barrigadefreira

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Barriga de Freira
Antônio Panciarelli
Abril de 2015
1
O Convento das freirinhas esposas de Cristo fica na margem sul do Tejo, bem
próximo do Barreiro. Uma vivenda assobradada, com um jardim e relvado na parte da
frente e uma simpática horta nas traseiras. Mais ao fundo há uma pocilga com três
porquinhos e um galinheiro que garante os ovos para a produção de doces que,
vendidos na freguesia, ajudam no sustento do convento. Os ovos são de casa e o
açúcar vem do Brasil em forma de doação para as freirinhas.
Com os ovos de galinhas portuguesas e açúcar de além-mar, essas laboriosas
freirinhas tecem fios de ovos, produzem pastéis de Santa Clara, ovos moles de Aveiro,
barriga de freira (evidentemente) e uma infinidade de docinhos para glória do senhor
Jesus e o sustento da casa.
O convento é dirigido com mão de ferro pela Madre Superiora e pianista
diletante Ermelinda dos Prazeres. Ela está no comando desde há muitos anos e
ninguém se lembra mais de como ela foi parar ali. Seus dias são sempre devotados e
ela não abre mão da rotina de todo-o-santo-dia. Acorda às cinco da manhã, faz suas
orações no catre, de joelhos, pede proteção à Virgem de Fátima e ao Menino Jesus de
Praga e segue para a capela para as matinas. Confere se todas as irmãzinhas estão a
postos, com o hábito bem passado, unhas aparadas e o rosário entre as mãos.
Comanda as preces matinais, depois passa para a sala de refeições e distribui o
pequeno almoço entre todas.
Depois da primeira refeição, irmã Ermelinda repassa as tarefas do dia e vai dar
comida aos porquinhos, milho para as galinhas e começa a recolha dos ovos para o
preparo dos doces.
A fiel escudeira da madre Ermelinda é a irmãzinha Eugênia, menina-moça na
flor dos seus dezassete anos e que chegou ao convento ainda não tinha completados
os dez anos de idade. Fruto de um mau passo da senhora sua mãe, que engravidou do
marceneiro da aldeia e não se casou. A menina foi prometida, ainda no ventre, à Nossa
Senhora de Fátima e tem por seu nome completo Maria Eugênia de Fátima de Jesus,
suntuoso e pesado nome que ela carrega com um misto de orgulho e vergonha. Todos
sabem que a menina foi fruto das faltas de vergonhas da mãe que se entregou a um
homem sem eira nem beira. A marca do pecado ficou estampada no nome da pobre
rapariga que, tão logo completou os nove anos, foi entregue à irmã Ermelinda para
crescer sob as leis de Cristo Nosso Senhor. Desde então, nunca mais colocou os pés
para fora da vivenda e tornou-se uma espécie de fiel seguidora da madre superiora.
Além disso, tem a incumbência diária de lavar os ovos, separá-los por tamanho e
tonalidade, levar para a cozinha, quebrá-los na tigela para a lida dos doces. A menina
Eugênia, como é chamada por todas as outras, nunca reclama, nunca levanta a voz,
sempre obedece aos desígnios do Senhor. É comum, no meio da noite, irmã Ermelinda
chamar a pequena para o pé de si e dormirem juntas, sempre louvando a Deus no
aconchego de seu catre.
2
Na cozinha, comandando os tachos, está irmã Florinda de Assunção, já entrada
na casa dos setenta e conhecedora de todas as receitas de doces e bolos que são
diariamente preparados no convento para posterior venda na freguesia. Irmã Florinda
labuta na cozinha desde sempre e não se entende lá muito bem com a madre
superiora, razão pela qual não participa das matinas e não se submete muito ao férreo
controle da irmã Ermelinda. Como é a decana da casa e não se afasta da cozinha,
quase ninguém se importa com ela e, assim, seus dias são aborrecidamente passados
entre os tachos e os doces.
