Nova Pinacoteca: um ajuste contemporaneo da arquitetura O projeto de intervenção teve início em 1993 quando Paulo Mendes da Rocha, juntamente com os arquitetos Eduardo Colonelli e Welliton Torres, impulsionados pela entusiasmada direção do artista plástico Emanoel Araújo frente à Pinacoteca, deram início ao empreendimento de reformar o edifício do antigo Liceu de Artes e Ofícios – um projeto do escritório de Ramos de Azevedo construído entre 1897 e 1900 –, para ali instalar as novas dependências do museu artístico mais antigo de São Paulo. Esta iniciativa, completada em fevereiro de 1998, transformou o então "invisível" edifício neoclássico, encravado numa das regiões mais deterioradas da capital paulista, num dos museus mais modernos do país – um espaço privilegiado capaz de acolher devidamente o seu valoroso acervo e de receber exposições de nível internacional com toda a pompa, competência e circunstância que requerem. A obra, financiada pelo Ministério da Cultura e pelo Governo de São Paulo, através de sua Secretaria da Cultura, participa de um projeto de revitalização mais amplo que busca progressivamente devolver a vida ao Bairro da Luz, transformando-o em um democrático espaço cultural no coração da cidade. O edifício foi dotado de toda a infra-estrutura necessária técnica e funcionalmente, como a construção de um elevador para transporte de material e de público e de novos sanitários, a adequação da rede elétrica e a ampliação das áreas de depósitos e acervo, laboratórios de restauro e biblioteca. Também um projeto especializado de iluminação foi encomendado, assinado pelo italiano Piero Castiglioni – o mesmo do Museu d’Orsay, de Paris e do Palazzo Grassi, de Veneza. A intervenção de Mendes da Rocha e equipe previu, simultaneamente, consolidar as estruturas em alvenaria portante, naturalmente desgastadas pelo tempo e pela poluição ocasionada pelo intenso tráfego automotivo na Avenida Tiradentes, e agregar valor ao velho edifício a partir da reaparição do existente – da valorização dos elementos que o projeto conclama, emergidos a partir de uma confrontação com o presente e que nos fazem atentar à experiência arquitetural do passado. Foi, portanto, uma intervenção "eminentemente técnica" mas que "buscou desvendar o que estava lá" (1), esclarece oportunamente o arquiteto. Para tanto, algumas medidas pontuais foram efetivadas. Sobre os pátios internos e sobre o octógono central da tipologia neoclássica do antigo Liceu, muito semelhante em planta ao Altes Museum, em Berlim, de Schinkel, no lugar onde haveria uma cúpula (nunca construída pelo edifício ter ficado incompleto) os arquitetos dispuseram clarabóias planas em estrutura metálica reticular e vidros laminados que levemente pousam sobre as estruturas de alvenaria, evitando a entrada da chuva no interior dos até então úmidos e sombrios poços de luz. Com esta ação triplicou-se os espaços de exposições e providenciou-se exuberância de luz natural no interior do edifício, enriquecendo a apreciação das obras de arte e da própria Arquitetura. As cerca de cem esquadrias de suspensão que vedavam estes poços foram retiradas, ficando seus vãos abertos de modo a criar transparência e potencializar a perspectiva através dos ambientes, assim como permitir que a bela alvenaria portante do edifício pudesse ser visualizada, pois não há reboco encobrindo a estrutura. Como diz Paulo Mendes da Rocha, "É claro que com essas clarabóias a espacialidade se transformou de um modo absolutamente arquitetônico, como se fosse uma conseqüência imprevista. Foi prevista, então" (2). Desta primeira ação resulta a outra efetiva colaboração contemporânea em sua sensibilização com o existente: o espaço coberto pelas clarabóias permitiu a criação de um novo eixo de circulação, na longitudinal, que mudou o acesso principal do edifício para a Praça da Luz, na face sul, retirando-o da Avenida Tiradentes onde o intenso tráfego e o estrangulamento espacial da avenida prejudicavam o contato do edifício com o contexto urbano. Para realizar a inversão e saldar a "visão labiríntica" do projeto original foram previstas passarelas metálicas que cruzam os pátios internos em dois níveis, rompendo com a verticalidade de 22 m de pé-direito e estabelecendo a horizontalidade como seqüência de percepção. Essa configuração possibilitou uma nova articulação entre todas as funções onde as salas, antes