os essênios e o cristianismo

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MOZAR MARTINS DE SOUZA
OS ESSÊNIOS E O CRISTIANISMO
OS ESSÊNIOS
EO
CRISTIANISMO
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OS ESSÊNIOS E O CRISTIANISMO
PREFÁCIO
Neste livro vamos estudar os fatos relativos à pesquisa
do cristianismo que, no meu entendimento, estão pouco
disponíveis em língua portuguesa. Sei, perfeitamente, que essa
forma poderá causar certa frustração nas pessoas interessadas,
que acessarem este livro, mas por outro lado, a chama deste
conhecimento estará mais rapidamente disseminada.
Procurarei sempre fazer as interrupções em pontos que
não prejudiquem o entendimento, evitando quebras bruscas na
continuidade, o assunto seguinte será sempre um tópico, tanto
quanto
possível,
se
não
independente,
em
continuação
cronológica, histórica ou sobre fatos paralelos ao assunto
anterior.
5
OS ESSÊNIOS E O CRISTIANISMO
OS ESSÊNIOS
Abril de 1947, no vale de Khirbet Qumran, junto às
encostas do Mar Morto, Juma Muhamed, pastor beduíno da
região, recolhia seu rebanho quando ao seguir atrás de uma
ovelha desgarrada percebeu que havia uma extensa fenda entre
duas rochas. Curioso, atirou uma pedra e ouviu o ruído de um
vaso se quebrando. No vaso, encontrou pergaminhos.
Este momento caracterizou-se como um marco para o
mundo arqueológico:
A Descoberta dos Manuscritos do Mar Morto.
Desde então, a tradução e divulgação do seu conteúdo
têm atraído atenção mundial, e uma grande expectativa tem se
instaurado quanto a possíveis segredos ainda não revelados.
Foram encontradas em 11 cavernas, nas ruínas de
Qumran, centenas de pergaminhos que datam do terceiro século
a.C até 68 d.C., segundo testes realizados com carbono 14. Os
Manuscritos do Mar Morto foram escritos em três idiomas
diferentes: Hebreu, Aramaico e Grego, totalizando quase mil
obras.
Eles
incluíam
manuais
de
disciplinas,
hinários,
comentários bíblicos, escritos apocalípticos, cópias do livro de
Isaías e quase todos os livros do Antigo Testamento.
De acordo com os estudiosos, os Manuscritos estão
divididos em três grupos principais: Sectários, Apócrifos e
Bíblicos. Os Bíblicos reúnem todos os livros da Bíblia, exceto
6
OS ESSÊNIOS E O CRISTIANISMO
Ester, no total 22 livros. Os Apócrifos são os livros sagrados
excluídos da Bíblia, e, finalmente os Sectários que são
pergaminhos
relacionados
com
a
seita,
incluindo
visões
apocalípticas e trabalhos litúrgicos.
No livro "As doutrinas secretas de Jesus", o autor H.
Spencer Lewis, F.R.C., Ph.D., cita na pág. 28 a referência (chave
15):
"Essa sociedade secreta (sociedade secreta de Jesus)
pode ou não ter sido afiliada aos essênios, outra sociedade
secreta com que Jesus estava bem familiarizado".
A descoberta dos Pergaminhos do Mar Morto confirmou
a referência feita pelo autor aos essênios e seus ensinamentos
secretos, que precederam o cristianismo e que Jesus deve ter
conhecido bem. Um relatório parcial sobre essa descoberta, do
arqueólogo
inglês
G.
Lankester
Harding,
Diretor
do
Departamento de Antiguidades da Jordânia, diz o seguinte:
"A mais espantosa revelação dos documentos essênios
até agora publicada é a de que os essênios possuíam, muitos
anos antes de Cristo, práticas e terminologias que sempre foram
consideradas exclusivas dos cristãos. Os essênios tinham a
prática do batismo, e compartilhavam um repasto litúrgico de pão
e vinho presidido por um sacerdote. Acreditavam na redenção e
na imortalidade da alma. Seu líder principal era uma figura
misteriosa chamada o Instrutor da Retidão, um profeta-sacerdote
messiânico abençoado com a revelação divina, perseguido e
provavelmente martirizado."
7
OS ESSÊNIOS E O CRISTIANISMO
"Muitas frases, símbolos e preceitos semelhantes aos da
literatura
essênia
são
usados
no
Novo
Testamento,
particularmente no Evangelho de João e nas Epístolas de Paulo.
O uso do batismo por João Batista levou alguns eruditos a
acreditar que ele era essênio ou fortemente influenciado por essa
seita. Os Pergaminhos deram também novo ímpeto à teoria de
que Jesus pode ter sido um estudante da filosofia essênia. É de
se notar que o Novo Testamento nunca menciona os essênios,
embora lance freqüentes calúnias sobre outras duas seitas
importantes, os saduceus e os fariseus."
Todos esses documentos foram preservados por quase
dois mil anos e são considerados os achados do século,
principalmente porque a Bíblia, até então conhecida, data de uma
tradução grega, feita pelo menos mil anos depois da de Qumran.
Hoje, os Manuscritos do Mar Morto encontram-se no Museu do
Livro em Jerusalém.
O nome Essênios deriva da palavra egípcia Kashai, que
significa "secreto". Na língua grega, o termo utilizado é
"therepeutes", originário da palavra Síria "asaya", que significa
médico. A organização nasceu no Egito nos anos que precedem
o Faraó Akhenathon, o grande fundador da primeira religião
monoteísta, sendo difundida em diferentes partes do mundo,
inclusive em Qumran. Nos escritos dos Rosacruzes, os Essênios
são
considerados
como
uma
ramificação
da
"Grande
Fraternidade Branca".
Segundo estudiosos, foi nesse meio onde passou Jesus,
no período que corresponde entre seus 13 e 30 anos. Alguns
8
OS ESSÊNIOS E O CRISTIANISMO
estudiosos também acreditam que a Igreja Católica procura
manter silêncio acerca dos essênios, tentando ocultar que
receberam desta seita muitas influências.
Para medir o tempo, os Essênios utilizavam um
calendário diferenciado, baseado no sol. Ao contrário do utilizado
na época, que consistia de 354 dias, seu calendário continha 364
dias que eram divididos em 52 semanas permitindo que cada
estação do ano fosse dividida em 13 semanas e mais um dia,
unindo cada uma delas.
Consideravam seu calendário sintonizado com a "Lei da
Grande Luz do Céu". Seu ritmo contínuo significava ainda que o
primeiro dia do ano e de cada estação sempre caía no mesmo
dia da semana, quarta-feira, já que de acordo com o Gênesis, foi
no quarto dia que a Lua e o Sol foram criados.
Segundo os Manuais de Disciplina dos Essênios dos
Manuscritos do Mar Morto, os essênios eram realmente
originários do Egito, e durante a dominação do Império
Selêucida, em 170 a.C., formaram um pequeno grupo de judeus,
que abandonou as cidades e rumou para o deserto, passando a
viver às margens do Mar Morto, e cujas colônias estendiam-se
até o vale do Nilo.
No meio da corrupção que imperava, os essênios
conservavam a tradição dos profetas e o segredo da Pura
Doutrina. De costumes irrepreensíveis, moralidade exemplar,
pacíficos e de boa fé, dedicavam-se ao estudo espiritualista, à
contemplação e à caridade, longe do materialismo avassalador.
Os essênios suportavam com admirável estoicismo os maiores
sacrifícios para não violar o menor preceito religioso.
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OS ESSÊNIOS E O CRISTIANISMO
Procuravam servir a Deus, auxiliando o próximo, sem
imolações no altar e sem cultuar imagens. Eram livres,
trabalhavam em comunidade, vivendo do que produziam.
Os Essênios não tinham criados, pois acreditavam que
todo homem e mulher era um ser livre. Tornaram-se famosos
pelo conhecimento e uso das ervas, entregando-se abertamente
ao exercício da medicina ocultista.
Em seus ensinos, seguindo o método das Escolas
Iniciáticas, submetiam os discípulos a rituais de Iniciação,
conforme adquiriam conhecimentos e passavam para graus mais
avançados. Mostravam então, tanto na teoria quanto na prática,
as Leis Superiores do Universo e da Vida, tristemente
esquecidas na ocasião. Alguns dizem que eles preparavam a
vinda do Messias.
Era uma seita aberta aos necessitados e desamparados,
mantendo inúmeras atividades onde, a acolhida, o tratamento de
doentes e a instrução dos jovens eram a face externa de seus
objetivos. Não há nenhum documento que comprove a estada
essênia de Jesus, no entanto seus atos são típicos de quem foi
iniciado nesta seita. A missão dos seguidores do Mestre
Verdadeiro foi a de difundir a vinda de um Messias e nisto
contribuíram para a chegada de Jesus.
Na verdade, os essênios não aguardavam um só
Messias, e sim, dois. Um originário da Casa de Davi, viria para
legislar e devolver aos judeus a pátria e estabelecer a justiça.
Esse Messias-Rei restituiria ao povo de Israel a sua soberania e
dignidade, instaurando um novo período de paz social e
prosperidade. Jesus foi recebido por muitos como a encarnação
10
OS ESSÊNIOS E O CRISTIANISMO
deste Messias de sangue real. No alto da cruz onde padeceu, liase a inscrição: Jesus Nazareno Rei dos Judeus.
O outro Messias esperado nasceria de um descendente
da Casa de Levi. Este Salvador seguiria a tradição da linhagem
sacerdotal dos grandes mártires. Sua morte representaria a
redenção do povo e todo o sofrimento e humilhação por que teria
que passar em vida seria previamente traçado por Deus.
O Messias-Sacerdote se mostraria resignado com seu
destino, dando a vida em sacrifício. Faria purgar os pecados de
todos e a conduta de seus atos seria o exemplo da fé que leva os
homens a Deus. Para muitos, a figura do pregador João Batista
se encaixa no perfil do segundo Messias.
Até os nossos dias, uma seita do sul do Irã, os
mandeanos, sustentam ser João Batista o verdadeiro Messias.
Vivendo em comunidades distantes, os essênios sempre
procuravam encontrar na solidão do deserto o lugar ideal para
desenvolverem
a
espiritualidade
e
estabelecer
a
vida
comunitária, onde a partilha dos bens era a regra.
Rompendo com o conceito da propriedade individual,
acreditavam ser possível implantar no reino da Terra a
verdadeira
igualdade
e
fraternidade
entre
os
homens.
Consideravam a escravidão um ultraje à missão do homem dada
por Deus. Todos os membros da seita trabalhavam para si e nas
tarefas comuns, sempre desempenhando atividades profissionais
que não envolvessem a destruição ou violência.
Não era possível encontrar entre eles açougueiros ou
fabricantes de armas, mas sim grande quantidade de mestres,
11
OS ESSÊNIOS E O CRISTIANISMO
escribas, instrutores, que através do ensino passavam de forma
sutil os pensamentos da seita aos leigos.
O silêncio era prezado por eles. Sabiam guardá-lo,
evitando discussões em público e assuntos sobre religião. A voz,
para um essênio, possuía grande poder e não devia ser
desperdiçada. Através dela, com diferentes entonações, eram
capazes de curar um doente. Cultivavam hábitos saudáveis,
zelando pela alimentação, físico e higiene pessoal. A capacidade
de predizer o futuro e a leitura do destino através da linguagem
dos astros tornou os essênios figuras magnéticas, conhecidas
por suas vestes brancas.
Eram excelentes médicos também. Em cada parte do
mundo
onde
se
estabeleceram,
eles
receberam
nomes
diferentes, às vezes por necessidades de se proteger contra as
perseguições ou para manter afastados os difamadores. Mestres
em saber adaptar seus pensamentos às religiões dos países
onde se situavam, agiram misturando muitos aspectos de sua
doutrina a outras crenças. O saber mais profundo dos essênios
era velado à maioria das pessoas.
É sabido também que liam textos e estudavam outras
doutrinas. Para ser um essênio, o pretendente era preparado
desde a infância na vida comunitária de suas aldeias isoladas. Já
adulto, o adepto, após cumprir várias etapas de aprendizado,
recebia uma missão definida que ele deveria cumprir até o fim da
vida. Vestidos com roupas brancas, ficaram conhecidos em sua
época como aqueles que "são do caminho".
Foram fundadores dos abrigos denominados "bethsaida", que tinham como tarefa cuidar de doentes e desabrigados
12
OS ESSÊNIOS E O CRISTIANISMO
em épocas de epidemia e fome. Os beth-saida anteciparam em
séculos os hospitais, instituição que tem seu nome derivado de
hospitaleiros, denominação de um ramo essênio voltado para a
prestação de socorro às pessoas doentes.
Fizeram obras maravilhosas, que refletem até os nossos
dias. A notícia que se tem é de que a seita se perdeu, no tempo e
memória das pessoas. Não sabemos da existência de essênios
nos dias de hoje (não que seja impossível), é no mínimo, pelo
lado social, uma pena termos perdido tanto dos seus preceitos
mais importantes. Se o que nos restou já significa tanto,
imaginem o que mais poderíamos vir a ter aprendido.
DESVENDADO OS PERGAMINHOS
Escrevendo em 1949 sobre a exploração da gruta, R. de
Vaux acreditava que "estes rolos, de idades diferentes,
cuidadosamente guardados em vasilhas da mesma época, não
são peças abandonadas por acaso, mas um arquivo ou biblioteca
escondida em um momento de perigo". E, ao datar a cerâmica e
com ela relacionar os manuscritos, acrescenta: "Nenhum
documento é posterior aos começos do século I a.C. e alguns
deles podem ser mais antigos".
Agora é necessário descobrir quem teria depositado os
manuscritos na gruta. O estabelecimento humano mais próximo é
representado pelas ruínas de Qumran. R. de Vaux e G. L.
Harding fazem assim a primeira expedição de escavações no
Khirbet Qumran de 24 de novembro a 12 de dezembro de 1951.
13
OS ESSÊNIOS E O CRISTIANISMO
Identificam uma construção retangular de 37 metros de
comprimento por 30 metros de largura à qual se ligam outros
edifícios e um aqueduto que serve para recolher as águas do
Wadi Qumran no inverno. A cerâmica encontrada é idêntica à de
1Q: isto relaciona os manuscritos com o grupo que vivia em
Qumran. O cemitério, com mais de mil túmulos, rigorosamente
organizado, também é investigado e nove esqueletos são
enviados a Paris para exames técnicos.
Mas as moedas são o achado mais precioso, porque
permitem a datação do assentamento humano de Qumran. As
dez moedas identificadas inicialmente vão da época de Herodes
Magno (37-4 a.C.) à segunda guerra judaica contra Roma (132135 d.C.).
