“É uma medida que nos leva de volta a Idade Média. É um reflexo do pânico e da ignorância”. Em West Point, uma favela sobre uma península em Monróvia, capital da Libéria, a Idade Média retornou em 20/08/14, quando a presidente Ellen Johnson Sirleaf decretou a quarentena em massa para cerca de 70 mil pessoas, devido a um surto de ebola fora de controle e do colapso do sistema de saúde deste que é um dos países mais pobres do mundo. Recém saída de duas guerras civis em sequência, que devastaram sua economia e deixaram milhares de mortos, a Libéria contava, até 3 dias após o início da quarentena em West Point, 624 das 1.427 mortes causadas pelo surto de ebola na África, que já assusta o mundo e faz com que o continente mãe retorne aos noticiários. Ainda não se sabe como exatamente o vírus ebola passou a contaminar seres humanos, mas o mais provável é que tenha sido pelo consumo da carne de animais selvagens, particularmente morcegos-da-fruta, os mais indicados como reservatórios naturais do vírus. Sim, na África há o costume de se comer morcegos, o que não é tão chocante em se considerando quanta miséria e fome ainda existem por lá... Após a infecção, os sintomas têm início em duas a três semanas, e manifestam-se através de febre, dores musculares, dores de garganta e dores de cabeça. A estes sintomas sucedem-se náuseas, vómitos e diarreia, além de insuficiência hepática e renal, seguidos de graves problemas de hemorragia. Comparado a outros vírus, o potencial de infeções em grande escala por ebola é considerado baixo, uma vez que a doença só é transmitida por contato direto com as secreções de indivíduos que mostrem sinais de infeção. A rápida manifestação dos sintomas faz com que seja relativamente fácil identificar indivíduos doentes e limita a capacidade de uma pessoa em transmitir a doença durante viagens. Entretanto, as péssimas condições sanitárias de algumas grandes cidades africanas faz deste surto de ebola uma grave ameaça. E, não custa lembrar, cerca de 90% dos infectados morrem. Nos dias seguintes a quarentena em massa de West Point, os moradores passaram a contar com a distribuição de comida e água por grupos humanitários, mas se queixam de quantidades insuficientes e falhas na entrega. Os preços de mantimentos nos pequenos mercados dentro da favela dispararam e muitos itens essenciais já estão esgotados. Não sabemos o que será dos 70 mil que retornaram forçadamente a Idade Média em Monróvia, mas sabemos de uma coisa: para boa parte do mundo, e particularmente no Ocidente, toda a região central do continente africano sofre de uma espécie de “grande quarentena étnica”. Afinal, quem se preocupa com o que se passa por lá? Quem estudou a sua história e a sua cultura no colégio? Quem se interessa genuinamente por suas religiões arcaicas? Quem chora pelos africanos? Isto não é somente uma questão moral, mas uma questão de sobrevivência. Não é a toa que os surtos de doenças mais mortais das últimas décadas têm se originado na África. Se deixarmos todo um continente isolado dos “afazeres do mundo civilizado”, mergulhados na miséria e na fome, isto não os torna menos humanos, menos homo sapiens. E, uma doença que mata os homo sapiens africanos, mata também os homo sapiens do restante do globo. Se não estamos exatamente preocupados com eles, deveríamos ao menos ter o bom senso de nos preocupar com a espécie humana, como um todo! Felizmente, há quem se preocupe, há corações ocidentais e orientais que ainda batem pelos africanos, e que fazem tudo ao seu alcance para os cuidar e auxiliar. Quando falamos de “cuidado e auxílio” aos africanos, particularmente aos mais miseráveis, é inevitável falar dos Médicos Sem Fronteiras. O MSF é uma organização internacional não-governamental sem fins lucrativos que oferece ajuda médica e humanitária durante situações de emergência, em casos como conflitos armados, catástrofes naturais, epidemias, fome e exclusão social. É a maior organização não governamental de ajuda humanitária do mundo, na área da saúde, e sobrevive exclusivamente de doações. Debora Noal, brasileira, psicóloga e “agente” do MSF, é um dos nossos anjos, um dos corações que ainda pulsa, forte, pela África. Não faz muito tempo que deu este relato emocionante, profundo, humano, para a então jornalista da Época, Eliane Brum, onde fala sobre a sua experiência de auxílio aos infectados pelo ebola noutros surtos passados (e que não chegaram ao noticiário) [1]: Quando eu cheguei lá em Isiro (Congo), a primeira coisa que a equipe que estava junto comigo no avião falou foi: “Vamos se abraçar?”. Eu falei: “Gente, que estranho. Nunca ninguém me propôs isso dentro de um avião”. A gente sabia que, depois que saísse de dentro do avião, ninguém mais ia se abraçar durante longas semanas. E a cara deles refletia um pouco a minha cara, o que eu estava sentindo. Tipo: “Como será que é viver num mundo sem toque?”