompanhar o crescimento da criança através do registro da sua fala nos primeiros anos
de vida.
O método empregado, bem como o material utilizado na coleta possibilitaram a
formação de bancos de dados que têm armazenado um grande número de sessões de
gravações, obtidas em intervalos de uma semana, quinze dias e nas quais a criança dialoga
com um adulto, membro da família, em contexto natural, no ambiente da criança. O acervo do
Centro de Documentação Alexandre Eulálio (Cedae), do Instituto de Estudos da Linguagem
da Unicamp é um bom exemplo desse tipo de trabalho. Disponível para pesquisas sobre
aquisição do PB como língua materna, o acervo é resultado de um trabalho árduo que
mobilizou várias pesquisadoras na gravação de oito crianças, da classe média, do sexo
feminino, filhas de universitários, com faixa etária entre 1 a 5-6 anos.
O método de análise, adotado pelas pesquisadoras, parte da consideração do contexto
para a interpretação do que é dito pela criança, ainda que reconheçam que nem sempre o
contexto será suficiente para a interpretação de certas particularidades do enunciado infantil,
muitas vezes atravessado pelo inusitado, ou do “insólito” para usar um termo bem recorrente
nos trabalhos da área. As autoras ainda advertem que a consideração apenas do contexto pode
levar a equívocos, entre os quais o de assumir a perspectiva do adulto, perdendo de vista a
criança que deve ser o foco da investigação. Dessa forma, embora o reconhecimento do
contexto seja um avanço na metodologia ele não impede os obstáculos que o próprio objeto de
análise impõe.
Assim, neste trabalho analisaremos a fala de uma criança cujos dados foram coletados
através do método longitudinal. Os dados em questão fazem parte do acervo do Cedae e
dizem respeito a uma informante, identificada como M. Trata-se na realidade de um recorte
de fala de um período de mais ou menos um ano, considerando que, quando da coleta da
primeira amostra aqui analisada, a criança em questão contava com 2 ;11.15, ao passo que a
última amostra foi coletada quando a criança estava com 3; 09. 03. Dessa forma, embora
saibamos que o estudo longitudinal segue a trajetória de um sujeito ao longo de seu
crescimento, permitindo ao investigador aproximar-se da mudança – questão central
fonemicamente em aquisição – optamos por fazer um recorte dos dados, em virtude da
natureza desse trabalho.
3.2 Aquisição de Linguagem: Análise dos Dados
Como já foi dito em outras partes deste trabalho, durante a fase de aquisição do
sistema verbal é comum o aparecimento de formas inusitadas e que muitas vezes levam o
adulto a rir e a corrigir a criança. Contudo, devemos nos lembrar que as correções feitas pelo
adulto subjazem uma noção equivocada de língua, pois parte de uma visão de certo e errado
presente dos manuais de gramática que não têm compromisso com a língua falada em sua
plenitude, mas com a escrita.
Partindo do pressuposto de que a língua é heterogênea, é incoerente pensar nas formas
verbais como regulares ou irregulares e nas realizações infantis como meros erros ou acertos
do ponto de vista da tradição gramatical. Nesse sentido, a proposta mattosiana exposta neste
trabalho acerta quando abre mão de tal classificação, embora saibamos que a descrição que o
autor fez não tem compromisso com as questões aquisicionistas e que seus dados são da fala
adulta e de um dialeto entre os vários existentes no Português do Brasil, não permitindo,
portanto, as generalizações permitidas nos estudos em aquisição.
Dessa forma, os dados serão analisados considerando-se a posição ocupada pela
criança, posição esta que será determinada pelo dado que estiver em análise. Assim, partindo
da proposta de posição de De Lemos, apresentamos as realizações do verbo caber por M,
considerando o erro como constitutivo do processo de aquisição e como aquilo que indica um
movimento em direção ao desenvolvimento lingüístico e que revela o conhecimento que a
criança tem sobre a língua. A hipótese é a de que é pela sua relação com a língua que a
criança, inclusive, une aquilo que a gramática separa quando regulariza as formas verbais
irregulares.
Partindo da proposta de de Lemos, 1982, 1992 entre outras, em 1998, Figueira
apresenta um estudo sobre os erros que estão envolvidos na aquisição do sistema verbal,
especificamente, aqueles que envolvem os sufixos incompatíveis com a classe da conjugação
do verbo. Este estudo tem como premissa a concepção de que os erros não resultam de um
processo de indução ou generalização, mas da imersão da criança numa língua em
funcionamento. Seu alvo são os erros que ocorrem na aquisição da morfologia dos verbos
regulares. Segundo Figueira (1995), o erro é um “processo original de constituição de
significação”. É isso que ocorre nos dados de M, só que com o verbo irregular.
1) 2 ;11.15
I : Que sapatilha que sua mãe mandô mostrá pra mim nova ?
I : Deixo vê, minha baixinha.
M : Cabe em mim, ó.
I : Coube ?
M : Caibe.