Entretanto, ainda em 1951, os ta'amireh levam mais
fragmentos manuscritos a Jerusalém e os oferecem aos
arqueólogos, que os compram. No dia 21 de janeiro de 1952, R.
de Vaux e outros arqueólogos seguem até a região do Wadi
Murabba'at, situado a 25 km a sudeste de Jerusalém e a cerca
de 18 km ao sul de Qumran. Em algumas grutas desta região são
encontrados importantes documentos em hebraico, aramaico,
grego e latim, relacionados em sua maioria, com a segunda
guerra judaica contra Roma (132-135 d.C.) Fica estabelecido
que Murabba'at servia de refúgio aos soldados de Simão bar
Kosibah, líder do levante, de quem são recuperadas até cartas
assinadas.
Enquanto a equipe de R. de Vaux se encontra em
Murabba'at, os ta'amireh levam novos manuscritos a Jerusalém,
descobertos em outra gruta de Qumran, que será chamada de
14
OS ESSÊNIOS E O CRISTIANISMO
2Q. Nela são encontrados 185 fragmentos de pele. Logo em
seguida, De Vaux e seu pessoal, em março de 1952, faz um
levantamento da falésia, numa extensão de 8 km, explorando
230 grutas. Destas, 37 contêm cerâmica e outros objetos. E a
cerâmica é idêntica à das ruínas de Qumran e da primeira gruta.
Na terceira gruta de Qumran são encontrados cerca de
35 jarros e fragmentos de mais ou menos 30 rolos de pele
extremamente deteriorados. "Mas o seu conteúdo mais curioso
era de cobre: na parte anterior da gruta (...) jaziam dois rolos de
cobre com um texto gravado em caracteres hebraicos quadrados,
alguns deles em relevo".
Em setembro de 1952 são descobertas as grutas de
número 4, 5 e 6. A gruta 4Q é a mais rica de todas: possui
fragmentos de cerca de 400 manuscritos.
Na 6Q são encontrados fragmentos do "Documento de
Damasco", um manuscrito que fora recuperado em 1897 em uma
antiga sinagoga do Cairo e do qual não se sabia quase nada.
Na primavera de 1955 são descobertas as grutas 7Q,
8Q, 9Q e 10Q, e em fevereiro de 1956, a última, a 11Q, com
quatro rolos em bom estado de conservação.
As ruínas de Qumran são escavadas em 6 diferentes
expedições que se encerram em 1958. Arqueólogos judeus
pesquisam também os wadis da região ocidental do Mar Morto
entre Engaddi e Massada e encontram importantes documentos.
No total, cerca de mil documentos são recuperados em
20 grutas no deserto de Judá, entre os anos de 1946 e 1966.
Além de centenas de óstracas (cacos de cerâmica com escrita) e
inscrições.
15
OS ESSÊNIOS E O CRISTIANISMO
Em Khirbet Qumran os arqueólogos identificam um
conjunto de construções bastante interessante: oficinas, olaria,
despensas, refeitório, cisternas, um "scriptorium" etc. Nenhum
fragmento de manuscrito é encontrado nas construções, mas
apenas alguns óstracas. E a sua grafia é a mesma dos
manuscritos encontrados nas grutas. Também são recolhidas
cerâmicas, muitas moedas e outros objetos.
O curioso é que o edifício não tem dormitórios. Ou se
dormia
em
tendas
ou
nas
grutas
das
redondezas.
O
estabelecimento agrícola de Ain Feshka, ao sul de Qumran,
também é explorado. Ali os essênios manufaturam a palmeira,
juncos, sal, betume e cereais. Estes últimos são cultivados numa
planície a oeste de Qumran, a Buqea, que mede cerca de 8x4
km.
No total, são recuperados, em 11 grutas de Qumran, 11
manuscritos mais ou menos completos e milhares de fragmentos
de mais de 800 manuscritos em pergaminho e papiro. Escritos
em hebraico, aramaico e grego, cerca de 225 manuscritos são
cópias de livros bíblicos, sendo o restante livros apócrifos,
trabalhos exegéticos e escritos da comunidade que vive em
Qumran.
Todos os manuscritos são anteriores ao ano 68 d.C.,
quando Qumran é destruído. Os mais antigos são anteriores à
instalação da comunidade que vive em Qumran e remontam ao
século III a.C. O mais antigo é o 4QEx, datado em torno de 250
a.C. O teste do Carbono 14 chega à data de 33 a.C. com 200
anos para mais ou para menos.
16
OS ESSÊNIOS E O CRISTIANISMO
O método do Carbono 14, descoberto em 1947, é
aplicado em 1950-51 a um pedaço de linho que envolve os
manuscritos.
Não
é
possível
aplicá-lo
diretamente
aos
manuscritos porque exige a destruição de 1 a três gramas de
material.
Mais recentemente, em 1990, 14 manuscritos são
submetidos ao teste AMS (Accelerator Mass Spectrometry), ou
Espectrometria com Acelerador de Massa, técnica de datação
descoberta em 1987. O material orgânico necessário para o AMS
é de apenas 0,5 a 1,0 miligrama. Dos 14 manuscritos testados, 4
não são de Qumran e estão datados com segurança através de
outros métodos: isto é necessário para se checar a veracidade
dos resultados. E os resultados confirmam, com certa
segurança, a datação feita através de outros métodos como a
paleografia. Com certeza nenhum dos manuscritos de Qumran
foi copiado após 68 d.C.
Manuscritos Bíblicos:
São recuperados manuscritos e fragmentos de quase
todos os livros bíblicos judaicos, pois só falta Ester.
O Pentateuco está muito bem representado em Qumran,
pois há 15 manuscritos fragmentados do Gênesis, 15 do Êxodo,
9 do Levítico, 6 de Números e 25 do Deuteronômio. São 70
manuscritos. Estes manuscritos ligam-se a três tradições
textuais:
a) à do texto massorético (TM);
b) à do original hebraico a partir do qual é traduzida a
LXX ;
17
OS ESSÊNIOS E O CRISTIANISMO
c) à do Pentateuco samaritano.
A parte da Bíblia que hoje conhecemos como Obra
Histórica Deuteronomista (OHDtr.), composta pelos livros de
Josué, Juízes, 1 e 2 Samuel, 1 e 2 Reis está pouco presente em
Qumran, num total de apenas 12 manuscritos.
Os arqueólogos recuperam apenas fragmentos de 2
manuscritos de Josué, 3 de Juízes, 3 de Samuel e 4 de Reis. O
grande interesse desses manuscritos para os estudiosos é que
eles estão bem mais próximos do texto hebraico usado para a
tradução da LXX do que do texto massorético.
Dos profetas são encontrados 18 manuscritos: 2 de
Isaías - um quase completo (1QIsa) e outro com uma parte
apenas (1QIsb) - 4 de Jeremias, 6 de Ezequiel e 8 dos doze
profetas menores.
Os textos de Isaías são próximos ao TM, assim como os
de Ezequiel e dos profetas menores, mas um manuscrito de
Jeremias, 1QJrb, traz o mesmo texto da LXX. E isso é importante,
pois o Jeremias da LXX é bem mais curto do que o do TM. Este é
resultado de uma ampliação posterior, enquanto o que serve de
base para a LXX é mais sóbrio.
1QIsa é um rolo quase completo de Isaías, datando da
primeira metade do séc. I a.C. 1QIsb está mal conservado e
contém apenas Is 38-66 e trechos de outros capítulos. É da
última metade do séc. I a.C.
Quanto à última parte da Bíblia Hebraica, os Escritos,
são recuperados em Qumran restos de cerca de 66 manuscritos.
Os Salmos estão bem representados com 30 manuscritos, Daniel
18
OS ESSÊNIOS E O CRISTIANISMO
está em 8 e assim por diante. Na gruta 4 são recuperados
fragmentos do original aramaico de Tobias, até então perdido, e
textos muito próximos à época de composição dos originais como
4QEcla e 4QDn, respectivamente, cerca de cem e cinqüenta
anos após a escrita dos livros do Eclesiastes e de Daniel.
Ester não é encontrado. Como esse livro é muito bem
aceito pelos Macabeus, isto deve ter provocado sua rejeição pela
comunidade de Qumran, inimiga daqueles governantes.
No conjunto, são cerca de
225 manuscritos
ou
fragmentos de livros bíblicos. Sua importância para a história do
texto do AT é grande, já que testemunham as várias tradições
existentes antes da unificação feita pelos rabinos de Jâmnia nos
anos 90 da era cristã.
Livros Apócrifos:
Outra área bastante interessante dos manuscritos de
Qumran é a dos livros apócrifos.
Na gruta 1 são encontradas 22 colunas de um Gênesis
Apócrifo (1QapGn), em aramaico, que narra a história de Gn
5,28-15,4, isto é, de Lamec a Abraão, com embelezamentos
midrashicos. Pode ser datado entre o II e o I séculos a.C.
Vários fragmentos da gruta 1 testemunham a existência
de um Livro de Noé. Na gruta 4 há fragmentos de 5 manuscritos
de um Testamento de Amram (Amram é neto de Levi, segundo a
Bíblia), sete fragmentos de um Samuel Apócrifo (4Q160) etc.
COMENTÁRIOS BÍBLICOS:
19
OS ESSÊNIOS E O CRISTIANISMO
Os comentários bíblicos de Qumran são do gênero
pesher,
palavra
hebraica
que
quer
dizer
"explicação",
“significado". O método pesher consiste em comentar o texto
bíblico
versículo
por
versículo,
procurando
aplicá-lo
às
circunstâncias vividas pela comunidade, como se os textos
bíblicos, especialmente
os
proféticos, estivessem
falando
diretamente da realidade atual. Os livros resultantes são
conhecidos como pesharim, "comentários".
Após citar um versículo ou mesmo trechos menores, o
comentarista diz: "A explicação (pesher) disto diz respeito a...".
Estes livros são classificados como 1QpHab, 1QpMq,
4QpOs etc, respectivamente, Comentário (pesher) de Habacuc,
Comentário de Miquéias, Comentário de Oséias e assim por
diante.
Estão
identificados
cerca
de
uma
dúzia
destes
comentários entre os manuscritos de Qumran.
Os pesharim, além de exemplificarem um método
exegético só usado pela comunidade de Qumran e pelos
cristãos,
são
importantes
igualmente
como
testemunhos
históricos da organização e vicissitudes da comunidade.
O pesher mais importante de Qumran é o 1QpHab,
Comentário de Habacuc, escrito provavelmente no começo do
séc. I a.C., por suas constantes referências à história da
comunidade.
Outro tipo de trabalho exegético encontrado em Qumran
é o targum. Targum significa "tradução" e indica as traduções
aramaicas dos livros bíblicos (targumim) que se fazem nas
20
OS ESSÊNIOS E O CRISTIANISMO
sinagogas da época. Só que o targum não é uma tradução literal,
mas uma paráfrase explicativa e atualizada do texto hebraico. É
ótimo para se saber como os judeus interpretam o texto bíblico.
Na gruta número 11 de Qumran os arqueólogos
encontram vários fragmentos de origem targúmica, entre eles um
Targum de Jó. É o mais antigo dos targumim conhecidos, sendo
do final do séc. II a.C.
Outro tipo de exegese é o que os editores dos
manuscritos chamam de Florilégio: consiste em agrupar vários
trechos bíblicos, que possuam alguma homogeneidade, para que
eles se completem e sejam explicados. O fragmento 4Q174, por
exemplo, reúne trechos de 2Sm 7 com Sl 1 e 2 que são
interpretados, em seguida, segundo o padrão do pesher.
Regras da comunidade:
De extrema importância são os livros que trazem as
normas de constituição e atividades da comunidade de Qumran.
A Regra da Comunidade ou Manual de Disciplina, em
hebraico, Serek
hayahad (1QS), é o principal livro da
comunidade de Qumran. É o manuscrito que contém as normas
que governam a comunidade. Provavelmente seu autor é o
próprio fundador da comunidade, conhecido nos textos como o
Mestre da Justiça. Sua composição pode ser situada entre 150 e
125 a.C., enquanto que o manuscrito completo é dos anos 10075 a.C.
Além da cópia completa encontrada em 1Q, fragmentos
de outras 11 cópias estão entre os textos de 4Q e 5Q.
21
OS ESSÊNIOS E O CRISTIANISMO
A Regra pode ser dividida em três seções:
1. Normas para o ingresso na Comunidade (I-IV);
2. Estatutos referentes ao Conselho da Comunidade (VIX);
3. Diretrizes para o Mestre e o Hino do Mestre (IX-XI).
A Regra da Congregação, em hebraico,Serek ha'edat
(1QSa), e a Coleção de Bênçãos (1QSb) são dois anexos à
Regra da Comunidade. A primeira é da metade do séc. I a.C. e a
segunda pode ser datada por volta de 100 a.C. A Regra da
Congregação é um escrito de tipo escatológico que descreve a
vida e o banquete da comunidade no fim dos tempos. A Coleção
de Bênçãos é uma antologia de fórmulas para abençoar os
membros da comunidade.
Os Cânticos de Louvor, em hebraico, Hôdayôt (1QH),
são cânticos de ação de graças ou hinos de louvor, parecidos
com o "Magnificat" e o "Benedictus" de Lucas. Inspiram-se
principalmente nos Salmos e em Isaías. Devem ter sido
compostos entre 150 e 125 a.C., e, pelo menos em parte, pelo
Mestre da Justiça. O manuscrito de 1Q provém dos anos 1 a 50
d.C. Em 4Q são encontrados fragmentos de mais 6 cópias.
A Regra da Guerra, em hebraico, Serek hamilhamah,
também conhecida como "A guerra dos filhos da luz contra os
filhos das trevas", "compreende uma espécie de compêndio da
ciência bélica e das celebrações cultuais que deveriam ser
observadas por ocasião de uma guerra com vistas à luta final que
precederia a era da salvação". Os filhos da luz contam com a
ajuda dos anjos Miguel, Rafael e Sariel, enquanto que os filhos
22
OS ESSÊNIOS E O CRISTIANISMO
das trevas contam com Belial. A vitória, é claro, é dos filhos da
luz. O original é composto entre os anos 50 a.C. e 25 d.C.,
enquanto que o manuscrito encontrado em 1Q é do séc. I d.C.
Em 4Q são encontrados fragmentos de mais cinco cópias deste
livro.
O Documento de Damasco (CD) é uma obra conhecida
desde 1896-97, quando dois manuscritos são encontrados num
depósito de rolos velhos (genizá) de uma antiga sinagoga do
Cairo. Um dos manuscritos é do século X d.C. e o outro do séc.
XII d.C. Publicados em 1910, continuam, então, um enigma: não
se sabe a que grupo judeu o texto se refere e que certamente
compôs a obra. Os estudiosos sugerem os saduceus, os
fariseus, os ebionitas, os caraítas... e apenas um diz que é dos
essênios!
Agora, acontece que fragmentos de nove cópias do
Documento de Damasco são encontrados nas grutas de Qumran
(7 fragmentos em 4Q, 1 em 5Q, 1 em 6Q): sem dúvida é uma
obra criada na comunidade essênia.
