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Umberto Cerroni
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Existe Uma Ciência Política Marxista?
1.
Norberto Bobbio abre seu recente e amplo ensaio sobre democracia socialista,
que apareceu em Mondoperaio (setembro-outubro 1975), lembrando uma afirmação
minha, muito critica, sobre a relação entre ciências sociais e marxismo e especialmente
sobre teoria política marxista (cfr. Rinascita, 1971, número 28). Bobbio concorda comigo
que “uma ciência política marxista faltou substancialmente”, e desenvolve muitas
considerações sobre as quais concordo em muito. Se intervenho, portanto, não é tanto
para sublinhar somente qualquer relevante dissensão, mesmo porque, me parece que
Bobbio solicita uma discussão compreendida em medicar de qualquer modo a úlcera e
esboçar a tela de uma teoria política do socialismo. Disto se sente já grande necessidade,
de fato. Vai longe - finalmente - o tempo no qual quem escrevia sobre teoria política do
socialismo devia recolher a indiferença ou as reprimendas tanto da academia quanto do
movimento operário! Hoje o problema é reconhecidamente existente e nos permitimos
até o luxo de lastimar o tempo que perdemos.
Por que então faltou uma ciência política marxista? Considero que as principais causas
sejam o achatamento economicista sofrido pelo marxismo em um primeiro momento (do
qual fui sempre, reconhecido, obstinado crítico e adversário, mesmo sem conseguir
convencer - ao que parece - o amigo e companheiro Arcangelo Leone de Castris, que
polemiza comigo no número 42 de Rinascita) e a redução político-pragmática que ele
depois registrou num segundo
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momento. O reducionismo economicista do marxismo tem uma longa história que, para
efeitos de teoria política, sempre resumi nestes termos: a justa crítica trazida do
marxismo às liberdades formais ou políticas foi sempre mal compreendida como proposta
de substituí-las com a liberdade real ou social. De tal modo, a democracia socialista foi
pura e simplesmente contraposta por substituição à democracia política, se bem que esta
última tenha sido em larga medida não somente uma solicitação mas também uma
conquista do movimento operário socialista.
Eis porque faltou substancialmente um interesse específico pela teoria política e pela
teoria do direito nas fileiras do movimento operário e da Cultura marxista. Há, é verdade,
a exceção de Estado e Revolução. Contudo, neste texto, o interesse prevalecente é
exatamente aquele político-prático de legitimar a passagem a um novo Estado, diferente
do tradicional. O interesse propriamente científico ao tema da democracia aflora somente
marginalmente e — que se observe — na medida em que aflora, mostra significativas
aberturas problemáticas de Lênin (ambigüidade da democracia, tendenciosa oposição
entre democracia política desenvolvida e capitalismo, etc.). Mas, é necessário juntar aqui
que o pragmatismo político inseriu na tradição marxista um elemento posterior de
deformação, esse também limitativo do desenvolvimento científico de uma teoria do
Estado e do direito. Trata-se daquela tendência — de modo algum desaparecida e, pelo
contrário, renascente no curso da luta política — que pretende fazer valer a conduta
política do movimento como teoria, portanto mantendo nociva ou inútil, ou até mesmo
impossível, uma distinção entre política, cultura e ciência, só porque se deve —
justamente! — reagir à condição separada na qual elas mesmas foram reduzidas pela
tradição. As conseqüências desta segunda linha deformante não são menos graves;
ainda que não cultivem o desprezo da política teorizam diretamente a primazia da
política. Como se a política do movimento operário não fosse ela mesma filha da luta de
classes e portanto, ao mesmo tempo, de um contraste de interesses de submeter o
reconhecimento analítico e de reorganização ideal complexa do mundo moderno, que é
chamado de socialismo científico.
