O CAMPO DA ANTROPOLOGIA A Constituição de uma ciência do homem Luis Henrique Passador Professor de Antropologia – Campus Alphaville (UNIP) Mestrando em Antropologia Social pela UNICAMP A Antropologia, enquanto ciência, pode ser considerada bastante nova se comparada com outras como, por exemplo, a Física, cuja história remonta à Grécia Antiga, com as primeiras descobertas e sistematizações do conhecimento das leis da Natureza pelo Homem. Não que os filósofos gregos desconhecessem ou deixassem de se questionar sobre a natureza humana. Eles apenas o faziam de uma maneira diferente da que os antropólogos modernos definem como sendo uma abordagem original e característica da Antropologia: o estudo do homem em sociedade, através da observação direta de sua prática cotidiana e compreensão das instâncias sócio-culturais que definem essa prática, emprestando-lhe um significado compartilhado pelos indivíduos que se relacionam entre si dentro de um mesmo espaço historicamente constituído. Assim, se etimologicamente a Antropologia se define como a Ciência do Homem (em grego ANTHROPOS = homem, LOGUS = conhecimento, estudo, ciência), ela vai sempre procurar compreendê-lo enquanto espécie (Homo Sapiens), e enquanto uma espécie que se caracteriza pela formação de grupos sociais, agrupamentos de indivíduos que compartilham de uma mesma história e de uma mesma visão de mundo, e que definem regras de comportamento, convivência e sobrevivência. O conjunto dessas regras é o que se convencionou chamar de CULTURA. Então, todo grupo social, ou sociedade, possui uma cultura que, como já foi dito, define a visão que seus indivíduos têm do mundo em que vivem, definindo formas de atuarem sobre ele. Todo grupo social é também um grupo cultural; toda sociedade possui a sua cultura particular. A Antropologia, como a conhecemos hoje, vai fazer desses grupos o seu objeto de estudo por excelência, procurando estudá-los em suas particularidades e, comparativamente, em relação aos demais, sem que isso implique uma hierarquização de qualquer tipo (melhor ou pior, superior ou inferior, mais ou menos evoluído etc). Toda cultura passa a ser vista como uma maneira possível de o Homem se adaptar ao seu meio e interpretá-lo, e dessa forma, a Antropologia produz um conhecimento que nos permite observar e compreender como pensam e vivem os homens, sejam eles habitantes de um arquipélago do Pacífico Ocidental ou nós mesmos. Por esse motivo, alguns antropólogos definem sua ciência como essencialmente terapêutica: ao deparar-se com outras culturas, isto é, com o “outro”, o homem se depara com a diferença; deparando-se com o diferente, o homem percebe-se e define-se pelo que ele é e pelo que não é, ou seja, depara-se com sua própria particularidade; essa consciência de ser um entre outros, de pensar e agir de uma determinada maneira dentre tantas outras possíveis à espécie à espécie humana, fornece-lhe a dimensão do lugar que ocupa no mundo, permitindo-lhe não só conhecer melhor o outro pelo contraste consigo mesmo, mas também a si próprio, pelo processo inverso, em relação ao outro. Ele passa a enxergar-se como membro de um grupo cultural particular no qual é socializado, no qual aprende a viver, pensar e a se relacionar com seus semelhantes, e cuja cultura não é a única, nem a melhor, mas apenas uma, diferente. Seu mundo se amplia à medida que conhece outros povos, outras culturas, deixando de ser absoluto e natural, passando a ser relativo, particular e histórico. Esse duplo movimento de compreensão do OUTRO e de NÓS mesmos EM RELAÇÃO ao outro, é que vai definir a vocação da Antropologia: enquanto compreensão do Homem, ela acaba por se realizar também como autocompreensão dos homens, permitindo uma visão crítica em relação a nós mesmos e à nossa própria sociedade, possibilitando uma atuação mais eficaz e conseqüente sobre o mundo em que vivemos e em relação àqueles que nos cercam, ou seja, sobre nossa própria realidade. Para chegar a essas conclusões e constituir essa abordagem científica sobre os problemas relativos às sociedades humanas, a Antropologia percorreu um caminho histórico que se confunde com a própria história do encontro do homem ocidental com os outros povos que habitavam (e ainda habitam) os continentes que ele alcançou a parti do século XVI. A seguir, veremos resumidamente como se desenrolou essa história de encontros e desencontros, e como dela resultou uma Ciência do Homem como exposta acima. BREVE HISTÓRICO DA FORMAÇÃO DA ANTROPOLOGIA COMO CIÊNCIA Embora já na Grécia Antiga o Homem pensasse na sua