Muitos especialistas defendem que "Damasco" deve ser
entendido em sentido literal e que representaria uma primeira
fase da comunidade, anterior ao seu estabelecimento em
Qumran. Outros pensam que "Damasco" seja apenas um modo
velado de se falar de Qumran, a partir de Am 5,26-27. E o
Documento pode ser também a regra de outra ala da
organização, que viveria fora de Qumran.
A obra compõe-se de uma exortação e de uma lista de
estatutos. Na exortação o pregador (talvez uma autoridade da
comunidade) tem por objetivo "encorajar os sectários a
23
OS ESSÊNIOS E O CRISTIANISMO
permanecerem fiéis e, com este fim em vista, ele se empenha em
demonstrar, por meio da história de Israel e da comunidade, que
a fidelidade é sempre recompensada e a apostasia castigada".
Os estatutos reinterpretam as leis bíblicas relativas a
votos e juramentos, tribunais, purificação, sábado, pureza ritual
etc. Trazem também os estatutos da comunidade. O Documento
de Damasco deve ter sido escrito por volta de 100 a.C.
Consulte o conceituado The Orion Center sobre a
pesquisa dos Manuscritos.
O Rolo do Templo, encontrado na gruta 11, (11QT), só
aparece em junho de 1967, durante a "Guerra dos Seis Dias",
quando o Estado de Israel o retira das mãos de um antiquário da
parte árabe de Jerusalém, a quem os ta'amireh o vendera.
É o maior dos manuscritos de Qumran, com mais de oito
metros e meio de comprimento e 66 colunas. Trata do Templo e
do culto, e embora se trate de uma reinterpretação da legislação
bíblica do Êxodo, Levítico e Deuteronômio, o autor apresenta sua
mensagem como fruto de revelação divina direta. O Rolo do
Templo é do séc. II a.C. São encontrados fragmentos deste livro
nas grutas 4Q e 11Q.
O rolo de cobre:
Desde o início da década de 90, cerca de cem
estudiosos de todo o mundo participaram das pesquisas, sob a
supervisão do Departamento de Antiguidades de Israel.
O resultado deste trabalho que envolveu cerca de 900
pergaminhos está sendo apresentado em 38 volumes, dois dos
quais em fase final de preparação. Entre os documentos
24
OS ESSÊNIOS E O CRISTIANISMO
publicados está o conteúdo do Rolo de Cobre, com a suposta
localização de tesouros do Templo.
Os Manuscritos foram encontrados entre 1947 e 1956
nas grutas de Qumran, região localizada ao sul da cidade de
Jericó, na margem ocidental do Mar Morto. Segundo os estudos
realizados, alguns são datados de aproximadamente 250 antes
da era comum e outros do ano 70 da era comum. A maioria dos
textos foi escrita em hebraico e sobre pergaminhos, porém há
alguns em aramaico ou grego, em papiro. Entre as principais
dificuldades encontradas pelos pesquisadores, está o fato de
terem sido encontrados fragmentos, principalmente, e não rolos
completos.
Os primeiros sete rolos foram descobertos ao acaso por
um beduíno, em 1947.
Três desses foram comprados pelo arqueólogo E.L.
Sukenik e quatro contrabandeados para os Estados Unidos. Foi
somente em 1954 que o arqueólogo e filho de Sukenik, Yigal
Yadin, conseguiu que estes últimos fossem encaminhados a
Israel. Para marcar o fato, foi construído o Santuário do Livro, um
anexo do Museu de Israel, em Jerusalém, local que abriga a
maioria dos fragmentos e no qual há uma exposição permanente
dos Manuscritos do Mar Morto.
Entre
os
900
pergaminhos
reconstituídos
pelos
pesquisadores, cerca de 200 contêm o mais primitivo original
bíblico conhecido, enquanto os demais incluem orações, rituais e
regras provavelmente dos essênios, uma comunidade judaica
isolada e austera que viveu em Qumran.
25
OS ESSÊNIOS E O CRISTIANISMO
Um rolo, em especial, chamou a atenção dos pesquisadores:
Diferentemente dos demais, que narram estilo de vida,
hábitos e costumes dos essênios, este, além de conter textos
literários, traz a suposta localização de tesouros enterrados há
séculos.
Para alguns especuladores, seriam tesouros do Segundo
Templo, escondidos antes da sua destruição, no ano 70 da era
comum. Para outros, seria o patrimônio acumulado pelos
essênios, comunidade que fizera um voto de pobreza. De
qualquer maneira, independentemente das teorias, segundo o
conteúdo do Rolo de Cobre, foram escondidas mais de 200
toneladas de ouro e prata, que estariam à disposição de quem
conseguir encontrá-las. Pois, como disse um arqueólogo
israelense, ao se decifrar o Rolo de Cobre, o mesmo se tornou
acessível a qualquer criança que saiba ler.
O Rolo de Cobre foi restaurado no Laboratório Valectra,
unidade nuclear de Pesquisa e Desenvolvimento da estatal
Electricité de France. Foi descoberto em 20 de março de 1952,
em duas partes, na caverna de número três, próximo a Qumram,
por Henri de Contenson, da Escola Dominicana de Arqueologia
Bíblica de Jerusalém (EBAJ). A presença de rebites nas duas
partes encontradas comprovou a teoria de que compunham um
único documento, com 240 centímetros de largura e 30 de altura.
Decifrá-lo, no entanto, revelou-se difícil por causa da oxidação do
metal, que impossibilitou desenrolá-lo.
26
OS ESSÊNIOS E O CRISTIANISMO
Em 1955, diante da falta de recursos, na Jordânia, para
dar continuidade às pesquisas, o Rolo de Cobre foi enviado à
Universidade de Manchester, Inglaterra, aos cuidados do
professor H. Wright-Baker. A metodologia adotada implicou no
corte do objeto em 23 peças, para limpeza, fotografias e
decifração. A divulgação do conteúdo do Rolo de Cobre foi feita
em etapas, a partir de 1956, pelo padre Joseph T. Milk, da EBAJ,
responsável pela versão completa do texto, de 1962, com uma
lista de 64 locais onde teriam sido escondidos os tesouros.
Nada no conteúdo decifrado, no entanto, responde a duas
perguntas cruciais: de onde vieram os tesouros e qual a sua
origem?
Não existe consenso nas respostas. Durante um
simpósio internacional realizado em setembro de 1996, no
Instituto de Ciência e Tecnologia da Universidade de Manchester,
uma pesquisa informal revelou que a maioria dos 50 participantes
acreditava no conteúdo do Rolo de Cobre, divergindo, no
entanto, sobre a quem teriam pertencido: ao Segundo Templo ou
aos essênios.
O Rolo de Cobre (3Q15) - que tem de ser cortado para
ser aberto, de tão oxidado que estava - fala de um tesouro
escondido em 64 lugares diferentes da Palestina, em ouro, prata,
perfumes etc. O montante alcançaria a fabulosa quantia de 65
toneladas de prata e 26 toneladas de ouro.
Seria um tesouro de fato ou só uma ficção? Até hoje
nada foi achado deste pretenso tesouro. Os estudiosos se
dividem na suas opiniões: seria um tesouro da comunidade de
27
OS ESSÊNIOS E O CRISTIANISMO
Qumran? Ou pertenceria ao Templo de Jerusalém? Neste último
caso, quando e porquê o documento vai parar em Qumran?.
A leitura, tradução e publicação dos manuscritos mais ou
menos completos não é um grande problema para os
especialistas. Mesmo os fragmentos das grutas menores são
publicados até os anos 70.
O problema está nos milhares de fragmentos de mais de
500 manuscritos da gruta 4. A maioria está muito deteriorada:
corroídos, curvados, enrugados, retorcidos, cobertos por mofo e
elementos químicos.
Para trabalhar nestes fragmentos é constituída em 1952
uma equipe internacional no Museu Arqueológico da Palestina,
em Jerusalém Oriental, pertencente à Jordânia.
O chefe da equipe é o dominicano R. de Vaux. Com ele
trabalham Frank Moore Cross, americano, presbiteriano; J. T.
Milik, polonês, católico; John Allegro, inglês, agnóstico; Jean
Starcky, francês, católico; Patrick Skehan, americano, católico;
John Strugnell, inglês, presbiteriano; Claus-Hunno Hunziger,
alemão, luterano. Predominam especialistas de Harvard (USA),
École Biblique (Jerusalém) e Oxford (Inglaterra).
"Ficou aparentemente entendido que esses pesquisadores
possuíam o direito oficial de publicar os textos de seus
respectivos quinhões. Na lista, era óbvia, e foi nitidamente
percebida, a ausência do nome de qualquer pesquisador
judeu. O governo jordaniano insistiu em que nenhum judeu
fosse incluído na equipe".
Os trabalhos avançam em bom ritmo, já que são
financiados por J. D. Rockfeller Jr., magnata americano. Mas,
28
OS ESSÊNIOS E O CRISTIANISMO
dois fatos intervêm: morre Rockfeller e Israel, na Guerra dos Seis
Dias, em 1967, anexa Jerusalém Oriental e toma o Museu
Arqueológico da Palestina onde estão os manuscritos da gruta 4.
O projeto de publicação perde o compasso.
Com a morte de R. de Vaux em setembro de 1971, a
função de editor-geral passa para seu colega dominicano Pierre
Benoit, que por sua vez, ao morrer em 1987, passa o cargo para
John Strugnell. Durante todos estes anos, a equipe continua
pequena. Quando um pesquisador morre ou se retira, é
substituído por outro e pronto. Strugnell, porém, lutará por duas
coisas: pela expansão do pequeno grupo original encarregado
dos manuscritos e pela inclusão neste equipe de pesquisadores
judeus.
Entretanto, cresce no meio acadêmico mundial a
insatisfação com a demora na publicação dos documentos.
Alguns nomes se destacam neste protesto: Robert Eisenman, da
Universidade do Estado da Califórnia e Philip Davies da Sheffield
University, Inglaterra. Eles tentam o acesso aos manuscritos,
mas são barrados por J. Strugnell. É então que entra em cena
Hershel Shanks, fundador da Biblical Archaeology Society.
Através da Biblical Archaeology Review, ele inicia, a partir de
1985, poderosa campanha em favor do livre acesso dos
pesquisadores aos manuscritos ainda não publicados.
Após polêmica entrevista aos jornais, em dezembro de
1990, John Strugnell é demitido do cargo pela Israel Antiquities
Authority (IAA), que indica Emanuel Tov como editor-chefe e
amplia a equipe para cerca de 50 pesquisadores.
29
OS ESSÊNIOS E O CRISTIANISMO
Contudo, dois novos fatos mudam o rumo das coisas. Em
setembro de 1991 Ben Zion Wacholder e Martin Abegg do
Hebrew Union College, em Cincinati, publicam A Preliminary
Edition of the Unpublished Dead Sea Scrolls. Baseados no
glossário elaborado pelos pesquisadores oficiais, e utilizando um
computador, os dois estudiosos reconstroem textos inteiros da
gruta 4. No mesmo mês, a Biblioteca Huntigton, de San Marino,
Califórnia, que possui as fotos de todos os manuscritos, coloca a
coleção à disposição dos estudiosos.
Em novembro de 1991 a Biblical Archaeology Society
publica a Edição Fac-símile dos Manuscritos do Mar Morto, com
cerca de 1800 fotografias dos manuscritos.
Neste meio tempo a IAA autoriza aos fotógrafos o acesso
aos manuscritos. Estas fotografias estão disponíveis em 5
lugares: Jerusalém, Claremont e San Marino (as duas últimas na
Califórnia), Cincinati e Oxford. E, finalmente, em 1993, sob os
auspícios da IAA, sai a edição completa em microfilmes de todos
os manuscritos do Mar Morto: The Dead Sea Scrolls on
Microfiche. A Comprehensive Facsimile Edition of the Texts from
the Judaean Desert, edited by Emanuel Tov with the collaboration
of Stephen J. Pfann, E. J. Brill-IDC, Leiden 1993.
No Brasil temos a importante obra de Florentino García
Martínez, Textos de Qumran, Petrópolis, Vozes, 1995, 582 pp. É
uma acurada tradução dos 250 textos mais importantes de
Qumran. A tradução do espanhol para o português é do exegeta
Valmor da Silva.
É preciso assinalar que em nenhum dos manuscritos até
agora publicados aparece a palavra "essênio". Este termo vem,
30
OS ESSÊNIOS E O CRISTIANISMO
provavelmente, do hebraico hassidim (os piedosos), em aramaico
hassayya, em grego essaioi ou essênoi, daí "essênios".
Embora a quase totalidade dos estudiosos identifique a
comunidade de Qumran com os essênios, são, às vezes,
sugeridas outras possibilidades. Há a hipótese caraíta, judeucristã, zelota, saducéia e farisaica.
O grupo caraíta é fundado em Bagdá no séc. VIII d.C.
pelo rabino Anan ben Davi, que proclama uma volta à Escritura.
O termo vem de caraim, "leitores (da Escritura)", pois em
hebraico qara é "ler". "Etimologicamente, os caraítas são, pois,
os 'biblistas' ou 'especialistas da Escritura'; isso eles o seriam
também historicamente".
Graças à afinidade existente entre a teologia da
comunidade de Qumran e os caraítas é que se levanta a
hipótese caraíta. Mas é uma idéia sem fundamento histórico
algum.
Assim como os cristãos primitivos, a comunidade de
Qumran se autodenomina, às vezes, os "pobres" (ebionim). Daí
alguns acharem que ali vivem os ebionitas, seita judaico-cristã.
Só que os dados da arqueologia e da paleografia contradizem tal
hipótese.
Em Massada os arqueólogos descobrem uma cópia de
uma obra de Qumran, o que levanta a possibilidade, segundo
alguns, de serem zelotas os habitantes de Qumran. Entretanto, é
bem mais viável pensar que alguns essênios tenham se reunido
aos zelotas que resistem aos romanos em Massada até 73 d.C.
Daí a obra ter ido parar lá.
31
OS ESSÊNIOS E O CRISTIANISMO
A hipótese saducéia quase não encontra apoio, pois em
relação à helenização saduceus e qumranitas estão em posições
opostas. Sem mencionar as profundas divergências teológicas.
Por último, a hipótese farisaica é colocada a partir das
muitas semelhanças da comunidade de Qumran com o grupo
dos fariseus. Mas isto se explica pela provável entrada maciça de
fariseus na comunidade por ocasião das perseguições de João
Hircano I.
O testemunho dos autores antigos:
O testemunho dos autores antigos sobre os essênios é
importante para a identificação da comunidade de Qumran.
Localização geográfica, valores, modo de vida etc dos essênios
são descritos pelos judeus Flávio Josefo e Fílon de Alexandria e
pelos romanos Plínio, o Velho, e Solino.
É Flávio Josefo quem nos diz que:
"Existem, com efeito, entre os judeus, três escolas
filosóficas: os adeptos da primeira são os fariseus; os da
segunda, os saduceus; os da terceira, que apreciam
justamente praticar uma vida venerável, são denominados
essênios: são judeus pela raça, mas, além disso, estão
unidos entre si por uma afeição mútua maior que a dos
outros".