O fato é que o socialismo é facilmente privado desta sua também essencial conotação
científica porque no movimento prevalece ou o empirismo da luta cotidiana (em nome,
oxalá!, de um instinto operário que é, com dano, exaltado da análise materialista do
mundo)
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ou a auto-insuficiência do dirigente político (no sentido amplo) que tende a se considerar
portador de cada verdade. Então, a teoria acaba necessariamente no sótão: porque a
prática mesma é exaltada como teoria ou porque nos iludimos que basta oferecer a alma
à classe para se constituir fundadas estratégias. Nem de um modo e nem de outro o
papel ativo do intelectual desparece do movimento; e falo aqui do elemento intelectual
da luta (não dos intelectuais como camada social). Trata-se da fundação teórica da luta
ou da construção do intelectual coletivo (partido) que a deve dirigir. O movimento se
dobra em cima de si e pede um achatamento geral da nova cultura, no que concerne aos
níveis corporativos (os mais elementares) da luta.
As conseqüências da ordem cientifica são facilmente intuídas: o desinteresse com
relação à elaboração científica dá início à aceitação passiva da cultura tradicional, isto é,
à integração reformista ou então ao anarquismo subalterno, que coloca num só feixe
Newton e Companhia das índias, Goethe e os Junker prussianos, Velsen
e o
Departamento de Estado. Como se os problemas específicos sobre os quais a cultura
burguesa reflete não tivessem uma composição objetiva e fossem, ao invés, somente
invenções e enganos burgueses pour épater les prolétaires*(Nota do tradutor (NDT) —
Para embasbacar os proletários).
Daí então, se compreende que - como diz Bobbio - existam muitos marxistas que
”preferem ou acham mais cômodo ler e reler e explicar Aristóteles ao invés de olhar no
telescópio” e muitos, acrescento, que sem mais, estejam dispostos a escapar do
telescópio, invenção da ciência burguesa. Quem sabe por que Marx estudava Ricardo e
Gramsci, Maquiavel? Concluirei estas primeiras observações gerais recordando este
texto de Gramsci: ”O erro no qual se cai freqüentemente na análise histórica consiste no
não saber encontrar a relação entre o ”permanente” e o ”ocasional”, caindo-se assim ou
na exposição de causas remotas, como se fossem aquelas imediatas, ou na afirmação
que as causas imediatas são as únicas causas eficientes. De um lado tem-se o excesso de
”ideologismo”; de uma parte se supervalorizam as causas mecânicas, da outra, o
elemento “voluntário e individual” (Caderno 4). É — observe-se — o texto que se conclui
com o célebre aforismo ”do
auto-engano” do charlatão que é mordido
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pela cobra porque ”o demagogo é a primeira vítima da demagogia.
2. Bobbio comenta justamente que o debate político concentrou-se, no movimento
operário, sobre o tema do partido de preferência ao tema do Estado. Por que?
Naturalmente o tema do partido é um tema de urgência imediata para a organização da
luta; todavia, o partido mesmo e a luta têm um sentido somente enquanto se propõem o
tema do Estado. A desatenção ao problema do Estado, portanto, é um pecado grave nos
confrontos da revolução socialista, e ocupar-se cientificamente de teoria do Estado é
mais do que um hobby de acadêmicos. Ou, talvez, ocupar-se da ciência política seja
menos importante do que ocupar-se da ciência econômica, como fez Marx?
