Teoria e história na sociologia política brasileira: a critica de Maria Sylvia de Carvalho Franco André Botelho (UFRJ) O presente trabalho apresenta resultados parciais de pesquisa mais ampla ainda em curso sobre as seqüências da sociologia política no Brasil, destacando a obra sociológica de Maria Sylvia de Carvalho Franco. Comumente tomada como mais uma representante da sociologia produzida pela Cadeira de Sociologia I da USP, pelo pertencimento institucional da autora, a obra de Maria Sylvia, porém, embora se inscreva naquele contexto intelectual, antes problematiza que corrobora alguns dos pressupostos empíricos, históricos e teóricos dos trabalhos do seu orientador Florestan Fernandes e de outros dos seus orientandos e assistentes. Se constrangimentos institucionais e outros não permitiram (até o momento) a autora polemizar abertamente com seu grupo, a análise da sua obra indica uma visão crítica e uma proposição alternativa, sobretudo, pela forte ênfase que dá ao relacionamento entre teoria e história na explicação sociológica. Em seus trabalhos, Maria Sylvia de Carvalho Franco chama a atenção para a impropriedade da contraposição entre “tradição” e “modernidade” na análise da sociedade brasileira (e latino-americana) – seja em sua versão “disjuntiva” ou em sua versão “integrada” ou “dependentista” – em virtude da gênese essencialmente moderna desta experiência social, o que tornaria errônea a identificação de quaisquer traços “tradicionais” no âmbito destas sociedades. Sua “sociologia política” pode, assim, ser entendida como um tipo de contraposição crítica o princípio teórico funcionalista mais amplo, segundo a autora presente na sociologia do desenvolvimento e, indiretamente, nos trabalhos de seu orientador e colegas de cátedra, de que as inovações modernizadoras funcionariam como variáveis sistêmicas interligadas e intercambiáveis de modo (relativamente) independente dos seus contextos históricos. Crítica já presente em sua tese de doutorado, Homens livres na velha civilização do café (1964), posteriormente publicada como livro sob o título Homens livres na ordem escravocrata (1964), mas sem dúvida completada no plano teórico em seus trabalhos posteriores. A exemplo do artigo “Sobre o conceito de tradição”, publicado no número 5, de 1972, dos Cadernos do Centro de Estudos Rurais e Urbanos – CERU. Nele discute aspectos cruciais da sociologia política de Max Weber, como a distinção entre os conceitos de “dominação” e “poder”, justamente para sugerir que a “sociologia do desenvolvimento” estaria empregando, via sociologia funcionalista norte-americana, as noções de “tradicional” e “moderno” como oposições disjuntivas a partir de uma interpretação equivocada da própria teoria weberiana. Na tentativa de marcar, portanto, a “distância que separa o trabalho de Weber daqueles que ainda hoje invocam a sua herança”, Franco sugere que de “imprecisões teóricas” e “falta de rigor” resultaria a ideia de “obstáculos à mudança”, de “resistência de traços supostamente tradicionais, que estaria retardando a transformação para uma sociedade moderna”, quando, na verdade, argumenta, “esses elementos permanecem, são produzidos e reproduzidos no interior de um sistema social”. Problemática teórica que, associada à discussão de questões correlatas, já formava as linhas principais de sua Tese de Livre Docência defendida em 1970 junto ao Departamento de Ciências Sociais da FFLCH da USP, não por acaso intitulada O moderno e suas diferenças. Entre os temas nela abordados, destacam-se o par “comunidade” e “sociedade” na sociologia alemã (Weber e Tönnies), sua reelaboração e a de outros “conceitos clássicos” no Brasil; bem como a tese da “mudança social” como uma passagem necessária da “sociedade tradicional” a “moderna” e, sobretudo, a “impropriedade” teórica dessa distinção e do conjunto de proposições feitas em torno dela para o “caso brasileiro”. E a principal razão teórica apontada para essa “impropriedade” na Tese de Livre Docência retomava a pesquisa empírica realizada seis anos antes para a Tese de Doutorado que originou Homens livres na ordem escravocrata; qual seja, na sociedade brasileira, “os critérios extra-econômicos de categorização dos indivíduos em sociedade aparecem, reiteradamente, perturbados pelos critérios de diferenciação social fundados em situação econômica”. Trata-se de notável esforço teórico que, guardadas as proporções necessárias, têm afinidades muito significativas com o de Reinhard Bendix na sociologia norteamericana. Para dizer o mínimo, ambos os Autores partem da valorização da perspectiva histórica presente na sociologia de Max Weber para criticar o uso ahistórico que a sociologia da modernização e do desenvolvimento estariam fazendo dos seus conceitos, em especial na vertente funcionalista encimada por Talcott Parsons, expresso no equívoco maior que seria tomar “tipos ideais” como generalizações teóricas. E isso com o intuito precípuo de crítica às perspectivas teóricas disjuntivas sobre “tradição” e “modernidade” e oferecer visões alternativas à sociologia, histórica em ambos os casos, mas “comparada” no caso de Bendix (ainda que Franco estenda a sua crítica também à sociologia do desenvolvimento de Gino Germani). Bastando lembrar que, para corroborar a convergência sugerida, tal problemática que estrutura as pesquisas da socióloga brasileira, ocupa toda a terceira parte de Construção nacional e cidadania, de 1964, intitulada “Reavaliação dos conceitos de tradição e modernidade” do sociólogo judeu alemão radicado nos Estados Unidos. É este, justamente, o segundo elemento do contexto intelectual histórico-comparado que a pesquisa proposta procurará dar conta, como ponto de chegada da formação da verte da “sociologia política” nela em foco. A obra sociológica de Maria Sylvia de Carvalho Franco constitui o ponto de chegada mais consistente em termos teóricos do processo de formação da sociologia política que tenho recuperado na pesquisa mais ampla e ainda em curso. Sua obra em geral e suas formulações teóricas, em particular, não tem recebido atenção nas análises da área do pensamento social e político brasileiro. Mas, melhor pensado, a dimensão propriamente teórica das obras em geral que compõem o acervo primário da área, especialmente os ensaios de interpretação do Brasil e as pesquisas das gerações pioneiras das ciências sociais institucionalizadas, se encontra, até o momento, praticamente inexplorada. Em parte, talvez, como decorrência da compreensão da dinâmica da vida intelectual brasileira, também ela marcada sistematicamente pela recepção de ideias, como se essa inevitável “aclimatação intelectual” não pudesse produzir formulações relevantes no plano propriamente teórico, ou interpelações às premissas da sociologia clássica ou moderna. Ou ainda, talvez, pela persistência de visões segundo as quais as ciências sociais, quando concebidas em acepção positivista e orientadas para o mundo empírico, já deveriam ter solucionado as questões colocadas pelas interpretações mais antigas. Dessa perspectiva, a pesquisa do pensamento social, como a dos clássicos da sociologia em geral, constituiria, no máximo, um tipo de conhecimento antiquário sem maior significação para a sociedade e para a as ciências sociais contemporâneas. O presente trabalho inscreve-se numa proposta alternativa a essa visão em grande medida assentada nas ciências sociais brasileiras.