estanques, agora se integram, trazendo fluidez, imprevisibilidade e dinamismo ao espaço. Como ressalta Paulo Mendes da Rocha, "com esses artefatos autônomos, as coberturas e as pontes, a transformação ficou evidente, com sucesso, animando a complementação do projeto" (3); "Agora é possível visitar o prédio como só as andorinhas podiam fazer, não precisa mais ficar circundando os pátios como num convento" (4). Com este novo acesso a fachada perdeu em representatividade, mas certamente ganhou em funcionalidade: o trânsito é relativamente mais tranqüilo e o estacionamento mais fácil na fronteira com a Estação. Além disso, no novo acolhimento foi possível instalar necessários serviços de recepção, como guarda-volumes e local de informações. O deslocamento do acesso permitiu também a criação de um belvedere, um balcão metálico curvo colocado em lugar da antiga escadaria principal, debruçado sobre a Avenida Tiradentes. Este balcão aproveita o antigo hallde entrada como um espaço alternativo de exposições, onde as pessoas podem reunir-se ou tomar contato com a espacialidade da cidade. Paulo Mendes da Rocha justifica esta decisão dizendo que "achava aquela escada mal-ajambrada, muito dura, muito íngreme, e o espaço de recepção era quase nulo. A escada precipitava-se sobre a avenida, que foi se encolhendo. O acolhimento ficava prejudicado, porque a circulação não fluía" (5). Também foi criada, no espaço do octógono central, uma laje intermediária que delimita um auditório com cerca de 150 lugares destinado a cursos, conferências, cinema, desfiles e outros eventos, o que torna o museu, juntamente com os espaços do café/restaurante e das diversas oficinas, um lugar versátil e multifuncional. Além do auditório, neste pavimento inferior localizam-se serviços gerais da Pinacoteca como depósitos, oficinas e dependências para funcionários; no primeiro pavimento, o espaço prioritário é reservado às exposições temporárias e, no segundo, à exposição do acervo da Pinacoteca. As esquadrias frontais do pavimento superior do edifício foram substituídas por chapas metálicas, criando um contraponto com o tijolo sem revestimento das paredes externas do edifício. Internamente, depois de eliminar todas as cicatrizes mais desprezíveis herdadas dos vários "inquilinos" que se apropriaram do edifício ao longo do tempo – lajes intermediárias, "puxadinhos", revestimentos inapropriados, etc. – descascou-se as paredes, criando uma espacialidade onde, como numa ruína, a estrutura da construção resulta numa inefável marca do tempo e onde o estado inacabado e o uso in nuce dos materiais sugere uma experiência contundente que serve como trunfo da atitude estética do arquiteto frente ao existente. Esta atitude é dada pelo uso de novos materiais – vidro e aço –, que aliados aos tijolos da alvenaria descascada resultam evidentes e ressaltados, numa espécie de "colagem" do novo no velho e do velho no novo que forma um todo único e harmônico sem banalmente mimetizar e confundir. O diálogo é mais abstrato: passarelas metálicas e clarabóias de cristal justapõem-se aos elementos originais do edifício neoclássico agregando-os à criação contemporânea e valorizando-os como testemunhos arquitetônicos. A universalidade racional da técnica (e não da tecnologia) e o uso potencial dos materiais (e não dos produtos) são coordenadas importantes na intervenção da Pinacoteca, como são em todas as obras de Paulo Mendes da Rocha. O que resulta deste ajuste contemporâneo da arquitetura é uma construção original essencialmente mantida como estrutura onde cerebrais interferências alteram substancialmente a aura do edifício. Aqui nada é silencioso, nada é sutil, e embora seja mínimo, é enfático, é gestual, resultando uma simplicidade aparente que é, no entanto, solução da tensão intrínseca colocada pela complexidade das exigências arquitetônicas contemporâneas. Distante de um método especializado de intervenção, tão ao gosto de restauradores e técnicos do Patrimônio, que preferem a fidelidade estilística à real compreensão do edifício com o qual estão trabalhando, Paulo Mendes da Rocha segue fiel a si mesmo (6) e devolve, com elegância e simplicidade, através de uma intervenção desligada de qualquer nostalgia ou romantismo, os valores permanentes da Arquitetura do antigo Liceu e cria outros, inéditos e a mercê da mesma sensibilidade no futuro. Circulação reinventada, especialidade