textos curso de pós - Stoa

Propaganda
1
Educação e pensamento musical: a improvisação inserida no processo de
configuração do pensamento musical através de uma cognição criativa.
A proposta é que o desenvolvimento da percepção se integre na educação como um elemento constituinte do
pensamento musical. Parte-se do fato de que a forma como o sujeito constrói a sua percepção condiciona a
estruturação de seu pensamento musical. A percepção musical é vista aqui inserida num processo de cognição
e se constrói no contato efetivo do sujeito com o fazer musical (ouvir, tocar, criar, interpretar). A percepção é
gradativamente configurada e manifesta já um modo de pensamento musical. A improvisação se coloca como
um meio privilegiado de promover esta configuração da percepção e por conseqüência do pensamento musical.
Neste sentido se propõe uma mudança de procedimento que visa colocar o exercício criativo através da
improvisação a serviço da configuração de suas estruturas cognitivas.
Rogério Luiz Moraes Costa – USP.
O desenvolvimento da percepção musical tal como esta é tratada no curriculum usual
da maioria das escolas de música (inclusive nos cursos superiores) se insere em uma
mentalidade que visa principalmente a conservação e a aquisição de um conhecimento
musical que é pré-dado e cristalizado. A percepção é perseguida, assim, como o
desenvolvimento de uma habilidade apurada para apreender da maneira mais detalhada
possível, objetos ou fenômenos musicais estáticos, sintéticos e representativos de um
repertório histórico cristalizado (geralmente limitado ao campo da música ocidental européia
dentro do seu período da chamada prática comum – circunscrita, portanto ao sistema tonal
em seu momento de maior coesão - que vai do período Barroco ao Romantismo. Na
realidade é uma perspectiva romântica que se perpetua nestas práticas educativas.) e o uso
(leitura e escrita) de uma forma de notação específica deste mesmo período1. Este tipo de
procedimento parece ignorar que o repertório é um fenômeno dinâmico, em constante
expansão em contato com o contexto complexo de onde emana (músicos, público, etc.) e
que, enquanto produto de uma linguagem em ação, este mesmo repertório se constrói na
prática e na vivência com o fazer musical. Não se trata aqui, obviamente, de propor que se
ignore este período tão importante da história da música, mas de deixar de usá-lo como a
referência única e permanente para o desenvolvimento da percepção. Trata-se de pensá-lo
1
É importante ter em mente que o pensamento musical não se dá através da notação (é claro que para
alguém familiarizado com uma determinada forma de notação, esta se torna uma ferramenta poderosa para a
atuação deste pensamento. E mais, o entendimento e a utilização de um determinado sistema de notação
desenvolve um apurado senso de percepção o que, evidentemente, facilita o exercício do pensamento
musical). No entanto a elaboração interna, o entendimento da notação por parte do músico depende de sua
vivência prática (tocar, ouvir, dançar) com a música e do seu correto entendimento das relações entre esta
prática e a estrutura da notação. Em última análise notação não é música. Notação é representação. É
principalmente símbolo (o signo que estabelece com seu objeto uma relação baseada em convenção arbitrária)
no sentido Peirciano. Como todos os signos, a notação tem traços indiciais e icônicos também. São estes
traços icônicos da notação tradicional (as notas mais agudas são escritas mais para cima, a densidade textural
sonora se revela visualmente numa partitura, etc.) que fazem dela também, um meio para o desenvolvimento
da percepção. Sem querer alongar esta discussão semiótica é importante ter em mente o fato de que várias
notações são e seriam possíveis para os fenômenos musicais e que um estudo de percepção centrado no
aprendizado de uma determinada notação – suas relações com a música e seu uso – é um estudo que coloca na
frente do contato com o objeto, o contato com uma de suas representações. Enfatizo aqui a palavra “centrado”
para que fique claro que não estou, de modo algum, sugerindo que se ignore o aprendizado da notação
tradicional.
2
como um capítulo desta história e não como seu modelo principal. Citando Boulez, trata-se
de utilizar os modelos como pontos de partida para um fazer musical criativo:
O que exige de nós o modelo, mesmo se nós nos defendemos de sua presença: que o
sigamos, deformemos, esqueçamos, reavaliemos? A memória ou a amnésia? Nem uma nem
outra, mas sim uma memória deformante, infiel, que retém da fonte aquilo que é
diretamente útil e perecível. Uma biblioteca?Sim! Mas que ela não exista a não ser quando
a requisitemos.E mais!É necessária uma “biblioteca em fogo” que renasça perpetuamente
de suas cinzas sob uma forma sempre imprevisível e inapreensível.(Boulez, 1989:437).