natureza como um tema a ser estudado e compreendido, e os gregos já tivessem conhecimento da existência de outros povos com culturas diferentes da sua (que eles chamavam de “bárbaros”), apenas no século XVI é que essas questões tornaram-se cruciais para o homem ocidental, herdeiro da tradição e da cultura grega. Naquela época, o que chamamos de cultura ocidental limitava-se às fronteiras da Europa. O que coloca de maneira tão enfática essas questões ao homem ocidental é o início da era das grandes navegações, quanto o europeu se vê obrigado a procurar novas rotas comerciais, atravessando oceanos e dando início à sua história de expansionismo colonial. A busca de novas rotas comerciais levou-o ao descobrimento da existência de terras além das fronteiras do mundo conhecido por ele e, conseqüentemente, ao encontro com povos que nunca antes havia contado. O impacto dos primeiros relatos desses viajantes, descrevendo as novas terras e seus habitantes, foi bastante grande sobre os europeus. Pela primeira vez, eles se deparavam frente a frente com povos e culturas tão diferentes, e com um agravante: a conquista e domínio das novas terras pressupunha o contato direto e a convivência (pacífica ou não) com eles. O homem ocidental se viu impelido a encarar e entender esse diferente, esse OUTRO. A pimeira grande questão que emergiu desse encontro cultural foi como definir esses nativos do novo mundo, isto é, como entender essa diferença, questão que se traduzia numa pergunta: eram humanos ou não? Esses nativos se encontravam fora da cultura e da noção de humanidade do homem ocidental. Foi nessa época que surgiu a noção de “selvagem”, para definir a natureza de povos que tinham costumes tão estranhos ao europeu: andavam nus ou vestidos rusticamente com peles e penas, comiam carne crua, praticavam o canibalismo, falavam uma língua ininteligível, não possuíam escrita, não possuíam um sistema político ou jurídico mais elaborado, nem uma moral condizente com os bons costumes europeus, praticando, por vezes, a poligamia e adorando divindades profanas, praticando a magia e a feitiçaria, morando em construções precárias e sobrevivendo da caça, da pesca e da coleta de frutos selvagens, enfim, vivendo muito próximos a um estado de animalidade aos olhos de um europeu do século XVI. Como a influência da Igreja Católica, na época, era muito grande, e seu poder era muito abrangente, a questão da humanidade ou animalidade desses povos era colocada como questão teológica: possuíam alma ou não? Poderiam ser salvos no juízo final? Uma frase resumia e definia esses povos para o europeu: sem fé, sem lei, sem rei. A Igreja ouve por bem, após muita discussão, outorgar a existência de uma alma no selvagem, dandolhe a chance de ser “salvo”. Na verdade, essa atitude seguia a lógica da conquista de domínio sobre as novas terras: se possuem alma, o selvagens podem ser catequizados e, sendo catequizados, podem ser “humanizados” e submetidos à um processo de civilização e incorporação à um modo de vida europeu, podendo servir aos interesses da colonização como mão-de-obra na exploração das riquezas nativas. Começa então, ainda no século XVI, o envio de missionários às novas terras para o trabalho de catequese e civilização dos nativos. O selvagem era o novo bárbaro. Ainda que a Igreja tivesse reconhecido nele a existência de uma alma, a diferença cultural desses povos em relação ao ocidente continuou a ser um tema de discussão entre os europeus, e a questão da humanidade ou animalidade do selvagem não foi superada. Enquanto durante o século XVII os relatos de viajantes missionários continuavam a alimentar o estranhamento do europeu em relação ao selvagem, as notícias sobre a insubmissão dos nativos e sua rejeição à catequese alimentavam as dúvidas sobre sua natureza humana. No século XVIII, o debate sobre os povos nativos ganha o caráter de uma discussão em termos filosóficos antropocêntricos. É o período conhecido como “século das luzes”, caracterizado pelo Iluminismo, um movimento filosófico que elege o Homem e a Razão como centro de suas preocupações, numa reação contra a metafísica e a filosofia fundada no pensamento cristão. O caráter de humanidade deixa de ser definido a partir da existência de uma alma ou não no homem, passando a ser pensado em termos da presença ou não da Razão nele. O homem se define pela faculdade do pensamento e da racionalidade, segundo essa filosofia. É dessa época a famosa frase de Descartes “Penso, logo existo”. Todo pensamento e discussão sobre o selvagem, nesse período, passa a