Bobbio identifica duas causas da supracitada desatenção: a primeira concerne ao
prevalecente interesse do movimento operário à conquista do poder e a segunda ao
postulado do desaparecimento tendencial do Estado até a sua extinção. Estou
substancialmente de acordo. Acrescento, no entanto, que estas duas causas ligam-se a
uma interpolação muito grosseira do problema do poder e do Estado de transição, que
encontrou uma sua legitimação até que o movimento teve diante de si um poder
primitivo, não articulado nas formas políticas da liberal democracia evoluída. Também
por isto o socialismo passou somente nos ”elos fracos” da corrente capitalista e não
conseguiu nunca passar nos ”elos fortes”. Nestes, de fato, o poder burguês articulou-se
de forma tal que desmente visivelmente a grosseira interpretação do Estado burguês
como mera máquina de repressão violenta, e como elite selecionada formalmente como
elite de classe. Diz-se que a instituição do sufrágio universal, que organicamente
completa o formalismo do Estado burguês, coloca em crise o movimento socialista e
racha-o em dois troncos, sendo que nenhum dos dois consegue fazer avançar a
revolução. A ala reformista aceita a redução liberal do problema político como problema
de formalização do método de construção da elite governante; a ala integrista nega cada
relevância específica do sufrágio universal e das liberdades formais. Assim, uma se
integra, a outra se isola. Uma sacrifica o fim ao movimento, a outra sacrifica o movimento
pelo fim. Foi assim que no Ocidente o socialismo perdeu a partida. Por mais que eu
procure não me deixar levar pelas minhas simpatias intelectuais, não encontro entre os
marxistas ocidentais nenhum que tenha entendido a profundidade deste problema tanto
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quanto Gramsci. Ele é o primeiro a não se deixar ofuscar, no problema do Estado, pelo
forte elemento da violência, e compreende que, na realidade, em um Estado fundado
sobre democracia política, o mesmo exercício da violência por parte do Estado é
concicionado à capacidade de capturar e manter um consumo. Naturalmente, existe à
exceção do Fascismo. Mas não é justamente uma exceção, mesmo sendo conspícua e
importante na fenomenologia do Estado burguês evoluído? Ou devemos renunciar a nos
medirmos com os pontos altos do capitalismo?
Gramsci, portanto, compreende que o Estado burguês pode exercitar a violência de
classe para o trâmite da sua legitimação consensual. Assim traz ele um ajustamento
fundamental à tradicional ótica do marxismo: coloca às claras que o Estado não é um
genérico aparelho de violência (que permanecerá inalterado até o comunismo, porque
também a ditadura do proletariado será uma violência de classe), mas um específico
aparato onde o próprio mecanismo varia em razão da organização social da produção até
se tornar o estado representativo-constitucional, baseado sobre a formal igualdade de
todos, também dos proletários, na determinação da elite política que exerce o poder.
Mas, que a ditadura de classe burguesa possa se exercitar através de um formal
nivelamento de todos, incluídos os proletários, é um dado de extremo interesse e
levanta, ao menos, o problema análogo da possibilidade da ditadura do proletariado ser
exercitável através do nivelamento formal de todos, incluídos os não proletários e os
próprios burgueses. O problema não é somente teórico: concerne à capacidade
hegemônica da nova classe dirigente e também à possibilidade de que a transformação
da sociedade aconteça sem eliminar as garantias formais do indivíduo, que são realtivas
à democracia política.
Um problema semelhante faz aparecer outro, isto é, aquele da interpretação da própria
noção de ditadura do proletariado. Referindo-nos aos textos de Marx, que de fato são
fracos, vermos como é difícil construir a partir deles uma teoria articulada. É preciso
proceder através de um exame lógico-científico do problema. Ocorre, em primeiro lugar,
relembrar que se a ditadura burguesa pode se exercitar de diversas formas políticas, até
com a república democrática e a democracia política, isto significa que a ditadura de
classe da qual se fala não define uma particular forma de governo, mas sim um arranjo
sócio-econômico. Portanto, se não se
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deduz que também a ditadura do proletariado, compreendida como arranjo
sócio-econômico, pode se exercitar em diferentes formas políticas, não se excluí — em
princípio — a democracia política. É verdade que esta é uma forma política típica do
Estado burguês; mas como esquecer que o Estado socialista é definido por Lênin como
”um Estado burguês sem burguesia no poder”? O Estado socialista é de fato um Estado
de transição em direção à nova sociedade ’sem Estado: é, portanto, uma organização da
regulação e coação social exercitável ainda somente através de formas políticas, aquelas
formas alienadas ou ”externas” com as quais a sociedade é obrigada a se dirigir enquanto
não encontrar no comunismo desenvolvido a autogestão direta dos produtores. Durante
todo um longo período o Estado será, em suma, a organização geral desta mesma
sociedade socialista, e as formas políticas caracterizarão portanto a gestão da coisa
pública. Por que excluir então a possibilidade de formas consensuais?.
