Uma compreensão de Reino de Deus no

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Pr. Rafael Alves
Uma Compreensão de Reino de Deus no Evangelho de Marcos
O escopo deste capítulo é estabelecer uma compreensão de reino de
Deus em Marcos. Buscar-se-á essa compreensão em Marcos pela dinâmica do
evangelho focada mais nas ações do que nos ensinos de Jesus. Em Marcos o
reino de Deus é amiúde mais evidenciado nas ações de milagres e exorcismos
de Jesus do que em suas breves seções de parábolas e ensinos. Isso nos dará
uma aproximação maior daquilo que era a proposta de reino de Deus
proclamada por Jesus.
O evangelho de Marcos inicia a sua narrativa apresentando Jesus como
o Cristo, o filho de Deus: Marcos 1,1 VArch.
tou/
euvaggeli,ou
VIhsou/ Cristou/ Îui`ou/ qeou/ÐÅ Essa apresentação é o título da
obra, que é seguida da referência à profecia de Isaías 40,3 e Malaquias 3,1. E
segue fazendo referência ao ministério de João Batista nos versículos 4-8 do
capítulo 1; os versículos 9-11 fazem referência ao batismo de Jesus e os
versículos 12-13 à tentação no deserto.
No versículo 14, a narrativa transfere-se abruptamente ao evento da
prisão de João Batista que só é detalhadamente relatada em Marcos 6,14-29.
Isso sugere um conhecimento prévio do ocorrido, por parte dos endereçados
da obra. Depois Jesus aparece, dando início ao seu ministério na Galiléia,
ainda nos versículos 14-15, anunciando aquilo que era o conteúdo central da
sua mensagem, o evangelho do reino de Deus, Richard A. Horsley nos
apresenta um esboço do reino de Deus como tema do evangelho de Marcos.
1,15- o reino de Deus está próximo, tema da história toda;
3,22-27- o reino de Deus está implícito, declarado acontecendo
nos exorcismos de Jesus;
4,3.26.30- parábolas do reino de Deus;
4,11- caráter secreto do reino de Deus;
9,1- o reino de Deus chegando com poder;
9,47- entrada no reino de Deus;
10,14-15- pertencer a/ receber o reino de Deus;
10,23-25- entrar no reino de Deus;
11,10- chegada do reino de Davi;
12,34- não longe do reino de Deus;
14,25- beber o vinho novo (aliança renova) no reino de Deus;
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15,43- espera ansiosa pelo reino de Deus.1
Esse esboço mostra que o reino de Deus é o tema que permeia todo o
evangelho.
2.1 O Anúncio do Reino Próximo e as Parábolas do Reino
Em Marcos 1,14-15, após João Batista, Jesus inicia seu ministério na
Galiléia, que se encontrava sob tempos turbulentos de revoltas e opressão,
onde a idéia de um reino de justiça e paz era ardente na imaginação dos
judeus. Ele aparece anunciando o reino próximo de Deus; o tempo está
cumprido, e aquilo que há séculos fora anunciado pelos profetas e era
esperado pelo povo sob expectativas diversas, o reino de Deus que haveria de
fazer justiça ao povo contra os seus inimigos, está perto.
Marcos 1,14-15. 14 E, depois que João foi entregue à prisão,
veio Jesus para a Galiléia, pregando o evangelho do reino de
Deus, 15 E dizendo: O tempo está cumprido, e o reino de Deus
está próximo. Arrependei-vos, e crede no evangelho.2
O verbo no indicativo perfeito passivo, na terceira pessoa do singular
peplh,rwtai indica o cumprimento do kairo.j o tempo daquilo que se
esperava está cumprido, o reino de Deus é chegado e manifesto na pessoa de
Jesus através do seu ensino e milagres.
Quando João Batista e, depois dele, o próprio Jesus,
proclamaram que o reino estava próximo, essa proclamação
envolvia
um
sensacional
grito
e
de
despertamento
universal
significação.
dotado
de
uma
Proclama-se
a
aproximação do ponto decisivo divino, da história humana, que
já era tão almejado, embora que seja com expectativas
diversas.3
Marcos apresenta Jesus realizando uma sucessão de milagres por todos
os lugares que percorria e pregando nas sinagogas. Primeiro, ele aparece
HORSLEY, Richard A. Jesus e o Império: o reino de Deus e a nova desordem mundial.
São Paulo: Paulus, 2004. p.81.
2 A BÍBLIA SAGRADA. Tradução: João Ferreira de Almeida. Edição revista e corrigida. Rio de
Janeiro: Imprensa Bíblica Brasileira; São Paulo: Editora Vida, 1997.