transformada: a fruição moderna do clássico A cultura arquitetônica e a dimensão histórica da profissão dá ao arquiteto a condição de olhar e compreender os aspectos essenciais da Arquitetura de seu tempo, de outros tempos, de qualquer tempo. Penso que Paulo Mendes da Rocha e sua equipe, ao depararem-se com o problema de adequar um museu contemporâneo a um edifício existente que é reflexo de uma época singular da Arquitetura, buscaram tanto em suas qualidades naturais como no questionamento de seu simbolismo totalitário o fato primordial que conduziu a intervenção no antigo Liceu. Pode parecer paradoxal que o edifício existente tenha muito a transmitir mas que também é marca do colonialismo cultural da burguesia brasileira da época, onde uma arquitetura padrão – copiada de antologias que serviam para ensinar a periferia do mundo a construir como o caput mundi europeu -, era o símbolo do nosso esforço para ser como a metrópole e a origem dos simulacros de cidades rendidas na América. No entanto, podemos presumir pelas declarações do arquiteto a este respeito que o gesto primordial de desestabilizar as hierarquias classicizantes do edifício construído por Ramos de Azevedo através da subversão de seus eixos de composição, mais que uma decisão projetual em busca de funcionalidade ou de melhoria de acessibilidade urbana, é inquisidor, deliberado e representativo de que a Arquitetura pode ser revisitada e conduzida por caminhos mais libertários, onde prevalecem a alma e a inteligência local para solver os problemas contemporâneos. Com a inversão dos eixos de simetria experimenta-se o antigo espaço de uma maneira surpreendentemente nova: entra-se ali como um transgressor, atravessando os pátios anteriormente inacessíveis, descobrindo visuais até então imperceptíveis e deslizando nos espaços como nunca antes fora possível, num percurso flexível que não impõe uma única, central e restrita apreciação das obras de arte como indicava o antigo edifício, mas que oferece a opção de abordá-las como mais apraz ao espectador. Esta acentuação tátil, perceptiva e visual, entretanto, não deve ser encarada como um desprendimento da base analítica e racional que caracteriza o trabalho do arquiteto, mas como uma intensificação do objeto a partir de uma eloqüente leitura do problema museológico, ou mais adiante, do problema específico da Arquitetura atual. Na intervenção da Pinacoteca, por outro lado, da tensão dialética entre o legado arquitetônico do passado e a Arquitetura do presente resulta a imanência e a inexorabilidade contidas na idéia de museu, onde as expressões humanas de várias circunstâncias – temporais ou locais – convergem, justapõem-se e juntas, formam o todo. Assim a Pinacoteca, até então mais um entre os museus artísticos da capital paulista, apresenta-se com um valor museológico ressaltado ao ser afetado pela atemporalidade da ação essencial da Arquitetura, numa "intervenção mínima com grau de inteligência máximo" (7) onde a luz e os materiais enriquecem a experiência da fruição moderna do objeto clássico e das obras ali expostas. Fruição que surge da experimentação tridimensional do espaço e que, a partir da entronização nada literal dos valores citados, revela a maestria da abstração do arquiteto e seu elevado nível de Arquitetura. A inefabilidade do objeto: de espaço a lugar A inefabilidade do objeto arquitetônico atingida por Paulo Mendes da Rocha e equipe na intervenção da Pinacoteca é derivada de sua atenta leitura da realidade, nunca literal, sempre abstrata, nunca arbitrária, sempre comprometida, nunca formalista, sempre autêntica e auto-referente. Brutalismo material e contundência estrutural a evidenciar o mito da construção arquitetônica e a dialogar e complementar o preexistente, luz transbordante pelos espaços a proporcionar uma experiência lumínica (um impacto cinético) de apreciação da arte, subversão de eixos de hierarquia classicizante como intensificação da forma para uma moderna experiência de fruição, valor museológico ressaltado pela resolução da dialética entre o velho e o novo em sua incorporação como valores simultâneos. Todos estes fatores evidenciam a atitude do arquiteto em buscar na essência a resolução da Arquitetura, seja ela manifestada direta ou abstratamente, seja ela expressada pela linguagem arquitetônica que for. Na Pinacoteca, todos estes são aspectos interagentes