3. Em que sentido esta perspectiva é modificada pelo princípio do ”perecimento do
Estado”? Parece-me ser razoavelmente possível responder que o perecimento das
formas coativas de gestão social deverá ser comensurado ao gradual emergir da
autogestão direta dos produtores; não poderá ser coisa muito diferente de uma gradual
expansão da democracia para instigá-la, das formas de democracia representativa pura,
a formas de democracia direta, isto é, a formas de representação política controladas, de
baixo, e não em formas de participação popular direta. Mas não me parece que isto possa
se constituir em um processo de contraposição radical das duas formas de democracia. A
democracia direta integral é na realidade o fim da própria democracia e se projeta,
portanto, como um ponto final da transformação geral (”extinção”) do Estado. Mas
enquanto este ponto final não for alcançado, a mediação política será ainda necessária,
sendo necessárias portanto, a representação e a delegação (já que nem todos exercitam
ainda diretamente o poder), e não a igualdade formal jurídico-política (já que esta é
exatamente garantia de paridade universal de todos no plano formal).
Em resumo, a contraposição entre as duas formas de democracia, que freqüentemente
continua a ser projetada, resolve-se por uma negação da igualdade formal de todos e dos
procedimentos formais que asseguram essa igualdade; por uma negação, em suma, do
igualamento jurídico e dos processos judiciários do direito. Naturalmente, é essencial
para a revolução socialista conseguir
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passar da igualdade formal à igualdade real e, se quiser, do direito igual ao direito
desigual. Mas este não pode deixar de ser um processo assaz longo (a menos que se
deixe no ar cada distinção entre a fase socialista, ou da transição, e a fase comunista).
Por outro lado, a passagem do direito desigual (que é antes — note-se — passagem para
as formas de autodireção igualitária da comunidade sem coação) não pode acontecer de
um só golpe e em cada campo. Isto abalaria os processos judiciários formais e as
garantias formais, muito antes que a transformação social tivesse obtido uma
profundidade tal a ponto de tornar ”supérfluo” cada direito.
Leve-se também em conta que, na fase de transição, o direito não constitui somente o
”majestoso horizonte” burguês do qual falou Marx; para todas as esferas concernentes às
relações indivíduo-Estado, por exemplo, isso constitui também (na presença de uma vida
ainda política) um instrumento essencial de tutela do indivíduo perante o Estado e seu
aparato e, além do mais, um meio para assegurar que a participação de todos na vida
política seja formalmente garantida.
Qualquer outra solução que — em homenagem à crítica abstrata do formalismo das
liberdades políticas e dos direitos - proclamasse o fim de cada ”garantismo” resultaria na
instauração de um socialismo com formas políticas elitistas e autoritárias. Quem
garantiria os processos judiciários de formação, controle e substituição desta elite? Aqui
a fórmula da ”ditadura do proletariado” mostra a sua insuficiência para definir um tipo de
regime político. Em realidade o proletariado em si não é somente uma classe social, mas
também uma extratificação política. Quem, então, estabelecerá os confins legítimos do
dissenso no interior desse mesmo proletariado? Não é por acaso que a teoria da ditadura
do proletariado resulta em uma teoria da primazia carismática do partido (e além do mais
de um só partido) como selecionadores autoritários da elite. A solução da constituição de
um Conselho — frequentemente ventilada — é ilusória, no sentido de que ele não pode
prescindir de uma Câmara política e, portanto, de um processo judiciário jurídico para a
sua seleção. De outra ela dissolve anarquicamente as funções políticas. Não é por acaso
que as soluções de Conselho e soviéticas foram meteóricas: foram substituídas pela
contra-revolução (Baviera, Hungria e Alemanha) ou pelo autoritarismo stalinista.
