A SAÚDE NO BRASIL E NO MUNDO: UMA PERSPECTIVA HISTÓRICA Para versar sobre a atual estruturação e organização da saúde no Brasil, mais particularmente, da saúde mental, é necessário fazer um panorama histórico de como despontaram os ideais e se desenvolveram as discussões, lutas, reformas em torno dessa importante questão. Na Europa oitocentista, com o advento da industrialização e urbanização, eclodiram inúmeras epidemias, havendo, paralelamente, uma piora nas condições sociais da população. As mobilizações da esquerda política, bem como o surgimento de movimentos sociais, possibilitaram o despontar de novos ideais em relação à saúde, colocando-os em discussão, e a posterior introdução de conceitos e pensamentos nas propostas do Estado. Até o século XX, no Brasil, as intervenções sobre as doenças eram realizadas, em sua maioria, por entidades filantrópicas. É a partir daí que o Estado começa a se responsabilizar pela saúde da população do país. Inicialmente, isto se deu para os trabalhadores urbanos, enquanto uma pré-cidadania. Com a criação do Instituto Nacional de Assistência Médica e Previdência Social (INAMPS), os trabalhadores urbanos e, em parte, os rurais, passaram a ser atendidos pelo Estado, em termos de saúde. Às demais categorias eram destinados os serviços filantrópicos ou privados. Iniciaram-se práticas de higienização, de saúde coletiva, como vacinação, saneamento. No entanto, ainda se faziam dicotômicos o controle de endemias, cujo acesso era universal, e as ações curativas. Ao longo da história, as forças sociais exerceram evidente influência (seja pelo confronto, seja pela união em torno de um projeto unitário mínimo) nas lutas e definições a respeito dessa relevante área, exigindo mudanças nos rumos da saúde no país, o que culminou nas reformas Sanitária e Psiquiátrica. Foi possível, assim, a incorporação do discurso crítico e de propostas reformadoras nos planos governamentais e na formulação de políticas públicas de saúde, promovendo, até mesmo, a alteração do sistema de saúde vigente. Cabe ressaltar, aqui, que o desenrolar da Reforma Sanitária no Brasil apresenta semelhanças com o ocorrido na Itália. As pressões da sociedade civil italiana para a implantação de um serviço sanitário nacional e de melhores condições sociais, força esta mais ligada à esquerda política do país, não provocaram mudanças governamentais tão imediatas no contexto do pós-guerra, já que, após a queda do fascismo, os governos procuravam excluir a coalizão com partidos democráticos de esquerda. Após vários adiamentos do projeto de Reforma Sanitária, o temor diante da crise financeira da previdência e, por outro lado, avanços nas questões trabalhistas, a continuidade da luta das classes trabalhistas por questões de necessidades de ordem geral possibilitou, em 1978, a aprovação da Lei nº 833, que instituía um Serviço Sanitário Nacional público, norteado pelos princípios da descentralização, universalização do atendimento e democratização na gestão. No Brasil, durante a ditadura militar, tornou-se evidente o fato de que o Milagre Econômico brasileiro não vinha sendo acompanhado pelo desenvolvimento social, vendo-se despontar problemas nos âmbitos da saúde e educação. Foi criado o Conselho de Desenvolvimento Social, em 1974, para complementar a implementação das diretrizes do II Plano Nacional de Desenvolvimento (1974-1979). No mesmo ano, foi criado o Ministério de Previdência e Assistência Social (MPAS), ao qual se atribuiu a assistência médica governamental. No entanto, a dicotomia entre ações de interesse coletivo e de caráter normativo, de um lado, e o atendimento médico individualizado, de outro, ainda se fazia vigente, sendo atribuições de diferentes órgãos. O modelo privatizante prevalecia e era estimulado. O Movimento Sanitário, por sua vez, via o desenvolvimento de suas propostas de maneira localizada e marginal. Em 1976, foi criado o Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (CEBES), instituição formada por profissionais de saúde, e