se desenvolver em torno de sua capacidade de desenvolver ou adquirir a Razão, definida como a racionalidade do homem ocidental. O uso da Razão como parâmetro para determinação do que é ou não humano segue uma lógica simples: Enquanto a alma e sua existência são dados difíceis de serem comprovados empiricamente, isto é, não são palpáveis ou passíveis de medição, dependendo da fé daquele que os “observa”, a Razão é, acreditam os filósofos do Iluminismo, um fenômeno que pode ser medido, pela aproximação ou distanciamento de uma ação ou pensamento humano em relação ao que é tido como mais racional. É óbvio que, para eles, o parâmetro de comparação é a racionalidade ocidental, ou seja, toda lógica que se aproxima da lógica ocidental é tida como mais correta, dessa forma, mais próxima do ideal de humanidade que eles pregam. Diante da evidência de que a Razão selvagem é diversa da Razão ocidental, começam a surgir novas maneiras de definir essa diferença. A definição mais coerente naquele período era de que o selvagem era mesmo humano, pois apresentava algum timo de racionalidade, ainda que muito diferente da ocidental, simples e sem sofisticação, como seu próprio modo de vida. A partir daí, surgem duas linhas de argumentação teórica para explicar essa diferença que, no entanto, parte de uma mesma idéia: A de que o selvagem vivia em “estado de Natureza”, no limiar entre o animal e o humano, e que, portanto, se encontrava na “infância da humanidade”, sem nunca ter desenvolvido. Observá-lo era como observar o próprio momento da criação. Eram seres sem história, povos que sempre viveram e continuariam a viver sem modificarem seu modo de vida, imutáveis e imunes à marcha da história. A primeira linha teórica, que teve em Cornélius de Pauw seu mais célebre defensor, acreditava que o selvagem era um ser humano degenerado, derrotado pela Natureza, que não teve forças para se desenvolver. Vivia na “infância da humanidade” porque não teve condições de alcançar a “maturidade” (Que seria o estado do homem ocidental), curvando-se como um velho ante às dificuldades impostas por seu meio ambiente (é preciso lembrar que o Novo Mundo era constituído pelas Américas, África e Oceania, de clima predominantemente tropical e, portanto, bastante hostil na visão de um europeu). O selvagem era uma criança senil para Pauw. Era dessa maneira que ele procurava explicar a “preguiça” do selvagem, uma idéia que surgiu nessa época é que é muito popular ainda hoje em dia. Seria um ser incapacitado moral e fisicamente, levando uma vida vegetativa. O “estado de Natureza” para Pauw, era degradante, pois mantinha o homem ao nível dos animais. Essa visão do selvagem era especialmente cara aos administradores e moradores das novas colônias, pois justificava e legitimava a prática da escravização dos nativos; se estavam tão distantes da humanidade e tão próximos da humanidade, poderiam, sem que isso implicasse em qualquer tipo de culpa, “domesticá-los” e utilizá-los nos serviços pesados como se faz com um animal selvagem. Já a segunda linha teórica, surgida nesse período, via o selvagem como um ideal de vida. Seu principal propugnador era o filósofo francês Jean-Jacques Rousseau. Para ele, o “estado de Natureza” proporcionava a felicidade ao homem, pois ele se encontrava livre de leis opressoras e de um modo de vida que subjugava os indivíduos, como seria o caso da sociedade ocidental. A civilização traria invariavelmente a infelicidade ao homem, tolhendo sua liberdade através da moral e do Estado. O selvagem gozaria da ingenuidade e da pureza originais do homem, como uma criança desconhece o mal (afinal, ele se encontrava na “infância da humanidade”). Viveria numa sociedade igualitária, sem hierarquias e sem conhecer a repressão e a submissão ao poder. Já o homem ocidental teria perdido de vista sua natureza inocente, embrenhando-se na organização de uma sociedade que massacra seus indivíduos. Rousseau cria a figura do “bom selvagem” para caracterizar e se opor à imagem do “mau civilizado”. Dessa forma, ele constrói uma crítica à sociedade e à cultura ocidentais que se utiliza do conhecimento sobre uma outra cultura. É a primeira grande crítica que vem de dentro da sociedade ocidental contra si própria, constituindo-se na primeira tentativa de autocompreensão do homem ocidental que se utiliza do “outro” como contraponto. Não por coincidência, é a partir de Rousseau que começam a surgir as primeiras idéias de se construir uma sociedade ocidental baseada na igualdade entre os homens, que vai desembocar nas primeiras