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O verdadeiro problema do socialismo contemporâneo torna-se, assim, aquele de
construir nos países evoluídos um modelo de Estado no qual a passagem para o
autogoverno integral dos trabalhadores se baseie na expansão da democracia política,
isto é, na progressiva combinação da democracia representativa com a democracia
direta, de modo a desenvolver cada liberdade (salvo a de apropriação privada do produto
social) e cada forma de participação. Naturalmente, esta ação de socialização do poder
deverá acompanhar-se de uma ação progressiva de socialização dos meios de produção.
Os tempos e as formas desta ação combinada serão marcadas pelo critério essencial da
conquista do consenso, no pressuposto, aqui de todo subentendido, de que o socialismo
contemporâneo não é tanto um programa doutrinário a ser ”aplicado” (além do que,
deste programa doutrinário não existem muitos traços em Marx) quanto, de preferência,
uma crítica histórica a ser conduzida pela sociedade capitalista com base nas
contradições que ela exprime e também da necessidade que levanta e das instâncias que
lá, faz emergir.
Ora, no que concerne especificamente ao Estado representativo, são muitos os
problemas que tornam urgente um processo de socialização do poder. O problema
principal me parece resumível desta maneira: com o crescimento da economia pública e
da intervenção estatal, as instituições representativas tendem a exprimir um regime
político sempre mais separado e abstrato com relação à demanda dos cidadãos, ha
medida em que deve defrontar questões e tempos ”técnicos” no seu funcionamento, mas
cada vez mais invasor, ineficiente e burocrático com relação às exigências objetivas da
economia. Em suma, trata-se de um regime político que afasta a instância de
generalização, síntese e participação que emerge da esfera política e que, ilusoriamente,
pensa poder compensar, com um modelado intervencionismo, os critérios tradicionais da
burocracia, da gestão gerencial-tecnocrata e mesmo os da direção da economia pública
com critérios privatizantes.
Nesta profunda rachadura crescem e se agigantam os germes da alienação política e a
inversão burocrática. Mas em cima dela, igualmente, cresce com força objetiva a
necessidade de construir um mecanismo de integração entre política e economia,
fundado sobre uma generalização política que não seja abstrata e separada com relação
à sociedade, e sobre uma intervenção política que não seja externa, formal,
burocratizada e burocratizante.
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No conjunto, a exigência que se impõe é exatamente a de operar uma socialização do
poder que torne possível uma socialização da economia e que, por outro lado, se torne
ela mesma possível pela socialização da economia. Tornar-se um círculo de política
socializada e de economia politizada que represente, com evidência, a necessidade de
um socialismo presente no mundo contemporâneo em todos os níveis.
Podemos então dizer que a instância da socialização do poder não é somente um
co-elemento essencial da ação socialista, mas é, ela mesma, uma instância que nasce do
interior das contradições do Estado representativo-burocrático, da mesma forma que a
instância da socialização da economia nasce do interior das contradições do capitalismo.
Torna-se, em suma, tão necessário quanto possível impelir para adiante todas as
instâncias igualitárias, que nas formulações somente formais da Constituição moderna
multiplicam-se e intensificam-se e que, condenadas a permanecerem somente formais
na sociedade privatista, podem encontrar propulsão na luta socializadora dos
trabalhadores, exatamente enquanto esta mesma luta recebe da batalha pela
transformação, participada pelas instituições representativas, um empurrão posterior.