que realizou apoio à organização e à condução do processo de divulgação, discussão e politização da proposta de reorganização do SUS. A proposta do SUS foi originalmente apresentada pelo CEBES no I Simpósio de Políticas de Saúde da Câmara dos Deputados, em outubro de 1979 (CEBES, 1980, citado por Amarante, 1995). Ainda no cenário das mobilizações, foi criada, neste mesmo ano, a Associação Brasileira de Saúde Coletiva (ABRASCO), enquanto um espaço da academia para a crítica ao modelo assistencial, a reorganização do mesmo e a proposta de construção do SUS. Paralelamente a isso, no cenário mundial, a Conferência de Alma-Ata, em 1978, preconizou o atendimento às proposições da Organização Mundial de Saúde (OMS), dentre elas, o slogan “Saúde para todos no ano 2000”. A década de 80 foi marcada por uma maior participação do Movimento Sanitário no âmbito político e governamental, pela politização da discussão sobre a saúde, pela alteração da norma constitucional e pela mudança do arcabouço e das práticas institucionais. No início dos anos 80, vigorava a crise financeira da Previdência Social. Buscando soluções para a crise, alguns intelectuais do Movimento Sanitário foram incorporados à burocracia estatal. Visando, principalmente, a redução de gastos com a saúde, foi criado o Conselho Nacional de Administração da Saúde Previdenciária (CONASP), em 1981, propondo modificações no modelo privatizante, tais como a descentralização e utilização prioritária dos serviços públicos na cobertura assistencial da clientela. O projeto Ações Integradas de Saúde (AIS), também parte do programa, “avançou na adoção dos princípios de universalização, de eqüidade e de integração dos serviços de saúde” (Teixeira, 1988, p.216). Em um momento de avanço no processo democrático, essas idéias eram defendidas não só pelo poder central, mas também enquanto uma proposta intergovernamental, contemplando os interesses dos novos governos estaduais e municipais. No entanto, ainda vigoravam diferentes pontos de vista. Quanto à reformulação do sistema de saúde, por exemplo, alguns defendiam a incorporação do INAMPS, com suas funções assistenciais, às funções do Ministério da Saúde. Outros, por sua vez, dentre eles, Paim, propunham a unificação do sistema, a partir de reformas substanciais no aparato institucional. Em 1986, deu-se a 8ª Conferência Nacional de Saúde, com a participação de diferentes forças sociais, constituindo um verdadeiro programa para a Reforma Sanitária e um acordo político, visando modificações na política de saúde. Segundo Sérgio Arouca, Reforma Sanitária foi um “termo utilizado para se referir ao conjunto de idéias que se tinha em relação às mudanças e transformações necessárias na saúde, que não abarcavam apenas o sistema, mas todo o setor saúde”. A definição do princípio “direito à saúde e dever do Estado”, presente no relatório final da conferência, foi um importante estímulo à evidência da universalização do acesso à saúde e da necessidade de uma base estatal para o sistema de saúde. A nova Constituição, de 1988, atendeu a muitas das reivindicações do Movimento Sanitário, em detrimento dos interesses do setor hospitalar, sem modificar, no entanto, a situação da indústria farmacêutica. Desta maneira, a constituição do SUS foi garantida, com a prevalência de ações e serviços públicos estendidos a toda a população. Buscando consolidar a Reforma Sanitária, despontou a proposta do Sistema Unificado e Descentralizado de Saúde (SUDS), em 1987, aprofundando as AISs. O SUDS apoiou, assim, a execução das ações de saúde pelo setor público, sendo esta atenção complementada por serviços filantrópicos conveniados, preferencialmente. Privilegiou-se, também, a utilização de instrumentos de planejamento na administração de serviços, visando à distribuição mais equânime dos recursos de saúde, a participação da população e dos profissionais na gestão e controle orçamentário e de qualidade dos serviços de saúde (Teixeira, 1988, p.218). Dentre os princípios do SUS estão: - descentralização, por meio da hierarquização das ações de saúde, entre União, Estado e municípios; - universalização: atendimento a toda a população, seja por serviços públicos ou conveniados; - eqüidade: igualdade, sem preconceitos, ao acesso à assistência à saúde; - integralidade: conjunto articulado e contínuo das ações e serviços preventivos e curativos, individuais e coletivos, exigidos para cada nível de complexidade do sistema (redes); - controle social: organização das ações e serviços de saúde com a participação da comunidade por meio dos Conselhos de Saúde em cada esfera do governo (Federal, Estadual, Municipal); - financiamento: orçamento da seguridade social da União, dos Estados, do Distrito Federal e municípios; - municipalização: estabelecida na Constituição Federal (1988) e na Lei nº 8080/90, compreende dois aspectos: a habilitação dos municípios para assumirem a responsabilidade total pela gestão do sistema de saúde em seu território; a descentralização da gerência das ações e serviços de saúde para os municípios (o poder público municipal passa a ser o responsável imediato, não o único, pelas necessidades de saúde de seus munícipes); - recursos humanos: busca-se a formação de pessoal voltada ao trabalho em serviços do SUS, envolvendo como campos de prática para o ensino e pesquisa os serviços públicos de saúde, buscando o comprometimento social e a humanização do atendimento. Segundo definição da Organização Mundial da Saúde (OMS), saúde corresponderia ao estado de conforto, de bem-estar físico, mental e social (Dejours, 1982). Percebe-se, no entanto, que esta conceituação apresenta uma visão idealizada e estática a respeito do processo dinâmico que é a saúde. A Psicologia Crítica da Saúde, por sua vez, não a concebe da mesma forma, nem entende a saúde como a ausência de doenças, mas sim como o resultado de um conjunto de fatores, dentre eles, o acesso à escola e educação para todos, atendimento médico e hospitalar, saneamento básico, alimentação, energia elétrica, vestimenta e utensílios, lazer, emprego e renda, satisfazendo as necessidades e outras aspirações dos indivíduos de forma eficiente e com qualidade, proporcionando uma boa qualidade de vida. Vê-se, assim, que a saúde envolve os âmbitos biológico, psicológico e social, como também, e imprescindivelmente, o político. O público e o político estão muito relacionados a essa definição do conceito de saúde. Como defende Restrepo (2001), envolve a questão do “empoderamiento”, a eqüidade social (o igual acesso aos fatores abarcados pelo conceito de saúde, aos aparelhos sociais em geral); para a Promoção de Saúde é necessário a confluência de profissionais, um trabalho político. Hancock (citado por Restrepo, 2001) afirma que “a Promoção de Saúde é a boa saúde pública que reconhece as relações entre a saúde, a política e o poder”. Por meio dessa abordagem, critica-se o modelo biomédico; o sujeito (doente) não é visto como uma doença, mas sim como pessoa, como um ser total, integral. E a compreensão do ser humano não se deve dar apenas em sua totalidade enquanto indivíduo (abstrato e a-histórico), mas também junto ao seu contexto social (Spink, 1992 e Silva, 1992). Porém, acrescenta-se que, segundo a Psicologia Social, rompe-se a perspectiva dualista dicotômica da relação indivíduo-sociedade e, “ao invés de considerar indivíduo e contexto social influenciando-se mutuamente, propõe a construção de um espaço de intersecção em que um implica o outro e vice-versa” (Strey et al., 1998). Desta maneira, para explicar o processo saúde-doença, encontram-se permeados os saberes popular, oficial, da sociedade (Spink, 1992), mas também o do profissional em questão. Esses saberes, na comunidade, por exemplo, e em outras situações, caminham juntos, contribuindo um com o outro – como defendido pela Psicologia Social Comunitária, e não um prevalecendo sobre o outro. Segundo definição presente no Relatório Final da 8ª Conferência Nacional de Saúde (1986, p.382), saúde é: “1) Em seu sentido mais abrangente, a saúde é a resultante das condições de alimentação, habitação, educação, renda, meio ambiente, trabalho, transporte, emprego, lazer, liberdade, acesso e posse da terra e acesso a serviços de saúde. É assim, antes de tudo, o resultado das formas de organização social da produção, as quais podem gerar grandes desigualdades nos níveis de vida. 2) A saúde não é um conceito abstrato. Define-se no contexto histórico de determinada sociedade e num dado momento de seu desenvolvimento, devendo ser conquistada pela população em suas lutas cotidianas. 