1 Pr. Rafael Alves Uma Compreensão de Reino de Deus no Evangelho de Marcos O escopo deste capítulo é estabelecer uma compreensão de reino de Deus em Marcos. Buscar-se-á essa compreensão em Marcos pela dinâmica do evangelho focada mais nas ações do que nos ensinos de Jesus. Em Marcos o reino de Deus é amiúde mais evidenciado nas ações de milagres e exorcismos de Jesus do que em suas breves seções de parábolas e ensinos. Isso nos dará uma aproximação maior daquilo que era a proposta de reino de Deus proclamada por Jesus. O evangelho de Marcos inicia a sua narrativa apresentando Jesus como o Cristo, o filho de Deus: Marcos 1,1 VArch. tou/ euvaggeli,ou VIhsou/ Cristou/ Îui`ou/ qeou/ÐÅ Essa apresentação é o título da obra, que é seguida da referência à profecia de Isaías 40,3 e Malaquias 3,1. E segue fazendo referência ao ministério de João Batista nos versículos 4-8 do capítulo 1; os versículos 9-11 fazem referência ao batismo de Jesus e os versículos 12-13 à tentação no deserto. No versículo 14, a narrativa transfere-se abruptamente ao evento da prisão de João Batista que só é detalhadamente relatada em Marcos 6,14-29. Isso sugere um conhecimento prévio do ocorrido, por parte dos endereçados da obra. Depois Jesus aparece, dando início ao seu ministério na Galiléia, ainda nos versículos 14-15, anunciando aquilo que era o conteúdo central da sua mensagem, o evangelho do reino de Deus, Richard A. Horsley nos apresenta um esboço do reino de Deus como tema do evangelho de Marcos. 1,15- o reino de Deus está próximo, tema da história toda; 3,22-27- o reino de Deus está implícito, declarado acontecendo nos exorcismos de Jesus; 4,3.26.30- parábolas do reino de Deus; 4,11- caráter secreto do reino de Deus; 9,1- o reino de Deus chegando com poder; 9,47- entrada no reino de Deus; 10,14-15- pertencer a/ receber o reino de Deus; 10,23-25- entrar no reino de Deus; 11,10- chegada do reino de Davi; 12,34- não longe do reino de Deus; 14,25- beber o vinho novo (aliança renova) no reino de Deus; 2 Pr. Rafael Alves 15,43- espera ansiosa pelo reino de Deus.1 Esse esboço mostra que o reino de Deus é o tema que permeia todo o evangelho. 2.1 O Anúncio do Reino Próximo e as Parábolas do Reino Em Marcos 1,14-15, após João Batista, Jesus inicia seu ministério na Galiléia, que se encontrava sob tempos turbulentos de revoltas e opressão, onde a idéia de um reino de justiça e paz era ardente na imaginação dos judeus. Ele aparece anunciando o reino próximo de Deus; o tempo está cumprido, e aquilo que há séculos fora anunciado pelos profetas e era esperado pelo povo sob expectativas diversas, o reino de Deus que haveria de fazer justiça ao povo contra os seus inimigos, está perto. Marcos 1,14-15. 14 E, depois que João foi entregue à prisão, veio Jesus para a Galiléia, pregando o evangelho do reino de Deus, 15 E dizendo: O tempo está cumprido, e o reino de Deus está próximo. Arrependei-vos, e crede no evangelho.2 O verbo no indicativo perfeito passivo, na terceira pessoa do singular peplh,rwtai indica o cumprimento do kairo.j o tempo daquilo que se esperava está cumprido, o reino de Deus é chegado e manifesto na pessoa de Jesus através do seu ensino e milagres. Quando João Batista e, depois dele, o próprio Jesus, proclamaram que o reino estava próximo, essa proclamação envolvia um sensacional grito e de despertamento universal significação. dotado de uma Proclama-se a aproximação do ponto decisivo divino, da história humana, que já era tão almejado, embora que seja com expectativas diversas.3 Marcos apresenta Jesus realizando uma sucessão de milagres por todos os lugares que percorria e pregando nas sinagogas. Primeiro, ele aparece HORSLEY, Richard A. Jesus e o Império: o reino de Deus e a nova desordem mundial. São Paulo: Paulus, 2004. p.81. 2 A BÍBLIA SAGRADA. Tradução: João Ferreira de Almeida. Edição revista e corrigida. Rio de Janeiro: Imprensa Bíblica Brasileira; São Paulo: Editora Vida, 1997. Obs: Todas as referências bíblicas citadas neste trabalho monográfico terão esta versão. 