Alem de tomar conta dos tachos, irmã Florinda também cuida de uma
plantaçãozita no fundo de sua cozinha. Quase ninguém entende o que são aquelas
folhas verdes que nunca dão flores ou frutos. Mas ai daquela que encostar as mãos em
sua pequena horta que, dia sim, dia não, é regada com leite fresco.
Carmém Lúcia também vive há muito no convento e detesta doces e açúcares.
Não se envolve com a cozinha, panelas, tachos, nem cuida da criação. Irmã Carmém
passa os dias bordando e cozendo as roupas do convento. São muitas meias para
cerzir, camisolas para refazer costuras, hábitos para remendar. Como não suporta o
cheiro enjoativo dos preparados que vêm da cozinha, fica o tempo todo na sua cela às
voltas com a roupa. Ela se distrai usando um pouco de rapé para passar o tempo. Ela
recebe esse rapé de um rapaz que faz entregas quinzenais no convento. Segundo ele, o
rapé branco é originário dos Andes e tem o poder de deixar os nativos mais felizes e
descansados. Ele nunca deixa de trazer tal mercadoria andina para a irmã Carmém,
que o paga regiamente com o que sabe fazer melhor: sexo.
A outra noviça que habita o convento é Sofia da Luz, moça esbelta, loira como
uma espiga de milho maduro do Alentejo, e que tem um dom natural para fazer as
vendas de doces e bolos da casa. Duas vezes por semana ela sai para a baixa do
Barreiro e do Montijo para contatar os comerciantes e efetuar as entregas. Além disso,
é a única que sabe dirigir a velha carrinha do convento. Com Sofia não há dias ruins.
Todos os bolos são entregues a tempo e horas e o dinheirinho sempre pinga na
algibeira da madre superior. Além de vender os confeitos do convento, Sofia da Luz
tem uma paixão escondida por toiros e toiradas e, sempre que pode, esta a andar na
praça de toiros do Montijo, observando os forcados e toireiros em suas vistosas roupas
e labutas diárias. O prazer maior da noviça é assistir às corridas que, mensalmente,
ocorrem por aquelas bandas. Mas como são noturnas, é preciso fugir de sua cela,
correndo os riscos de ser descoberta. No verão, invariavelmente, menina Sofia salta a
janela e vai pra a praça de toiros observar a corrida e um forcado em particular: ela
tem uma quedinha por Jacinto, um moreno troncudo, de pernas fortes e tortas, que
trabalha como forcado. Outra noite dessas até ganhou uma rosa encarnada que o
moçoilo atirou da arena. Corada e meio sem jeito, ela foi esperar Jacinto nas traseiras
da praça para agradecer pessoalmente tamanha gentileza do intrépido forcado.
3
No final de agosto e da temporada de corridas, Jacinto recebeu uma notificação
das forças armadas, intimando-o a se apresentar à tropa para a prestação do serviço
militar obrigatório em África. Seriam dois anos de serviços à pátria. O aviso calou fundo
em Jacinto, que preferia mil vezes pegar o toiro na arena todas as noites a se meter em
armas e ir lutar no ultramar. O puto encontrava-se mesmo à rasca e resolveu pedir
ajuda à noviça Sofia.
Bateu às portas traseiras do convento já passava das nove da noite. Tudo
estava às escuras e o forcado tremia como vara verde, com medo de ser rejeitado.
Trazia consigo tudo o que possuía, amarrado em dois sacos presos às costas. Não
obteve resposta do lado dentro. Decepcionado, Jacinto pulou a cerca dos fundos, junto
à pocilga, e se aninhou no galinheiro à espera da noviça Sofia. Cansado, com frio e
fome, adormeceu e não reparou quando nasceu o dia.
“Ei, quem és tu”, perguntou meio indiferente a irmãzinha Eugênia, ao ver o
sujeito deitado e amarfanhado no galinheiro, quando foi buscar os ovos pela manhã.
Meio assustado, Jacinto respondeu como pôde:
- Desculpe lá, senhorinha, não quis assustá-la.
- A mim não assustastes nada. Só não estou acostumada a ver gajos como tu a
dormirem no galinheiro. Que fazes cá?