idéias e teorias socialistas e comunistas, extremamente críticas em relação à cultura ocidental; e também, não por coincidência, Rousseau vai ser um dos pensadores que mais influenciaram a Revolução Francesa. A noção do “bom selvagem’ vai ainda alimentar o Romantismo nas artes e na filosofia, dando início às concepções nostálgicas do paraíso e da ingenuidade perdidos pelo homem. Embora divergentes, essas duas linhas teóricas guardam entre si uma concepção que é comum: o selvagem, enquanto o “outro”, nunca é considerado em si mesmo. O ocidente olhava para si mesmo através desse “outro”, mas sem procurar entendê-lo em sua diversidade. Fosse para promover uma idéia do bom ou do mau civilizado, o selvagem nunca era entendido a partir de si mesmo: ele era sempre pior ou melhor, nunca apenas diferente. O homem ocidental continuava sendo o referencial de toda interpretação e comparação cultural. Isso é o que se costuma chamar de Etnocentrismo e que significa tomar sua própria cultura como centro e medida de toda e qualquer comparação com outras, promovendo uma valorização ou desvalorização do outro, a partir do sistema de valores aceito pela cultura daquele que observa. O que esses filósofos do século XVIII fizeram foi elevar ao nível filosófico uma discussão que se travava antes no âmbito do senso comum, De qualquer forma, eles começaram a definir o Homem como objeto de estudo, de uma maneira pré-científica, mas que vai ser o primeiro grande passo em direção à constituição da Antropologia, enquanto ciência. É nessa época que se forma o par viajante-filósofo: o primeiro recolhe dados e informações sobre os povos selvagens e os entrega ao segundo, que vai ordená-los e analisá-los, procurando sistematizar o conhecimento que se tem desses povos. Essa forma de estudar o outro vai se desenvolve no século seguinte. O século XIX se caracteriza pelo surgimento da ciência positiva e do evolucionismo como teoria do desenvolvimento da humanidade. Baseado nas teorias de evolução biológica das espécies apresentadas por Charles Darwin, o evolucionismo introduz a noção de história nos estudos dos povos nativos do Novo Mundo. Para os estudiosos do período, à evolução biológica do homem corresponde uma igual evolução cultural, através de estádios e etapas que caracterizam níveis que vão do mais primitivo ao mais evoluído. Culturalmente falando, nesses esquemas o estádio superior era ocupado pela civilização ocidental, enquanto os demais povos do planeta se distribuíam numa escala decrescente pelos estádios imediatamente inferiores. Essa visão introduz duas idéias novas: a primeira é a de que os povos chamados “selvagens” possuíam uma história, que era a história da espécie humana, representando os estádios mais inferiores ou primordiais dessa história evolutiva; e a segunda, como conseqüência da primeira, é a de que esses povos não eram mais “selvagens”, mas sim “primitivos”, fósseis vivos que documentavam a caminhada do homem rumo à civilizado. Esses novos conceitos têm algumas conseqüências notáveis. A primeira delas é a reformulação da idéia de que os nativos estavam na infância da humanidade. Não que essa idéia tivesse sido abolida pelos evolucionistas, mas ela tinha agora um novo significado: se eles se encontravam na infância da humanidade, poderiam atingir sua maturidade através de um processo de aceleração de sua história. Em outras palavras, se esses povos estavam atrasados em relação ao homem ocidental na linha evolutiva, eles poderiam, com ajuda neste último, “queimar” as etapas evolutivas que os separavam, estando dessa forma habilitados a ingressar na civilização. Esse raciocínio passou a justificar, de uma maneira diferente, uma mesma prática: cabia agora ao homem ocidental a tarefa de civilizar os nativos de sua colônia, para que eles pudessem atingir a plenitude de uma vida evoluída, podendo assim melhor servirem aos propósitos da colonização e dos colonizadores. Outra dessas conseqüências é a introdução da noção de progresso, conseqüência da idéia de uma história evolutiva. Isso fez acelerar processos de dissolução e integração desses povos, vistos como atrasados, às sociedades que se formavam nas colônias como nações em nome do progresso e da modernização. Sobreveio a constatação de que, como resultado imediato desse processo, os povos nativos estavam fadados ao desaparecimento enquanto grupos autônomos, seja pela desintegração das suas culturas tradicionais, seja pelo extermínio promovido contra eles em várias situações nas quais eles eram vistos como um “entrave” ao progresso. No