Obs: Todas as referências bíblicas citadas neste trabalho monográfico terão esta versão.
3 SHEDD, P. R. O Novo dicionário da Bíblia. 3 Vol. São Paulo: Edições Vida Nova; Junta
Editorial, 1966. p. 1384.
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ensinando e expulsando um espírito imundo na sinagoga 1,21-27; a cura da
sogra de Pedro 1,30-31; muitos que se achavam enfermos, e também
expulsava muitos demônios 1,32-34; pregando e expulsando demônios 1,39;
curando um leproso 1,40-45; anunciando a palavra e curando um paralítico 2,212; um homem da mão mirrada 3,1-5; nomeando os seus discípulos para que
fossem, pregassem e curassem 3,14-19. Em 3,22 Jesus é confrontado pelos
escribas com o discurso de Belzebul, e responde com parábolas dos versículos
23-30.
A série de episódios em que Jesus exorciza demônios e as
discussões em torno do significado dos exorcismos de Jesus
nos evangelhos mostram que é precisamente por meio dessa
prática de Jesus que o reino de Deus está derrotando o
domínio romano.4
Em Marcos 3,20-35, Jesus abre sua seção de parábolas. O capítulo 4
abre a seção de parábolas, onde Jesus ensina a respeito do reino de Deus de
forma parabólica.
A primeira parábola de Marcos 4,1-20 usa a figura do semeador, “eis
que saiu o semeador a semear”, esta figura é bastante comum na sociedade
campesina, que luta para sobreviver do solo seco e rochoso da Galiléia. Na sua
aplicação dos versículos 14-20, este é o que semeia o lo,gon a palavra, que
é como a semente lançada sobre diferentes tipos de terreno, e que tem em
potencial os frutos.
A semente lançada ao pé do caminho é logo comida pelas aves do céu,
pois vem o satana/j (satanás) ou adversário, e logo a tira de quem a
recebeu ao pé do caminho. Satanás, segundo Ched Myers, é representado
pelos “lideres sociais, cuja oposição é atribuída ao reinado de Satanás.”5
Aqueles que recebem a semente sobre pedregais; ouvem e recebem
com prazer, mas não tem raiz em si mesmos, são temporãos, e sobrevindo
qli,yewj h' diwgmou/ literalmente “caça;” tribulação ou perseguição, logo
se escandalizam. Segundo Ched Myers skandali,zontai “é termo técnico
para a incapacidade de aceitar ou manter a prática do discipulado.”6
HORSLEY, Richard A. Jesus e o Império: o reino de Deus e a nova desordem mundial. p.
105.
5 MYERS, Ched. O Evangelho de São Marcos. São Paulo: Paulinas, 1992. p, 219.
6 Idem. p. 220.
4
4
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Os que recebem a semente entre espinhos não dão frutos, pois os
espinhos a sufocam, pois O cuidado do mundo, o engano das riquezas e a
ambição por outras coisas, sufocam a palavra e esta fica infrutífera.
Apenas a semente lançada sobre a terra fértil tem a capacidade de dar
frutos. Jesus se coloca como semeador que lança a semente, ou que prega a
palavra; kai. e;legen\
o]j e;cei w=ta avkou,ein avkoue,tw
quem tem ouvidos ouça. “Esses elementos dramáticos na história refletem as
experiências de Jesus e apontam para a necessidade de uma audição aberta e
sequiosa.” 7
Em Marcos 4,11, Jesus declara que para os que estavam junto a ele
com os discípulos é dado conhecer o musth,rion (mistério) do reino de
Deus, mistério esse, que segundo Ched Myers são “ficções literárias, pois
Marcos torna-os públicos em sua narrativa. Mas, para assegurar-se de que isso
é nitidamente compreendido, ele acrescenta a imagem da lâmpada (Marcos
4,21s).”8
Em Marcos 4,21-25 Jesus dá continuidade ao seu ensinamento fazendo
uso de novas parábolas. O mistério do reino de Deus é revelado através das
parábolas que têm por finalidade tornarem claro o ensinamento do mestre,
como diz a narrativa de Marcos 4,33 “E com muitas parábolas tais lhes dirigia a
palavra, segundo o que podiam compreender.” Nos versículos 24-25 Jesus diz:
“Com a medida com que medirdes vos medirão a vós, e ser-vos-á ainda
acrescentada. Porque ao que tem, ser-lhe-á dado; e, ao que não tem, até o que
tem lhe será tirado.”
Tendo presente a semântica econômica da parábola do
semeador e a menção anterior ao modion (com que o trigo era
medido), esse provérbio parecia referir-se ao que a ideologia
capitalista moderna chamada “determinismo de mercado.” [..]