- Procuro a menina Sofia. Conheces?
- Pois, claro que a conheço. Mas o que quer com ela, ainda que mal perguntes?
- Preciso pedir asilo cá no convento e queria falar à menina Sofia.
- Asilo? Que diachos é isso?
- Preciso de um lugar para me esconder. Fui chamado à tropa e não quero ir para
África, percebes?
- Perceber, até percebo. Mas o que temos nós cá e as galinhas a ver com isto?
- Acho que nada. Por isso, procuro a noviça Sofia.
- E pensas que ela tem o tal asilo pra te oferecer? Ena pá!
- A menina pode interceder por mim junto à madre superiora, percebes? Não tenho
outro sítio para ir e se o exército põe-me as mãos, estou lixado.
- E por que um homem tão forte como tu tens medo de ir à tropa? Não é isso que
todos fazem quando chega a idade certa?
4
- Só pra lá vão os que não têm dois dedos de testa. Aquilo lá não tem ponta por onde
se pegue, miúda. Achas que quero ir lutar com os pretos assim de graça?
- Eu cá não sei dessas coisas. Muito pouco ou quase nada entendo de lutas e de tropas,
mas penso que cá não podes ficar. Isso aqui é um convento e somos apenas mulheres,
não se permitem homens no local. Não acredito que a menina Sofia possa te ajudar.
- Bem sei. Mas entendas que é por pouco tempo. O suficiente pra que eu me ajeite e
possa ir para o Brasil, percebes?
- Oiça lá, e o Brasil é melhor que África? Não percebo.
- Qualquer lugar é melhor que África, menina. Não estou cá pra lutar com pretos e
morrer sem necessidade. Isso lá é coisa pra doidos. Coisas de Salazar.
- Valha-me Deus! Não podes falar de política aqui no sítio, não entendes?
- Desculpa lá, e que me passo dos carretos com essa história. Aonde já se viu obrigar os
putos a irem para a tropa por dois anos? Não quero isso pra mim.
- E o que fazes cá na terra que é melhor do que a tropa?
- Hoje sou forcado no Montijo, mas pretendo ser um toireiro em poupo tempo. Se vou
para a tropa, lixo-me todo e não vou seguir meu destino, percebes?
Nesta altura da conversa, ambos já estavam sentados na palha, conversando
como velhos amigos.
- Não percebo muito dessa história de tropas e guerras com os pretos. Mas não é a sua
obrigação defender Portugal?
- E por que a menina acha que Portugal está a correr perigo para que eu o defenda?
Achas que os pretinhos lá em Angola e Moçambique estão a nos ameaçar? Que nada,
querem apenas viver na terra deles sem a nossa presença. Não temos nada que lá ir e
chatear aquela gente.
- Mas Angola e Moçambique não nos pertence? Sempre aprendi cá que são terras
nossas de ultramar Por que devemos deixar isso aos pretos?
- Por que as terras são deles, oras. O Brasil já não nos pertence e passamos bem cá
sem ele.
- Já agora, isso não sei. Nós cá não podemos passar sem o açúcar do Brasil. Fazia-nos
imensa falta se ficássemos sem ele.
- Pois, mas não precisas fazer a guerra com o Brasil pelo açúcar, pois não? Eles têm
tanto que não se importam de mandar um bocado cá pro convento da menina.
5
- Isso lá é verdade. A conversa está boa, mas preciso recolher os ovos antes que a irmã
Ermelinda dê pela minha falta. Há imensas coisas pra se fazer lá dentro.
- A menina pode chamar a Sofia pra mim, se faz favor?
- Poder chamar, posso sim senhor, já que não me custa nada. Mas não acho que a
madre superiora vá permitir uma coisa dessas. Nunca tivemos cá um homem antes.
Quer dizer, alem dos que veem trazer as mercadorias.
- Achas que poderia ter uma conversa com a madre superiora e pedir-lhe cá um
auxílio?
- Duvido muito. Mas vou lá chamar a menina Sofia para ti. Mas não saias daqui ou vais
arranjar sarilhos.