final do século XIX, o homem ocidental começou a montar grandes museus etnográficos com o intuito de documentar, através de grandes coleções de artefatos nativos, a existência desses povos que pareciam condenados à extinção. Esses museus terão um papel fundamental no desenvolvimento da Antropologia, que será descrito mais adiante. Na base das noções de evolução e progresso e que vai ser sua instância legitimadora, está a concepção da Ciência. Seu principal propugnador é o filósofo francês Augusto Comte, que introduz o Positivismo como filosofia que vai dominar o pensamento ocidental no período. Para Comte, a Ciência corresponde ao estádio mais avançado do pensamento humano, a maneira mais evoluída de percepção pelo homem do mundo que o cerca. A Ciência vai se caracterizar pela constituição de um método racional para processar essa percepção, um método que privilegia a observação empírica dos fenômenos naturais e sociais para apreensão da realidade material em que vive o homem. Por ser uma filosofia evolucionista, o Positivismo, como base da Ciência do século XIX, vai permitir que o etnocentrismo passe a ter uma base científica e que todos os povos passem a ser classificados e definidos em relação àqueles que ocupariam o estádio tido como mais avançado e superior da evolução humana: a civilização ocidental. A Antropologia começa a se constituir como ciência nesse contexto. Substituindo a figura do filósofo do século XVIII, surge o cientista. No nosso caso, o antropólogo, aquele que vai procurar conhecer e explicar cientificamente a espécie humana em sua universalidade. A prática não se altera: o antropólogo continua, como o antigo filósofo, procurando sistematizar os dados recolhidos pelos viajantes. Surge assim o “antropólogo de gabinete”, que fica em casa procurando montar esquemas explicativos da história da evolução cultural do homem através de dados colhidos por terceiros. Nesse período, são produzidas obras monumentais, tão monumentais quanto a tarefa a que esses “antropólogos de gabinete” se propõem: contar a história do homem na face da Terra. Em geral, esses antropólogos eram diretores ou especialistas ligados aos grandes museus etnográficos que, pela quantidade de documentação cultural dos vários povos que guardavam, tornavam-se o espaço ideal para se praticar a Antropologia na época. Esses “homens de ciência” procuravam levar para os museus especialistas de várias áreas (Direito, Medicina, Geografia, Botânica, Zoologia, Psiquiatria, etc.), para que, financiados por aquelas instituições, fizessem expedições científicas entre os povos primitivos com o intuito de recolher material para os museus e dados para suas pesquisas de gabinete. Esses especialistas substituíram os antigos viajantes, constituindo-se em mais um passo em direção à Antropologia moderna: a introdução da idéia de que somente um especialista treinado para a coleta de dados pode observar e produzir um conhecimento empírico de algum valor sobre esses povos, através da aplicação de métodos e técnicas de pesquisa cientificamente elaborados. Da mesma maneira, como foi mostrado anteriormente, uma mesma idéia básica pode produzir duas linhas de pensamento que se opõem. Não foi diferente no século XIX. Se, por um lado, o evolucionismo lançava um olhar otimista em relação aos povos primitivos, reconhecendo sua pertinência à história comum da humanidade e, por conseqüência, enxergando a possibilidade de um futuro digno para eles, por outro lado ele forneceu as bases “científicas” para o desenvolvimento de teorias que lhes negavam esse mesmo futuro, ou mesmo a unidade da espécie humana: as teorias racistas, que procuravam explicar a diversidade cultural do homem através de explicações baseadas em determinantes biológicos que tornariam determinados homens mais capacitados que outros, de acordo com as qualidades “inatas” às raças. As conseqüências desse racismo científico são bastante conhecidas, e mesmo tendo sido comprovada cientificamente a sua insuficiência como explicação da diversidade humana, ele teve grande penetração popular, tornando-se, infelizmente, senso comum. O MÉTODO ANTROPOLÓGICO: UM OLHAR ORIGINAL O século XX vê nascer a Antropologia moderna com estabelecimento das bases que fundamentam a Antropologia atual: o seu método. Abandonando a divisão de tarefas na coleta e análise de dados culturais, os antropólogos modernos fizeram a fusão entre o viajante e o teórico num só indivíduo: são eles próprios que vão observar os grupos culturais onde vivem, e são eles próprios que se recolhem em seus “gabinetes” para análise e sistematização dos dados colhidos. Esse novo método consiste na observação participante: o antropólogo, ao mesmo tempo em que observa um grupo, participa do mesmo espaço – não como nativo, pois isso é impossível e não faz parte do objetivo da pesquisa antropológica, mas como observador mesmo, - procurando olhar de perto os fenômenos sócio-culturais e as práticas cotidianas que compõem o universo cultural que ele quer compreender no tempo e no espaço de sua manifestação concreta. Fazem parte, portanto, da observação participante, o distanciamento físico, mas um distanciamento cultural, através do qual o observador procura não interferir sobre a realidade observada e, principalmente, não deixar que ela interfira “emotivamente” sobre si), e a sua capacidade de estranhamento em relação ao objeto (que é a capacidade do observador olhar para os eventos culturais de um determinado grupo como algo completamente diferente de tudo que já tenha observado anteriormente, tanto na sua cultura, como em outra qualquer). Ele pode fazer então um estudo intensivo de um grupo cultural que tem por objetivo, através do distanciamento e do estranhamento no momento da observação, apreender o ponto de vista do nativo, isto é, compreender a interpretação que os elementos daquele grupo fazem de si mesmos e de sua cultura. O antropólogo só tem acesso à realidade cultural de um grupo através das interpretações que seus nativos produzem sobre ela. A partir desse método, os grupos sócio-culturais passam a ser estudados em si e para si. O etnocentrismo científico é abandonado e criticado através do estabelecimento das bases do Relativismo Cultural na Antropologia: toda cultura deve ser estudada em seus próprios termos, e não mais a partir dos parâmetros culturais e valorativos daquele que a estuda. Essa concepção também põe fim ao domínio da visão evolucionista da Antropologia: os grandes esquemas de explicação teórica da história evolutiva linear, etapista e determinista do homem são deixados de lado pela nova noção de particularismo histórico das culturas, onde se reconhece a pluralidade das manifestações culturais humanas e a singularidade de cada desenvolvimento histórico-cultural. As culturas passam a ser encaradas como maneiras diversas e possíveis dos homens se organizarem em grupos, constituindo sistemas de vida que têm sua eficácia relativa como adaptação deles ao espaço e ao tempo em que vivem, sem que isso siga leis naturais de ordem biológica. As culturas não são mais encaradas como estágios de evolução, nem como superiores ou inferiores, mas como manifestações humanas particulares, que têm cada uma sua própria lógica interna, e que retratam a capacidade do homem de se adaptar ao meio ambiente e de se organizar em grupos das mais variadas maneiras. Os nativos não estão mais na “infância da humanidade”, mas são, sim, nossos contemporâneos. Surge também a noção de totalidade nos estudos antropológicos. As culturas devem ser estudadas em sua totalidade, como sistemas integrados. No século XIX, privilegiava-se o estudo dos traços culturais isolados, observando-se sua ocorrência nos diversos grupos para efeito de comparação entre si, sem atentar para os significados particulares que esses traços assumiam em suas culturas de origem. A Antropologia moderna afirma que é preciso antes apreender esses significados, para depois podermos tentar compará-los. Um costume só pode ser seu significado apreendido quando estiver relacionado ao contexto cultural particular no qual ele se origina. Portanto, o método antropológico moderno supõe, ou melhor, pressupõe um estudo da totalidade cultural de um grupo e das partes que a compõem através de um movimento circular: o estudo das partes em relação ao todo, e do todo em relação às suas partes. Quanto menor o universo observado, isto é, quanto menor o grupo social estudado, maior a possibilidade de apreensão dos significados da totalidade cultural e das partes que a compõem. Toda manifestação cultural deve ser observada no grupo que se está estudando, por mais insignificante que pareça ser à primeira vista, pois ela contém, em si, informações sobre a cultura desse grupo. A Antropologia observa desde as mais inocentes anedotas, até os mais grandiloqüentes eventos culturais de uma sociedade, pois são todos dados que a caracterizam e nos contam algo sobre ela. Através desse estudo “microscópico” da vida cotidiana, a Antropologia procura suas respostas. O estudo desse “infinitamente pequeno” nas culturas leva o antropólogo ao estudo dos símbolos, que