para a concepção de uma obra de extrema qualidade técnica e plástica que, pragmaticamente, interroga e responde a questão da articulação da vida contemporânea na preexistência. E responde porque se afasta da prática restrita dos especialistas, porque não abre mão de fazer uma Arquitetura comprometida com o contexto e com as necessidades e aspirações da vida contemporânea, porque faz Arquitetura com sensibilidade e gênio, porque usa e abusa da técnica e dos materiais com propriedade e porque busca, em última instância, a finalidade básica da Arquitetura que é a construção do lugar, do algo mais que a materialidade. Como nos diz Paulo Mendes da Rocha, "…não simplesmente restaurar, mas também criar novos desenhos que abriguem, amparem e expressem hábitos urbanos contemporâneos, do tempo que vivemos" (8). Penso que o fato arquitetônico prioritário eludido no projeto da Pinacoteca é exatamente esta construção do lugar. Lugar, é bom que se esclareça, entendido como algo sublime e transcendente que se constrói com o fluir da vida e que é único, exclusivo, e não como sinônimo de espaço, envoltório formal tridimensional ordenado pela geometrização construtiva, desprovido de Vida. Em entrevista, Paulo Mendes da Rocha disse que o museu já podia ser imaginado com muita clareza, pelo espaço e pelo público. Creio que ele estava certo, mas só poderia reunir passado, presente e futuro num envoltório que até então era espaço e atribuir-lhe a grandeza de lugar um arquiteto que acredita na Arquitetura como concepção mental (como outrora falara Alberti) como saída para a irracionalidade formal instalada e que está preocupado em atingir a dimensão única (universal) da Arquitetura pela atenção a sua essência, em meio à complexidade e à confusão contemporâneas. A Pinacoteca é um exemplo pragmático de intervenção arquitetônica não apenas por dar condições materiais a um edifício degradado (numa espécie destill life), mas por resgatá-lo do limbo que o seu equivocado e anacrônico projeto classicizante colocouo, fazendo, depois de praticamente um século, sê-lo o que até então não podia ter sido plenamente: um exemplo singular de edifício consagrado às artes e à cultura. www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/01.007/951 MASP = Museu de Arte de Sao Paulo A primeira sede do Museu de Arte de São Paulo, cujo projeto foi elaborado por Lina Bo Bardi, ocupava dois andares do Edifício dos Diários Associados, na rua 7 de abril, Centro de São Paulo. Já naquele local foram ensaiadas algumas das inovações museológicas que, mais tarde, viriam a contribuir para distinguir a trajetória do casal Bardi no campo da renovação artística do País. "De fato", conta Bardi em Mirante das Artes, "organizou-se um museu de tipo diferente (...) Pensou-se, logo quando da formação da Pinacoteca, também em uma seção didática com a função de esclarecimento histórico-crítico dos objetos apresentados aos visitantes, visando integrá-los, com as analogias e referências possíveis depois do Quinhentos, à arte brasileira". Essa concepção museológica contemplava uma compreensão abrangente da arte, incorporando como atividade rotineira o desenho industrial, a propaganda e a moda. As artes performáticas - música, dança e teatro - também foram incluídas de modo a reunir toda a produção artística numa única manifestação cultural. Portanto, o museu não era considerado como instituição destinada apenas à conservação e exposição de obras de arte, mas era entendido como centro de produção artística. Por outro lado, a exposição de um acervo ou a organização de uma determinada mostra pressupõe estudo, pesquisa, projeto, enfim, um conjunto de atividades que dependem da participação de vários colaboradores de formação diversificada. O acervo do museu, por sua vez, não deveria se limitar ao espectro da arte consagrada, mas, sim, buscar incorporar toda a amplitude da produção cultural. Assim, compareciam com a mesma consideração tanto a arte consagrada quanto a arte ingênua, tanto os produtos mais avançados da indústria como as formas mais espontâneas do artesanato. O rápido crescimento do acervo e a diversidade das atividades do museu consolidaram sua presença, tornando-o uma instituição reconhecida que despertava crescente interesse no meio artístico. Esse contínuo desenvolvimento logo começaria a exigir a expansão de suas instalações. Algumas alternativas então