3 SHEDD, P. R. O Novo dicionário da Bíblia. 3 Vol. São Paulo: Edições Vida Nova; Junta Editorial, 1966. p. 1384. 1 3 Pr. Rafael Alves ensinando e expulsando um espírito imundo na sinagoga 1,21-27; a cura da sogra de Pedro 1,30-31; muitos que se achavam enfermos, e também expulsava muitos demônios 1,32-34; pregando e expulsando demônios 1,39; curando um leproso 1,40-45; anunciando a palavra e curando um paralítico 2,212; um homem da mão mirrada 3,1-5; nomeando os seus discípulos para que fossem, pregassem e curassem 3,14-19. Em 3,22 Jesus é confrontado pelos escribas com o discurso de Belzebul, e responde com parábolas dos versículos 23-30. A série de episódios em que Jesus exorciza demônios e as discussões em torno do significado dos exorcismos de Jesus nos evangelhos mostram que é precisamente por meio dessa prática de Jesus que o reino de Deus está derrotando o domínio romano.4 Em Marcos 3,20-35, Jesus abre sua seção de parábolas. O capítulo 4 abre a seção de parábolas, onde Jesus ensina a respeito do reino de Deus de forma parabólica. A primeira parábola de Marcos 4,1-20 usa a figura do semeador, “eis que saiu o semeador a semear”, esta figura é bastante comum na sociedade campesina, que luta para sobreviver do solo seco e rochoso da Galiléia. Na sua aplicação dos versículos 14-20, este é o que semeia o lo,gon a palavra, que é como a semente lançada sobre diferentes tipos de terreno, e que tem em potencial os frutos. A semente lançada ao pé do caminho é logo comida pelas aves do céu, pois vem o satana/j (satanás) ou adversário, e logo a tira de quem a recebeu ao pé do caminho. Satanás, segundo Ched Myers, é representado pelos “lideres sociais, cuja oposição é atribuída ao reinado de Satanás.”5 Aqueles que recebem a semente sobre pedregais; ouvem e recebem com prazer, mas não tem raiz em si mesmos, são temporãos, e sobrevindo qli,yewj h' diwgmou/ literalmente “caça;” tribulação ou perseguição, logo se escandalizam. Segundo Ched Myers skandali,zontai “é termo técnico para a incapacidade de aceitar ou manter a prática do discipulado.”6 HORSLEY, Richard A. Jesus e o Império: o reino de Deus e a nova desordem mundial. p. 105. 5 MYERS, Ched. O Evangelho de São Marcos. São Paulo: Paulinas, 1992. p, 219. 6 Idem. p. 220. 4 4 Pr. Rafael Alves Os que recebem a semente entre espinhos não dão frutos, pois os espinhos a sufocam, pois O cuidado do mundo, o engano das riquezas e a ambição por outras coisas, sufocam a palavra e esta fica infrutífera. Apenas a semente lançada sobre a terra fértil tem a capacidade de dar frutos. Jesus se coloca como semeador que lança a semente, ou que prega a palavra; kai. e;legen\ o]j e;cei w=ta avkou,ein avkoue,tw quem tem ouvidos ouça. “Esses elementos dramáticos na história refletem as experiências de Jesus e apontam para a necessidade de uma audição aberta e sequiosa.” 7 Em Marcos 4,11, Jesus declara que para os que estavam junto a ele com os discípulos é dado conhecer o musth,rion (mistério) do reino de Deus, mistério esse, que segundo Ched Myers são “ficções literárias, pois Marcos torna-os públicos em sua narrativa. Mas, para assegurar-se de que isso é nitidamente compreendido, ele acrescenta a imagem da lâmpada (Marcos 4,21s).”8 Em Marcos 4,21-25 Jesus dá continuidade ao seu ensinamento fazendo uso de novas parábolas. O mistério do reino de Deus é revelado através das parábolas que têm por finalidade tornarem claro o ensinamento do mestre, como diz a narrativa de Marcos 4,33 “E com muitas parábolas tais lhes dirigia a palavra, segundo o que podiam compreender.” Nos versículos 24-25 Jesus diz: “Com a medida com que medirdes vos medirão a vós, e ser-vos-á ainda acrescentada. Porque ao que tem, ser-lhe-á dado; e, ao que não tem, até o que tem lhe será tirado.” Tendo presente a semântica econômica da parábola do semeador e a menção anterior ao modion (com que o trigo era medido), esse provérbio parecia referir-se ao que a ideologia capitalista moderna chamada “determinismo de mercado.” [..] Essas imagens têm muito a ver com a luta do camponês para produzir em “medida” suficiente para sobreviver; na verdade, o verbo didonai também é usado para descrever o resultado material da semente na parábola (4,7s). Esta “sabedoria convencional” requer abdicação diante das organizações TURLINGTON, Henry. Marcos. Comentário Bíblico Broadman: Artigos gerais MateusMarcos. Tradução: Adiel Almeida de Oliveira. 