Na mesma direção vai Fílon de Alexandria, que diz:
32
OS ESSÊNIOS E O CRISTIANISMO
"A Síria Palestina, que ocupa uma parte importante da
populosa nação dos judeus, não é, também ela, estéril em
virtude. Alguns deles, que somam mais de quatro mil, são
denominados essênios".
Plínio, o Velho nos oferece precioso dado para a
localização dos essênios em Qumran:
"Na parte ocidental do mar Morto os essênios se afastam
das margens por toda a extensão em que estas são
perigosas. Trata-se de um povo único em seu gênero e
admirável no mundo inteiro, mais que qualquer outro: sem
nenhuma mulher e tendo renunciado inteiramente ao amor;
sem dinheiro e tendo por única companhia as palmeiras.
Dia após dia esse povo renasce em igual número, graças à
grande quantidade dos que chegam; com efeito, afluem
aqui em grande número aqueles que a vida leva, cansados
das oscilações da sorte, a adotar seus costumes (...)
Abaixo desses ficava a cidade de Engaddi, cuja
importância só era inferior à de Jericó por sua fertilidade e
seus palmeirais, mas que se tornou hoje um montão de
ruínas. Depois vem a fortaleza de Massada, situada num
rochedo, não muito distante do mar Morto".
A. G. Lamadrid observa que "a descrição de Plínio
corresponde perfeitamente às ruínas de Qumran, que se
encontram a uns dois quilômetros a ocidente do mar Morto e
também alguns quilômetros ao norte da antiga cidade de
Engaddi".
Solino, do séc. III d.C., que tira parte de seu material de
Plínio, diz o seguinte:
"O interior da Judéia que se estende para o ocidente é
ocupado pelos essênios. Estes, seguidores de rígida
disciplina, se separaram dos costumes de todos as outras
nações, tendo sido destinados a este modo de vida pela
divina providência. Nenhuma mulher se encontra entre eles
33
OS ESSÊNIOS E O CRISTIANISMO
e eles renunciaram ao sexo completamente. Eles
desconhecem o dinheiro e vivem entre palmeiras. Ninguém
nasce entre eles, entretanto seu número não diminui. O
local é destinado à castidade. Ali reúnem-se pessoas de
várias nações; entretanto, ninguém que não tenha uma
reputação de castidade e inocência é ali admitido. Aquele
que cometer a menor falta, embora faça o maior esforço
para ser admitido, é mantido afastado por ordem divina.
Assim, ao longo de tantas eras (é difícil de se crer), uma
raça onde não há nascimentos vive para sempre. Logo
abaixo dos essênios existia a cidade de Engaddi, mas ela
foi arrasada".
Tanto Flávio Josefo quanto Fílon de Alexandria noticiam
a opção celibatária e a vida comunitária dos essênios, o que os
manuscritos de Qumran confirmam - pelo menos para uma parte
da organização - como veremos adiante:
"Os essênios repudiam os prazeres como um mal e
consideram como virtude a continência e a resistência às
paixões. Eles desprezam, para si mesmos, o casamento;
mas adotam os filhos dos outros numa idade ainda
bastante tenra para receberem seus ensinamentos: eles os
consideram como se fossem de sua família e os moldam
de acordo com os seus costumes".
Fílon diz que na comunidade dos essênios "existem
apenas homens de idade madura e inclinados já para a velhice,
que não são mais dominados pelo fluxo do corpo nem arrastados
pelas paixões, mas que gozam da liberdade verdadeira e
realmente única".
Fílon acredita que os essênios não se casam porque isto
ameaçaria a sua vida comunitária, dado, segundo sua opinião, o
caráter de semeadora de discórdias que predomina nas
mulheres: "Por outro lado, prevendo com perspicácia o obstáculo
34
OS ESSÊNIOS E O CRISTIANISMO
que ameaçaria, seja por si só, seja de modo mais grave,
dissolver os laços da vida comunitária, eles baniram o
casamento, ao mesmo tempo em que prescreveram a prática de
uma perfeita continência".
Sobre a vida comunitária dos essênios diz Flávio Josefo
que os seus bens são igualmente divididos, evitando que haja
pobres e ricos, o que é confirmado pelos documentos da
comunidade: "Com efeito, trata-se de uma lei: aqueles que
entram para o grupo entregam seus bens à comunidade, de tal
forma que entre eles não se vê absolutamente nem a humilhação
da pobreza nem o orgulho da riqueza, já que as posses se
encontram reunidas, não existindo para todos senão um único
haver, como ocorre entre irmãos".
Há ainda muitos outros testemunhos interessantes sobre
os essênios, especialmente de Flávio Josefo, que veremos
oportunamente.
Se a comunidade que vive em Qumran é composta pelos
essênios, é possível reconstruir a sua história, que se situa entre
os séculos II a.C. e I d.C. Além dos testemunhos antigos
contamos com os manuscritos da comunidade e os resultados
das escavações de Khirbet Qumran.
Tudo indica que quando o macabeu Jônatas assume o
sumo sacerdócio em Jerusalém começa a crise. Como sabemos,
os assideus lutam lado a lado com os Macabeus contra a
aristocracia filo-helênica, a partir de 167 a.C.
Mas quando estes, que não são sadoquitas, se apossam
do sumo sacerdócio, um sacerdote sadoquita do Templo,
conhecido nos manuscritos apenas como Mestre da Justiça
35
OS ESSÊNIOS E O CRISTIANISMO
(Môreh hasedeq) rompe com os Macabeus e lidera um grupo de
sacerdotes e assideus que se afasta de Jerusalém.
O Documento de Damasco comenta esta aliança e
conseqüente ruptura: "E no tempo da ira, aos trezentos e
noventa anos após tê-los entregue nas mãos de Nabucodonosor,
rei da Babilônia, visitou-os e fez brotar de Israel e de Aarão um
broto da plantação para possuir a sua terra e para engordar com
os bens de seu solo. E eles compreenderam sua iniqüidade e
souberam que eram homens culpáveis; porém eram como cegos
e como quem às apalpadelas busca o caminho durante vinte
anos. E Deus considerou suas obras porque o buscavam com
coração perfeito, e suscitou para eles um Mestre de Justiça para
guiá-los no caminho de seu coração" (CD I, 5-11).
Trezentos e noventa anos após a destruição de
Jerusalém por Nabucodonosor ocorrida em 586 a.C., nos
colocaria no ano 196 a.C. e não combina com a época dos
Macabeus, quando teria surgido o grupo essênio. Mas somandose aos 390 anos mais 20 anos, durante os quais a comunidade
anda às cegas, depois mais 40 anos, que representam o tempo
simbólico entre a morte do Mestre da Justiça e a chegada da era
messiânica, chega-se a 450 anos. Some-se a isto os simbólicos
40 anos de atividade do Mestre e temos 490 anos ou 70 x 7 anos
que, segundo o livro de Daniel, representam o tempo decorrido
entre a intervenção destruidora de Nabucodonosor e o advento
salvador do Messias. Ou seja: 390 anos (ou 490) é uma quantia
simbólica, uma afirmação teológica apenas e não serve para
datar coisa alguma.
36
OS ESSÊNIOS E O CRISTIANISMO
Mas há outros dados neste texto que nos oferecem
algum ponto de apoio histórico. O "tempo da ira" só pode ser a
crise da época de Antíoco IV Epífanes.
A "raiz que brota de Israel e Aarão" é uma referência aos
leigos e sacerdotes que compõem a comunidade essênia, e os
"vinte anos" nos quais se comportam como cegos pode ser uma
avaliação do período de aliança dos assideus com os Macabeus,
anteriores ao surgimento do Mestre da Justiça.
De uma passagem da Regra da Comunidade se deduz
que os líderes deste grupo são sacerdotes sadoquitas: "Esta é a
regra para os homens da comunidade que se oferecem
voluntariamente para converter-se de todo mal e para manter-se
firmes em tudo o que ordena segundo a sua vontade. Que se
separem a congregação dos homens da iniqüidade para formar
uma comunidade na lei e nos bens, e submetendo-se à
autoridade dos filhos de Sadoc, os sacerdotes que guardam a
aliança, e à autoridade da multidão dos homens da comunidade,
os que se mantêm firmes na aliança" (1QS V, 1-3).
Também os fragmentos de uma antologia de bênçãos
(1QSb), originalmente anexadas à Regra da Comunidade, falam
da liderança dos sacerdotes sadoquitas entre os essênios:
"Palavras de Bênção. Do Instrutor. Para abençoar] os filhos de
Sadoc, os sacerdotes que Deus escolheu para si para reforçar
sua aliança para [sempre, para distribuir todos os seus juízos em
meio ao seu povo, para instruí-los conforme o seu mandato. Eles
estabeleceram na verdade [sua aliança] e inspecionaram na
justiça todos os seus preceitos, e andaram de acordo com o que
ele escolhe" (11QSbIII, 22-25).
37
OS ESSÊNIOS E O CRISTIANISMO
Além do Documento de Damasco, alguns comentários
bíblicos
de
Qumran
falam
do
Mestre
da
Justiça.
O
enquadramento histórico do Mestre da Justiça é importante para
se reconstruir a história da comunidade, pois ele é apresentado
como a figura mais importante entre os essênios e quase
certamente é o seu fundador.
Explicando o Sl 37,23-24 diz um escrito de Qumran:
"Pois por YHWH são assegurados [os passos do homem;] ele se
deleita em seu caminho: embora tropece [não] cairá, pois YHWH
[sustenta sua mão]. Sua interpretação se refere ao Sacerdote, o
Mestre de [Justiça, a quem] Deus escolheu para estar [diante
dele, pois] o estabeleceu para construir por ele a congregação
[de seus eleitos] [e endireitou o seu caminho, em verdade"
(4QpSlaIII, 14-17).
No Comentário de Habacuc se lê interessante aplicação
de Hab 1,13b: "Por que contemplais, traidores, e guardais
silêncio quando devora um ímpio alguém mais justo que ele? Sua
interpretação se refere à Casa de Absalão e aos membros de
seu conselho, que se calaram quando da repreensão do Mestre
de Justiça e não o ajudaram contra o Homem de Mentira, que
rejeitou a Lei em meio a toda a sua comunidade]" (1QpHab V,812).
Ainda no mesmo Comentário de Habacuc aparecem
outros dados interessantes na explicação de Hab 2,8b: "Pelo
sangue humano [derramado] e a violência feita ao país, à cidade
e a todos os seus habitantes. Sua interpretação se refere ao
Sacerdote Ímpio, posto que pela iniqüidade contra o Mestre de
Justiça e os membros de seu conselho o entregou Deus nas
38
OS ESSÊNIOS E O CRISTIANISMO
mãos de seus inimigos para humilhá-lo com um castigo, para
aniquilá-lo com a amargura da alma por ter agido impiamente
contra os seus eleitos" (1QpHab IX, 8-12).
A comunidade Q:
Segundo Burton L. Mack, os escritos da comunidade "Q"
são os primeiros registros que temos dos movimentos primitivos
de Jesus, e é um texto verdadeiramente precioso. Eles
documentam a história de um grupo específico do movimento
primitivo de Jesus, por um período de cerca de 50 anos, desde a
época em que Jesus tinha 20 anos até após a guerra RomanoJudaica nos anos 70. O notável sobre este grupo é que ele se
desenvolveu dentro de uma comunidade, firmemente, interligada
e produziu uma vasta e grandiosa mitologia, simplesmente
atribuindo, mais e mais ensinamentos a Jesus.
Eles não precisaram imaginar Jesus no papel de um
Deus ou contar estórias sobre sua ressurreição dos mortos para
honrá-lo como um mestre. Em outras palavras eles não eram
cristãos, eram na verdade, um grupo de Jesus. As camadas
primitivas dos ensinamentos de Jesus em Q são as menos
interpoladas de todas as suas citações em documentos
existentes. Isto pode nos significar, que Q nos coloca mais
próximos do Jesus Histórico do que jamais poderemos estar.
Portanto, é enorme a importância de Q. Os desafios
sobre a concepção popular das origens Cristãs é claro. Se a
visão convencional dos primórdios do Cristianismo está certa,
como podemos explicar esses pioneiros de Jesus. Será que não
entenderam a mensagem? Eram ignorantes do evangelho da
39
OS ESSÊNIOS E O CRISTIANISMO
salvação ou os repudiavam? Se, entretanto, os primeiros
seguidores de Jesus entendiam o propósito do movimento, da
maneira descrita em Q, como explicaremos a aparição dos cultos
de Cristo, as fantásticas mitologias dos evangelhos narrativos e o
eventual estabelecimento do culto e da religião Cristã? Q nos
força a repensar as origens do Cristianismo como nenhum outro
documento dos primeiros tempos.
Após a descoberta de Q, os evangelhos narrativos não
podem mais serem vistos como relatos dignos de confiança
sobre
os
eventos
históricos
que
culminaram
com
o
estabelecimento da fé Cristã. Temos agora que considerar os
evangelhos como resultados da elaboração do primitivo mito
Cristão. Como já dissemos, Q força essa questão, porque não
concorda com os relatos dos evangelhos narrativos.
Q é oriundo da palavra alemã Quelle, que significa
"fonte". O texto obteve este nome quando historiadores
descobriram que tanto Mateus como Lucas usaram uma coleção
de citações de Jesus como uma de suas "fontes" para seus
evangelhos, sendo a outra fonte o evangelho de Marcos. Os
estudiosos sabiam a mais de 150 anos que alguma coisa como Q
tinha que ter existido, mas apenas recentemente tiveram a
certeza. Apesar de tudo, todos sabíamos qual o o conteúdo do
documento porque os seus ensinamentos estavam lá, nos
evangelhos de Mateus e Lucas.
Uma
vez
que
não
tínhamos
um
manuscrito
Q
independente que teria sido perdido na balbúrdia do início do
segundo século, um conhecimento profundo de Mateus e Lucas
seria necessário caso quiséssemos reconstruir o texto original
40
OS ESSÊNIOS E O CRISTIANISMO
que eles tinham em comum. Foi uma surpresa, quando alguns
especialistas curiosos, começaram a reconstruir um texto
unificado
e
olharam
Q
como
uma
peça
de
literatura
independente, uma peça de literatura que tinha conduzido um
movimento de Jesus por meio século, antes de Mateus e Lucas
sequer pensarem em mesclá-lo com a estória de Marcos sobre
Jesus.
Um mundo Cristão, inteiramente, diferente veio à tona.
Uma vez que o texto de Q não é encontrado
separadamente, em nenhuma cópia do Novo Testamento,
teremos que nos referir aos seu conteúdo citando o capítulo e
versículo no evangelho de Lucas. A preferência de Lucas sobre
Mateus é devida ao fato de que Lucas não alterou a seqüência e
terminologia das citações tanto quanto Mateus alterou (assim Q
11:1-4 = Lucas 11:1-4). No artigo FAQ do Problema Sinótico
você poderá encontrar alguns subsídios para entender as
hipóteses da construção dos evangelhos sinóticos.