3) Direito à saúde significa a garantia, pelo Estado, de condições dignas de vida e de acesso universal e igualitário às ações e serviços de promoção, proteção e recuperação de saúde, em todos os seus níveis, a todos os habitantes do território nacional, levando ao desenvolvimento pleno do ser humano em sua individualidade”. Ao longo da história da humanidade, a loucura (o adoecimento psíquico) foi vista de diferentes maneiras, estando a isso relacionados os diferentes modos de lidar com a mesma. Os povos primitivos, os povos indígenas concebiam o transtorno mental como um fenômeno de causa mágico-religiosa, como a possessão de espíritos maléficos, cabendo ao xamã ou sacerdote, com suas técnicas próprias e rituais de benzedeiras, expulsão de espíritos, rezas, dar conta desse fenômeno, proporcionando o cuidado necessário. Esse tipo de visão ainda se encontra presente em muitas religiões e seitas em nossa sociedade. Na Antigüidade Clássica, havia uma visão integral a respeito do corpo humano. Esta proposta de uma visão integral nos remete às teorias de Platão (Timeu e República), Aristóteles (Política) e Hipócrates, que compreendiam o ser humano como uma unidade psicossomática individual, social e cósmica. Platão apresentava tanto a idéia de corpo antitético à alma (através do uso de metáforas do corpo como um túmulo, uma prisão, a concha de uma ostra) como a de existência do corpo em plena unidade com a alma (na metáfora do veículo). O ser humano seria, então, um conjunto estrutural de corpo e alma. O cuidado do corpo promoveria a saúde e esta dar-se-ia por meio da harmonia, da “justa medida”; as doenças, por sua vez, estariam relacionadas ao excesso ou à falta. O filósofo afirmava: “como os artesãos, os que se dedicam aos cuidados do corpo, os professores de ginástica e os médicos, regulam e tornam harmonioso o corpo” (citado por Reale, 2002, p.194). Na concepção de Aristóteles, “a alma é princípio da vida e forma do corpo que por sua vez condiciona as operações dela” (Massimi, 2005, p.2). O corpo estaria ligado à natureza humana, sendo parte substancial, submetido e ordenado (subordinado) à alma (a alma exerceria uma autoridade de senhor sobre o corpo). O corpo seria instrumento da alma, embora estando a ela unido. Já a inteligência comandaria o desejo, o que corresponderia a uma autoridade política e real. A medicina hipocrática afirmava uma profunda unidade entre corpo e alma, e assim também entre a Medicina do Corpo e a Medicina da Alma. As enfermidades da alma diriam respeito a uma consciência médica e filosófica (já que seria a alma a acometida pela moléstia). Estando a saúde relacionada ao equilíbrio, qualquer desequilíbrio, no corpo ou no espírito, seria causa de doença. Assim sendo, um desequilíbrio, seja por excesso ou falta/defeito, nos movimentos do apetite sensorial (paixão) poderia provocar doenças corporais e psíquicas. Hipócrates (460-356 a.C.) também descreveu a histeria como o deslocamento do útero, provocando dispnéia, taquicardia, e desmaios na mulher. A Teoria dos Humores (Hipócrates e Galeno) defendia a existência de quatro humores, que seriam os quatro elementos básicos da composição do universo: a biles preta (melancolia), a biles amarela (cólera), fleuma ou água, e sangue. O predomínio de cada um destes humores corresponderia a um temperamento, sendo, respectivamente, melancólico, colérico, fleumático e sangüíneo. Os temperamentos determinariam, assim, as