8 Vol. Rio de Janeiro: Juerp, 1983. p. 363. 8 MYERS, Ched. O Evangelho de São Marcos. p. 220. 7 5 Pr. Rafael Alves presentes do poder, por mais injustas possam parecer. “A estratificação sócio-econômica sancionada; é inútil protestar”. É precisamente contra esse “realismo” misantrópico que Jesus adverte energicamente. Como dissesse: “Ao invés disso, escutai de novo o milagre da semente e da colheita”, Jesus se volta para as duas últimas parábolas do sermão.9 Nas parábolas seguintes Jesus preserva as figuras anteriores do agricultor e da semente, e os apresenta como a que o reino de Deus pode ser comparado no versículo 26: “dizia: O reino de Deus é assim como se um homem lançasse semente à terra.” Na parábola de Marcos 4,26-29 evidencia-se que o agricultor é ativo em dois momentos: em realizar a semeadura no versículo 26 e ceifar no versículo 29. A semente, porém, brota e cresce w`j ouvk oi=den auvto,jÅ não sabendo ele como. O reino de Deus é propagado tal qual o agricultor que lança a semente na terra, que por si mesma frutifica, o seu crescimento, porém, não pode ser controlado. Novamente o reino de Deus é apresentado como uma semente em Marcos 4,30-32, agora um grão de mostarda, que sendo a menor das sementes, tendo sido semeada, cresce e torna-se a maior das hortaliças, de tal forma que as aves do céu vêm se aninharem sob a sua sombra. A desproporção entre o tamanho da semente, comparado ao tamanho da planta madura “visa a infundir coragem e esperança na frágil comunidade do discipulado para a sua luta contra os poderes invasores.” 10 Após a seção de parábolas acerca do reino a narrativa transfere-se para uma nova seção de milagres de Jesus: acalmando a tempestade 4,36-41; o exorcismo do endemoninhado gadareno 5,1- 20; a cura de uma mulher com fluxo de sangue 5,25-34; a ressurreição da filha de um dos principais da sinagoga 5,35-43; curando uns poucos enfermos 6,5; enviando os seus discípulos e dando-lhes poder para pregarem, curarem e expulsarem demônios 6,7-13. A narrativa de milagres é interrompida pelo testemunho da morte de João Batista e retomada com a multiplicação dos pães e peixes 6,34-44; Jesus andando sobre o mar 6,48; Jesus curando por onde passava 6,55-56; o 9 Idem. p. 224. Idem. p. 225. 10 6 Pr. Rafael Alves exorcismo da filha da mulher Grega siro-fenícia 7,24-30; a cura de um surdo que falava dificilmente 7,32-37; a segunda multiplicação de pães e peixes 8,19; a cura de um cego 8,22-26. A boa nova para os pobres! O Messias galileu interpretou suas obras poderosas realizadas nos corpos dos pobres e das pobres da palestina como o início do reino de Deus, reino que os profetas anunciaram como salvação para os pobres e vingança contra os opressores (Sl 146; Is 11,4; 61,1-3).11 Assim o reino de Deus se fez concreto nos seus próprios corpos. 2.2 O Reino que Vem com Poder e a Figura da Amputação Em Marcos 8,34 e 38, Jesus chama a multidão e os discípulos a si e diz: Marcos 8,34 e 38. 34 E chamando a si a multidão, com os seus discípulos, disse-lhes: Se alguém quiser vir após mim, neguese a si mesmo, e tome a sua cruz, e siga-me. [...] 