cogitadas, como a associação do Museu com a Fundação Armando Álvares Penteado, não prosperaram. E foi, talvez, como resultado de uma atitude intempestiva que ocorreu a Lina Bo Bardi a idéia de propor a construção da nova sede do museu no terreno do antigo Trianon. Bo Bardi diz em Mirante das Artes, "... passando numa daquelas tardes pela avenida Paulista, pensei que aquele era o único lugar onde o Museu de Arte de São Paulo podia ser construído...". Referia-se ao Belvedere do Parque Trianon, onde uma antiga Casa de Chá, então demolida, costumava servir de ponto de encontro da elite paulistana. O terreno já havia abrigado, em um pavilhão provisório, a 1a Bienal Internacional de São Paulo e, situado no topo do espigão da avenida Paulista, tinha uma vista desimpedida que, à época, alcançava o centro da cidade. A área fora doada à municipalidade por Joaquim Eugênio de Lima por ocasião da abertura da avenida Paulista, sob a condição expressa de que jamais fosse construída obra que prejudicasse o desfrute da paisagem. Os primeiros esboços do Masp mostram que Lina partiu de uma pirâmide de vidro. Mantendo quase a mesma forma estrutural, a proposta evoluiu para uma caixa envidraçada sustentada por um pórtico formado por quatro grandes vigas, aproximando-se do projeto definitivo É possível enxergar no Masp elementos da arquitetura de Mies van der Rohe. Estrutura, transparência e planta livre são os principais aspectos que mostram a influência do mestre. Porém, ao contrário do rigor e leveza característicos da obra de Mies, Lina Bo Bardi conferiu ao museu formas brutas e pesadas, expondo claramente a aparência do concreto, não importa o quanto irregular fosse sua superfície Primeiros estudos Os primeiros estágios do projeto do museu podem ser conhecidos graças aos desenhos preliminares conservados nos arquivos do Instituto Lina Bo e P. M. Bardi. Os primeiros esboços revelam uma concepção completamente distinta da solução final. O processo teve como ponto de partida a forma de uma pirâmide de vidro, cuja estrutura era constituída de quatro enormes vigas convergindo para o vértice. O acervo de obras de arte seria exposto ao longo de uma rampa ascendente, abrigada sob o enorme vão piramidal. Esses primeiros esboços são ricos em referências, não apenas à forma recorrente da pirâmide, mas também ao Museu Guggenheim de Nova York, conforme sugerem as rampas. Porém, há outras fontes. Em 1952, Affonso Eduardo Reidy venceu um concurso para o projeto de um museu de arte a ser implantado no mesmo terreno. O edifício proposto era um prisma de base triangular, uma forma geométrica não muito distante da pirâmide. Certamente tais referências estavam presentes na memória de Lina Bo Bardi no início da elaboração do projeto. Embora o ponto de partida possa parecer muito distinto da concepção adotada, o projeto do edifício evoluiu coerentemente dos primeiros esboços à solução final. Se a pirâmide foi deixada de lado, a forma estrutural permaneceu quase integralmente a mesma. Nos croquis subsequentes, as quatro grandes vigas foram transformadas em pórticos de sustentação de uma caixa de vidro, dispostos diagonalmente. A seguir, essa caixa transparente evoluiu para a forma de um paralelepípedo, com os pórticos agenciados transversalmente. Por fim, os pórticos foram arranjados longitudinalmente, alcançando, assim, a solução definitiva. A essa altura, porém, a caixa transparente deu lugar a um volume opaco, cuja iluminação seria realizada por aberturas na cobertura. Sob a caixa suspensa, partes das atividades do museu foram implantadas em uma construção semienterrada, formando uma grande plataforma sobre a qual se assenta a superfície contínua do belvedere. Essas duas partes parecem estar opostas uma à outra. A base firmemente implantada no terreno foi destinada a abrigar as atividades voltadas para produção e performance. Em contraste, a caixa suspensa abriga o acervo permanente. Separando as duas partes, o espaço aberto do belvedere não se destina a nenhum uso particular, senão àquele voltado para o repouso e para a contemplação. O generoso espaço do terraço é a extensão da rua. O processo de projeto se desenvolve como uma seqüência de aperfeiçoamentos lógicos. A caixa transparente transformou-se em um volume opaco, iluminado através cobertura. O espaço aberto do belvedere já se destinava somente à contemplação e ao repouso Racionalismo e