A cortina de fumaça da globalização

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Singer, André. “A cortina de fumaça da globalização”. São Paulo: Folha de São Paulo, 26 de novembro
de 2000.
A cortina de fumaça da globalização
ANDRÉ SINGER
da Reportagem Local
Sou suspeito para comentar o trabalho de Paulo Nogueira Batista Jr. porque tendo a concordar com as
principais posições defendidas pelo autor. Não tenho nem nunca tive simpatia pelo nacionalismo, mas
creio que hoje é necessário resistir com firmeza à perda de soberania que impede o Brasil de formular
políticas autônomas voltadas para o desenvolvimento sustentado e a distribuição da renda. Em outras
palavras, penso que a evolução recente do capitalismo repôs a chamada questão nacional, que a minha
geração pretendia ver enterrada junto com o populismo e a Guerra Fria. Daí a atualidade de "A Economia
Como Ela É...", o volume em que Batista Jr. reúne trabalhos publicados durante a década de 90, entre eles
os artigos que escreve para a Folha uma vez por semana. Há 20 anos a afirmação de que um país deveria
preservar os instrumentos macroeconômicos com os quais pudesse construir o próprio futuro soaria
acaciana, como diria o próprio Batista Jr. (o personagem de Eça de Queiroz freqüenta algumas boas
páginas do livro). No entanto houve uma alteração profunda do ambiente ideológico e os termos do debate
precisam ser reconstruídos desde o marco zero.
Revisão do mito
Um dos pontos altos do volume encontra-se, justamente, na revisão que Batista Jr. faz do mito da
globalização. Apoiado em dados comparativos sobre o grau de internacionalização da economia no
período anterior à Primeira Guerra Mundial e o das últimas décadas, ele mostra que só agora a integração
retorna aos patamares atingidos cem anos atrás. Com isso, Batista Jr. dá um tiro certeiro na base de uma
das idéias mais difundidas dos últimos anos. Aquela segundo a qual tudo o que ocorre na economia (e não
só) decorre de um fenômeno novo e misterioso: a globalização, da qual todos falam, mas ninguém sabe
dizer o que é. Sem dúvida, existe uma crescente dependência econômica entre os países, mas não se trata
de um admirável mundo novo, em que todas as regras anteriores tenham sido subitamente revogadas.
Apenas passamos por mais um ciclo de internacionalização, como outros do passado. Por que, então, a
forte impressão de que está em curso algo inédito, pergunta-se o autor. "A ilusão decorre, pelo menos em
parte, do fato de que a integração alcançada no passado recente é realmente muito significativa quando
comparada ao baixo grau de abertura das economias logo após a Segunda Guerra Mundial" (pág. 35),
esclarece Batista Jr. Ou seja, nós, os não-economistas, somos vítimas de uma tremenda falta de
perspectiva histórica. Desse ponto de vista, "A Economia Como Ela É..." presta um importante serviço ao
colocar as idéias no lugar, o que, segundo Antonio Candido, é, por definição, o trabalho do professor. No
entanto, Batista Jr. vai mais longe. Sugere que o mito da globalização é também uma cortina de fumaça,
lançada por economistas desejosos de "mascarar a responsabilidade pelas opções e decisões dos governos,
obstruindo a crítica das políticas públicas". O argumento faz sentido. Se a globalização for vista como
uma onda irrefreável que a tudo e a todos engole por igual, ficam borradas as distinções entre os que
governam, e por isso detêm o poder de adotar medidas macroeconômicas, e os que são submetidos a tais
políticas.
Mergulho nos dados
Coerente com tal premissa, o autor empreende a análise do Plano Real, o mais importante conjunto de
políticas públicas dos últimos seis anos no Brasil. De um novo mergulho nos dados, emerge a visão de
que, com o real "no fundo, o que se fez foi substituir a inflação por uma tendência ao desequilíbrio
externo" (pág. 111).
Apesar da elegância da linguagem -Batista Jr. é um articulista culto e bem-humorado-, a demonstração
sobre os desacertos do governo FHC não é tão clara, para um leigo, quanto a desmistificação da "era
global". A ligação entre valorização da moeda, déficits nas transações com o exterior, juros internos e
tamanho das reservas cambiais, apenas para citar alguns elementos, precisaria ser mais didática para que
todos os passos do raciocínio fossem compreendidos de modo cristalino. Ainda assim, dois pontos
ressaltam. De uma parte, a destruição de setores inteiros da economia nacional pela combinação,
descuidada segundo o autor, da valorização cambial e da repentina queda de barreiras para produtos
estrangeiros. De outra, a constante necessidade de dólares com os quais seja possível pagar a conta dos
produtos importados, o que resulta em uma perigosa dependência do país em relação a voláteis capitais
externos.
No contexto da discussão sobre a política econômica do governo, três aspectos mereceriam, a meu ver,
discussão mais detida por parte de Batista Jr. A desvalorização do real em janeiro de 1999, debatida no
livro, mas menos do que se poderia esperar, dada a centralidade da questão para o raciocínio do autor. A
queda dos juros, iniciada neste ano pelo presidente do Banco Central, Armínio Fraga. E as privatizações,
segunda grande marca do governo FHC.
Afora o desejo de ver tais assuntos contemplados de modo mais abrangente, tenho um reparo menor ao
volume. A reunião de textos escritos para distintas finalidades (artigos acadêmicos, apresentações
públicas, textos para jornal) resulta em certa repetição de argumentos, o que poderia ser facilmente
solucionável em uma segunda edição.
Por fim, uma idiossincrasia. Acho que há um uso exagerado hoje no Brasil de um dos autores que Batista
Jr. gosta de citar em seus artigos para a Folha: Nelson Rodrigues (1912-1980), a quem se deve também o
título do livro (o teatrólogo manteve uma coluna chamada "A Vida Como Ela É..."). Minha birra deve ser
despeito de paulista.
No conjunto, "A Economia Como Ela É..." constitui uma amostra útil e importante do pensamento de um
economista de oposição que é referência no debate brasileiro contemporâneo.
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