38 Porquanto, qualquer que, entre esta geração adúltera e pecadora, se envergonhar de mim e das minhas palavras, também o Filho do homem se envergonhará dele, quando vier na glória de seu Pai, com os santos anjos. Após o drástico convite de Jesus ao discipulado, com os imperativos de negarem-se a se mesmos avparnhsa,sqw e`auto.n e tomarem a sua cruz avra,tw to.n stauro.n auvtou/ e segui-lo avkolouqei,tw moi; cruz essa, que para o contexto imperial romano não existia outra conotação a não ser o instrumento pelo qual os seus dissidentes eram humilhados e executados, Jesus faz menção, de uma forma escatológica, da glória de seu Pai, depois Jesus revela aos seus ouvintes que alguns não provariam a morte sem que vissem chegado o reino de Deus com poder. Marcos 9,1 “DIZIA-LHES também: Em verdade vos digo que, dos que aqui estão, alguns há que não provarão a morte sem que vejam chegado o reino de Deus com poder.” O reino de Deus é estabelecido no exercício do poder de Deus, a força divina que restaura todo aquele que passa pela experiência do reino de Deus. 11 PIXLEY, George V. O Reino de Deus. São Paulo: Paulinas, 1986. p. 12. 7 Pr. Rafael Alves Este é o duna,mei dinâmico de Deus, o ato de poder que faz ser concreto o reino de Deus através dos feitos de Jesus. Este poder não é evxousi,an autoridade, mas poder dinâmico de Deus como Marcos 12,24, esse é o poder que reside em Deus em virtude da sua natureza. Nos ditos de Marcos 9,42-48, Jesus fala do problema da apostasia na comunidade fazendo uso da figura da amputação onde o sentido de salvar e perder se prolonga em três afirmações: “Se tuas (mãos/olhos/pés) te escandalizam, (afasta)-os... pois é melhor (Kalon Estin) entrar na vida (sem) eles... do que ser lançado (com eles) na Geena.” 12 A Geena é referência ao monte de lixo sempre fumegante de Jerusalém, as referências a mão, pé e olhos é aquilo que para os judeus são a “sede” dos nossos atos agressivos, a mão como membro através do qual se pode roubar, o pé referindo-se ao furto e a fuga, e o olho ao adultério. As expressões “entrares na vida aleijado; kullo.n eivselqei/n eivj th.n zwh.n” “entrares coxo na vida; eivselqei/n eivj th.n zwh.n cwlo.n” e depois “entrares com um só olho no reino de Deus; mono,fqalmon eivselqei/n eivj th.n basilei,an tou/ qeou/” indicam a zwh.n (vida) e a basilei,an tou/ qeou (reino de Deus) / como tendo o mesmo sentido. As referências a zwh.n, que é a vida no sentido da sua plenitude, em sua equivalência a basilei,an tou/ qeou/, aponta o reino de Deus onde no qual se pode entrar como se pode entrar na vida. O reino de Deus estabelece a vida, aquilo que escandaliza promove a morte. Amputar de si tudo aquilo que serve de tropeço é necessário para que se entre na vida ou no reino de Deus. “Escandalizar, geralmente traduzido como “fazer tropeçar” “(provocar tropeção”: skandalise), é termo técnico empregado em Marcos para designar a rejeição da mensagem do reino (6,3).” 13 O verbo infinitivo aoristo ativo eivselqei/n aponta para a entrada no reino de Deus, aquilo, porém, que skandali,zh| escandaliza, não pode entrar no reino de Deus, antes deve ser amputado. No reino de Deus se entra mutilado. 12 13 MYERS, Ched. O Evangelho de São Marcos. p. 318. Idem. p. 318. 8 Pr. Rafael Alves 2.3 O Reino de Deus e as Crianças Marcos 10,1-12 narra Jesus sendo interrogado pelos fariseus acerca do divórcio, no versículo 10 os discípulos o interrogaram acerca da mesma coisa. Jesus, porém, defende que não deixe o homem a sua mulher, nem a mulher o seu marido. Em Marcos 10,14-15 traziam crianças para que Jesus as tocasse. Essa prática era comum na comunidade judaica; levavam-se as crianças para que fossem abençoadas pelos rabinos famosos. No dia da Expiação havia o costume de fazer jejuar crianças de várias idades para depois levá-las aos sacerdotes ou anciãos, "para que estes as abençoassem e orassem por elas". Isto tudo era acompanhado de instruções de mais tarde esforçar-se na escola, de aprender e seguir corretamente os mandamentos.14 O termo usado por Jesus para designar a criança é paidi,a, são os infantes, crianças pequenas. Estas eram incomodo para a sociedade, eram como inúteis, insignificantes, marginalizadas, eram totalmente dependentes dos adultos. Jesus, porém, tira da margem da comunidade as crianças e as centraliza (Marcos 9,36). A condição social da criança na Palestina do século I era de total violência. Em Marcos a criança que Jesus toma em seus braços é pessoa e não símbolo. Ela é pessoa vulnerável a todo o tipo de exploração, como por exemplo, ser transportada do seio da família como escrava para saldar a divida dos pais até a vinda do ano jubilar, usadas em sacrifícios de cultos pagãos, o grande número de órfãos (e viúvas) em abandono. Marcos 10,13-15. 