características psicossomáticas do sujeito, seja sua condição orgânica bem como seus estados psíquicos. Percebe-se, desta maneira, que no período da Antigüidade greco-latina, a concepção de doença mental estava relacionada às causas naturais. A terapêutica utilizada, por sua vez, incluía massagens corporais, dietas, passeios, viagens, ginástica, atividades, fumegações vaginais, matrimônio, de modo a alcançar o equilíbrio. Na Idade Média, época do teocentrismo e de grande influência da Igreja Católica, a concepção mágico-religiosa foi retomada. A lei natural era respeitar o lugar social ocupado nesta vida (senhor e escravo), cabendo, aos senhores, o exercício da caridade, e aos escravos, a submissão, de maneira a garantir esse equilíbrio. Quem subvertesse a ordem natural de Deus, era considerado profanador, herege, portanto, louco. Neste período, fez-se uso de dois instrumentos para “banir” a loucura: a Inquisição (com a caça às bruxas, silenciando os sábios laicos, protegendo o saber secular do clero) e a Nau dos Loucos (em que os loucos pobres eram colocados em um navio, nos rios europeus, e ficavam vagando até ancorar em algum lugar, onde poderiam ser recolhidos ou rechaçados novamente à errância). Durante o Renascimento, com o advento do Racionalismo, do antropocentrismo, a loucura passou a ser vista como a desrazão. Tendo a razão humanizado o homem, a desrazão aproximava o homem da animalidade. O louco passou a ser visto como inadaptado ao processo de urbanização. Em 1656, com a criação do primeiro Hospital Geral, em Paris, os loucos, lascivos, pedófilos, usurpadores, mendigos e todos os despossuídos foram “enclausurados”. O hospital, neste momento, funcionava como “hospedaria”, visando o isolamento de sua clientela e o controle social. Isso porque tudo o que ameaçasse a lei e a ordem social vigentes era retirado de circulação. Muito do que se praticava nessa época enquanto tecnologia de cuidados prevaleceu até o século XX, como a vigilância, a punição, o uso de métodos coercitivos (força física, roda, banhos, acorrentamento, supressão de luz, isolamento). A partir da Revolução Francesa e da Revolução Industrial, o trabalho e a força produtiva passaram a ser centrais na sociedade. Assim, visou-se à reabilitação da “massa popular inerte”, tornando-a força de trabalho. O mesmo objetivo foi perseguido durante a Segunda Guerra Mundial. É no final do século XVIII, momento do Iluminismo, da razão, dos sistemas racionais, do Romantismo de Rousseau, que ocorre a terapeutização dos hospitais, bem como a fundação da psiquiatria. Philippe Pinel, em 1793, capturou a loucura para o campo médico. Ele criou uma nosografia dos transtornos mentais (um corpo conceitual de base científica, dando à loucura o estatuto de doença mental); propôs uma relação específica entre o médico e o doente, em que o primeiro estaria no lugar da verdade, de saber e de poder sobre o outro; e concebeu um lugar, o manicômio, para o estudo da doença. Era necessário separar o louco dos fatores causadores; o campo, com suas paisagens bucólicas, era priorizado. Pinel justificava o isolamento dos doentes mentias com o argumento de que era preciso estudar a doença ao natural. No século XIX, com o advento do positivismo, a doença mental era vista como passível de tratamento, pois correspondia à paixão pervertida. Vigorava o tratamento moral, em que a paixão pervertida do louco podia ser corrigida pela influência da paixão reta do médico, pela disciplina e pelo trabalho, adaptando o doente à vida social. Desta forma, o tratamento visava também à adaptação do paciente ao grupo social. O objeto da psiquiatria passou a ser a saúde mental e definiram-se os transtornos mentais. Na mesma perspectiva de Pinel, Esquirol (1772-1840) deu continuidade à classificação nosográfica de seu mestre. Em seguida, Emil Kraeplin (1856-1926) desenvolveu uma nosografia baseada no curso natural da doença, enfocando o quadro evolutivo dos transtornos. Karl Jaspers (1883-1969), por sua vez, propôs uma