monumentalidade A evolução do projeto parece indicar uma tentativa de conciliar conceitos opostos. De um lado, formas regulares, clara definição da estrutura e flexibilidade de organização constituem suas principais preocupações. O processo de projeto se desenvolve como uma sequência de aperfeiçoamentos lógicos até ser alcançada a solução final. Embora familiarizada com as críticas ao Movimento Moderno, Lina Bo Bardi reafirmaria, no entanto, sua convicção no racionalismo. Conforme declarou em 1993, "o conjunto do Trianon vai repropor, na sua simplicidade monumental, os temas hoje tão impopulares do racionalismo". Por outro lado, essa mesma afirmação revela a intenção de incorporar na obra a dimensão monumental. Monumental não no sentido opressivo, mas em seu significado político como lugar propício ao exercício da vida civil. “... uma arquitetura simples, uma arquitetura que pudesse comunicar, de imediato, aquilo que no passado se chamou de monumental, isto é, o sentido 'coletivo' de Dignidade Cívica", expôs Lina. Nesse sentido, os condicionamentos do sítio não constituíam limitação, mas precisamente o contrário. Imposições como aquela segundo a qual o terreno devia permanecer livre de ocupação foram tomadas de uma maneira positiva, conduzindo o arquiteto a atender à necessidade de forma generosa, concebendo o edifício como um grande volume suspenso sobre uma área livre. Assim, sítio e projeto emergiriam associados, a fim de expressar e transmitir o sentido da obra, não apenas pela simplicidade da austeridade da forma, mas também de uma maneira em que a natureza do espaço criado pudesse ser capaz de transmitir ao observador o sentido particular da instituição ali estabelecida. Os desenhos mostram como Lina Bo Bardi imaginou o relacionamento do museu com o Parque Trianon. Para Lina, o parque era um fragmento da natureza, remanescente de elementos naturais não cultivados. Chegou, inclusive, a rejeitar um projeto de Burle Marx para o Belvedere Construção O primeiro projeto foi concluído em 1957, mas a construção não se realizou de imediato e, quando teve início, seu processo foi interrompido seguidamente. Em um texto conservado pelo Instituto Lina Bo e P. M. Bardi, datilografado e em italiano, a própria Lina Bo conta que "em 1961, a prefeitura de São Paulo decide realizar o projeto e inicia os trabalhos. Interrompe em 1962, com a estrutura dos quatro pilares aflorando do terraço. Por algum tempo, o canteiro é usado para o conserto de caminhões e de carros (...) e os operários lidam com fogo, o que ameaça o concreto, já esteticamente precário devido à má execução". Durante o longo período de execução, Lina Bo Bardi reclamaria insistentemente das precárias condições do canteiro. Em meio à construção, alguns eventos exigiram mudanças necessárias para assegurar a integridade da estrutura. Devido a problemas de soldas mal feitas e cortes excessivos de armadura, os quatro pilares de sustentação da estrutura tiveram sua seção aumentada. Esses eventos foram tomados como "incidentes aceitos", testemunho das contradições entre uma concepção estrutural inovadora e avançada e o precário nível técnico de sua execução. Em outras palavras, Lina Bo Bardi buscava uma racionalidade construída a partir do ambiente em que trabalhava, com todas as limitações de um país no qual o desenvolvimento tecnológico convive com o improviso, a falta de planejamento e a intensa utilização de mão-de-obra pouco qualificada. Em vez de ocultar eventuais "erros" de execução, sua postura, comprometida com o contexto em que atuava, permitia reverter de forma positiva as condições adversas à realização da obra. Tal atitude imprimia um notável sentido crítico ao seu racionalismo. Além das dificuldades de construção, a obra foi realizada durante um período de adversidade política. No mesmo texto datilografado em italiano, a arquiteta registrou: "Um processo realizado lentamente ao longo de 12 anos muda seu significado a cada dia (...) 