Essas imagens têm muito a ver com a luta do camponês para
produzir em “medida” suficiente para sobreviver; na verdade, o
verbo didonai também é usado para descrever o resultado
material da semente na parábola (4,7s). Esta “sabedoria
convencional” requer abdicação diante das organizações
TURLINGTON, Henry. Marcos. Comentário Bíblico Broadman: Artigos gerais MateusMarcos. Tradução: Adiel Almeida de Oliveira. 8 Vol. Rio de Janeiro: Juerp, 1983. p. 363.
8 MYERS, Ched. O Evangelho de São Marcos. p. 220.
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presentes do poder, por mais injustas possam parecer. “A
estratificação sócio-econômica sancionada; é inútil protestar”. É
precisamente contra esse “realismo” misantrópico que Jesus
adverte energicamente. Como dissesse: “Ao invés disso,
escutai de novo o milagre da semente e da colheita”, Jesus se
volta para as duas últimas parábolas do sermão.9
Nas parábolas seguintes Jesus preserva as figuras anteriores do
agricultor e da semente, e os apresenta como a que o reino de Deus pode ser
comparado no versículo 26: “dizia: O reino de Deus é assim como se um
homem lançasse semente à terra.”
Na parábola de Marcos 4,26-29 evidencia-se que o agricultor é ativo em
dois momentos: em realizar a semeadura no versículo 26 e ceifar no versículo
29. A semente, porém, brota e cresce w`j ouvk oi=den auvto,jÅ não
sabendo ele como. O reino de Deus é propagado tal qual o agricultor que lança
a semente na terra, que por si mesma frutifica, o seu crescimento, porém, não
pode ser controlado.
Novamente o reino de Deus é apresentado como uma semente em
Marcos 4,30-32, agora um grão de mostarda, que sendo a menor das
sementes, tendo sido semeada, cresce e torna-se a maior das hortaliças, de tal
forma que as aves do céu vêm se aninharem sob a sua sombra. A
desproporção entre o tamanho da semente, comparado ao tamanho da planta
madura “visa a infundir coragem e esperança na frágil comunidade do
discipulado para a sua luta contra os poderes invasores.” 10
Após a seção de parábolas acerca do reino a narrativa transfere-se para
uma nova seção de milagres de Jesus: acalmando a tempestade 4,36-41; o
exorcismo do endemoninhado gadareno 5,1- 20; a cura de uma mulher com
fluxo de sangue 5,25-34; a ressurreição da filha de um dos principais da
sinagoga 5,35-43; curando uns poucos enfermos 6,5; enviando os seus
discípulos e dando-lhes poder para pregarem, curarem e expulsarem demônios
6,7-13. A narrativa de milagres é interrompida pelo testemunho da morte de
João Batista e retomada com a multiplicação dos pães e peixes 6,34-44; Jesus
andando sobre o mar 6,48; Jesus curando por onde passava 6,55-56; o
9
Idem. p. 224.
Idem. p. 225.
10
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exorcismo da filha da mulher Grega siro-fenícia 7,24-30; a cura de um surdo
que falava dificilmente 7,32-37; a segunda multiplicação de pães e peixes 8,19; a cura de um cego 8,22-26.
A boa nova para os pobres! O Messias galileu interpretou suas
obras poderosas realizadas nos corpos dos pobres e das
pobres da palestina como o início do reino de Deus, reino que
os profetas anunciaram como salvação para os pobres e
vingança contra os opressores (Sl 146; Is 11,4; 61,1-3).11
Assim o reino de Deus se fez concreto nos seus próprios corpos.
2.2 O Reino que Vem com Poder e a Figura da Amputação
Em Marcos 8,34 e 38, Jesus chama a multidão e os discípulos a si e diz:
Marcos 8,34 e 38. 34 E chamando a si a multidão, com os seus
discípulos, disse-lhes: Se alguém quiser vir após mim, neguese a si mesmo, e tome a sua cruz, e siga-me. [...] 38
Porquanto, qualquer que, entre esta geração adúltera e
pecadora, se envergonhar de mim e das minhas palavras,
também o Filho do homem se envergonhará dele, quando vier
na glória de seu Pai, com os santos anjos.
Após o drástico convite de Jesus ao discipulado, com os imperativos de
negarem-se a se mesmos avparnhsa,sqw e`auto.n e tomarem a sua cruz
avra,tw to.n stauro.n auvtou/ e segui-lo avkolouqei,tw moi; cruz
essa, que para o contexto imperial romano não existia outra conotação a não
ser o instrumento pelo qual os seus dissidentes eram humilhados e
executados, Jesus faz menção, de uma forma escatológica, da glória de seu
Pai, depois Jesus revela aos seus ouvintes que alguns não provariam a morte
sem que vissem chegado o reino de Deus com poder.