Evidentemente aqui Boulez trata principalmente da questão da composição e da
interpretação. No entanto, acreditamos que este pensamento voltado para a criação a partir
do qual Boulez formula uma relação com o repertório histórico como ponto de partida para
uma atitude ativa e criativa por parte do músico é o mesmo que deve nos guiar em busca de
uma educação musical que busque os mesmos objetivos. Por exemplo, a habitual forma de
se trabalhar a percepção, unicamente através da utilização de livros com leituras cantadas
e/ou solfejadas e ditados parece não dar conta da múltipla complexidade da produção
musical contemporânea, das vivências que emanam do fazer musical e que o músico
(pensado enquanto um ativo agente no fazer musical) deve experienciar para se habilitar
como formulador de idéias musicais, tanto enquanto compositor quanto como intérprete.
Além disto, as habilidades trabalhadas naquele tipo de abordagem são basicamente ligadas a
uma percepção e leitura rítmica, melódica e harmônica (e quem diz que a música é feita só
de melodias, ritmos e harmonias?) que é limitada pelos condicionamentos impostos pela
notação tradicional2.
Este tipo de aprendizado não conduz o músico, por exemplo, a uma adequada
interpretação de estilos musicais populares como o samba e o jazz que incorporam em seu
modo de funcionamento eminentemente prático, inúmeras nuances de articulação, tempo,
dinâmica e mesmo de afinação - estas nuances são, na maior parte das vezes ligadas a
convenções de estilo culturalmente determinadas. Não dá conta, tampouco, da complexidade
da escrita contemporânea das intenções musicais da música continuamente nova, isto sem
falar na execução adequada do próprio repertório sobre o qual, supostamente se baseia este
tipo de processo de aprendizagem. Isto devido ao fato de que por mais que o compositor se
esforce para controlar a interpretação através de uma escrita detalhada, sempre haverá um
certo grau de descontrole que só se resolve no momento da performance e devido a atitudes
tomadas pelo intérprete.
A abordagem que eu proponho aqui está ligada a uma preocupação de se pensar a
música como uma linguagem artística em pleno movimento. A educação do músico deve
então habilitá-lo a exercer criativamente esta linguagem, ser um produtor, e não somente
habilitá-lo a reproduzir o repertório. Encontro um paralelo com as novas idéias das
chamadas Ciências Cognitivas conforme delineadas por seus representantes
configuracionistas como Varela e Maturana que nos dizem em seu texto:
2
Segundo Nicholas Cook toda forma de notação já é implicitamente uma forma de análise e
consequentemente um alinhamento a uma forma específica de fazer/pensamento musical: “Our own notation
reflects an emphasis upon vertical relationships – the most characteristic feature of Western European music
– and a desinterest in rhythmic complexity. Each system of notation, then, involves its own pattern of
emphasis and omission. (COOK, 1987: 227).
3
Para esta nova abordagem os problemas não são pré-estabelecidos e sim “configurados,
ensejados a partir de um cenário (background)... sempre de maneira contextual. Para este
modelo, a representação não pode ter um papel central na cognição uma vez que o mundo
não é pré-estabelecido e sim configurado. A configuração de nosso mundo de objetos
requer o uso contínuo de nosso senso comum/.../A categorização (necessária para a
abordagem cognitivista que procura delimitar o mundo em espaços e problemas) de nosso
mundo natural não tem limites claramente definidos. O substrato filosófico do
configurativismo: conhecimento enquanto um problema de estar em um mundo que é
inseparável de nossos corpos, nossa linguagem e história social.... O contexto e o senso
comum não podem ser progressivamente descartados, eles são a essência da cognição
criativa. O mundo que experimentamos não é independente do observador. O processo
continuado de viver é que configura o nosso mundo (suas origens nos parecem definitivas).
Por exemplo: “Os mecanismos neuronais que subjazem à percepção das cores não são a
solução de um problema (capturar as propriedades cromáticas pré-existentes dos objetos),
mas sim a emergência em união da percepção de cores e dos atributos cromáticos”.
(Varela e Maturana , 1995, p.132).
Ora, tendo estas questões em mente, penso que o processo educativo, para habilitar
o músico à prática musical, deve se configurar enquanto um processo cognitivo que seja
resultado de uma relação ativa do músico com o repertório e com o fazer musical e que
tenha a improvisação como um de seus recursos mais significativos. Assim, através de um
intenso exercício de pensamento musical, se configuram gradativamente as estruturas que
se interligam de maneira simultânea e que formam as bases para o funcionamento cada vez
mais sofisticado deste mesmo pensamento musical.
A música que é um fenômeno essencialmente temporal e de natureza simultânea
pode ser apreendida pelo ouvido (numa atitude de ouvinte ativo), pelo corpo (numa
sintonia corporal com a organização temporal proposta pela música, ato este que pode
delinear uma dança), mas, principalmente numa confluência de atitudes e percepções, pela
prática musical. Assim, o músico que está inserido numa prática de improvisação põe em
ação o seu pensamento musical e percebe, no seu nível de vivência, os objetos musicais
dinâmicos (o que inclui seus processos internos) em que se insere esta prática.