2) 3 ;00.17
(mais tarde, na mesma sessão)
(M e I montam o quebra-cabeça – logo depois de colocar a última peça)
I : Coube tudo aqui ?
M : Caibe. (baixo)
I : Coube tudo ?
M : É.
Percebe-se, nos trechos acima, que, a forma verbal caibe evidencia um sujeito na
primeira posição: aquela de que fala De Lemos (ANO), ou seja, aquela em que se observa a
dependência da fala da criança da fala do outro. Note-se que na primeira ocorrência do verbo,
M usa a forma cabe, no presente, em seguida, I, fazendo uma pergunta, usando o verbo caber
formula o seu enunciado com verbo no passado – coube – surgindo na fala de M, logo em
seguida, a forma caibe, o que mostra que a despeito do erro, há nesta forma uma evidência de
que M segue a lógica da língua, pois embora tenha alargado o radical a desinência –e, marca
de terceira pessoa do singular está presente na forma por ela utilizada.
Cabe para a análise desses dados, uma outra reflexão: já sabemos que caber, conforme
Câmara Jr., está incluído entre aqueles do padrão especial, entre os que estabelecem uma
oposição no radical de IdPt2, IdPt3, Sb2Pt e Sb2Ft, alternando-se em três radicais: cab, caib e
coub; sabendo disso, e considerando que M alargou o radical numa forma que, embora
diferente da forma usada pelo adulto, é compatível com a forma prevista para esse mesmo
verbo só que quando usado na primeira pessoa do presente do indicativo, o que indica que M
já conhece a forma caib, será que não haveria aí um entrecruzamento de posição já que,
embora dependente da forma coube do outro, e a terminação evidencia isso, o que caracteriza
a primeira posição, o radical caib, usado por M também não evidencia uma independência
lingüística por parte desta? Estaríamos, aqui, diante de um caso de uma alienação total da fala
da criança à fala do outro?
Maldonade (2003) fala em cruzamento de morfemas quando para a forma fugi da
criança que ela analisa há o aparecimento da forma fuzê. Haveria em caib esse mesmo tipo de
fenômeno? Se este for o caso, o dado em questão deveria ser avaliado como um caso de
segunda posição, pois a emergência do erro apontaria para uma diferença da fala da criança
em relação à fala do outro, o que não ocorre nos dados 3 e 4 abaixo, no qual há uma
semelhança entre as formas verbais de um e outro.
3) 3 ;00.07
(Dani põe algo no braço de M- deve ser uma fitinha)
I : Marcela, cabe ? Cabe isso no seu braço, Marcela ?
M : Cabe. Não faz assim, não.
I : Ele entrô.
Dani : Só vô mostrá como que é.
4) I : Coube, Marcela, coube?
Dani : Coube, Marcela ?
M : Côbi.
Dani : Muito bem.
M : Faz, nu/nu/
Fáize assim.
Fáize assim.
I : Não vai cabê, heim !
No caso dos dados a seguir, considerando o paradigma dos verbos do Padrão Geral,
podemos dizer que, mais uma vez, seguindo uma lógica da língua a criança regularizou o
verbo utilizando-se do que está previsto para o verbo caber: um radical cab, a desinência de
terceira pessoa do singular do indicativo mais uma desinência de pretérito perfeito – u. Não há
semelhança total entre a fala do adulto e a fala da criança, o que mostra uma segunda posição,
embora possamos perceber alguma semelhança no eixo sintagmático de cabe, há uma
diferença no eixo paradigmático que dá origem a uma forma inusitada – cabe+u= cabeu.
Situação esta que pode ser explicada via processos metafóricos e metonímicos, visto o erro
abre a possibilidade para uma outra possibilidade de organização gramatical.
Na segunda posição, a língua é o pólo dominante, sendo o erro a principal
característica desta posição que indica uma mudança da posição da criança que já se apresenta
sensível a correções, como acontece em 6, quando o interlocutor chama a atenção de M para o
seu erro e ela passa a alternar o uso de cabe, cabeu e cabo. Segundo Maldonade (2003), nesta
posição há uma atividade lingüístico-discursiva cujo efeito é na língua e isso torna a relação
da criança com o outro secundária, pois o próprio enunciado infantil sustenta a
ressignificação, a mesma estrutura se repete demonstrando uma captura da criança pelo
funcionamento lingüístico.
5) 2 ;11.29
I : Ih, Marcela ! Na caixa, acho que não cabe, não.
M : Coloca.
M : Cabeu viu !
I:Ã?
M : Viu que cabeu !
6) 3 ;00.07
Dani : Será que vai cabê ?
M : Será.
I : Cabe ?
Será que cabe ?
Dani : Acho que não vai cabê, viu !
M : Cabeu !
Dani : Coisa feia ! Mas que coisa feia que você falô errado. Parece que não coube.
M : Ah !
7) I : Marcelinha !
M : Coube.
I : Marcela, põe em mim. Será que cabe ?
8) 3 ;00.07
(mais adiante, na mesma sessão)
I : Será que cabe isso daqui, Marcela ?
I : Olha só ! Vê se cabe !
M : Cabeu.