Q coloca os primeiros povos de Jesus no foco, e o
quadro é tão diferente daquele que todos sempre imaginaram
que se torna surpreendente. Ao invés de pessoas se reunindo
para adorar um Cristo, como nas congregações Paulinas, ou
preocupando-se com o que significa ser um seguidor de um
mártir, como nas Comunidades de Marcos, o povo de Q estava,
completamente dedicado às questões presentes sobre o Reino
de Deus e com o comportamento necessário para alguém
abraçá-lo seriamente.
Estudos recentes identificaram três camadas de material
de instrução em Q. Cada uma dessas camadas corresponde a
41
OS ESSÊNIOS E O CRISTIANISMO
um estágio na história da comunidade Q. Isto permite rastrear a
história dos primeiros movimentos de Jesus acompanhando as
mudanças nas referências a respeito da idéias do Reino de
Deus. Nenhum outro texto ou conjunto de textos do primeiro
século nos preenche com as histórias inteiras de uma
comunidade "Cristã" primitiva. Os estudiosos agora se referem a
essas camadas como Q 1 ,Q 2 e Q 3.
A camada mais antiga,Q 1, consiste, extensivamente,
das citações sobre a sabedoria de ser um verdadeiro seguidor de
Jesus. Q 2 , por outro lado, introduz pronunciamentos de
julgamentos proféticos e apocalípticos sobre aqueles que se
recusarem a ouvir os ensinamentos de Jesus. E, finalmente, Q 3
registra uma retratação ao desgaste de encontros públicos para
tratar de idéias de paciência e piedade para os iluminados
enquanto esperam seu momento de glória num certo futuro no
fim da história humana.
Um fato notável sobre o material de Q 1 é que ele advoga por um
estilo de vida evolucionário, transformando aforismos em
prescrições de comportamento. Uma injuriosa recriminação tal
qual "Deixa os mortos sepultarem os seus mortos, tu vai e
anuncia o reino de Deus", pode ser isolada no núcleo de um
pequeno aglomerado de citações, tornando-se um princípio de
comportamento adequado ao novo reino. Neste caso, o
comportamento recomendado é simplesmente o compromisso
com o reino (Q 9:57-62).
Podemos identificar sete temas no bloco Q 1:
42
OS ESSÊNIOS E O CRISTIANISMO
A maior unidade (Q 6:20-49) consiste de ensinamentos
de Jesus a respeito de a quem pertence o reino de Deus ("os
pobres, famintos, os que choram"), e como tratar os outros ( o
que quereis que os homens vos façam, fazei-lhes o mesmo a
eles"), e sobre julgamentos aos outros (" não julgueis e não
sereis julgados");
O segundo bloco de Q 1 é sobre tornar-se um seguidor e
trabalhar para o reino de Deus (Q 9:57-10:11);
O terceiro é sobre ter confiança em pedir a Deus (o Pai)
(Q 11:1-13);
O quarto diz que não se deve ter temor de falar (Q 12:27);
O quinto explica que não deve existir preocupação com
alimentação, vestuário e que o desejo por coisas pessoais é
tolice (Q 12:13-34);
O sexto ensina que como a semente e o fermento, o
reino de Deus crescerá (Q 13:18-21);
O sétimo fala sobre os encargos de ser um seguidor e
sobre as conseqüências de não levar o movimento a sério (Q
14:11, 16-24, 26-27, 34-35).
Se datarmos esse material em cerca de 50 C.E., na
altura dos primeiros vinte anos do movimento, podemos verificar
o que o povo de Jesus vinha fazendo. Eles estavam
profundamente envolvidos em definir, exatamente, o que
significava pertencer à escola de Jesus. Eles despenderam um
grande esforço intelectual para encontrar argumentos para um
determinado tipo de atitudes e ações consideradas fundamentais
para alcançar-se o reino de Deus.
Podemos definir o perfil do estilo de vida que eles
estavam recomendando?
43
OS ESSÊNIOS E O CRISTIANISMO
Se fizermos uma lista dos imperativos que estão próximos aos
núcleos das menores unidades de Q 1 podemos começar a
enxergar que um tipo de programa estava na mente dos
primeiros povos de Jesus. A lista inclui os seguintes imperativos
ou regras de comportamento:
Ame os seus inimigos (Q 6:27);
Se apanhar numa face ofereça a outra (Q 6:29);
Dê a todos que pedem (Q 6:30);
Não julgue e não sereis julgados (Q 6:37);
Remova primeiro a trava do seu próprio olho (Q 6:42);
Deixe os mortos enterrarem os seus mortos (Q 9:60);
Eis que vos mando como cordeiros ao meio dos lobos (Q
10:3);
Não leveis bolsa, nem alforje, nem sandálias (Q 10:4);
Dizei-lhes: É chegado o reino de Deus (Q 10:9);
Pedi e dar-se-vos-á (Q 11:9);
Não estejais apreensivo pela vossa vida (Q 12:22);
Buscais antes, o reino de Deus (Q 12:31).
Um programa com muito risco parecia estar em
andamento. Ricos, mau uso da autoridade e poder, hipocrisias e
pretensões, iniqüidades sociais e econômicas, injustiças e até
mesmo lealdades familiares normais estavam, inteiramente, sob
suspeita.
O
reino
ideal
estava
sendo
estabelecido
em
antagonismo aos costumes tradicionais, através da orientação de
que os seguidores de Jesus deveriam praticar a pobreza
voluntária, o afastamento dos laços familiares, a renúncia de
bens, a coragem de falar e aplicar a não-retaliação.
Um tremendo programa. Fazia esse programa algum
sentido?
44
OS ESSÊNIOS E O CRISTIANISMO
A resposta é afirmativa. O estilo de vida do povo de
Jesus guardava estrita semelhança com a tradição grega da
filosofia popular característica dos Cínicos. Os Cínicos também
promoveram um afrontoso estilo de vida como maneira de criticar
os costumes convencionais e os temas dos dois grupos, Cínicos
e povo de Jesus, eram bastante coincidentes. Os Cínicos
ajudaram ao homem comum ganhar alguma percepção sobre a
maneira como seu mundo funcionava, desta forma as pessoas
não encontraram problemas para entender o que o povo de
Jesus estava dizendo.
A diferença entre o povo de Jesus e os Cínicos era a
seriedade com a qual o movimento de Jesus encarava a nova
visão social do reino de Deus. Isto era reflexo da preocupação
judaica por uma sociedade trabalhadora real, como sendo o
contexto necessário para qualquer bem-estar individual. Foi esse
interesse em explorar uma visão social alternativa que afastou o
movimento de Jesus de um mero apelo Cínico. Pode-se ainda
detectar algum humor do tipo Cínico no estilo aforístico das
citações:
"Porque onde estiver o vosso tesouro ali estará também
o vosso coração" (Q 12;34);
"Pode porventura o cego guiar o cego" (Q 6:39); "Porque
qualquer que pede recebe" (Q 11:10).
Assim a fase inicial dos movimentos de Jesus devem ter
sido caracterizada por um espírito mais brincalhão do que aquela
caracterizada pelo material Q 1 que chegou até nós.
45
OS ESSÊNIOS E O CRISTIANISMO
Mas o processo de formação dos grupos, e a fase de agir
seriamente como grupos, estabeleceu uma atitude não-Cínica.
Todos os blocos do material de Q 1 revelam uma tentativa
estudada de expressar um claro conjunto de códigos para o
movimento de Jesus como uma formação social, códigos estes
que giravam em torno de definir quem, realmente, pertencia ao
reino. As instruções Q 10: 1-11, por exemplo, são direcionadas
para orientar um comportamento adequado quando se tivesse
que representar o movimento de Jesus em outra cidade. Estas
instruções, mostram que existia uma rede de pequenas
assembléias de grupos, que poderia ser considerada como
suporte ao movimento.
Assim, o período inicial de tentar um novo reino por
intermédio do estilo tipo Cínico, evoluiu para uma bem mais
complexa
empreitada.
O
foco
não
estava
somente
no
estabelecimento de uma lista de códigos para definir um
verdadeiro
discípulo,
mas
em
estabelecer
padrões
para
reconhecimento e para os relacionamentos autênticos dentro da
comunidade dos companheiros seguidores de Jesus. A formação
social do povo de Jesus e a visão social do reino de Deus
começaram a se espelhar uma na outra.
A motivação em Q 2 é, drasticamente, diferente. O
processo de formação social tinha pago o seu preço. Famílias
tinham sido separadas, um código de comportamento estrito
tinha sido estabelecido pelos demais Judeus para censurar ou
levar ao ostracismo o povo de Jesus, algumas cidades os
incitavam a se afastarem e alguns membros antigos decidiram
que o estresse era muito grande. A lealdade era nessa hora o
46
OS ESSÊNIOS E O CRISTIANISMO
apelo principal, e alguns seguidores de Jesus tiveram que decidir
entra a família e o movimento. Aqueles que permaneceram fiéis,
a despeito das tensões sociais, encontraram novas razões para
dizer sim ao movimento de Jesus, mas a maioria dessas razões
era o lado secundário de argumentos extravagantes de
comparação com aqueles que eram considerados do lado errado.
"Mas ai de vós fariseus. Vocês são como sepulturas
bonitas por fora, mas cheia de poluição por dentro" (Q 11:42; cf
Mateus 23:27).
"E digo-vos que mais tolerância haverá naquele dia para
Sodoma do que para aquela cidade" (Q 10:12).
Assim, ao invés do estilo de crítica social através dos
aforismos alegres, característico dos primeiros tempos de
experimentação social, ou mesmo do tom mais sério de instrução
que definiu o posterior desenvolvimento do povo de Jesus, a
comunidade Q adotou uma postura firmemente judicatória em
relação ao mundo. Pronunciamentos apocalípticos ameaçadores
do juízo final eram dirigidos contra aqueles que recusavam o
programa do reino. E assim o tempo para a completa realização
do reino foi adiado para o fim dos tempos (eschaton).
Os conflitos sociais refletidos em Q 2 provavelmente
tiveram lugar durante os anos 50 e 60, embora algumas das
citações são melhor entendidas como uma linguagem cunhada
nas sombras da guerra Romano-Judaica. Com este tipo de
linguagem soando em seus ouvidos, os escribas do movimento
de Jesus tiveram que rever seus manuais de instrução sobre
47
OS ESSÊNIOS E O CRISTIANISMO
Jesus. Eles mantiveram os livros antigos de instruções e
sabedoria ética que hoje identificamos como Q 1, porque esses
haviam se tornado em ensinamento padrão para a comunidade.
Mas adicionaram material judicatório e profético para promover o
enquadramento na nova motivação.
O novo manual foi arranjado de maneira cuidadosa,
tecendo o material apocalíptico e judicatório no conjunto primitivo
de instruções, dando a impressão que o material original tinha
sido preparado com o juízo final em mente.
Entretanto, dois problemas conceituais tinham que ser
resolvidos para que essa revisão fosse realizada. O primeiro era
o fato de que o povo de Jesus tinha se acostumado a encarar
Jesus como um mestre de sabedoria e agora tinham que
imaginá-lo como sendo também um profeta apocalíptico. Isto
requeria uma grande mudança na caracterização. O outro
problema era que, tendo experimentado um fracasso adiando a
realização de sua visão até a data da justificação, a comunidade
tinha agora a obrigação de estar bem segura de estar no
caminho certo. Isto requeria um horizonte de história bem mais
vasto do que a comunidade jamais tinha considerado ser
necessário.
Ambos os problemas foram resolvidos com revisões
imaginativas da figura de Jesus e do seu papel na história épica
de Israel. Estas revisões foram engenhosas. O primeiro
movimento foi introduzir a figura de João Batista como profeta do
julgamento e pregador do arrependimento (Q 3:7-9).
48
OS ESSÊNIOS E O CRISTIANISMO
O segundo movimento foi João prever "aquele que virá"
quem ajuntará o trigo no seu celeiro, mas queimará a palha com
fogo que nunca se apaga" (Q 3:16-17).
Então, esses escribas deixaram João e Jesus falarem um
sobre o outro para ver o que cada um sabia do outro (Q 7:18-19,
22-28, 31-35). Como os escribas imaginaram, Jesus reconhece
João como o último dos profetas de Israel e assim "aquele que
virá", e João previu um ainda "maior" para vir, o qual,
obviamente, era Jesus. Jesus era "maior", de acordo com os
escribas, porque ele era tanto um sábio como um profeta. Ele era
um sábio pelo virtuosismo de seus ensinamentos em Q 1 . Ele
era um profeta em virtude dos seus julgamentos apocalípticos
que breve seriam ouvidos de seus lábios.
A possibilidade espantosa oferecida por essa simples
história imaginária era que, como filho da sabedoria, Jesus
poderia saber o que Deus teria desejado desde o início da
criação. E como um profeta apocalíptico ele poderia saber o que
aconteceria no final dos tempos. Resultado: Jesus tornou-se o
vidente da história passada e o profeta do fim da história. Seus
seguidores poderiam agora se sentirem seguros que eles
estavam, exatamente, onde deveriam estar, unidos com o grande
plano de Deus para Israel e prontos para assumir seus lugares
quando o julgamento final ocorresse.
Esta solução engenhosa para seus problemas tem que
ser julgada como um golpe de gênio na criação do mito, não
importando o que se pense propriamente sobre o mito. Sobre o
João Batista histórico e sua relação com esse movimento, os
estudiosos ainda estão quebrando a cabeça entre várias opções.
49
OS ESSÊNIOS E O CRISTIANISMO
O fato importante para nossos propósitos é que João entrou na
cena da imaginação da comunidade Q sobre Jesus como um
segundo estágio na criação do mito, de maneira a redesenhar o
próprio papel de Jesus.
As adições de Q 3 foram feitas algum tempo depois da
guerra
Romano-Judaica.
Elas
incluem
o
lamento
sobre
Jerusalém (Q 13:34-35), a estória da tentação de Jesus (Q 4:113), afirmações sobre a importância da lei Mosaica (Q 16:16-18)
e a promessa final aos fiéis: "E vós sois os que tende
permanecido comigo sentareis no trono, julgando as doze tribos
de Israel" (Q 22:28-30). Q 3 não é uma grande revisão do
manual,
mas
introduz
algumas
novas
idéias
sobre
o
relacionamento do povo de Q com a história de Israel, e elevou a
mitologia de Jesus ao nível de um ser divino que poderia ser
imaginado conversando com Deus como seu Pai e debatendo
com Satanás como seu tentador.
O Tópico em ambos os casos era a própria "autoridade
de Jesus sobre todo o mundo." (Q 4:6-7). Tudo parece crer que a
poeira do período Q 2 havia baixado e que o povo de Q teria
afinado o tom de suas respostas àqueles que lhes eram críticos.
Talvez a guerra tenha se encarregado dos antagonismos
primevos ou transformado a paisagem cultural tão drasticamente,
que a postura pré-guerra do movimento se apresentasse então
tola, mesmo para o povo de Jesus.