classificação de inspiração fenomenológica. E Eugen Bleuler, em 1911, cunhou o termo esquizofrenia, significando cisão da mente, para definir um grupo de doenças com mesma sintomatologia. O século XX foi marcado, principalmente, por duas correntes de pensamento, presentes até o atual momento: a visão organicista, biológica, que busca localizar, no corpo, a doença mental, fazendo uso da teoria da hereditariedade, das neurociências e neuroimagens; e a vertente psicodinâmica, compreendendo o portador do transtorno mental “numa rede de relações onde a história, a família, a constituição do próprio sujeito, dizem mais do que a simples apresentação de sinais e sintomas” (Silva e Fonseca, 2003). Esta última contrapõe-se à psiquiatria biológica, iniciando-se no pósguerra, momento em que surgiram questionamentos sobre o papel da instituição e o saber psiquiátrico. Nesta época, surgem as comunidades terapêuticas (década de 30), a psiquiatria comunitária (década de 50), a psiquiatria democrática italiana (década de 70), que vão influenciar as práticas comunitárias no Brasil. Juntamente ao modelo psicodinâmico, tem-se, hoje em dia, uma tecnologia de cuidados denominada de campo psicossocial, na qual o doente não está submetido ao saber e à verdade do profissional que o trata, e sim ambos fazem parte do processo clínico, fundando uma relação humana entre esses atores. Versaremos, agora, mais propriamente do percurso histórico da saúde mental no Brasil. No século XIX, no Brasil, foram criados o Hospício Dom Pedro II (RJ) e o Hospício de São Paulo (SP), ambos em 1852, nos quais vigorava o tratamento moral, a ênfase no trabalho, a existência de colônias agrícolas. Em 1898, o psiquiatra Francisco Franco da Rocha, então administrador do Hospício de São Paulo, inaugurou as novas instalações do hospital, às margens do Rio Juqueri, nome este pelo qual ficou conhecido tal hospital, no atual município de Franco da Rocha (SP). Esta nova localização era propícia à multiplicação e ampliação do hospício, já respondendo ao “fantasma da superlotação” (Primo, 1975; Contel, 1980; citados por Guimarães, 2001, p.20). Amarante (1995) divide em trajetórias os períodos históricos caracterizados por diferentes linhas prático-discursivas no âmbito psiquiátrico brasileiro. Assim sendo, o período abrangido entre a constituição da medicina mental no Brasil e a Segunda Guerra Mundial pode ser denominado de trajetória higienista, correspondendo à consolidação e desenvolvimento de um projeto de medicalização social, em que a psiquiatria surge como instrumento técnico-científico de poder, em meio a uma medicina autodenominada social. Faziam-se vigentes práticas embasadas em uma arcaica visão preventiva, também chamada, profilática. A instituição dessa prática se dava por meio de um poder disciplinar, de controle político e social, que, segundo Birman (1978, citado por Amarante, 1995, p.92), nada mais era que uma “psiquiatria da higiene moral1”. Após a Segunda Grande Guerra, surgiram experiências socioterápicas, em países como Inglaterra (comunidades terapêuticas), França (psiquiatria institucional e psiquiatria de setor), EUA, Brasil (experiências da terapêutica ocupacional, de Nise da Silveira, no Rio de Janeiro, e de Ulisses Pernambuco, em Recife), iniciando a trajetória da saúde mental (o que não caracteriza o desaparecimento da trajetória anterior). Passase da superação da idéia de prevenção das desordens mentais para a promoção de saúde mental. Desde o surgimento dos hospitais psiquiátricos no Brasil, paralelamente ao manicômio criado por Pinel, na França, existiram críticas, propostas de mudança das instituições e das práticas psiquiátricas. É, no entanto, no final da década de 70, com o surgimento do Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental (MTSM), que uma nova formulação teórica bem como a organização de novas práticas passam a ser preconizadas, dando início à Reforma Psiquiátrica propriamente dita. O termo “reforma psiquiátrica”, segundo Amarante (1995, p.91), corresponde