Assim podemos dizer que a capturada pelo funcionamento lingüístico a criança é
jogada numa estrutura em que comparecem o outro, através do enunciado com a forma cabe,
a língua, representada pelas formas cabe, cabeu, coube, cabo e o próprio sujeito com todos
os seus enunciados nos quais uma mesma estrutura se repete, isto é, o retorno lingüístico em
si mesmo. Vale salientar que as mudanças a posição nada têm a ver com desenvolvimento
lingüístico, ou conhecimento sobre a língua, o que ocorre é um deslocamento da criança na
estrutura.
9) I : É aqui, assim ?
M : Viu ? Assi/assim não cabe.
Ô vô fazê/ ô vô fazê colocá o que que/
Deixa eu passá.
I : Deixo vê se cabe no seu ! Deixo pôe no seu, vê se SI
M : No meu cabo.
Qué vê ?
8) E agora ?
M : Cabe.
I : Entrô ?
M : É.
09) 3 ;00.17
(brincando de quebra-cabeça)
Cabe ou não cabe ?
M : Cabo.
I : Cabe ou nã cabe?
M : Coubo.
Coubo.
I : E você ?
Cê cabe nesse cantinho aí ?
M : Coubo.
Ó nesse que eu coubo.
Eu di um trombada : póf.
11) I : Coube ou não coube ?
M : Cube. (alto)
I : E agora aí ? Faz o urzinho pra vê se cabe tudo.
M : Não.
Nos trechos acima, bem como nos que se seguem, há erros que envolvem o
cruzamento de morfemas de diferentes classes. A emergência de tais erros aponta para a
diferença da fala da criança em relação à do outro, isso evidencia uma mudança na posição da
criança em relação à língua. Em todos os casos, cabo, coubo, cube, cabeu aparecem em
resposta à pergunta do interlocutor. Embora haja uma insistência por parte deste em recolocar
as estruturas cabe e coube, ainda assim ou erro comparece à fala de M.
12) 3 ;00.17
(experimentando tênis)
M : Minha mãe colocô,
Mas que fica.
Ai, viu que viu ?
M : Cê viu que/que cabeu ?
I : Não cabe, olha aí. Cê não colocô.
Não cabe. Não cabe.
13) 3 ;00.17
(montando quebra-cabeça)
I : Vê se cabe aí, Marcela !
M : Já vi. Cabeu.
Puxa SI.
15) 3 ;00.22
I : Vem cá. Cê cabe aqui, cê não cabe ?
M : Coubo.
I : Vem Marcela ! Cê cabe aqui ou não cabe ?
M : Coubo.
16) I : Cabe ou não cabe aqui, Marcelinha ?
M : Ô coubo. (alto)
I : Então vem.
17) 3 ;00.27
(brincando de quebra-cabeça)
M : Monta o pexinho.
I : Eu não sei qual que é.
M : É assim.
I : Ah, é desta ? Deixo vê se eu sei, né ?
M : Se você , se não cabe as pecinha, pedeu.
I:Ã?
M : Se não cabe as pecinhas, pedeu.
19) 3 ;01.25
(M mostra a cama da mãe)
I : E o berço ?
M : O beço eu não cabo (pausa) mais.
Não cabe mais.
I : Não entendi, Marcela.
Por que que você não dorme mais no berço.
M : Eu vô levá pa minha mãe depois.
I : Eu acho que você cabe sim no berço.
M : Eu não cabo.
I : Eu acho que cabe.
A fala do outro ainda abre espaço para o surgimento de outras relações e o que
sustenta a mudança está situado na própria fala da criança, note-se cabi, cabê e coubo e
também cabi de coubo nos dados a seguir :
20) M : Qué vê ?
(M sobe e entra no berço)
I : Olha aí como cabe.
M : Como cabi/ cabê, eu não coubo.
M : Joga o meu paninho.
I : O que cê vai fazê aí ?
M : Eu vô bincá com a minha monequinha. Joga pa mim.
21) 3 ;02.13
(brincando com quebra-cabeça)
I : Não qué cabê, Marcela.
M : Ajuda então.
I : Como « ajuda então » ?
M : Ajuda assim, cabe.
I : Como assim, Marcela ?
M : Cabí de coube.
I : Hum ?
M : Cabí de coube.
4. Considerações Finais
Neste trabalho, cujo objetivo foi analisar as realizações do verbo caber de uma criança
em fase de aquisição do PB, pode-se constatar uma dependência dialógica na fala de M,
conhecida no interacionismo como primeira posição estrutural durante o período de aquisição
da linguagem, o qual denota uma alienação da criança em relação à fala do outro. Contudo,
observou-se também que nem sempre essa posição é tão nítida. Também fica evidente que a
aquisição é marcada por uma lógica imposta pelo próprio sistema, o que explica porque o erro
da criança não se apresenta como algo fora da língua.
Constatou-se também que com relação à segunda posição, o erro é uma característica
que se destaca, bem como a movimentação das ressignificações na fala de M com a reposição
de estruturas inteiras.
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