- Esteja descansada. Fico cá escondido até a que a noviça venha me ver. Deus lhe
pague irmãzinha.
- Prontos, vou lá levar os ovos.
Irmã Eugênia termina por recolher os ovos, dá milho para as galinhas e passa
para o interior do convento. Jacinto esconde-se atrás do galinheiro e fica à espera da
menina Sofia, que não tarda muito a aparecer.
- Jacinto, estás maluco ou o quê? O que achas que fazes aqui? Queres me lixar?
- Menina Sofia, desculpa lá, mas precisava muito falar consigo. Precisa me ajudar.
Tenho que me esconder aqui por uns dias até arranjar jeito de fugir para o Brasil
- Estás maluco, Jacinto? Achas que posso te esconder cá no convento? Andaste
bebendo, homem?
- Nem uma gota, menina Sofia. Passei a noite cá à espera da menina. Oiça, preciso ficar
escondido por uns dias até me ajeitar. É isso ou vou ser obrigado a ir para África.
Precisas me ajudar.
- Não posso te ajudar aqui. Se a madre Ermelinda nos apanha aqui estou lixada, não
percebes?
- Pois é com ela mesmo que quero falar. Vou apelar pro Menino Jesus de Praga.
- Penso que podes apelar até para o próprio Deus que não te safas, homem.
- Precisas me ajudar, menina Sofia.
-Acho que vai, é só me deixar falar com ela. Tenho certeza que vai entender meu
sofrimento. Não posso ir à tropa, veja se me entendes?
6
-Deixe estar. Vou lá dentro falar com a madre, mas não prometo nada. É capaz de
achar que me passei dos carretos. E tu, ficas bem quietinho ai. Lembre-se que não
pode dizer a ninguém que vou ver-te à praça de toiros, pelo amor de Deus.
- Esteja descansada menina. Não digo nada. Agora vê se te avias.
A irmã Sofia entrou rapidamente e procurou, esbaforida, pela madre Ermelinda
que se encontrava ainda na cela. Depois de bater à porta, Sofia pede permissão para
entrar.
- A madre superiora pode ouvir-me?
- Claramente, menina Sofia. O que desejas?
- Senhora, há um forcado nas traseiras pedindo para falar com a madre.
- Há o quê, menina?
- Forcado, madre, aqueles gajos que distraem o toiro na arena antes da entrada do
toireiro principal, percebes?
- Não percebo nada. Sejas mais clara, menina.
- Pois, então, há um rapazola lá da aldeia do Montijo, que trabalha na praça de toiros a
querer falar com a madre.
- E que raios quer comigo tal criatura?
-Isto lá não sei, por que não me disse, madre.
- Deixa estar, Sofia. Isto está mais a cheirar-me a sarilhos do que outra coisa. Mas diga
ao miúdo que vou sair em breve. Peça para esperar-me junto à porteira que cá dentro
não quero homens.
- Sim senhora, vou já dizer.
Madre Ermelinda términou as preces matinais, de joelhos, pediu proteção e foi
ter com o forcado. A esta altura as outras irmãs já tinham tomado conhecimento da
presença do gajo no convento e isto alterava toda a rotina matinal. Estavam todas a
conversar na cozinha.
- O que está a passar aqui na minha cozinha? Perguntou irmã Florinda ao ver tanta
agitação em sua área de trabalho.
- Estão todas a brincarem ou o quê? Não quero cá confusões em minha cozinha. Aqui
bastam-me os tachos.
7
- A irmã Florinda não percebeu o moçoilo na porteira a conversar com a irmã
Ermelinda? Parece que o puto quer poisar aqui no convento.
- A menina Sofia já conhece o sujeito, pois não?
- Parece que sim. Foi ela quem o pôs cá dentro.
- Não pus nada, apenas dei o recado do moço. Pareceu-me um tanto passado das
ideias. Acho que não quer ir à tropa.
- Oh menina Sofia e o convento é agora albergue para miúdos fugidos à tropa? Era só o
que me faltava. Ainda nos arranjava problemas com a Pide, pois não?