Marcos
9,1
“DIZIA-LHES também: Em verdade vos digo que, dos que aqui estão, alguns
há que não provarão a morte sem que vejam chegado o reino de Deus com
poder.”
O reino de Deus é estabelecido no exercício do poder de Deus, a força
divina que restaura todo aquele que passa pela experiência do reino de Deus.
11
PIXLEY, George V. O Reino de Deus. São Paulo: Paulinas, 1986. p. 12.
7
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Este é o duna,mei dinâmico de Deus, o ato de poder que faz ser concreto o
reino de Deus através dos feitos de Jesus. Este poder não é evxousi,an
autoridade, mas poder dinâmico de Deus como Marcos 12,24, esse é o poder
que reside em Deus em virtude da sua natureza.
Nos ditos de Marcos 9,42-48, Jesus fala do problema da apostasia na
comunidade fazendo uso da figura da amputação onde o sentido de salvar e
perder se prolonga em três afirmações: “Se tuas (mãos/olhos/pés) te
escandalizam, (afasta)-os... pois é melhor (Kalon Estin) entrar na vida (sem)
eles... do que ser lançado (com eles) na Geena.”
12
A Geena é referência ao monte de lixo sempre fumegante de Jerusalém,
as referências a mão, pé e olhos é aquilo que para os judeus são a “sede” dos
nossos atos agressivos, a mão como membro através do qual se pode roubar,
o pé referindo-se ao furto e a fuga, e o olho ao adultério.
As expressões “entrares na vida aleijado; kullo.n eivselqei/n
eivj th.n zwh.n” “entrares coxo na vida; eivselqei/n eivj th.n
zwh.n cwlo.n” e depois “entrares com um só olho no reino de Deus;
mono,fqalmon eivselqei/n eivj th.n basilei,an tou/ qeou/”
indicam a zwh.n (vida) e a basilei,an tou/ qeou (reino de Deus) /
como tendo o mesmo sentido.
As referências a zwh.n, que é a vida no sentido da sua plenitude, em
sua equivalência a basilei,an tou/ qeou/, aponta o reino de Deus onde
no qual se pode entrar como se pode entrar na vida. O reino de Deus
estabelece a vida, aquilo que escandaliza promove a morte. Amputar de si tudo
aquilo que serve de tropeço é necessário para que se entre na vida ou no reino
de Deus. “Escandalizar, geralmente traduzido como “fazer tropeçar” “(provocar
tropeção”: skandalise), é termo técnico empregado em Marcos para designar a
rejeição da mensagem do reino (6,3).” 13
O verbo infinitivo aoristo ativo eivselqei/n aponta para a entrada no
reino de Deus, aquilo, porém, que skandali,zh| escandaliza, não pode
entrar no reino de Deus, antes deve ser amputado. No reino de Deus se entra
mutilado.
12
13
MYERS, Ched. O Evangelho de São Marcos. p. 318.
Idem. p. 318.
8
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2.3 O Reino de Deus e as Crianças
Marcos 10,1-12 narra Jesus sendo interrogado pelos fariseus acerca do
divórcio, no versículo 10 os discípulos o interrogaram acerca da mesma coisa.
Jesus, porém, defende que não deixe o homem a sua mulher, nem a mulher o
seu marido.
Em Marcos 10,14-15 traziam crianças para que Jesus as tocasse. Essa
prática era comum na comunidade judaica; levavam-se as crianças para que
fossem abençoadas pelos rabinos famosos.
No dia da Expiação havia o costume de fazer jejuar crianças de
várias idades para depois levá-las aos sacerdotes ou anciãos,
"para que estes as abençoassem e orassem por elas". Isto tudo
era acompanhado de instruções de mais tarde esforçar-se na
escola, de aprender e seguir corretamente os mandamentos.14
O termo usado por Jesus para designar a criança é paidi,a, são os
infantes, crianças pequenas. Estas eram incomodo para a sociedade, eram
como inúteis, insignificantes, marginalizadas, eram totalmente dependentes
dos adultos.
Jesus, porém, tira da margem da comunidade as crianças e as
centraliza (Marcos 9,36). A condição social da criança na Palestina do século I
era de total violência. Em Marcos a criança que Jesus toma em seus braços é
pessoa e não símbolo. Ela é pessoa vulnerável a todo o tipo de exploração,
como por exemplo, ser transportada do seio da família como escrava para
saldar a divida dos pais até a vinda do ano jubilar, usadas em sacrifícios de
cultos pagãos, o grande número de órfãos (e viúvas) em abandono.