4. Parece-me possível fugir-se do dilema que Bobbio formula nestes termos: “o
capitalismo com democracia ou socialismo sem democracia”. Ele chega a formular tal
dilema com esta argumentação: ”através do método democrático o socialismo é
inalcançável; mas o socialismo alcançado por via não democrática não consegue
encontrar o seu caminho para a passagem de um regime de ditadura a um regime de
democracia.” Antes de discutir o mérito desta argumentação, gostaria de formular
rapidamente uma outra para evidenciar um tipo diferente de análise, que não pode ser
ignorado: ”a pura gestão representativa do Estado, tomada como princípio e fim da
liberdade moderna, não consegue nunca sair do mecanismo capitalista, do qual é, de
fato, o complemento político. Todavia, as exigências objetivas da sociedade
contemporânea e do próprio Estado solicitam hoje modificar tanto a gestão puramente
representativa quanto a estrutura capitalista da economia.” Se esta minha formulação
fosse aceita, muitas das coisas que estou por dizer tonar-se-iam supérfluas.
Devo notar, para passar ao mérito do problema, que o mesmo dilema formulado por
Bobbio parece-me muito ”seco”: na verdade,
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tivemos sempre e, na verdade também, podemos para sempre pensar em ter um
”capitalismo com democracia”? Em uma série de países (entre os quais, infelizmente, o
nosso) não direi tanto a expansão, mas a conservação e a sobrevivência da democracia
constituem um ponto interrogativo quase cotidiano. A ameaça fascista-autoritária
parece-me endêmica, assim como, obviamente, a fascistização do Estado é mais que
fatal. Me parece, pois, que essa ameaça emerge cada vez mais nitidamente do interior da
própria organização do Estado representativo-constitucional, baseado na tradicional
divisão-contraposição dos poderes, potencializados em ameaçadores corpos separados,
porque subtraídos de cada controle popular e político em geral. A invasão destes corpos
separados é grave também em Estados evoluídos, onde conseguem até manifestar uma
”segunda” política externa e condicionar ou, até mesmo, matar o chefe do Estado. No que
se refere a Itália, pois, como negar que a estabilidade das instituições democráticas
nestes últimos anos foi substancialmente garantida pelas próprias forças do movimento
operário, isto é, por um movimento claramente anticapitalista? Acrescentarei que este
fato é assaz significativo e indica com grande evidência duas tendências. Uma, é que na
Itália a democracia política se defende e se expande principalmente graças ao
movimento socialista; outra, que o movimento socialista, na sua batalha anticapitalista,
deve necessariamente desenvolver uma batalha antifascista e de promoção da
democracia política. Mas isto significa também que se traça a necessidade de substituir
o capitalismo se quiser fazer progredir a democracia e a possibilidade de fazer avançar o
socialismo com a democracia.
Porém, há um ponto forte na argumentação de Bobbio. É a constatação de que, através
do método democrático, o socialismo nunca foi alcançado e que o socialismo alcançado
mostra graves limitações com respeito à democracia política. Gostaria, porém, de objetar
imediatamente. Não vejo porque esta constatação relativa ao passado deva tornar-se,
digamos; uma prescrição normativa para o advir. Com esta lógica a história não mudaria
nunca, nem mesmo por meio de revoluções. Com relação ao primeiro dado, de resto,
creio que o elemento constitutivo da possibilidade de uma transição democrática para o
socialismo seja, exatamente, a capacidade de análise e a decisão das forças dirigentes
no movimento socialista. Se estas jamais acharam possível uma transição democrática
para o socialismo, por que então o socialismo teria podido
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se realizar por via democrática? Falo, é óbvio, de um socialismo efetivo, decidido a obter
a socialização dos meios de produção e o autogoverno integral dos trabalhadores e,
portanto, — em perspectiva — o comunismo. Não daquele socialismo adoçado que
corrige somente a distribuição, porque este foi na realidade realizado pelas
social-democracias européias, com insatisfação completa dos críticos do capitalismo. De
fato, não foi uma passagem democrática para o socialismo, mas sim uma conversão do
movimento socialista para a pura lógica da liberal-democracia tradicional (alternância na
gestão política do capitalismo). Até então, nenhum dos partidos social-democrátas
jamais se propôs o problema que o próprio Bobbio (me parece) considera relevante. Isto
é, como e se é possível que a democracia política conduza à integral socialização dos
meios de produção (e do poder).