“Penso que não se devia obrigar ninguém a andar a tropa e ir lutar no ultramar”, disse
a menina Eugênia a entrar na conversa.
- É mesmo miúda? Tem piada isto que estás a dizer. Então os homens da terra agora
podem se recusar a defender o país, é isso?
- Não achas que já morreram portugueses demais por mundo afora, irmã Florinda?
- Mas nasceram muitos portugueses, entrementes. Isto faz cá parte da vida. Vive-se e
morre-se todos os dias. Se não tivéssemos ido ao Brasil não tínhamos agora açúcar
para fazer pastéis e sustentar o convento.
- Mas não precisamos matar os outros para obter açúcar, pois não?
- A menina Eugênia ainda não sabe nada desse mundo. As pessoas são más, filhinha.
Más como as cobras. Temos que nos defender e proteger o que é nosso, percebes?
Não vamos agora entregar a África aos pretos, nem penses nisso.
- Oh irmã, á África já não existia antes de lá chegarmos?
- Isso lá é verdade. Mas eram todos ímpios e não conheciam a palavra do Senhor.
Fomos nós que levamos a palavra de Deus aos pretos. Dizem até que comiam uns aos
outros. Deus nos acuda!
- E a África tornou-se nossa por isso? Não percebo.
- Vamos mais é deixar essa conversa pra outra hora. Vá lavar e separar os ovos que
preciso ainda fazer muitos pasteizinhos para adoçar a vida aos miúdos que vão à tropa.
- Era bom, era.
- O que disseste, miúda?
- Disse que vou já lavar, irmã Florinda. Já lavar.
- Bem me pareceu.
8
Após mais de hora de conversas ao portão, irmã Ermelinda entra no convento
seguida pelo forcado Jacinto. Entram pelas traseiras e caminham em direção à cozinha
do convento. Um pequeno alvoroço forma-se no refeitório, mas o silêncio volta a
imperar à simples passagem da madre superiora.
- irmã Florinda, tens algo de comer que dê ao miúdo?
- Pra já temos café, pão e fiambre.
- Isto basta. Prepare uma matula que o miúdo vai comer lá nas traseiras.
- Nas traseiras? No galinheiro, madre?
- Sim, por ora. Depois logo se vê. Não quero nenhuma irmãzinha deste convento lá
fora enquanto o miúdo estiver por cá, percebes?
-Percebo. Vou já preparar a matula.
Com a cabeça baixa, Jacinto agradeceu a comida ofertada por irmã Florinda e
foi para o galinheiro. Durante todo o dia, apesar do alvoroço dentro da vivenda,
nenhuma irmã se atreveu a por os pés para fora. Ficou-se a falar pelos cantos e ouvir o
barulho da bicharada porta foras.
Ao cair da tarde, irmã Carmém, preocupada com a falta de rapé em sua cela,
saiu e foi procurar saber por onde andava o entregador que não apareceu no dia de
costume. O convento parecia deserto, as luzes apagadas e o silêncio imperava nas
redondezas.
Sem tomar conhecimento das recomendações da madre superiora, Carmém
Lúcia saiu do convento e foi andar pelas traseiras da casa. Topou com Jacinto nas
portas do galinheiro.
- O que andas cá a fazer, miúdo?
- Nada senhora. Estou apenas à espera.
- E esperas o quê, ainda que mal perguntes?
- A madre superiora orar e achar o caminho certo.
- Oiça lá, estás a dizer que espera pelas orações da madre Ermelinda?
- Pois foi o que acabei de dizer. Ela vai dizer-me o caminho que tenho que seguir.
- Não estou a perceber isso, mas se a irmã te disse isso, penso que estás a falar a
verdade. Mas enquanto espera não quer entrar um pouco, já cai a noite e isto cá é
muito frio.
9
- Não sei se devo. A madre superiora disse que era pra eu esperar aqui sem me mexer.
- Podes entrar comigo. Aqui mando tanto quanto ela. Venha, vou arranjar algo para
que comas.