A elaboração por parte dos músicos, de projetos ou ambientes para a prática de
improvisação já incorpora de antemão uma reflexão e um pensamento musical que vai se
refletir numa configuração de novas conexões internas de cognição correspondentes aos
elementos (materiais e procedimentos) que serão trabalhados. Assim, num exemplo
possível, quando se propõe uma prática em que vários instrumentistas, partindo de uma
figura melódica curta, num contexto em que não se toma por base um pulso regular,
desenvolvem idéias musicais que dialogam, criando uma estrutura de perguntas e respostas
assimétricas, é possível trabalhar de maneira intensa, viva e criativa várias “habilidades”
musicais próprias de um pensamento musical mais contemporâneo. E, acima de tudo, o
processo e a produção – e não a reprodução - são valorizados. Aqui a questão da percepção
está ligada à imaginação, ao pensamento musical.
Neste contexto, o aprendizado da notação musical tradicional se coloca como uma
das possibilidades para o registro deste pensamento. Assim, não se trata de ignorar o
aprendizado desta notação, mas sim de contextualizá-la historicamente e colocá-la frente a
outros tipos de notação possíveis, mais adequados ou não aos objetos que elas ensejam
registrar. Pode-se neste sentido, propor vivências (que podem se dar sob a forma de uma
improvisação no “estilo de”, ou de audições acompanhando a partitura, etc.) com as
manifestações que geraram esta ou aquela forma de notação. Por exemplo, ao se tratar da
4
percepção, escrita e solfejo dos modos eclesiásticos tradicionais, nada mais consistente do
que improvisar sobre eles e sentir seus modos de organização intrínseca: os pontos de
apoio, as “tônicas” (finalis) e as “dominantes” (cofinalis), a colocação dos semitons na
escala e o livre fluir de um tempo não baseado em uma pulsação fixa, etc. Também para
entender e conseguir interpretar o jazz (cuja essência é por sinal o próprio processo de
improvisação), nada melhor do que improvisar sobre um tema típico (os chamados
“standards”) e, assim, captar (formando um repertório corporal interiorizado) os
procedimentos de deslocamento rítmico, os detalhes de acentuação e os complexos
relacionamentos que se estabelecem entre os ritmos improvisados e a pulsação subjacente.
Processos de improvisação que colocassem em jogo elementos presentes na música
contemporânea como as novas formas de organização da simultaneidade (harmonia), as
texturas complexas, a pulsação oscilante, as assimetrias, a complexidade rítmica, a
irregularidade, as ondas, os acontecimentos complexos, a geração e a manipulação de sons
e ruídos a partir de processos eletroacústicos que tornam possível a percepção e a
manipulação de microestruturas, etc., viriam completar um programa que teria como
objetivo ampliar ao máximo o repertório de vivências do músico, habilitando-o tanto para
uma interpretação ativa e criativa do repertório do passado quanto para uma prática
essencialmente criativa de composição e invenção.
Todo este programa se desenvolve de maneira efetiva com a utilização de um
instrumento (com sua conseqüente ligação corporal), seja este um instrumento musical
propriamente dito, a voz ou o próprio corpo tornado instrumento. Enfatizo aqui a questão
corporal uma vez que o que se torna significativo no corpo torna-se apreensão real,
cognição, conceito construído, gerador de novas configurações. Ao improvisar o músico
vai aos poucos se apoderando e desenvolvendo internamente as estruturas necessárias para
um desempenho criativo do pensamento musical. A improvisação é, assim, um modo de
tornar temporal o pensamento musical, colocar no tempo escalas, arpejos, relações,
modelos rítmicos, etc., de modo que, não só haja uma “corporificação” dos idiomas
(através da aprendizagem do instrumento), mas também um exercício que a cada vez
percorre com maior habilidade, superfícies cada vez mais amplas das possibilidades do
pensamento musical, num terreno que se desenha no próprio ato de improvisar.
Por outro lado, devido ao fato de que vivemos um momento em que temos à nossa
disposição (por meio de gravações e outros registros) toda riqueza da história da música
européia e de outras culturas, cabe ao professor organizar um programa de vivências
(audição, execução, análise, percepção, registro, etc.) com este repertório amplo, de modo
que ele se torne parte do ambiente necessário para o desenvolvimento do pensamento
musical por parte do aluno.
Este programa, evidentemente se inscreve numa perspectiva de renovação do ensino
de música voltada para uma prática criativa. A música pensada enquanto linguagem. E a
percepção pensada enquanto parte ativa do pensamento musical.
Concluindo, a educação é pensada aqui como o processo de configuração das
estruturas do pensamento musical enquanto um ambiente aberto e pleno de virtualidades,
inclusive e especialmente as ainda não exploradas, potencialidades da imaginação e
invenção musical.
Download