. Porque você não toca mais. Você passa semanas sem tocar na pele de ninguém. Você passa semanas sem ter um contato corporal que te dê uma sensação de acolhimento. Acho que essa é uma relação bem difícil. Como é que você cuida de alguém sem chegar muito perto? Como é que você abraça alguém sem tocar? Como é que você faz um carinho em alguém sem encostar sua pele na pele do outro? Essa missão foi bem especial nesse sentido. Eu descobri várias formas de como cuidar do outro sem tocar. E foi muito bonito. Quando cheguei lá, a primeira coisa que eles diziam era: "A nossa função aqui é isolar o ebola". Aí eu passei a dizer para a comunidade: “Bom, gente, a minha função aqui é fazer com que o vírus fique isolado, e as pessoas não fiquem isoladas. Então, assim como o papel da equipe técnica, médica e de higiene é o de isolar o vírus, o meu papel é fazer com que as pessoas não fiquem isoladas”. Para mim, a indignidade do vírus é a sensação de que ele só matava as pessoas que tinham coração bom, as pessoas que queriam cuidar. Porque, em geral, quem estava contaminado era quem tinha ajudado a cuidar dos outros nos últimos momentos de vida. Então, a pessoa estava lá, com febre, tendo diarreia, vômito e ninguém chegava perto por causa do vírus. E havia aquele que cuidava mesmo assim, mesmo sem ter água encanada, sem ter sabão em casa. E por isso se contaminava e morria. Aconteceu isso com um pastor de 70 anos. A mulher dele morreu de ebola, e foi ele que cuidou dela até o último minuto. Também era ele quem rezava pelas pessoas que estavam contaminadas em sua comunidade. E, também por isso, ele se contaminou. Então, esse senhorzinho entrou no Centro vítima do cuidado. Quando eu entrei lá para perguntar a ele como é que ele gostaria de ser cuidado, o que a gente podia fazer por ele, ele disse: “Eu queria que alguém viesse me visitar”. Ele não pediu remédio, ele não pediu nada para dor, ele não pediu nada para diarreia, ele não pediu nada médico. Mas ele pediu que alguém fosse lá vê-lo, sabe? Ele já estava com a gente há mais de uma semana e não tinha recebido uma única visita. Nem os filhos o tinham visitado. Ele era pastor de uma das maiores congregações protestantes e não tinha recebido nem mesmo a visita de um fiel. Isso me deu uma sensação muito ruim. Aí foi nesse dia que eu decidi: vou lá nessa comunidade, vou conversar com eles, vou filmar a conversa, vou tentar trazer a sua comunidade para dentro do Centro. Eles nunca tinham visto uma câmera. Eles nunca tinham visto televisão, nem filme, nem nada, mas de repente eram eles que estavam falando, com o olhar bem na câmera, mesmo, como se eles tivessem feito aquilo a vida inteira. E eles olhavam bem na câmera, falando: "Pastor, a gente está aqui rezando para você". Então, na hora em que a gente projetou, parecia que eles estavam olhando no olho do pastor e dizendo: "A gente tá aqui, rezando pra você, e é todo dia, é toda hora, e a gente reza de noite e a gente reza de dia e a gente tá fazendo três cultos por semana, que é pra juntar toda a comunidade pra rezar pra você. E Deus vai salvar você". E, na hora em que eles começaram a rezar, o pastor se levantou, mesmo muito fragilizado, levantou os braços e começou a rezar junto com eles, como se eles estivessem compartilhando a mesma reza. Cara, foi muito bonito! Mais três dias depois dessa movimentação toda ele começou a reagir de uma outra forma. Ele começou a sair do lugar de paciente e começou a assumir o outro lugar que ele tinha, que era o lugar de cuidador. E começou a se levantar do leito dele para fazer as rezas, dentro dos espaços, para os outros pacientes. E ele se curou. No dia em que ele saiu do Centro, a gente combinou com a equipe toda. A gente dá roupas novas, e eles saem com elas, depois de estarem curados, de o exame dar negativo. A gente arrumou então uma bengala improvisada e o gorro dele, e ele foi mais ou menos como um rei, sabe? Na frente do carro, vidros abertos, com todo o staff atrás, cantando as músicas que ele puxava. Foi passando pelo meio dos mercados públicos da sua comunidade, acenando como se fosse "o rei", e nós todos cantando. Para as pessoas que estavam nos mercados, era como estivessem vendo uma miragem. "Ele está vivo!" Todo mundo já tinha dado ele por morto e, de repente, ele estava vivo. Sorrindo, acenando e cantando bem feliz dentro do carro. O pastor ainda pediu que a gente fosse com ele na Rádio atestar que ele não contaminaria mais ninguém. E a gente fez isso. Ajudem Debora e o MSF a fazer mais. Ajude a África a sair desta grande quarentena: » Contribua com o MSF, seja um doador sem fronteiras! *** [1] Trechos retirados do artigo Missão Ebola: “Me reinventei a marretadas”. Crédito da imagem: aaa