Marcos 10,13-15. 13 E traziam-lhe meninos para que lhes
tocasse, mas os discípulos repreendiam aos que lhos traziam.
14 Jesus, porém, vendo isto, indignou-se, e disse-lhes: Deixai
vir os meninos a mim, e não os impeçais; porque dos tais é o
reino de Deus. 15 Em verdade vos digo que qualquer que não
receber o reino de Deus como menino, de maneira nenhuma
entrará nele.
POHL, Adolf. Evangelho de Marcos: Comentário Esperança. Curitiba: Editora Evangélica
Esperança, 1998. p. 251.
14
9
Pr. Rafael Alves
O adjetivo demonstrativo, genitivo, neutro, no plural toiou,twn aponta
que das tais é o reino de Deus. Jesus diz isso diante da condição social de total
desprezo e dependência da criança. A respeito do versículo 15, Henry
Turlington diz:
O
verbo
de
maneia
nenhuma
entrará
(ouv
mh.
eivse,lqh| eivj auvth,n.) é usado com o duplo negativo
grego, que é muito forte. O significado não é que há dois
reinos, um presente aqui e outro vindouro; mas que, a não ser
que se receba o reino como alguém necessitado, como quem
não pode merecer as suas bênçãos, nunca, de maneira alguma
se entrará nele.15
Jesus declara que qualquer que não receber o reino de Deus como
menino, de maneira nenhuma entrará nele, e não quem se acha digno e
merecedor dele.
2.4 O Diálogo de Jesus Com o Homem Rico
Marcos segue com o diálogo do homem rico com Jesus, em Marcos
10,17-27. Após ser interrogado pelo homem rico a respeito do que fazer para
herdar a vida eterna, Jesus propõe a ele o cumprimento da lei. Por sua vez, o
homem afirma guardá-la desde a sua mocidade. No versículo 21 ocorre um
novo chamado ao discipulado. o` de. VIhsou/j evmble,yaj auvtw/|
hvga,phsen auvto.n kai. ei=pen auvtw/|\ e[n se u`sterei/\
u[page( o[sa e;ceij pw,lhson kai. do.j Îtoi/jÐ ptwcoi/j(
kai.
e[xeij
qhsauro.n
evn
ouvranw/|(
kai.
deu/ro
avkolou,qei moiÅ Jesus o amou, hvga,phsen, ou seja, “é aquela espécie
de amor que, a despeito de afeição ou merecimento, procura deliberadamente
ajudar, satisfazer as necessidades de outrem.”
16
Jesus, porém, declara no
versículo 21: e[n se u`sterei/\ u[page( o[sa e;ceij pw,lhson
kai. do.j Îtoi/jÐ ptwcoi/j( vende tudo quanto tens e dá aos pobres.
A insistência do homem de que ele já observa esses
mandamentos é obviamente falsa. É evidente que ele não pode
TURLINGTON, Henry. Marcos. Comentário Bíblico Broadman: Artigos gerais MateusMarcos. p. 421.
16 Idem. p. 423.
15
10
Pr. Rafael Alves
acatar a ordem de Jesus de vender os seus bens e dar aos
pobres, não somente por que ele tem muitas posses, mas
também porque está profundamente apegado a elas. A única
maneira de alguém enriquecer na sociedade israelita antiga era
tirando proveito de outras pessoas vulneráveis, por exemplo,
defraudando outros pela cobrança de juros sobre empréstimos,
o que era proibido pela lei da aliança, e obtendo controle das
posses de outros (trabalhos, campos, famílias). Assim, este
episódio mostra um exemplo negativo de um homem que ficou
rico defraudando outros, desrespeitando os mandamentos da
aliança.17
Diante da condição posta por Jesus, o homem rico retirou-se triste por
possuir muitos bens no versículo 22. Jesus então declarou nos versículos 2324: pw/j
dusko,lwj
oi`
ta.
crh,mata
e;contej
eivj
th.n
basilei,an tou/ qeou/ eivseleu,sontaiÅ Como é difícil os que têm
riquezas entrarem no reino de Deus. Diante da admiração dos discípulos com
esta palavra, Jesus torna a repetir: pw/j du,skolo,n evstin eivj th.n
basilei,an tou/ qeou/ eivselqei/n\
Alguns manuscritos trazem no versículo 24 “Filhos, quão difícil é para os
que confiam nas riquezas entrarem no reino de Deus” como: evstin tou.j
pepoiqo,taj evpicrh,masin A C 0233 157 180 579 597 700 892 1006
1010 1071 1243 1292 1342 1424 e outros. Manter-se-á aqui a forma do texto
grego supracitado, embora a Bíblia usada em referência traga-nos a forma
encontrada nestes manuscritos.