Foi o livro de Q, no nível Q 3, que atraiu a atenção de
outros grupos de Jesus, foi então copiado e lido por outra
geração dentro dos movimentos de Jesus e, eventualmente,
incorporado nos evangelhos de Mateus e Lucas e se perdeu até
50
OS ESSÊNIOS E O CRISTIANISMO
recentemente para a história, quando então os estudiosos o
reconstruíram. Historiadores da segunda corrente diferente de
Mack, considerando que se está apostando muitas fichas na
primeira camada de um documento não mais existente,
construído a partir de outros, Mateus e Lucas, escritos após meio
século e algumas revisões.
Estes historiadores consideram que o Jesus, mestre com
estilo dos Cínicos é inteiramente ausente nas epístolas do
primeiro
século,
e
portanto,
deveria
ser
examinada
a
possibilidade de que esta camada de Q não pertencer a Jesus, e
sim ser o produto de algum reduto Cínico que teria encontrado
seu caminho dentro de algum movimento de pregação judaica na
Galiléia e somente mais tarde ter sido anexada à idéia de uma
figura
histórica.
Questionam,
igualmente,
a
incongruente
mudança de motivação da camada Q 1 para a camada Q 2 , não
considerando adequadas as explicações de Mack, que as
atribuiu
às
tensões
resultantes
das
rejeições.
A
visão
convencional do Cristianismo assumia uma visão apocalíptica no
início e, gradualmente, mudava para a linguagem da sabedoria
quando o mundo não acabava conforme se apregoava. Agora, a
seqüência estava disposta de maneira inversa. A mudança não
era mais da mensagem apocalíptica para o advento da instrução
e da sabedoria, mas da sabedoria para o apocalíptico.
Reafirmamos
que
esta
mudança
implica
numa
total
reconsideração das origens Cristãs e da maneira como a função
da linguagem apocalíptica foi entendida.
Na minha opinião um forte componente corrobora essa
segunda corrente, trata-se do desinteresse da comunidade Q
51
OS ESSÊNIOS E O CRISTIANISMO
pelos destinos de seu fundador. Isto é certamente incrível. Se o
seu mestre e fundador tivesse sofrido o destino relatado em
Jerusalém, seria crível que a comunidade ignorasse isto ou
permanecesse ignorante do fato?
Um fato marcante a respeito da comunidade Q é que
eles não eram cristãos. Eles não encaravam Jesus como o
Messias ou o Cristo. Eles não consideravam sua morte como um
evento divino, trágico ou redentor. E eles não imaginavam que
ele iria ascender dos mortos para governar um mundo
transformado. ao contrário, eles pensavam nele como um mestre
cujos ensinamentos tornaria possível viver com verve naqueles
dias turbulentos. Assim eles não se reuniam para cultuar em seu
nome, honrá-lo como um deus, ou cultivar sua memória através
de hinos, orações e rituais. O povo de Q, era um povo de Jesus,
não cristãos.
O desafio de Q ao conceito popular das origens do
cristianismo é claro. Se a visão convencional das origens do
cristianismo é correta, como explicar estes primeiros seguidores
de Jesus?
Teriam
eles
falhado
quanto
a
compreender
a
mensagem?
Estavam ausentes quando o inesperado aconteceu?
Teriam seguido em ignorância ou repúdio ao evangelho
cristão de salvação?
Se, entretanto, os primeiros seguidores de Jesus
entenderam o propósito de seu movimento tal qual Q o descreve,
como podemos explicar o surgimento do culto de Cristo, da
52
OS ESSÊNIOS E O CRISTIANISMO
fantástica mitologia dos evangelhos narrativos, e o eventual
estabelecimento da igreja e religião cristã ?
Q força a questão de se repensar as origens do
cristianismo como nenhum outro documento da antiguidade
força. Os evangelhos narrativos não podem mais serem vistos
como relatos fidedignos dos raros e estupendos eventos
históricos na fundação da fé cristã. Os evangelhos, agora têm
que ser vistos como resultados da antiga fabricação de mitos
cristãos. Q força a questão, pois documenta uma história antiga
que não concorda com o relato dos evangelhos narrativos.
Os pronunciamentos:
Segundo Burton L. Mack, os evangelhos sinóticos
incluem muitas estórias sobre Jesus que os especialistas
costumam chamar pronunciamentos. Jesus é descrito em uma
certa situação; alguém questiona o que ele está dizendo ou
fazendo; e Jesus dá uma resposta satírica, irônica e às vezes
mordaz. Em muitos casos estas estórias foram embelezadas
para descrever a situação, explicar porque a questão foi
levantada e discriminar os opositores. Mas mesmo se a
passagem se transforma em um diálogo, Jesus tem sempre a
última palavra, e freqüentemente uma longa narrativa pode ser
reduzida a uma simples troca de desafios e respostas. Vejamos
alguns exemplos, numerados para referência futura com J de
Jesus como prefixo:
53
OS ESSÊNIOS E O CRISTIANISMO
(J-1) Quando perguntado por que comia com os coletores de
impostos e os pecadores, Jesus respondeu, Aqueles que tem
saúde não precisam de médico." (Mar 2:17)
(J-2) Quando perguntado porque seus discípulos não jejuavam,
Jesus respondeu, "Por acaso podem jejuar os amigos do noivo
enquanto o noivo estiver com eles?" (Mar 2:19)
(J-3) Quando perguntado porque seus discípulos colhiam grãos
no sábado, Jesus respondeu, "O sábado foi feito para o homem e
não o homem para o sábado." (Mar 2:27)
(J-4) Quando perguntado porque comiam com as mãos sem
lavar, Jesus respondeu, "Nada há fora do homem, que, entrando
nele o possa contaminar; mas o que sai dele isso é que
contamina o homem." (Mar 7:15)
(J-5) Quando perguntado quem era o maior, Jesus respondeu,
"Se alguém quiser ser o primeiro será o último de todos e o servo
de todos." (Mar 9;35)
(J-6) Quando alguém o chamou de "Bom Mestre," Jesus
retrucou, "Porque me chamas de bom?" (Mar 10:18)
(J-7) Quando perguntado se o rico poderia entrar no reino de
Deus, Jesus respondeu, "É mais fácil passar um camelo por um
buraco de agulha, do que um rico entrar no reino de Deus." (Mar
10:25)
54
OS ESSÊNIOS E O CRISTIANISMO
(J-8) Quando alguém mostrou-lhe uma moeda com a inscrição de
César e perguntou, "É lícito pagar impostos a César ou não?
"Jesus respondeu, Dai a César o que é de César e a Deus o que
é de Deus." (Marc 12:17)
(J-9) Quando uma mulher na multidão elevou sua voz e disse-lhe
"Bem-aventurado o ventre que te trouxe e os peitos que
mamaste." Jesus respondeu, "Antes bem-aventurado os que
ouvem a palavra de Deus e a guardam." (Lu 11:27-28)
(J-10) Quando alguém da multidão lhe disse, "Mestre, dize a meu
irmão que reparta comigo a herança," Jesus respondeu, "Homem
quem me pôs a mim por juiz ou repartidor entre vós?" (Lu 12:1314)
Estas estórias são bastante similares a um grande
número de anedotas contadas pelos Gregos sobre os fundadores
das várias escolas de filosofia. É evidente a propensão grega
pelas formulações rebuscadas, bem como pelo encantamento
com as réplicas inteligentes e com o humor satírico. Chamadas
de chreiai (úteis), anedotas como estas eram usadas para testar
professores,
avaliando
sua
capacidade
de
manterem
a
credibilidade diante de seus alunos, e de saírem incólumes de
situações desafiadoras.
Assim as chreiai eram "'úteis" para compor o que os
gregos
chamavam
uma "vida"
(bios
de
onde
retiramos
"biografia"). Isto é porque além do humor, havia outra importante
função para essas estórias. As chreiai eram capazes de revelar
55
OS ESSÊNIOS E O CRISTIANISMO
uma impressão do caráter de um professor (ethos). As chreiai
criavam o que os especialistas chamam de uma situação
retórica,
repleta
de
circunstâncias,
oradores,
discurso
e
audiência. Isto significa que boas chreiai podem ser usadas para
representar uma escola de tradição. Pode-se verificar como as
chreiai foram postas a serviço das construções filosóficas, na
obra, Vida de Filósofos Eminentes, do escritor Diógenes Laércio,
no início do terceiro século.
Anedotas do tipo das contadas sobre Jesus eram
freqüentes entre as tradições Socráticos e Cínicas. É portanto,
valioso comparar as estórias citadas com algumas anedotas
típicas dos Cínicos. Um jogo de escaramuças parece ter sido
jogado com os Cínicos por aqueles que tinham coragem para
enfrentá-los. Uma vez que os Cínicos viviam numa espécie de
alienação em relação à sociedade, demonstrando indiferença às
suas convenções mas na realidade totalmente dependentes dela
para seu viver, qualquer situação poderia servir para pegá-los em
uma armadilha.
O objetivo era flagrar o Cínico em uma atitude
inconsistente apontando a sua falta de completa independência
da sociedade. De maneira a vencer o desafio, o Cínico colocava
uma abordagem inteiramente diferente sobre a matéria deixando
a impressão de que o desafiador não tinha entendido a situação.
Vejamos alguns exemplos de Diógenes Laércio, numerados para
referência usando-se um C de Cínico:
56
OS ESSÊNIOS E O CRISTIANISMO
(C-1) Quando censurado pelo costume de andar em má
companhia, Aristenes respondeu, "Bem, os médicos atendem
seus pacientes sem pegar a febre." (DL 6:6)
(C-2) Quando alguém disse a Aristenes, "Muitos elogiam você",
ele respondeu, "O que fiz de errado?" (DL 6:8)
(C-3) Quando alguém desejava estudar com Diógenes, ele davalhe um peixe e dizia para seguir atrás dele. Quando por
embaraço o estudante logo atirava o peixe fora deixando-o,
Diógenes ria e dizia, "Nossa amizade foi quebrada por um peixe"
(DL 6:36)
(C-4) Quando alguém reprovava-o por freqüentar lugares
impuros, Diógenes respondia que o sol também entra nas
intimidades sem sair desonrado. (DL 6:63)
(C-5) Quando perguntado porque suplicava a uma estátua,
Diógenes respondeu, "Para praticar em ser recusado" (DL 6:49)
Os Gregos mediam a resposta pelo seu humor e
inteligência e uma certa lógica era envolvida em sair-se ileso do
anzol. Assim funcionava a lógica; um interlocutor colocava o
Cínico na berlinda (C-4): como você pode freqüentar lugares
socialmente inadequados (um eufemismo para casas de
prostituição)? O primeiro movimento era identificar a questão
enfatizada pelo desafio. Neste caso era a noção de ser
"contaminado" ao visitar um local "impuro", isto é, um local
57
OS ESSÊNIOS E O CRISTIANISMO
socialmente inadequado. O segundo movimento era mudar o
foco e encontrar um exemplo de "entrada em local impuro" no
qual não havia contaminação. O sol, por exemplo, "entra" nas
intimidades sem ficar sujo.
A ausência inteligente de correlação entre os dois
exemplos criava o humor. Não havia o objetivo de um
ensinamento explícito. O interlocutor poderá, certamente, não se
vir a meditar sobre teorias de pureza ou impureza, mas ele
poderá muito bem se afastar rindo e deixar o Cínico seguir seu
caminho ou mesmo dar-se conta sobre a natureza arbitrária da
categorização de puro ou impuro quando usada para uma
circunstância social específica. Quanto ao Cínico, este tendo
aceito o desafio e tendo administrado a confusão momentânea
na lógica da situação foi capaz de escapar da armadilha.
As anedotas atribuídas a Jesus operavam através da
mesma lógica. Em todos os casos os desvios Cínicos são uma
característica das réplicas de Jesus. As mudanças na ordem do
discurso são facilmente identificáveis.
Em J-1, a questão da contaminação é removida pela
mudança do foco das condutas de alimentação para a prática
médica. É muito parecida com a anedota sobre Aristenes em C1.
Em J-2 a discrepância tem relação com a ocasião na
qual o jejum é apropriado.
J-3 sustenta a distinção entre duas regras sobre o
trabalho nos sábados, uma a proscrição a outra a permissão.
Em J-4 a incongruência é criada pela justaposição de
condutas de alimentação com observações escatológicas. É
58
OS ESSÊNIOS E O CRISTIANISMO
similar
à
resposta
de
Diógenes
em
C-4
confundindo
contaminação social com natural. As colocações em J-4 e J-5
sustentam a crítica a valores sociais comuns relacionados com a
classe social.
E a anedota de Jesus em J-10 é semelhante a um
grande número de anedotas Cínicas nas quais os estudantes são
duramente corrigidos por alguma má interpretação e conduzidos
de volta aos seus próprios recursos para enxergar melhor as
coisas e começar a estudar o método Cínico. Uma forma branda
desta posição do professor contra o futuro aluno é ilustrado em
C-3.
Existem muitas chreiai de Jesus no evangelho de
Marcos. Em razão da forma que estas estórias terminam,
deixando
com
Jesus
a
última
palavra,
os
especialistas
denominam essas passagens de estórias de pronunciamentos.
Marcos usava essas estórias com grande vantagem na
construção do seu evangelho, parcialmente porque elas se
constituíam nos blocos de construção para a "vida" (bios) que ele
queria escrever, parcialmente porque elas criavam um conflito, o
conflito básico da conspiração contra Jesus que Marcos queria
desenvolver e parcialmente porque este era o tipo de estória que
a própria comunidade de Marcos aprendera a contar sobre
Jesus.
Existem 28 estórias deste tipo no evangelho de Marcos.
Destas, doze estórias tratam de questões que dividiam o povo de
Jesus dos Fariseus. A maioria delas foi identificada pelos
estudiosos como estórias pré-Marcos, que foram contadas na
comunidade de Marcos antes de Marcos decidir usá-las na sua
59
OS ESSÊNIOS E O CRISTIANISMO
vida de Jesus. Estas são as estórias que tem interesse para nós,
pois elas fazem um conjunto e podem ser usadas como janela
dentro de um ramo do movimento de Jesus que se opôs à
tradição da escola dos escribas e Fariseus. De acordo com a
velha tradição Grega, o povo de Jesus, da comunidade de
Marcos, imaginava Jesus como defensor de sua própria escola
de tradição e o pintavam contra os Fariseus dizendo chreiai . Isto
significava que eles se consideravam discípulos da Escola de
Jesus.
A estória de pronunciamento que apresenta Jesus em
debate com os Fariseus todas endereçam questões que tem a
ver com a pureza. O conceito de pureza era básico para o
sistema social e de propriedade judeu. A partir de um grande
sistema legal, ético e da lei do sacrifício que foi desenvolvida
durante o período do segundo templo, os Fariseus tiveram
sucesso em separar uma pequena lista de práticas ritualistas que
eles poderiam realizar em casa. Isto, eles afirmavam, em estrita
observância das leis e tradições judaicas.