1964 - ano em que o governo militar tomou o poder - afastou qualquer perspectiva. No Museu de Arte de São Paulo, o projeto foi retomado de um ponto de vista diferente, uma vez que as condições haviam mudado. À abstração da superfície cega é necessário contrapor, sem dúvida, o que do lugar. As paredes serão transparentes como compensação pelos esforços do povo." Dessa forma, Lina Bo Bardi reagiria às condições políticas da época, com uma reinterpretação do projeto, tornando o volume suspenso transparente e, dessa forma, retomando a concepção original. Discussão A simplicidade e a economia de meios deram origem a uma construção quase ascética, que faz lembrar as realizações de Mies Van Der Rohe. Aliás, a ênfase dada à expressão estrutural do conjunto é a tradução em concreto armado de soluções experimentadas por aquele arquiteto em obras como o Crown Hall, em Chicago. De fato, suas obras devem ter sido tomadas como modelo quando estrutura, transparência e o princípio da planta livre estão em consideração. Duas placas suspensas por um pórtico são formas recorrentes, tanto em projetos de residências dos anos 50, como em projetos de museus. No Museu de São Vicente até mesmo os desenhos incorporam um procedimento típico dos trabalhos de Mies Van Der Rohe: a colagem. Mas se é possível admitir nítidas semelhanças, essas não vão além do ponto de partida. As fotomontagens de Lina Bo Bardi são muito diferentes, seja em proporção, seja pelo tipo de atmosfera que evocam. As perspectivas ilustrativas de seus projetos são muito mais afins às obras de De Chirico que aos projetos de Mies Van Der Rohe. O primeiro projeto do Masp foi concluído em 1957, mas a construção só começou em 1961 para ser paralisada no ano seguinte. Em 1964, depois do golpe militar, Lina decide que o museu terá "paredes transparentes como compensação pelos esforços do povo" Ao contrário do rigor e da busca da proporção mais apurada, característicos dos trabalhos de Mies Van Der Rohe, há, na obra do MASP, uma atitude distinta. "O racionalismo tem de ser retomado, mas é necessário eliminar do racionalismo todos os elementos 'perfeccionistas', herança metafísica e idealista...", declarou Bo Bardi em 1967. Para a arquiteta, a transição entre a forma ideal e sua realização pressupunha a capacidade de adaptação às condições reais. Isso fica evidente na sua disposição em assimilar eventuais erros de construção. Portanto, uma dada solução construtiva devia sempre estar comprometida com as condições locais de sua realização, o que significa que a forma ideal emerge sempre como algo que perdeu a pureza. Para enfatizar o argumento, basta contrastar as formas leves e bem proporcionadas de Mies Van der Rohe com as formas brutas e pesadas do Museu de Arte de São Paulo. As obras de Mies Van der Rohe são o resultado de um esforço para reduzir as configurações espaciais a seus elementos essenciais, perseguindo sistematicamente a melhor forma construtiva. Lina Bo Bardi, ao contrário, não está interessada em perfeição. Essencial para ela é a procura da solução mais simples e direta, a eliminação dos acabamentos e a redução dos detalhes construtivos à sua forma mais elementar. A aparência do concreto não é escondida, mas claramente exposta. Tal condição é explorada em toda a sua expressão - não importa o quanto irregular seja a superfície - a fim de confrontar o alto grau de elaboração tecnológica de suas estruturas com seus precários meios de produção. Esse tipo de abordagem em relação a determinados componentes construtivos tornouse quase uma obsessão, a ponto mesmo de conduzir a soluções falsas. No Museu de Arte de São Paulo, as paredes de tijolos foram revestidas de modo a imitar paredes de concreto aparente. Tal tratamento, contudo, mais que uma incoerência de projeto, revela o propósito de imprimir sentido a cada pormenor construtivo. Como a arquiteta explicou, a solução final é um tributo ao povo. "O vidro das paredes do museu de São Paulo não é o vidro das paredes formalistas", escreveu Lina Bo. Nada deve estar confinado entre paredes. A transparência é uma condição a ser acentuada no período de adversidade política. O recinto principal de exposição, a Pinacoteca, é um vasto ambiente completamente aberto para a paisagem. Foi projetado tendo como princípio a planta livre, na qual, a flexibilidade de organização é o fator dominante. As pinturas são expostas sobre placas de vidro apoiadas em blocos de concreto. Os painéis de exposição levam a noção de planta livre ao seu limite. As pinturas se apresentam ao observador como se estivessem suspensas no ar. Esses dispositivos, tanto quanto o espaço que organizam, são a materialização do ideal utópico da flexibilidade total. As obras de arte são dispostas lado a lado como uma espécie de estandardização, evitando qualquer preconceito e