Marcos usou de novo (como em 10,15) uma afirmação sobre
“entrar no reino de Deus” (eis tem basileian tou theou
eiselthein) para reforçar a sua ideologia alternativa; a
solidariedade com os “menores” se estende do sistema da
família para o sistema econômico. A incredulidade dos
discípulos (10,26) mostra que não está absolutamente claro
para eles que alguém possa salvar-se, se não puder salvar-se
quem é piedoso e está no topo da escala social.18
HORSLY, Richard A. Jesus e o Império: o reino de Deus e a nova desordem mundial. p.
128.
18 MYERS, Ched. O Evangelho de São Marcos. p. 333.
17
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Pr. Rafael Alves
No versículo 25 Jesus diz que “é mais fácil passar um camelo pelo fundo
de uma agulha do que um rico entrar no reino de Deus.”
Explicações do tipo que diz que o “fundo de uma agulha”
referia-se à uma pequena porta nos muros de Jerusalém não
têm qualquer fundamento. Isso, até mesmo, contradiz o que
Jesus diz aqui: entrar no Reino é mais do que difícil, é
impossível à parte do agir miraculoso de Deus.19
Este provérbio não se refere a uma porta pequena em Jerusalém onde
os camelos só conseguiam passar de joelhos, como dizem alguns
comentadores, mas como diz Mulholland na referência supracitada, fala da
grande dificuldade de um rico entrar no reino de Deus.
Em Marcos 10,28 Pedro declara “eis que tudo deixamos e te seguimos.”
Jesus responde sem aprovar ou desaprovar a declaração de Pedro e declara
as bênçãos dadas àqueles que tudo deixaram por causa dele e do evangelho.
A respeito da declaração feita por Jesus, Richard Horsley diz:
Esta é uma declaração surpreendentemente reconfortante,
relacionada com as coisas do mundo. A restauração deve
acontecer “agora, neste tempo”. A frase “e, no mundo futuro, a
vida eterna” é uma observação sem importância que remete e
se refere à pergunta irreal do homem rico com a qual começou
a questão econômica. O foco de Jesus “neste tempo” fica ainda
mais real com o acréscimo no final de “com perseguições”. Ele
não está se referindo a um “mundo encantado”. Com ênfase
vigorosa, ele está falando sobre a renovação da vida
camponesa vinculada a presença do Reino de Deus, que está
acontecendo neste tempo a despeito das perseguições, antes
que o Reino de Deus chegue com poder (Mc 9,1). O último
“ditame da lei sagrada” de Jesus neste terceiro diálogo
completa a instrução na economia da aliança com uma clara
alusão as bênçãos da aliança. O respeito aos princípios
econômicos igualitários, em que ninguém procura enriquecer
aproveitando-se da vulnerabilidade de outros, resultará numa
MULHOLLAND, Dewey M. Marcos Introdução e Comentário. São Paulo: Vida Nova, 1999.
p. 163.
19
12
Pr. Rafael Alves
(jamais ouvida) abundancia para todos na comunidade, embora
sem ilusões sobre realidades políticas no mundo em geral.20
Essa declaração de Horsley mostra que já era presente a restauração
promovida pelo reino, a renovação da vida camponesa ligada ao reino de Deus
a despeito das perseguições.
2.5 O Maior no Reino de Deus e o Filho de Davi
Jesus termina esse terceiro diálogo afirmando que “muitos primeiros
serão os últimos, e muitos últimos serão os primeiros.” No caminho para
Jerusalém, após o pedido de Tiago e João em Marcos 10,35-37; nos versículos
43-45, têm-se afirmativas equivalentes a esta:
Marcos 10,35-37,43-45. 35 E aproximaram-se dele Tiago e
João, filhos de Zebedeu, dizendo: Mestre, queríamos que nos
fizesses o que te pedirmos. 36 E ele lhes disse: Que quereis
que vos faça? 37 E eles lhe disseram: Concede-nos que na tua
glória nos assentemos, um à tua direita, e outro à tua
esquerda. [...] 43 Mas entre vós não será assim; antes,
qualquer que entre vós quiser ser grande, será vosso serviçal;
44 E qualquer que dentre vós quiser ser o primeiro, será servo
de todos. 45 Porque o Filho do homem também não veio para
ser servido, mas para servir e dar a sua vida em resgate de
muitos.