Por outro lado, parece-me tanto quanto opinável, deduzir das experiências do
socialismo existente uma sua impossibilidade inicial de desenvolver formas políticas
evoluídas. Naturalmente, concordo com Bobbio sobre os limites destas experiências, mas
estou convencido de que hoje o mundo é dominado, por assim dizer, por uma dupla e
inevitável necessidade lógica: a democracia política empurra para o socialismo e o
socialismo empurra para a democracia política. Não fundamento esta dupla necessidade
lógica somente nas esperanças intelectuais: deduzo-a até das derrotas do movimento
socialista, tratando-se das derrotas que sofre, no ponto onde não consegue se enxertar
na democracia política do Ocidente, deixando assim campo livre à hegemonia burguesa
ou mesmo à decadência autoritária e fascista, ou seja, das derrotas que ele sofre, onde,
estando no poder, não consegue defrontar as demandas de desenvolvimento político que
ele mesmo gera. Estou inclinado a crer que vivemos em uma época muito complexa para
as forças socialistas: uma época na qual a realidade histórica pede a estas forças
empenhos, perspectivas, capacidade que freqüentemente elas não sabem se dar. Como
acontece muito comumente, a consciência é posterior aos fatos.
Mas isto quer dizer que estamos em tudo e por tudo no ano zero?
Seria profundamente injusto não considerar que foi dado um grande passo adiante na
história do movimento socialista. É o próprio fato de que os problemas concernentes à
relação democracia política-socialismo não são mais ignorados nem pelos estudiosos
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nem pelos políticos. Para ficar na experiência italiana, estou convencido de que estes
últimos trinta anos representam uma particular e verdadeira virada na cultura do
socialismo, sob este ponto de vista. Na realidade, como negar que a problemática
concernente à relação com a democracia política, na Itália, esteja no centro das análises
e das lutas das forças socialistas? E como negar que esta posição central dependa do fato
objetivo, que o desinteresse pela democracia política permitiu na Itália a vitória do
fascismo e a derrota do socialismo e que, portanto, o interesse do socialismo pela
democracia política é bem outra coisa do que uma estratagema tático? Por outro lado,
parece-me que esta mesma objetividade histórica do problema tenha suscitado um
interesse estratégico, e portanto teórico, pela democracia política que minou e
progressivamente destruiu as antigas e tradicionais duplicidades. O ”compromisso
histórico”, a propósito, é um ponto significativo. Por outro lado, na (larguíssima) medida,
na qual o movimento socialista italiano fica orientado . para a luta pela transformação das
relações sociais e pela abolição do capitalismo, como negar que a sua adesão plena à
democracia política seja também consciência crescente? Que em um país como a Itália a
democracia política se mantém e se desenvolve somente lutando contra o capitalismo e
que, por isso, a expansão da democracia política é um aspecto específico da luta contra
o capitalismo e pela construção das formas políticas de um socialismo evoluído? Não me
cansarei de repetir que também Lênin tinha entrevisto, embora em condições históricas
bastantes diversas, esta concessão, quando afirmou que ”se todos participam na gestão
do Estado, o capitalismo não pode mais se manter”. Eis porque a república democrática
da igualdade formal é ao mesmo tempo o melhor envólucro do capitalismo e o melhor
terreno de luta do movimento socialista: ela encarna historicamente, digamos assim, um
nível histórico novo da desavença entre capitalismo e socialismo. Um nível no qual a
desavença não é mais somente de interesses econômicos, mas também de estratégias
políticas e de concepções da vida e do mundo, uma desavença hegemônica para orientar
a história de modo novo.