13 E traziam-lhe meninos para que lhes tocasse, mas os discípulos repreendiam aos que lhos traziam. 14 Jesus, porém, vendo isto, indignou-se, e disse-lhes: Deixai vir os meninos a mim, e não os impeçais; porque dos tais é o reino de Deus. 15 Em verdade vos digo que qualquer que não receber o reino de Deus como menino, de maneira nenhuma entrará nele. POHL, Adolf. Evangelho de Marcos: Comentário Esperança. Curitiba: Editora Evangélica Esperança, 1998. p. 251. 14 9 Pr. Rafael Alves O adjetivo demonstrativo, genitivo, neutro, no plural toiou,twn aponta que das tais é o reino de Deus. Jesus diz isso diante da condição social de total desprezo e dependência da criança. A respeito do versículo 15, Henry Turlington diz: O verbo de maneia nenhuma entrará (ouv mh. eivse,lqh| eivj auvth,n.) é usado com o duplo negativo grego, que é muito forte. O significado não é que há dois reinos, um presente aqui e outro vindouro; mas que, a não ser que se receba o reino como alguém necessitado, como quem não pode merecer as suas bênçãos, nunca, de maneira alguma se entrará nele.15 Jesus declara que qualquer que não receber o reino de Deus como menino, de maneira nenhuma entrará nele, e não quem se acha digno e merecedor dele. 2.4 O Diálogo de Jesus Com o Homem Rico Marcos segue com o diálogo do homem rico com Jesus, em Marcos 10,17-27. Após ser interrogado pelo homem rico a respeito do que fazer para herdar a vida eterna, Jesus propõe a ele o cumprimento da lei. Por sua vez, o homem afirma guardá-la desde a sua mocidade. No versículo 21 ocorre um novo chamado ao discipulado. o` de. VIhsou/j evmble,yaj auvtw/| hvga,phsen auvto.n kai. ei=pen auvtw/|\ e[n se u`sterei/\ u[page( o[sa e;ceij pw,lhson kai. do.j Îtoi/jÐ ptwcoi/j( kai. e[xeij qhsauro.n evn ouvranw/|( kai. deu/ro avkolou,qei moiÅ Jesus o amou, hvga,phsen, ou seja, “é aquela espécie de amor que, a despeito de afeição ou merecimento, procura deliberadamente ajudar, satisfazer as necessidades de outrem.” 16 Jesus, porém, declara no versículo 21: e[n se u`sterei/\ u[page( o[sa e;ceij pw,lhson kai. do.j Îtoi/jÐ ptwcoi/j( vende tudo quanto tens e dá aos pobres. A insistência do homem de que ele já observa esses mandamentos é obviamente falsa. É evidente que ele não pode TURLINGTON, Henry. Marcos. Comentário Bíblico Broadman: Artigos gerais MateusMarcos. p. 421. 16 Idem. p. 423. 15 10 Pr. Rafael Alves acatar a ordem de Jesus de vender os seus bens e dar aos pobres, não somente por que ele tem muitas posses, mas também porque está profundamente apegado a elas. A única maneira de alguém enriquecer na sociedade israelita antiga era tirando proveito de outras pessoas vulneráveis, por exemplo, defraudando outros pela cobrança de juros sobre empréstimos, o que era proibido pela lei da aliança, e obtendo controle das posses de outros (trabalhos, campos, famílias). Assim, este episódio mostra um exemplo negativo de um homem que ficou rico defraudando outros, desrespeitando os mandamentos da aliança.17 Diante da condição posta por Jesus, o homem rico retirou-se triste por possuir muitos bens no versículo 22. Jesus então declarou nos versículos 2324: pw/j dusko,lwj oi` ta. crh,mata e;contej eivj th.n basilei,an tou/ qeou/ eivseleu,sontaiÅ Como é difícil os que têm riquezas entrarem no reino de Deus. Diante da admiração dos discípulos com esta palavra, Jesus torna a repetir: pw/j du,skolo,n evstin eivj th.n basilei,an tou/ qeou/ eivselqei/n\ Alguns manuscritos trazem no versículo 24 “Filhos, quão difícil é para os que confiam nas riquezas entrarem no reino de Deus” como: evstin tou.j pepoiqo,taj evpicrh,masin A C 0233 157 180 579 597 700 892 