conferindo ao observador a oportunidade de decidir o que é importante. Flutuando no ar as pinturas parecem existir independentemente de seu suporte material. Essa forma de expor obras de arte, pairando no espaço, cria uma atmosfera sugestiva, como se fosse abolida a dimensão do tempo, uma impressão metafísica que novamente evoca as pinturas de De Chirico. Apesar de sua explícita recusa daquilo que chamava racionalismo metafísico, o conteúdo surrealista manifesto em vários aspectos da obra de Lina Bo Bardi revela uma certa distância entre intenção e realização. Sua arquitetura emerge, freqüentemente, muito além das intenções explicitamente afirmadas. É possível enxergar no Masp elementos da arquitetura de Mies van der Rohe. Estrutura, transparência e planta livre são os principais aspectos que mostram a influência do mestre. Porém, ao contrário do rigor e leveza característicos da obra de Mies, Lina Bo Bardi conferiu ao museu formas brutas e pesadas, expondo claramente a aparência do concreto, não importa o quanto irregular fosse sua superfície O recinto da Pinacoteca é francamente aberto para a paisagem. As pinturas são expostas em um ambiente que se estende para muito além de seus limites. O projeto dissolve as fronteiras entre interior e exterior. Mas, se há uma clara intenção em apagar os limites do espaço, esse tipo de expansão do interior para o exterior não persegue a integração. Cada parte é tratada em sua própria autonomia. Mais que integração, há contraste - ou mesmo conflito. Não há identidade entre arquitetura e natureza. Esse tipo de diferença foi sistematicamente admitido pela arquiteta. A natureza, contudo, tem um importante papel em sua arquitetura, e é tomada como tal, ou seja, não há tratamento das formas naturais. Não importa como os jardins ou as plantas são arranjados, uma vez estabelecida a distribuição apropriada, eles são deixados ao seu próprio desenvolvimento. A natureza participa em sua própria autonomia. A pequena floresta lindeira ao museu é um fragmento da natureza, um remanescente de elementos naturais não cultivados. Não há dúvida a respeito do tratamento das áreas exteriores do museu. O belvedere deveria ser um espaço limpo, desprovido de qualquer ajardinamento, onde a grama só poderia crescer nos interstícios do pavimento. Esta intenção é tão clara que foi recusado um projeto paisagístico elaborado por Roberto Burle-Marx. Em uma carta datada de 13 de julho de 1967, dirigida ao conhecido paisagista, Lina Bo Bardi afirmou: “... um projeto unitário e integrado não admite alterações: o Belvedere do Trianon (...) será uma praça sem jardim, para o encontro do povo, exposições ao arlivre e concertos, nada mais". O projeto enfatiza a importância do grande vão, um lugar onde nada é determinado, ou seja, um lugar aberto a todas as possibilidades. Conforme insistia Lina Bo Bardi, o espaço deve ser habitado por tudo e por todos: circo, bandas, crianças, brinquedos, pedras, plantas e lagos. Seu interesse particular pela arte kitsch, seus desenhos com fantásticas plantas crescendo sobre o edifício, encontram lugar em sua arquitetura sem perturbá-la. Monumentalidade e expressão bruta da construção não estão em conflito com evocações líricas. Os muros de contenção - revestidos de argamassa preenchida com pedra britada - criam o pano de fundo para a sucessão de lagos que contornam o embasamento. Plantas exóticas e peixes ornamentais completam essa impressionante atmosfera surreal. Alguns dos elementos peculiares do projeto do museu se perderam nos últimos anos. Outros têm sido ameaçados pelas demandas museógrafas recentes, que nem têm sido bem respondidas, nem tampouco atendidas de maneira a respeitar os principais aspectos da concepção do museu. A organização típica do espaço da pinacoteca foi alterada. Mas, a preservação das principais características do Museu de Arte de São Paulo é muito mais um problema de arquitetura do que de medidas rígidas de proteção. A importância do grande vão, espaço aberto a todas as possibilidades, é enfatizada em todas etapas do projeto. O recinto principal do edifício, entretanto, é a pinacoteca, também um vasto ambiente completamente aberto para a paisagem, onde as exposições de arte adquirem um clima surrealista Este trabalho foi apresentado na 8ª Conferência Internacional do Docomomo, em Nova York Marcos Carrilho é doutor em História da Arquitetura pela FAUUSP