5. Se tudo isto é verdade, o nó do problema que estamos considerando torna-se não
aquele da pura e simples adesão do movimento socialista às formas e procedimentos da
democracia política, mas de preferência torna-se o problema crucial da própria
democracia política; se esta deve se reduzir de verdade a um mero processo judiciário e
a uma formal possibilidade garantida de delegar
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ad eterno o poder de todos a uma elite; se deve se considerar somente um fim e não
também um meio.
Somente agora levanto este problema central, justamente, porque quis
preliminarmente defender a necessidade e possibilidade de uma incorporação não
instrumental e tática dos próprios processos judiciários e garantias formais dentro do
socialismo. (Sob este perfil, é mister dizer que o socialismo tem algo a receber também
do liberalismo, ao menos, por tudo aquilo que apóia — na longa fase de transição — à
sistemática político-jurídica das liberdades individuais: posterior garantia esta, da
essencialidade do pluralismo político em uma sociedade socialista desenvolvida). Dito
isto é, portanto, estabelecido que tudo isso que estou por dizer não significa
absolutamente invalidar, mesmo que apenas parcialmente na dúvida, aquilo que antes
sustentei, será necessário perguntar se o problema da democracia e, de forma mais
geral, da ciência política, seja de verdade aquele de estabelecer um processo judiciário
de transmissão do poder e não seja, ao invés, aquele que Gramsci genialmente
redescobriu: ”deseja-se que se tenham sempre governados e governantes, ou então
quer-se criar as condições nas quais a necessidade da existência desta divisão
desapareça?, isto é, parte-se da premissa da perpétua divisão da espécie humana ou
acredita-se que esta seja somente um fato histórico, que responde a certas condições?”
(Caderno 15). Naturalmente a resposta não se coloca a uma pura escolha doutrinária,
mas à constatação de que a divisão entre governados e governantes é própria das
sociedades divididas em classes e que, em particular, esta divisão assume na sociedade
capitalista a forma específica da construção necessária de uma representação política.
Certo, trata-se de uma divisão que será muito longa também na nova sociedade
socialista. Aqui, todavia, começam a desaparecer as condições que a tornam necessária,
pouco a pouco difundindo-se à socialização dos meios de produção. Se a este processo
não corresponder um processo de socialização do poder, certamente ter-se-á um
socialismo defeituoso, por assim dizer; antes ou depois deverá vir o choque, pelas suas
formas políticas — com as necessidades expressas pelas novas condições sociais. Tudo
somado, creio que este seja o preço histórico que o socialismo paga quando desfruta —
e seria certamente tolo se não desfrutasse! — das possibilidades indicadas por Lênin de
uma passagem para o socialismo, lá também onde o capitalismo ainda é débil, e mesmo
que ainda não seja nem nascido o Estado liberal-democrático, constitucional e
representativo.
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Minha conclusão é que o problema da mediação da democracia política dentro do
socialismo é também o problema da mediação do socialismo dentro da democracia
política. Trata-se, obviamente, de um.grande problema que exige uma rigorosa análise
das condições na qual desenvolve-se a vida político-social da Europa ocidental: é um
novo grande problema, cuja complexidade indica a maturidade e a responsabilidade do
movimento socialista europeu. Sua solução não necessita tanto de esperança nem de
utopia quanto necessita de reflexões científicas profundas e de iniciativas políticas
corajosas. Tem, sobretudo, necessidade de colocar um fim à sua fase infantil e imitativa
do dogmatismo repetitivo e do ”pensamento sectário” para o qual =dizia Gramsci — ”não
se consegue ver como o partido político não seja somente a organização técnica do
próprio partido, mas todo o bloco social ativo do qual o partido é o guia porque é a
expressão necessária” (caderno 15).
Então os problemas “técnicos” da revolução socialista encontram os problemas
objetivos da história, com os quais mede-se a ciência.
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