1006 1010 1071 1243 1292 1342 1424 e outros. Manter-se-á aqui a forma do texto grego supracitado, embora a Bíblia usada em referência traga-nos a forma encontrada nestes manuscritos. Marcos usou de novo (como em 10,15) uma afirmação sobre “entrar no reino de Deus” (eis tem basileian tou theou eiselthein) para reforçar a sua ideologia alternativa; a solidariedade com os “menores” se estende do sistema da família para o sistema econômico. A incredulidade dos discípulos (10,26) mostra que não está absolutamente claro para eles que alguém possa salvar-se, se não puder salvar-se quem é piedoso e está no topo da escala social.18 HORSLY, Richard A. Jesus e o Império: o reino de Deus e a nova desordem mundial. p. 128. 18 MYERS, Ched. O Evangelho de São Marcos. p. 333. 17 11 Pr. Rafael Alves No versículo 25 Jesus diz que “é mais fácil passar um camelo pelo fundo de uma agulha do que um rico entrar no reino de Deus.” Explicações do tipo que diz que o “fundo de uma agulha” referia-se à uma pequena porta nos muros de Jerusalém não têm qualquer fundamento. Isso, até mesmo, contradiz o que Jesus diz aqui: entrar no Reino é mais do que difícil, é impossível à parte do agir miraculoso de Deus.19 Este provérbio não se refere a uma porta pequena em Jerusalém onde os camelos só conseguiam passar de joelhos, como dizem alguns comentadores, mas como diz Mulholland na referência supracitada, fala da grande dificuldade de um rico entrar no reino de Deus. Em Marcos 10,28 Pedro declara “eis que tudo deixamos e te seguimos.” Jesus responde sem aprovar ou desaprovar a declaração de Pedro e declara as bênçãos dadas àqueles que tudo deixaram por causa dele e do evangelho. A respeito da declaração feita por Jesus, Richard Horsley diz: Esta é uma declaração surpreendentemente reconfortante, relacionada com as coisas do mundo. A restauração deve acontecer “agora, neste tempo”. A frase “e, no mundo futuro, a vida eterna” é uma observação sem importância que remete e se refere à pergunta irreal do homem rico com a qual começou a questão econômica. O foco de Jesus “neste tempo” fica ainda mais real com o acréscimo no final de “com perseguições”. Ele não está se referindo a um “mundo encantado”. Com ênfase vigorosa, ele está falando sobre a renovação da vida camponesa vinculada a presença do Reino de Deus, que está acontecendo neste tempo a despeito das perseguições, antes que o Reino de Deus chegue com poder (Mc 9,1). O último “ditame da lei sagrada” de Jesus neste terceiro diálogo completa a instrução na economia da aliança com uma clara alusão as bênçãos da aliança. O respeito aos princípios econômicos igualitários, em que ninguém procura enriquecer aproveitando-se da vulnerabilidade de outros, resultará numa MULHOLLAND, Dewey M. Marcos Introdução e Comentário. São Paulo: Vida Nova, 1999. p. 163. 19 12 Pr. Rafael Alves (jamais ouvida) abundancia para todos na comunidade, embora sem ilusões sobre realidades políticas no mundo em geral.20 Essa declaração de Horsley mostra que já era presente a restauração promovida pelo reino, a renovação da vida camponesa ligada ao reino de Deus a despeito das perseguições. 2.5 O Maior no Reino de Deus e o Filho de Davi Jesus termina esse terceiro diálogo afirmando que “muitos primeiros serão os últimos, e muitos últimos serão os primeiros.” No caminho para Jerusalém, após o pedido de Tiago e João em Marcos 10,35-37; nos versículos 43-45, têm-se afirmativas equivalentes a esta: Marcos 10,35-37,43-45. 35 E aproximaram-se dele Tiago e João, filhos de Zebedeu, dizendo: Mestre, queríamos que nos fizesses o que te pedirmos. 36 E ele lhes disse: Que quereis que vos faça? 37 E eles lhe disseram: Concede-nos que na tua glória nos assentemos, um à tua direita, e outro à tua esquerda. [...] 43 Mas entre vós não será assim; antes, qualquer que entre vós quiser ser grande, será vosso serviçal; 44 E qualquer que dentre vós quiser ser o primeiro, será servo de todos. 