Diante do pedido de Tiago e João, Jesus faz uso da mesma lógica da
declaração do versículo 31 “Porém muitos primeiros serão derradeiros, e
muitos derradeiros serão primeiros.” nos versículos 43,44. “Aquele que quiser
ser grande será o vosso serviçal,” “qualquer que quiser ser o primeiro será
servo de todos.”
A política igualitária sobre a qual Jesus insiste no diálogo
seguinte (Mc 10,32-45) é coerente com a dimensão econômica
igualitária da renovação da aliança das comunidades aldeãs
israelitas. Persistindo em sua absoluta incompreensão, mesmo
depois do terceiro anúncio de que os governantes de
Jerusalém o condenarão e os romanos o executarão, dois dos
HORSLEY, Richard A. Jesus e o Império: o reino de Deus e a nova desordem mundial.
p. 129.
20
13
Pr. Rafael Alves
seus discípulos pedem a Jesus que os faça sentar-se nas
posições mais elevadas de poder à sua direita e à sua
esquerda quando ele entrar na sua glória. Eles empregam uma
imagem tomada do domínio imperial, como se esse fosse o
objetivo último do programa de Jesus com relação ao Reino de
Deus. [...] O seu programa era diametralmente oposto a esse
domínio imperial. Na sociedade camponesa renovada, não
somente não existem governantes, mas até os líderes servem
aos outros. 21
Marcos segue com a cura dum cego, filho de Timeu, ao saírem de
Jericó; dos versículos 46-52, e segue-se no capítulo 11,1-11 a narrativa da
entrada de Jesus em Jerusalém montado num jumentinho.
No versículo 10 a expressão euvloghme,nh
h`
evrcome,nh
basilei,a tou/ patro.j h`mw/n Daui,d\ evoca a tradição da aliança
davídica. “A questão é que a imagem de um rei davídico simbolizava
substancialmente aquilo que este agente de Deus faria: libertar e restaurar a
sorte de Israel, como fizera o Davi original.”
22
A esperança de um reinado
glorioso e libertador, como fora prometido em 2 Samuel 7,16, aflora na
imaginação daqueles que vislumbravam em Jesus, o cumprimento desta
promessa.
2.6 Jesus é Interrogado
Marcos 12 faz menção da parábola de um homem que plantou uma
vinha e dos seus trabalhadores maus. Sequencialmente os líderes religiosos
buscaram prendê-lo no versículo 12, mas não o fizeram porque temiam o povo.
Depois mandaram alguns fariseus e herodianos para o apanharem nalguma
palavra.
A narrativa segue com uma série de questionamentos: primeiro os
fariseus e herodianos questionaram Jesus se era lícito ou não pagar tributos a
Cesar em 13-17, depois os saduceus o questionaram acerca da ressurreição
em 18-27, em seguida, no versículo 28, um dos escribas o questionou acerca
21
Idem. p. 129,130.
HORSLEY, Richard A; HANSON, John S. Bandidos, Profetas e Messias: Movimentos
populares no tempo de Jesus. São Paulo: Paulus, 1995. p. 92.
22
14
Pr. Rafael Alves
de qual é o primeiro de todos os mandamentos. Jesus respondeu de forma
sábia e desconcertante todos os questionamentos em 15-17; 24-27; de 29-34
Jesus responde ao escriba:
Marcos 12,29-34. 29 E Jesus respondeu-lhe: O primeiro de
todos os mandamentos é: Ouve, Israel, o SENHOR nosso
Deus é o único Senhor. 30 Amarás, pois, ao Senhor teu Deus
de todo o teu coração, e de toda a tua alma, e de todo o teu
entendimento, e de todas as tuas forças; este é o primeiro
mandamento. 31 E o segundo, semelhante a este, é: Amarás o
teu próximo como a ti mesmo. Não há outro mandamento
maior do que estes. 32 E o escriba lhe disse: Muito bem,
Mestre, e com verdade disseste que há um só Deus, e que não
há outro além dele; 33 E que amá-lo de todo o coração, e de
todo o entendimento, e de toda a alma, e de todas as forças, e
amar o próximo como a si mesmo, é mais do que todos os
holocaustos e sacrifícios. 34 E Jesus, vendo que havia
respondido sabiamente, disse-lhe: Não estás longe do reino de
Deus. E já ninguém ousava perguntar-lhe mais nada.
Jesus respondeu em 30,31, juntando um trecho do shema Deuteronômio
6,4 e um trecho de Levítico 19,18, a respeito da obrigação que se deve ao
próximo. Com isso, Jesus mostra que não pode haver amor a Deus sem amor
ao próximo. O escriba não só concordou com a resposta de Jesus no versículo
32, como também citou a tradição escrituristica que dá prioridade ao obedecer,
mais do que o culto no templo no versículo 33; (Oséias 6,6; 1Samuel 15,22).