ao “processo histórico de formulação crítica e prática que tem como objetivos e estratégias o questionamento e a elaboração de propostas de transformação do modelo clássico e do paradigma da psiquiatria. No Brasil, a reforma psiquiátrica é um processo que surge mais concreta e principalmente a partir da conjuntura da redemocratização, em fins da década de 1970, fundado não apenas na crítica conjuntural ao subsistema nacional de saúde mental, mas, também e principalmente, na crítica estrutural ao saber e às instituições psiquiátricas clássicas, no bojo de toda a movimentação político-social que caracteriza essa mesma conjuntura de redemocratização”. O processo de reforma psiquiátrica brasileira pode ser subdividido em três trajetórias: a alternativa, a sanitarista e a de desinstitucionalização. Em meio ao fim da ditadura militar, da falência do milagre econômico, do crescimento da insatisfação popular, dos déficits na educação e na saúde, do afrouxamento da censura e do início do processo de redemocratização do país, surgiram movimentos e manifestações sociais. Com a criação do CEBES (já explicitado 1 Grifos do autor. anteriormente) e do Reme, foram legitimados espaços de discussão sobre a questão da saúde, bem como a produção de um pensamento crítico a esse respeito, possibilitando, assim, a estruturação das bases políticas das reformas sanitária e psiquiátrica no Brasil. O MTSM surge dessas instituições emergentes e promove denúncias ao governo, de torturas, corrupções e fraudes no âmbito da assistência psiquiátrica nacional. A sociedade civil fica escandalizada diante da violência das instituições psiquiátricas e da violência em relação aos cidadãos como um todo (presos políticos, trabalhadores, etc). O MTSM passa a assumir a Divisão Nacional de Saúde Mental (Dinsam). Surge, neste período, um pensamento crítico sobre a natureza e a função social das práticas médicas, psiquiátricas e psicológicas, evidenciando-se autores como Foucault, Goffman, Bastide, Castel, Szasz, Basaglia, Illich, chegando ao país relatos de experiência de Gorizia, da Psiquiatria Democrática (lideradas por Basaglia) e da Rede de Alternativas à Psiquiatria, fundada em Bruxelas. Este momento foi denominado de trajetória alternativa, já que apresentava alternativas ao modelo da psiquiatria clássica. A trajetória sanitarista, por sua vez, corresponde aos primeiros anos da década de 80, em que grande parte dos movimentos das reformas sanitária e psiquiátrica foram incorporados ao Estado, a fim de promover mudanças no sistema de saúde. O pensamento crítico em saúde dá lugar a uma postura não tão crítica, concebendo a ciência médica e a administração como as soluções para o problema das coletividades. Colocar em ordem os serviços, as instituições e os recursos passam a ser as palavras de comando, ressaltando-se a importância dos saberes sobre a administração e o planejamento em saúde. A co-gestão é implantada entre os Ministérios da Saúde e da Assistência e Previdência Social, tornando-se um marco no período. Durante a Nova República, o movimento sanitário confunde-se com o próprio Estado. Neste momento, ocorreram importantes eventos nas várias esferas políticas, como a 8ª Conferência Nacional de Saúde, os Encontros de Coordenadores de Saúde Mental da Região Sudeste (1985) e de outras regiões, a I Conferência Nacional de Saúde Mental (1987). Esta última marca o fim da trajetória sanitarista e o início da trajetória da desinstitucionalização ou da desconstrução/invenção, já que participantes do MTSM, presentes na administração pública, entraram em conflito com a Dinsam. Esta queria um congresso de técnicos, sem a participação de usuários e familiares, e não queria grupos de discussão. Ocorreram, ainda, conferências estaduais e municipais independentes da Dinsam. Tornava-se evidente, assim, que a trajetória institucional da estratégia sanitarista buscava apenas reformas, sem, no entanto, trabalhar o ponto central, “sem desconstruir o paradigma psiquiátrico, sem