45 Porque o Filho do homem também não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida em resgate de muitos. Diante do pedido de Tiago e João, Jesus faz uso da mesma lógica da declaração do versículo 31 “Porém muitos primeiros serão derradeiros, e muitos derradeiros serão primeiros.” nos versículos 43,44. “Aquele que quiser ser grande será o vosso serviçal,” “qualquer que quiser ser o primeiro será servo de todos.” A política igualitária sobre a qual Jesus insiste no diálogo seguinte (Mc 10,32-45) é coerente com a dimensão econômica igualitária da renovação da aliança das comunidades aldeãs israelitas. Persistindo em sua absoluta incompreensão, mesmo depois do terceiro anúncio de que os governantes de Jerusalém o condenarão e os romanos o executarão, dois dos HORSLEY, Richard A. Jesus e o Império: o reino de Deus e a nova desordem mundial. p. 129. 20 13 Pr. Rafael Alves seus discípulos pedem a Jesus que os faça sentar-se nas posições mais elevadas de poder à sua direita e à sua esquerda quando ele entrar na sua glória. Eles empregam uma imagem tomada do domínio imperial, como se esse fosse o objetivo último do programa de Jesus com relação ao Reino de Deus. [...] O seu programa era diametralmente oposto a esse domínio imperial. Na sociedade camponesa renovada, não somente não existem governantes, mas até os líderes servem aos outros. 21 Marcos segue com a cura dum cego, filho de Timeu, ao saírem de Jericó; dos versículos 46-52, e segue-se no capítulo 11,1-11 a narrativa da entrada de Jesus em Jerusalém montado num jumentinho. No versículo 10 a expressão euvloghme,nh h` evrcome,nh basilei,a tou/ patro.j h`mw/n Daui,d\ evoca a tradição da aliança davídica. “A questão é que a imagem de um rei davídico simbolizava substancialmente aquilo que este agente de Deus faria: libertar e restaurar a sorte de Israel, como fizera o Davi original.” 22 A esperança de um reinado glorioso e libertador, como fora prometido em 2 Samuel 7,16, aflora na imaginação daqueles que vislumbravam em Jesus, o cumprimento desta promessa. 2.6 Jesus é Interrogado Marcos 12 faz menção da parábola de um homem que plantou uma vinha e dos seus trabalhadores maus. Sequencialmente os líderes religiosos buscaram prendê-lo no versículo 12, mas não o fizeram porque temiam o povo. Depois mandaram alguns fariseus e herodianos para o apanharem nalguma palavra. A narrativa segue com uma série de questionamentos: primeiro os fariseus e herodianos questionaram Jesus se era lícito ou não pagar tributos a Cesar em 13-17, depois os saduceus o questionaram acerca da ressurreição em 18-27, em seguida, no versículo 28, um dos escribas o questionou acerca 21 Idem. p. 129,130. HORSLEY, Richard A; HANSON, John S. Bandidos, Profetas e Messias: Movimentos populares no tempo de Jesus. São Paulo: Paulus, 1995. p. 92. 22 14 Pr. Rafael Alves de qual é o primeiro de todos os mandamentos. Jesus respondeu de forma sábia e desconcertante todos os questionamentos em 15-17; 24-27; de 29-34 Jesus responde ao escriba: Marcos 12,29-34. 29 E Jesus respondeu-lhe: O primeiro de todos os mandamentos é: Ouve, Israel, o SENHOR nosso Deus é o único Senhor. 30 Amarás, pois, ao Senhor teu Deus de todo o teu coração, e de toda a tua alma, e de todo o teu entendimento, e de todas as tuas forças; este é o primeiro mandamento. 31 E o segundo, semelhante a este, é: Amarás o teu próximo como a ti mesmo. Não há outro mandamento maior do que estes. 32 E o escriba lhe disse: Muito bem, Mestre, e com verdade disseste que há um só Deus, e que não há outro além dele; 33 E que amá-lo de todo o coração, e de todo o entendimento, e de toda a alma, e de todas as forças, e amar o próximo como a si mesmo, é mais do que todos os holocaustos e sacrifícios. 