A lista incluía o dízimo, dar esmola, observância do
sábado (incluindo oração diária e um dia de jejum na semana),
limpeza (lavagem após atividades que traziam impurezas), regras
para as seleção e reparação da comida, regras a respeito das
pessoas com as quais se podia sentar à mesa.
Estas regras não deviam ser entendidas como leis,
porque os Fariseus não tinham autoridade oficial sobre nenhuma
instituição judaica. Elas eram sinais de piedade, de uma seita
progressiva engajada em redefinir o que significava ser Judeu à
sombra da destruição do templo. Elas eram, no entanto,
60
OS ESSÊNIOS E O CRISTIANISMO
extremamente importantes para o reconhecimento de qualquer
judeu que desejava ser "puro", isto é, ser reconhecido na
comunidade judaica com leal às tradições dos judeus.
Cabe aqui, para os que não estão familiarizados, uma
descrição de quem eram os Fariseus, erradamente há já algum
tempo, apresentados no linguajar de gíria brasileira, como uma
qualificação pejorativa. Tomando a descrição de Josefos (Guerra
dos Judeus 5:2) os Fariseus eram "um corpo dentro da
comunidade judaica que professava ser mais religioso que os
outros e pretendia explicar a lei mais precisamente".
Embora sejamos levados a pensar nos fariseus como
rigidamente ortodoxos eles eram, em certos aspectos, o
elemento progressivo no Judaísmo. De maneira a encontrar
novas condições após a queda do templo, os Fariseus se
colocaram a interpretar a lei. O desenvolvimento e manutenção
das sinagogas como um centro de adoração e instrução é uma
conquista dos Fariseus. Eles eram bastante admirados pelos
judeus que não eram filiados a nenhuma seita judaica. Os
Fariseus clamavam pela autoridade da fé e da instrução
enquanto os Saduceus, a classe alta da nobreza e de onde
saíam os sumos-sacerdotes, clamava por aquela do sangue e da
posição.
Se fizermos uma lista das questões sob debate nas
estórias de pronunciamento da comunidade pré-Marcos o
resultado é uma notável correlação com as questões dos
Fariseus. Além das questões apontadas de J-1 a J-10 existe um
grande número de questões que se colocavam entre o povo de
Jesus e os Fariseus, tais como a legitimidade do divórcio, o
61
OS ESSÊNIOS E O CRISTIANISMO
pagamento de taxas, a lei Mosaica, a base da autoridade, os
sinais de honra e as causas das doenças e "espíritos impuros".
Portanto quer parecer que este ramo do movimento de
Jesus trabalhou sua autodefinição através de um violento debate
com os padrões Fariseus.
Porque isso?
Mack explica isso afirmando que o cenário mais
adequado indica que alguns integrantes do povo de Jesus
continuaram a se considerar como judeus mesmo estando
inteiramente ligados no movimento de Jesus. Pode-se imaginar a
disseminação do movimento de Jesus nas regiões de Tiro e
Sidom onde uma das estórias de pronunciamento de Marcos
(Mar 7:24-30) foi elaborada. Alguns judeus atraídos pelo
movimento continuavam a participar da vida da sinagoga ou
pertenciam a famílias que continuavam. Naturalmente surgiram
conflitos com as próprias famílias e com os líderes das sinagogas
à respeito da lealdade às tradições judaicas.
Em certo momento as diferenças relativas principalmente
aos códigos de pureza Fariseu e as "impurezas" do povo de
Jesus tornaram-se uma questão crítica e algumas pessoas
tiveram que optar entre acompanhar o povo de Jesus ou desistir
da participação. Alguns relacionamentos familiares devem ter
ficado sob tensão. O grande problema era que ser "impuro" pelos
padrões
Fariseus
era
justamente
o
ponto
principal
do
movimento.
Embora as considerações de Mack sejam razoáveis ele
parece passar ao largo de um aspecto importante. O motivo da
62
OS ESSÊNIOS E O CRISTIANISMO
resistência judaica aos Romanos era a religião judaica.
Igualmente o quadro apresentado no Novo Testamento é aquele
de uma instituição agregada ao "status quo". Não há indicação
no Novo Testamento de nenhum conflito entre a religião judaica e
o poder romano.
O objetivo claro dos evangelhos é apresentar a questão
revolucionária como sendo entre Jesus é o "Establishment"
judeu. O fato de existir uma Instituição Romana contra a qual
existiam forças revolucionárias é ocultado de maneira que a
instituição contra
a qual Jesus
se rebelava
possa ser
representada como inteiramente judia. Existia é verdade, um
pequeno partido, os Saduceus, o quais eram colaboracionistas,
sustentavam a situação e aceitavam cargos oficiais sob os
romanos. O Sumo-sacerdote, propriamente, era Saduceu e é
importante que se note, era nomeado pelos romanos. Como
membro de uma minoria colaboracionista, ele era encarado com
suspeito pela grande massa da nação. A autoridade religiosa, no
entanto, não permanecia com os sacerdotes mas com um corpo
completamente diferente de pessoas, denominados Rabinos, os
líderes dos Fariseus.
Assim os evangelhos falham em não mostrar que com
relação ao povo a verdadeira instituição era o partido dos
Fariseus que sem posição de destaque político, cujos líderes
jamais receberam reconhecimento pelos romanos, constituía-se
na primeira e última resistência contra os romanos. A imagem
apresentada nos evangelhos sobre os Fariseus, colocando-os
como interessados apenas em salvaguardar suas posições é
inteiramente equivocada.
63
OS ESSÊNIOS E O CRISTIANISMO
Assim Jesus tornou-se o mestre-fundador de um
movimento que trabalhou sua autodefinição no debate contra os
ensinamentos
dos
Fariseus.
Isto
nos
dá
um
quadro
completamente diferente daquele mostrado pela comunidade Q,
ou como veremos, o povo de Tomé, a Congregação de Israel e
as colunas de Jerusalém. Um grupo particular do movimento de
Jesus investiu inocente e fortemente na idéia de pensar-se como
apto aos dois padrões, judaico e de Jesus.
Este grupo, e isto é uma questão da máxima relevância,
voltou-se para as práticas das escolas de tradição helenistas,
quanto a atribuir todas as razões para pensar da maneira que
pensavam, ao seu fundador. Eles não desenvolveram nenhuma
teoria ou mito da autoridade de Jesus como homem dvino,
salvador ou mártir da nova causa. Também, não desenvolveram
nenhuma visão apocalíptica de julgamento final ao final dos
tempos. O que fizeram, foi colocar Jesus no papel de legislador,
tal qual os escribas dos Fariseus, mas então desenvolveram sua
habilidade retórica de maneira a superar os escribas em seu
próprio jogo.
Um instrumento excepcional surgiu quando este grupo
decidiu usar as anedotas de Jesus para registrar seu debate com
os escribas dos Fariseus. Quando se prepara uma chreiai os
argumentos são os de quem prepara não os dos protagonistas
da chreiai . Assim que o povo de Jesus desenvolveu as chreiai
com argumentos mais elaborados eles preferiram não tomar os
créditos pelos argumentos que encontraram. Ao invés, como na
tradição grega de atribuição de novos ensinamentos ao fundador
da escola, eles deixaram Jesus receber os créditos não só pelas
64
OS ESSÊNIOS E O CRISTIANISMO
chreiai como pelos argumentos em seu favor. Isto resultou em
dar a Jesus dois pronunciamentos em cada chreiai elaborada,
com
a
última
afirmação,
invariavelmente,
marcando
um
pronunciamento da correção de seus pontos de vista.
Assim, ao final da chreiai sobre trabalho no sábado,
Jesus diz, "O sábado foi feito para o homem, não o homem para
o sábado". Assim, intencionalmente ou não, a Escola de Jesus
produziu uma auto-referência de autoridade para seu mestrefundador.
No princípio esta caracterização de Jesus parece frágil,
se não tola, e a lógica da argumentação fraca. Mas, ao combinarse este estilo de auto-referência de Jesus com outros papéis
míticos
para
Jesus,
resulta
um
símbolo
de
autoridade
extremamente impenetrável .
O evangelho de Marcos mostrará isto mais tarde. No
meio tempo, como pode a Escola de Jesus tomar seu espaço no
mundo, tendo se excluído de uma proeminente definição de
judaísmo, definição esta, que aparentemente, foi considerada
suficientemente importante, a ponto de se assumir muito
seriamente o desafio com os Fariseus?
Não sabemos dizer com certeza, pois temos apenas o
evangelho de Marcos como a próxima janela para dentro de seu
pensamento. Olhando através desta janela parece-nos que a
Escola de Jesus passou por um momento de desorientação e
ansiedade no processo de se tornar uma seita independente.
1 – Quando surgiram os Essênios:
65
OS ESSÊNIOS E O CRISTIANISMO
Estamos na Palestina.
Na terra dos Profetas, entre o primeiro século antes do
Cristo e o primeiro século após o Cristo, operam-se grandes
movimentos religiosos.
Agrupamentos diversos nascem da massa popular.
Encontra-se ai os zelotes, sicários, galileus, nazarenos,
batistas, levitas e outros grupos que nasciam por força de suas
aspirações religiosas.
Entre esses, um outro grupo do qual já se tinha
referência muito antiga, desde o lendário Egito, floresce ás
margens do Mar Morto, próximo de Jericó.
São os Essênios.
Entre os anos 150 a.C. e 70 d.C, aproximadamente, os
Essênios foram bem identificados, uma vez que viviam isolados
das demais comunidades, afastados da opulência de Jerusalém.
Preferiam o deserto da Judéia.
Ficaram
poucos
conhecidos,
até
o
encontro
dos
documentos do QUNRAM, no Mar Morto, a partir de 1974.
As ruínas de cinco mosteiros no deserto da Judéia são o
marco de sua existência em passado distante, além de outros
mosteiros dispersos por diversas regiões na Samaria e Galiléia.
2 – Noticias históricas:
Alguns historiadores famosos falam sobre os Essênios.
Entre eles, destacam-se Filon de Alexandria:
Os Essênios são como santos que habitam e muitas
aldeias e vilas da Palestina. Não se unem por clã familiar ou por
66
OS ESSÊNIOS E O CRISTIANISMO
raça, mas sim por meio de associações voluntários, formadas
com intuito de melhor praticar a virtude e o amor entre as
criaturas humanas.
Nas suas casas jamais se houve grito ou tumulto. Cada
um, quando fala, cede a palavra ao outro. Este silêncio causa
grande impressão ao visitante.
Sabem eles moderar a cólera e conservar o equilíbrio.
Cumprem a palavra e sustentam a paz. O que dizem vale do que
um juramento um sacrilégio, porque só precisa jurar quem é
mentiroso.
Os que entram para a comunidade se comprometem a
não prejudicar ninguém; ser fiel com todos, especialmente com
os que tem poder, uma vez que ninguém ocupa cargos sem que
seja pela vontade de Deus.
Vivem muitos anos alcançando facilmente os cem,
possivelmente pela regularidade de vida. Suportam a dor,
fazendo-se fortes contra ela. Sabem que o corpo é perecível,
mas que a alma é imortal, vivendo ela no éter, de onde é atraída
para se ligar aos corpos como se estes fossem prisões.
Separadas da carne, libertam-se e elevam-se.
Muitos conseguem prever o futuro e é raro que se
enganem nas previsões.
Muitos não se casam, porque acreditam que matrimônio
é impedimento à vida simples. Outros, porém, afirmam que os
que não se casam recusam a melhor parte da vida, que é a
propagação da espécie.
A opinião do povo a respeito deles são pessoas
irrepreensíveis e excelentes.
67
OS ESSÊNIOS E O CRISTIANISMO
3 – Aliança com Deus:
Os Essênios não concordavam com os doutores das leis,
que lideravam no templo de Salomão, quando ao sacrifício nas
oferendas no altar da raça.
Preferiam os rituais do batismo e o respeito aos
alimentos, que purificavam e comiam sempre em lugar especial.
Serviam o pão e o vinho, embora ocasionalmente
comessem carne.
A cadeira principal deixavam sempre vazia.
Reservaram-se, à espera do Messias.
Eles eram pacíficos.
Seus bens eram postos em comum e exigiam unidade
doutrinária.
Só falavam de uma espécie de guerra: a dos filhos da
Luz contra os filhos das Trevas, ambos muitos fortes,
empenhando-se em luta constante que se trava no interior de
cada criatura.
Embora descendentes dos hebreus, desligaram-se das
festas tradicionais do judaísmo, como a da Páscoa, dos
tabernáculos e outras mais. Transformaram a sua vida em
vivência litúrgica e não de detinham em inutilidades.
Viviam numa simplicidade muito rara entre as pessoas,
em todas as épocas.
A idéia da Aliança com Deus é profunda e rica entre os
Essênios, sendo, como realmente é, o centro de toda Bíblia,
68
OS ESSÊNIOS E O CRISTIANISMO
porém no seu aspecto mais rico, ou seja, a Aliança como
expressão de amor.
4 – Ordens e afirmações:
Podemos encontrar os Essênios em duas diferentes
ordens: uma de vida monástica, junto ao Mar Morto, e outra
dispersa por toda a Palestina, Ásia e Alexandria, formando
grupos de dez filiados, cada um com um dirigente.
Os grupos próximos têm alguma interdependência,
chegando a somar cinqüenta ou cem.
No
campo
religioso,
eles
representaram
o
não
conformismo típico que combina uma inquietude interior com
disciplina quase fanática. São comparados aos primeiros
cristãos.
O Rei da Prússia, escrevendo a Voltaire, afirma: “Jesus
foi um Essênio”.
Gratz, em sua obra, afirma: “João Batista, era Essênio”.
Edmundo Wilson, jornalista do New York Times, em série
de reportagens sobre os documentos encontrados em 1947, no
Mar Morto, escreve: “O Convento, esse prédio de pedras, junto
ás águas amargas do Mar Morto, com seu forno, tinteiros e
piscinas sacras, túmulos, é, talvez, mais do que Belém e Nazaré,
o berço do cristianismo”
5 – Princípios:
69
OS ESSÊNIOS E O CRISTIANISMO
Os Essênios ensinam a piedade, santidade, vida familiar
e vida civil.
Ensinam a não jurar e não mentir.
Crêem que o homem é a causa de todo bem e de
nenhum mal.
O amor da virtude compreende desprendimento da
riqueza e estabilidade de tudo o que assegure bons costumes.
O amor aos homens exige benevolência, igualdade e
concórdia.
Ninguém possuí uma casa que não possa ser comum.
As vestes podem ser usadas por todos; o alimento para
todos é igual.
Os doentes sem recursos não ficam sem cuidados. Eles
têm, em comum, o que é necessário para tratá-los.
Respeitam os velhos e deles cuidam com suas próprias
mãos, como filhos gratos, ainda mesmo quando não sejam seus
próprios pais.
Habitam em aldeias, evitando as cidades pelas injustiças
a que seus habitantes estão acostumados.