reconstruir novas formas de atenção, de cuidados, sem inventar novas possibilidades de produção e reprodução de subjetividades” (Amarante, 1995, pp.98-99), estando fadado ao fracasso. A última trajetória do processo de reforma psiquiátrica é denominada trajetória da desinstitucionalização, ou da desconstrução/invenção. Com a I CNSM, levou-se a diante a proposta de realizar o II Congresso Nacional dos Trabalhadores em Saúde Mental, em Bauru, em dezembro de 1987, sendo levantado o lema “Por uma sociedade sem manicômios”. Surgem, conseqüentemente, os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), os Núcleos de Atenção Psicossocial (NAPS), o Projeto de Lei 3657/89, passando-se a construir um novo projeto de saúde mental para o país. As Reformas Sanitária e Psiquiátrica desvinculam-se, já que a tradição sanitarista sempre se preocupou mais com o macro, preconizando grandes reformas políticas para se conseguir as pequenas reformas, não conseguindo ouvir as diferentes singularidades, enquanto o movimento psiquiátrico manteve seu questionamento a respeito da institucionalização da doença e do sujeito da doença. Ainda no congresso de Bauru, foi instituído o Dia Nacional da Luta Antimanicomial2, que, todos os anos, envolve usuários, familiares, trabalhadores, voluntários, intelectuais, artistas, a população em geral. Foram criadas associações de familiares e usuários, ação esta promovida até mesmo pela Federação Brasileira de Hospitais (FBH). Houve a abertura concreta de espaços no interior das instituições, com o afastamento de velhas lideranças envolvidas com a empresa da internação psiquiátrica, com a psiquiatria conservadora ou com a prestação de serviços à repressão; também foram produzidas novas culturas, uma nova ética, novas formas de pensar, trabalhar e lidar com pacientes e instituições. Cursos de especialização e capacitação de recursos humanos em saúde mental passaram a existir, possibilitando a constante reflexão sobre as práticas e a atuação profissional. Além disso, “ao lado de uma política progressiva de redução do número de leitos psiquiátricos, existiu proeminente aumento do número de serviços ambulatoriais, hospitais-dia, centros de convivência e outros recursos e tecnologias” (Amarante, 1995, p.102). Em 2006, entrou em vigor a Política Nacional de Humanização do SUS, que se apóia nos programas da Clínica Ampliada e da Ambiência. Esta política embasa-se no princípio da transversalidade, o que consiste em “trabalhar com ferramentas e “Originalmente previsto para o dia 13 de maio, data da aprovação da Lei 180, na Itália, e também da abolição da escravatura” (Amarante, 1995, p.100). 2 dispositivos que consolidem redes, vínculos e a co-responsabilização entre trabalhadores, usuários e gestores” (Fonseca de Oliveira et al., 2007). A Clínica Ampliada busca compreender o “doente”, propondo uma avaliação e tratamento inseridos no contexto em que ocorreu o adoecimento, considerando as especificidades e a subjetividade da pessoa em questão. Desta forma, a pessoa em sofrimento torna-se sujeito de seu próprio tratamento, passa a ser protagonista, deixando de estar submetida ao poder e à verdade alheios. Evidenciam-se, assim, a história da pessoa, sua subjetividade, considerando-se os saberes clínico e epidemiológico implicados nos sintomas e na doença. A intervenção também será ampliada, determinando ações sobre os vários âmbitos em que a pessoa se encontra envolvida e que dela fazem parte – como o orgânico, o subjetivo e o social. Diante de tudo isso, cabe lembrar as sábias palavras de Gilberto Safra: “A gravidade de um doente mental não se refere ao fato de ele ser psicótico ou neurótico, mas sim a quanto de esperanças ainda se guarda em relação a ele”. Ou ainda, nada melhor que a definição de cura presente no livro “A história de Beta”: “Curado está aquele que encontra o seu destino”. BIBLIOGRAFIA AMARANTE, P. (org.) Loucos pela vida: a trajetória da reforma psiquiátrica no Brasil. 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