34 E Jesus, vendo que havia respondido sabiamente, disse-lhe: Não estás longe do reino de Deus. E já ninguém ousava perguntar-lhe mais nada. Jesus respondeu em 30,31, juntando um trecho do shema Deuteronômio 6,4 e um trecho de Levítico 19,18, a respeito da obrigação que se deve ao próximo. Com isso, Jesus mostra que não pode haver amor a Deus sem amor ao próximo. O escriba não só concordou com a resposta de Jesus no versículo 32, como também citou a tradição escrituristica que dá prioridade ao obedecer, mais do que o culto no templo no versículo 33; (Oséias 6,6; 1Samuel 15,22). Em Marcos 12,34 a narrativa termina com a declaração de Jesus ouv makra.n ei= avpo. th/j basilei,aj tou/ qeou/Å Jesus não faz a ele um convite ao discipulado dizendo que o seguisse. Jesus ter dito não está longe “implica que a ortodoxia não basta; ela deve ser acompanhada pela prática da justiça com o próximo.”23 É compreendendo isso que se pode aproximar-se do reino de Deus. 2.7 A Ceia no Reino de Deus e José de Arimatéia 23 MYERS, Ched. O Evangelho de São Marcos. p. 380. 15 Pr. Rafael Alves Na ocasião da última ceia de Jesus em Marcos 14,25 “Em verdade vos digo que não beberei mais do fruto da vide, até àquele dia em que o beber, novo, no reino de Deus.” A festa da páscoa é transformada por Jesus em jejum; ele fala de um novo cálice no reino de Deus, de uma aliança renovada. Ele solenemente enuncia ao “fruto da vinha” (eufemismo judaico comum para designar o vinho) “até o dia” (heos tes humeras ekeines) em que beberia o “novo” (kainon) no reino de Deus. [...] Por ocasião do dia da grande festa judaica, lembrando a emancipação do Egito, Jesus recomenda a abstinência. A luta pela libertação não é memória passada, senão tarefa que sempre nos prende ao futuro. 24 Após ser traído em 10,42-45; preso em 10,56 e receber a sua acusação, “Rei dos Judeus” em 15,26, Jesus expirou em 15,37. Após a morte de Jesus, a narrativa segue dizendo no versículo 43: “Chegou José de Arimatéia, senador honrado, que também esperava o reino de Deus, e ousadamente foi a Pilatos, e pediu o corpo de Jesus.” A palavra para esperava é prosdeco,menoj que também pode ser traduzida como recebia, acolhia, aceitava. A narrativa de Mateus 27,57, diz que este também era discípulo de Jesus: Mateus 27,57 Oyi,aj de. genome,nhj h=lqen a;nqrwpoj plou,sioj avpo. ~Arimaqai,aj( tou;noma VIwsh,f( o]j kai. auvto.j evmaqhteu,qh tw/| VIhsou/\ William Hendriksen em seu Comentário do Novo Testamento diz: “Num certo sentido, esse homem havia se tornado um discípulo de Cristo (Mt 27. 57 b). [...] Lucas 23. 50,51 nos informa que ele não havia concordado com a decisão e ação do Sinédrio, condenando Jesus a morte (Lc 23. 50,51 a).” 25 Considerando Mateus 27,57 b e Lucas 23,50-51, e o comentário de William Hendriksen. A espera de José pelo reino de Deus revela harmonia ao ensinamento de Jesus, e mais, a crença de que este reino estava sendo estabelecido. 2.8 Uma Compreensão de Reino de Deus em Marcos 24 Idem. p. 432. HENDRIKSEN, Willian. Comentário do Novo Testamento: Marcos. São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2003. p. 844. 25 16 Pr. Rafael Alves A compreensão de reino de Deus que se transmite em Marcos é tipificada por parábolas ou termos equivalentes, como em Marcos 4,26 “E dizia: O reino de Deus é assim como se um homem lançasse semente à terra.” 9,43. “melhor é para ti entrares na vida;” e evidenciado nos milagres e exorcismos de Jesus. Em nenhum momento em Marcos Jesus define de forma direta: o reino de Deus é isto ou aquilo, mas sempre a que o reino de Deus pode ser comparado de forma parabólica (Marcos, 4,26,30). A partir desta análise chego à compreensão de que o reino de Deus é o cumprimento em Jesus, daquilo que já era esperança no coração do povo, o Messias. Concluo que o reino de Deus anunciado por Jesus no evangelho de Marcos é um projeto de justiça e paz e condenação dos poderes opressores do Império e dos líderes religiosos num plano imanente, concretizado na sua própria pessoa e ministério, como cumprimento das profecias messiânicas. Mas também, num plano escatológico, como aponta Marcos 13,24-27 é o estabelecimento definitivo do reino de Deus sobre o reino dos homens. Assim, a ideia de reino de Deus acontece num plano imanente e escatológico simultaneamente.