são as menores construções culturais de um povo, aquilo que possibilita a comunicação entre seus membros. No curso, estudaremos mais aprofundadamente os símbolos e seu lugar nas culturas. O que precisa ser esclarecido aqui é que toda cultura produz seus símbolos, e eles se constituem na possibilidade de comunicação entre os indivíduos. Toda sociedade se baseia na troca, que é a base de todo relacionamento humano: ao se relacionarem, os indivíduos estão se comunicando, e a comunicação é uma troca sempre. Portanto, para a Antropologia, toda sociedade se baseia num princípio de reciprocidade entre seus elementos, constituindo redes de relações sociais, e toda cultura se realiza na troca de símbolos, de “coisas” que significam algo para os indivíduos postos em comunicação direta. Os símbolos têm sempre seu significado compartilhado socialmente pelos indivíduos de uma mesma cultura, e uma sociedade pode ser definida como uma troca generalizada de símbolos. Deve-se notar, no entanto, que as sociedades humanas e suas culturas são dinâmicas. Dinâmicas porque têm uma história, estando sempre sujeitas a transformações, seja por impulso interno ao grupo, seja pelo fato de que não são universos fechados e isolados, estando em contato com outras sociedades e culturas. Isso pode ser percebido na nossa própria sociedade através das transformações históricas permanentes pelas quais passamos. Dessa maneira, os significados que as atividades culturais assumem socialmente estão sempre sujeitos a mudanças. Os símbolos estão sempre sendo manipulados e reinterpretados pelos indivíduos. Por isso, toda cultura não é uma estrutura imutável e, por isso mesmo, toda cultura admite o conflito interno, quando a reciprocidade simbólica entre os indivíduos é quebrada. Bom, constituído esse novo corpo teórico, essa abordagem específica, esse olhar original que a Antropologia lança sobre os homens, ele se concretiza enquanto uma área autônoma do conhecimento humano, uma ciência com métodos específicos, que vai conviver com as outras Ciências Humanas, auxiliando-as e sendo auxiliada por elas no estudo do homem. Enquanto tal, ela independe de um objeto específico (determinada cultura de determinado lugar), isto é, enquanto abordagem científica ela ganha um grau de universalidade (ela pode estudar toda e qualquer manifestação cultural, em qualquer lugar). Por isso mesmo, quando no início do século havia o temor do desaparecimento da Antropologia, em conseqüência de um suposto desaparecimento dos povos “primitivos” (seu objeto privilegiado até então), ela se volta para o estudo também das sociedades ditas “complexas” (que têm semelhanças ou se baseiam na sociedade ocidental). Enquanto ciência que procura estudar o outro e suas manifestações sócio-culturais, ela pode ser aplicada ao estudo de qualquer grupo humano, inclusive o nosso. Assim, a Antropologia passa a estudar também o homem ocidental. Começamos a olhar antropologicamente para nós mesmos, na busca de uma autocompreensão, e o outro não precisa mais estar além-mar para ser estudado; o outro poder ser aquele que consideramos o nosso “próximo”. Através do estranhamento e distanciamento de nossa própria cultura, podemos estudá-la antropologicamente, procurando melhor compreendê-la. A Antropologia se realiza, portanto, num duplo movimento interpretativo de culturas que Roberto da Matta bem definiu num quase teorema e que bem resume seu método: tornar estranho o que nos é familiar e familiar o que nos é estranho. Como toda ciência interpretativa – aí incluída a Psicologia e sendo esse o ponto de aproximação e encontro entre ambas -, a Antropologia procura penetrar e compreender a subjetividade presente nas manifestações humanas, e o faz procurando traduzir os significados particulares de uma cultura para outra. Nesse sentido, não difere muito do trabalho da Psicologia, que procura compreender e traduzir os significados profundos das motivações e comportamentos dos indivíduos através do estranhamento destes em relação às suas práticas mais cotidianas, familiares e inconscientes, dando-lhes acesso à sua subjetividade e à possibilidade de uma reflexão sobre si mesmos. Antropologia e Psicologia são ciências que se completam na compreensão do indivíduo e de seu coletivo, seja na vivência coletiva da individualidade, seja na vivência individual da coletividade. Indivíduo e grupo são, dessa forma, indissociáveis enquanto instâncias que se definem a existência do homem enquanto sujeito da História, seja ela história de uma vida, seja ela história da humanidade.