Em Marcos 12,34 a narrativa termina com a declaração de Jesus ouv
makra.n ei= avpo. th/j basilei,aj tou/ qeou/Å Jesus não faz a
ele um convite ao discipulado dizendo que o seguisse. Jesus ter dito não está
longe “implica que a ortodoxia não basta; ela deve ser acompanhada pela
prática da justiça com o próximo.”23 É compreendendo isso que se pode
aproximar-se do reino de Deus.
2.7 A Ceia no Reino de Deus e José de Arimatéia
23
MYERS, Ched. O Evangelho de São Marcos. p. 380.
15
Pr. Rafael Alves
Na ocasião da última ceia de Jesus em Marcos 14,25 “Em verdade vos
digo que não beberei mais do fruto da vide, até àquele dia em que o beber,
novo, no reino de Deus.” A festa da páscoa é transformada por Jesus em
jejum; ele fala de um novo cálice no reino de Deus, de uma aliança renovada.
Ele solenemente enuncia ao “fruto da vinha” (eufemismo
judaico comum para designar o vinho) “até o dia” (heos tes
humeras ekeines) em que beberia o “novo” (kainon) no reino de
Deus. [...] Por ocasião do dia da grande festa judaica,
lembrando a emancipação do Egito, Jesus recomenda a
abstinência. A luta pela libertação não é memória passada,
senão tarefa que sempre nos prende ao futuro. 24
Após ser traído em 10,42-45; preso em 10,56 e receber a sua acusação,
“Rei dos Judeus” em 15,26, Jesus expirou em 15,37. Após a morte de Jesus, a
narrativa segue dizendo no versículo 43: “Chegou José de Arimatéia, senador
honrado, que também esperava o reino de Deus, e ousadamente foi a Pilatos,
e pediu o corpo de Jesus.” A palavra para esperava é prosdeco,menoj que
também pode ser traduzida como recebia, acolhia, aceitava.
A narrativa de Mateus 27,57, diz que este também era discípulo de
Jesus: Mateus 27,57 Oyi,aj
de.
genome,nhj
h=lqen
a;nqrwpoj
plou,sioj avpo. ~Arimaqai,aj( tou;noma VIwsh,f( o]j kai.
auvto.j evmaqhteu,qh tw/| VIhsou/\ William Hendriksen em seu
Comentário do Novo Testamento diz: “Num certo sentido, esse homem havia
se tornado um discípulo de Cristo (Mt 27. 57 b). [...] Lucas 23. 50,51 nos
informa que ele não havia concordado com a decisão e ação do Sinédrio,
condenando Jesus a morte (Lc 23. 50,51 a).” 25
Considerando Mateus 27,57 b e Lucas 23,50-51, e o comentário de
William Hendriksen. A espera de José pelo reino de Deus revela harmonia ao
ensinamento de Jesus, e mais, a crença de que este reino estava sendo
estabelecido.
2.8 Uma Compreensão de Reino de Deus em Marcos
24
Idem. p. 432.
HENDRIKSEN, Willian. Comentário do Novo Testamento: Marcos. São Paulo: Editora
Cultura Cristã, 2003. p. 844.
25
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Pr. Rafael Alves
A compreensão de reino de Deus que se transmite em Marcos é
tipificada por parábolas ou termos equivalentes, como em Marcos 4,26 “E dizia:
O reino de Deus é assim como se um homem lançasse semente à terra.” 9,43.
“melhor é para ti entrares na vida;” e evidenciado nos milagres e exorcismos de
Jesus. Em nenhum momento em Marcos Jesus define de forma direta: o reino
de Deus é isto ou aquilo, mas sempre a que o reino de Deus pode ser
comparado de forma parabólica (Marcos, 4,26,30).
A partir desta análise chego à compreensão de que o reino de Deus é o
cumprimento em Jesus, daquilo que já era esperança no coração do povo, o
Messias. Concluo que o reino de Deus anunciado por Jesus no evangelho de
Marcos é um projeto de justiça e paz e condenação dos poderes opressores do
Império e dos líderes religiosos num plano imanente, concretizado na sua
própria pessoa e ministério, como cumprimento das profecias messiânicas.
Mas também, num plano escatológico, como aponta Marcos 13,24-27 é o
estabelecimento definitivo do reino de Deus sobre o reino dos homens. Assim,
a ideia de reino de Deus acontece num plano imanente e escatológico
simultaneamente.
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