- Acho melhor não. Não quero irritar a irmã Ermelinda. Tenho medo que me mande
embora.
- Filho venha comigo, vais congelar se ficas muito tempo aqui. Vou dar-lhe algo quente
para beber
Meio a contragosto, o forcado seguiu a madre Carmém e entrou no convento
semi-escuro e vazio. Foram direto à cela da irmã. Ficaram imenso tempo lá dentro a
conversar.
Ao sair da cela, Jacinto, com muita fome ainda, deu um jeito de entrar na
cozinha para roubar alguns acepipes e, quem sabe, um copo de vinho. A longa
conversa com a irmã havia aberto seu imenso apetite. A cozinha estava fechada, mas
Jacinto forçou a porta, entrou sorrateiro e encontrou comida para saciar a fome.
Descobriu também um garrafão de vinho, encaixado embaixo da pia, e estava forrando
o estômago quando foi surpreendido por irmã Florinda de Assunção.
- Ora veja, temos cá um puto do Montijo a comer e beber à grande e à francesa, não
é?
- Desculpe lá, irmã, mas estava cá com uma fome imensa e julguei que não havia mal
se pegasse cá uma comidinha, pois não?
- Julgaste muito mal, meu malandro. O pouco que cá temos não é para a pança de
marotos como tu, devolvas já o que pegaste.
- Oh irmã, como vou devolver o que já comi? Tenha pena deste humilde servo de Deus
e não me ponhas na rua. Ainda estou à espera que a madre superiora, em sua infinita
bondade, autorize-me a cá ficar por uns dias.
- Ora, meu batoteiro, achas que me enganas com essa conversa finória? Nem penses
em cá ficar. Tens mais é que ir à Tropa. Onde já se viu um gajo parrudo e forte como
tu, querendo fugir às responsabilidades e acoitar-se em um convento de irmãzinhas
humildes e sem dinheiro? Era bom, era.
- Oiça,irmã. Não quero tirar nada das meninas, longe de mim fazer tal coisa. Mas posso
ser útil ao convento. Percebi que há imensas coisas que precisam cá ser arranjadas e
posso fazer isso como paga. O que me diz?
10
- Digo que cá não precisamos de homem que só vai nos trazer sarilhos. E de mais a
mais é vossa obrigação servir à pátria. O país precisa de soldados no ultramar e não é
justo que não queiras cumprir o serviço militar.
- A irmã, por acaso, já ando em Angola ou Moçambique? Conheces o inferno que é
aquilo? Não estou cá para morrer tão jovem, pois não?
- És um mandrião, isso é o que és. Aproveitando-se da bondade da madre superiora
para fugir à tropa. Nem penses nisso, meu malandro, cá não ficas. E largue já esse
vinho que isso não é para ti.
- Desculpa lá. Não devia ter pegado o vinho. É que andava com imensa sede e não
resisti. Mas posso pagar com o trabalho. O que me diz?
- Oiça, vou colher umas ervas nas traseiras e preparar um chá. Tomas o chá comigo e
depois despacha-te, que não estou para aturar forcados cá no sítio.
- Esta bem, mas é chá do que?
- Que isto importa? Bebas o chá e te avies.
Irmã Florinda e o forcado Jacinto ficaram a conversar na cozinha, enquanto ela
preparava o tal chá e o tempo foi passando. A noite chegou e o silêncio voltou a
imperar no convento das irmãzinhas.
No dia seguinte a vida retomou sua rotina no convento. Ninguém perguntou
nada e nada mais foi dito sobre o forcado que queria fugir à tropa. As irmãzinhas
retomaram os afazeres diários após a reza matinal. A menina Eugênia foi recolher os
ovos nas traseiras, irmã Florinda já estava a postos na cozinha com seus tachos e
doces, irmã Carmém retomou as costuras e os remendos e Sofia foi à freguesia fazer as
entregas de costume.
Nada mais foi dito ou perguntado sobre um forcado que pedira asilo ao
convento. Só se sabe que a pocilga amanheceu cheia de comida para os porcos.
Fim.
11
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