Alguns trabalham na terra e outros nas artes, tornandose úteis a si e aos seus vizinhos. Não se preocupam em ajuntar
prata em ouro, nem grandes parcelas de terra para aumentar os
seus ganhos, contendendo-se com o que lhes forneça o
necessário para a vida.
Consideram grande abundância o Ter-se poucos desejos
e fáceis de serem satisfeitos.
Não há entre eles fabricantes de armas de guerra.
70
OS ESSÊNIOS E O CRISTIANISMO
Entre eles não há escravos; todos são livres; uns já
ajudam os outros. Condenam a escravidão, não apenas porque
destrói a igualdade, mas porque atenta contra o direito da
natureza que, como boa mãe, faz os homens irmãos, não apenas
de nome, mas na realidade.
Desprezam a lógica e as palavras complicadas como
inutilidades para adquirir virtudes. Preocupam-se, no entanto,
com a física e com a astronomia, quando estas ensinam a
existência de Deus e a origem do Universo.
Tem grande cuidado com a moral, tomando como guia as
leis dos antepassados.
Nos fins de semana estudam muito.
Um lê livros e o outro, entre os mais preparados, explica
aquilo que não foi facilmente compreensível, dada à simbologia
usada nos ensinamentos.
6 – Organização:
Os Essênios renovam no deserto de Judá, a experiência
vital da antiga peregrinação israelita nas planícies do Sinai. Sua
vida confirma o profeta Isaias(40.3): VOZ QUE CLAMA, NO
DESERTO, PREPAREI O CAMINHO DE SENHOR.
Entre eles estaria João, o Batista.
Historiadores da época se referem aos Essênios:
Eles se parecem com monges, estão sempre vestidos de
branco, com franjas azuis. Suas ocupações são de índole
71
OS ESSÊNIOS E O CRISTIANISMO
prevalentemente espiritual, sempre com vistas à pureza pessoal.
E ao trabalho com Deus pelas comunidades.
Usam o Pentateuco (O Livro Sagrado) como base, o qual
utilizam com muito respeito. Afastam-se do mal e unem-se no
Torá (O Livro) e nos bens.
Obrigam-se, por compromisso solene, e avançar no
conhecimento.
Eles são destaques aos Instrutores, mais exigem que
estes sejam, igualmente, superiores nos costumes e nos
exemplos. Que pratiquem a Justiça, a Verdade, o Direito,
cultivando ânimo afável e modéstia. Que se mantenham de
espírito contrito, expiando as próprias faltas, pela prática da
justiça.
O poder do Instrutor independente de preparação
cultural. Assim, se não dor capaz de ensinar exemplificando,
qualquer leigo poderá desempenhar as suas funções.
Relatos mediúnicos dizem que a titulação – Essênios –
seria derivada de Essen, filho adotivo de Moisés, a quem o
legislador entregou o seu acervo para “continuidade da tarefa.”
Quanto ao fundador da comunidade, sabe-se apenas que era
conhecido por “Mestre da Justiça”.
7 – O Messias:
Antes dos manuscritos do Mar Morto serem encontrados,
dizia-se que todo povo judeu aguardava o Deus exclusivo da
Palestina. Contudo, após as revelações dos manuscritos, soubese que foi entre leis judeus Essênios que, pela primeira vez, se
72
OS ESSÊNIOS E O CRISTIANISMO
ouvira falar na vinda do Messias Universal, que será Rei, mas
que todas as nações desfrutarão.
O cristianismo, nascido nesse período essênico, sofreu
as influências dessa época. Está patente, portanto, que os
Essênios foram ao que mais participaram na formação dessa
doutrina, o que pode ser visto pela sua conduta e também pelas
instruções que eram os que mais se assemelhavam àquelas
ensinadas por Jesus.
Os Essênios se espalhavam, também, por toda parte,
mesmo sem pertencer aos grupos definidos, afiliados apenas por
costumes e religiosidade.
O tema central Essênio dói sempre a Aliança, vivendo
com profundidade a gratidão. Sentem a manifestação de Deus,
não somente a propósito deles, mas de todos os homens do
mundo.
Poucos respeitam tanto a Aliança com Deus, como os
homens destes grupos.
8 – Origem dos cristãos:
Hempel, 1951, escreveu: Esclarecida a origem dos
cristãos. O cristianismo é apenas Essênio. Essênio ou cristão, dá
no mesmo.
Na terminologia, usos e costumes, característicos,
notam-se grandes semelhanças entre cristãos e Essênios.
Eis algumas:
73
OS ESSÊNIOS E O CRISTIANISMO
Jesus criticava os fariseus, igualmente como fazia João,
o Batista, e os Essênios. A maneira de expressão de João, o
Evangelista, André, Pedro, Natanael, era a forma comum entre
os Essênios.
Os Essênios pregavam a mansidão e a humildade, para
serem agradáveis a Deus. Foram essa, igualmente, lições e
exemplos dados por Jesus.
Os Essênios ensinavam o amor ao próximo como a si
mesmo. Jesus tratou o amor como fundamento entre as
criaturas.
Os Essênios ensinavam o amor ao próximo como a si
mesmo. Jesus tratou o amor como fundamento entre as
criaturas.
Os Essênios pregaram o “espírito da verdade” e a “vida
eterna”. Foram estas também palavras de Jesus.
Os Essênios falaram de um fundamento que não seria
abalado. Jesus chamou a Pedro de rocha que não seria abalada.
Os Essênios têm os hinos das “Bem Aventuranças”, a
idéia central usada por Jesus no Sermão do Monte.
Os Essênios se definem como membros da Aliança,
igualmente como se definiam os discípulos de Jesus. No
Qumran, onde viviam os Essênios, o conselho era formado por
doze membros, como doze foram os Apóstolos. A divisão do pão
e do Vinho pelo Superior, à hora da refeição, nos lembra Jesus.
Punham seus bens em comum. Assim também ensinou
Jesus quando desse ao jovem que o procurou: “Se queres ser
perfeito, vai, vende todas as tuas coisas e segue-me.”
74
OS ESSÊNIOS E O CRISTIANISMO
Jesus manteve o costume do batismo, prática normal
entre os Essênios.
Ambos, Essênios e cristãos, respiram o mesmo clima de
uma única matriz.
Toda história de Israel, sua evolução religiosa, é a base
do Novo Testamento. São derivados do mesmo tronco.
Podemos afirmar, com toda segurança, que os Essênios
prepararam o terreno para a sementeira e desenvolvimento do
cristianismo. Assim, a gratidão dos cristãos é por terem eles
facilitado o caminho.
Observa-se, agora, que os que quiseram ser os filhos da
Luz, e viver como tal, se apagaram quando chegou Aquele que é
a Luz Verdadeira, embora sem o terem, talvez, assim
reconhecido. Porém, mesmo depois que Jesus inaugurou no
Calvário a era de redenção, ainda por quarenta anos o vento
carregou as orações dessa comunidade.
Invadidos
um
dia
pelas
Legiões
Romanas,
apressadamente os Essênios esconderam nas fendas e nas
grutas da região montanhosa, os seus escritos. Foram eles,
nessa invasão, mortos ou dispersos, para não mais voltar às
suas comunidades de trabalho e oração, que agora, descoberta,
põem nova luz na história das religiões.
Tinham, porem, já cumprindo a vocação, segundo Isaias:
“No deserto, preparei os caminhos do Senhor”.
75
OS ESSÊNIOS E O CRISTIANISMO
O CRISTIANISMO
INTRODUÇÃO
O estudo dos primeiros movimentos cristãos está hoje
recebendo muita atenção dos especialistas e existe muito
material moderno desvendando esse passado, tão importante
para o mundo ocidental.
Tudo que sei, foi aprendido nas obras desses brilhantes
professores e estudiosos e apenas transponho aqui, em nosso
idioma, algumas dessas conclusões. Não considero nada como
de minha autoria, coloco em português as pesquisas que li,
estudei e que considero sérias e algumas questões necessitam
ser levantadas, posso estar com estes textos cometendo uma
serie de injustiças, principalmente com relação à figura de Jesus
Cristo, mas o sentido aqui exposto é de tentar mostrar, que após
a morte e sua ressurreição, os fatos podem ter sido manipulados.
Quando nos confrontamos com a idéia de escrever algo
sobre o Novo Testamento acabamos diante de uma situação
parecida com a conhecida estória do ovo de Colombo. O fato é,
que para a maioria das pessoas, o Novo Testamento é
apresentado como prova para o quadro convencional das origens
do cristianismo e o mesmo quadro convencional é tomado como
prova da maneira pela qual o Novo Testamento foi escrito.
O Novo Testamento é normalmente encarado como se
fosse um documento tipo carta-régia criado nos moldes de uma
constituição, como a nossa por exemplo. De acordo com essa
76
OS ESSÊNIOS E O CRISTIANISMO
visão, todos os autores do documento estariam presentes na
aurora
da
nova
religião,
vivido
os
acontecimentos
e
coletivamente escrito seus evangelhos com o propósito de lançar
as bases da Igreja Cristã que Jesus viera para inaugurar. No
entanto, a despeito dessa visão ser largamente disseminada, não
foi o que aconteceu.
Os especialistas localizaram os vários escritos do Novo
Testamento, em várias épocas diferentes e em várias localidades
num espaço de cem anos; das cartas de Paulo nos anos 50 do
primeiro século até os evangelhos de Marcos e Mateus nos anos
70 e 80, os evangelhos de Lucas e João no entorno da virada do
século e os Atos e outras cartas durante a metade do segundo
século indo até 140 ou 150 da Era Cristã.
Um outro complicador para a tradição é que os estudos
nos últimos 600 anos, e os avanços das pesquisas neste século
demonstraram, sem qualquer sombra de dúvida, de que com
exceção das sete cartas de Paulo e do livro das revelações,
escrito por um desconhecido João, os escritos selecionados para
inclusão no Novo Testamento, não foram escritos por aqueles
cujos
nomes
estão
indicados.
Muitos
cristãos
modernos
consideram este fato de difícil compreensão, pois se isso é
verdade, alguém está mentindo.
Uma boa maneira de entender este fenômeno é
considerar que:
- A maior parte da literatura nos primórdios da era Cristã
era anônima;
77
OS ESSÊNIOS E O CRISTIANISMO
- Que o conceito de uma era apostólica pertence ao
segundo século;
- Que a posterior atribuição desta literatura, a nomes
associados com os apóstolos pode ser explicada de uma
maneira que não caracteriza desonestidade.
Não será fácil desmontar o quadro convencional, porque
os textos que deverão ser acessados estarão, intrinsecamente,
interligados com este quadro. Considere-se que os nomes que
temos para estes textos estão ligados às origens do mito do
Cristianismo e que não dispomos de outros nomes para
referenciá-los. Assim, teremos que nos referir a Marcos quando
nos referirmos ao "autor do evangelho de Marcos", e a Mateus
quando nos referirmos ao "autor do evangelho de Mateus". Existe
também uma outra razão pela qual não será fácil deixar de lado
este quadro convencional.
É que esta visão tradicional é suportada pela composição
do Novo Testamento e este tem sido o único conjunto de textos
disponível para imaginar e "documentar" este quadro, aliado ao
fato de que os cristãos investiram muito neste cenário e este
investimento tomou a forma de uma crença de que os
evangelhos são um relato histórico da verdade.
Aceitar o fato de que os cristãos antigos estiveram
engajados na elaboração de um mito, pode ser difícil para os
cristãos modernos. A conotação usual do termo mito é quase,
inteiramente, negativa e quando usada para descrever o
conteúdo
dos
evangelhos
do
Novo
Testamento
haverá,
certamente, um clamor. Isto porque, diferentemente, de quase
78
OS ESSÊNIOS E O CRISTIANISMO
todos os mitos que começam com um, "era uma vez", o mito
cristão é colocado numa época e num local histórico. Portanto,
parece ser obrigatório a crença de que os eventos dos
evangelhos realmente aconteceram e que a estória não pode ser
um "mito".
Deve ser notado, e pode ajudar o entendimento, que:
- A montagem de mitos é uma atividade social normal e
necessária;
- Os mitos, elaborados pelos antigos cristãos são devido
mais a empréstimo e rearranjo de mitos admitidos como
verdadeiros, nas culturas do contexto, do que uma especulação,
simplesmente;
- Que os mitos que eles montaram faziam sentido, não
somente para sua época e circunstâncias, mas também pelas
experiências sociais das quais eles eram revestidos.
Como mitos podem fazer sentido?
E que tipo de sentido faz o mito cristão?
Esses são os desafios que temos para mostrar. E, para
vencermos este desafio, necessitaremos voltarmos no tempo,
investigarmos as condições dos primeiros movimentos cristãos
em relação ao rompimento da tradição dos fariseus e o grande
problema que os judeus tinham em mãos quando o segundo
templo foi destruído em 70 d.C. Não somente a sua história
antiga contida nos livros de "Moisés", mas também um imenso
edifício literário desde o período helenista documentava o
79
OS ESSÊNIOS E O CRISTIANISMO
investimento intelectual dos judeus no estado-templo como
sendo esse o próprio objetivo da história humana, desde a
fundação do mundo.
Os cristãos também tinham um problema. Eles não
tinham o direito de assumir a história dos judeus como a sua
própria história. Mas os primeiros judeus-cristãos gostavam de se
sentir, eles mesmos, como o povo de Deus, herdeiros das
promessas de Israel, ou mesmo o novo Israel.
Comparem com o discurso atual da Igreja Universal do
Reino de Deus, que a partir de um crescimento espantoso, se
sente credenciada na comunidade evangélica, a representar um
novo Deus vivo, não o Deus da Bíblia, do passado, e assim,
reivindicar para o seu novo templo no Rio de Janeiro, sede
mundial, o título de templo do novo Israel. De certa forma, a
IURD está assumindo uma posição análoga aos primeiros
cristãos que rompiam com a antiga tradição, incluindo, em seu
ritual
características
únicas
dentro
das
denominações
evangélicas.
Assim sendo, todos os primeiros mitos sobre Jesus,
simplesmente foram tentativas de pintá-lo, bem como seus
seguidores, com cores aceitáveis ao Israel épico. Mas essas
tentativas eram fantasiosas, de momento e incapazes de
competir com a lógica do épico judaico. O épico judaico era uma
história cujo objetivo era o estabelecimento do estado-templo e
não uma congregação cristã.
Quando o templo desabou, entretanto, e a lógica do épico
ficou em total desarranjo, os cristãos tiveram a chance de revisálo em seu favor. Foi então que a revisão do épico judaico tornou80
OS ESSÊNIOS E O CRISTIANISMO
se o maior foco para os primeiros redatores do mito cristão.
Exemplos disso podem ser vistos nos evangelhos do Novo
Testamento, todos eles iniciam suas estórias de Jesus ao final da
história de Israel. Isto aconteceu durante o fim do primeiro
século, período no qual a mitologia de Jesus como filho de Deus
brotou entre muitas comunidades cristãs. E então, do meio do
segundo século em diante o barulho começou. Tanto judeus
como cristãos queriam fazer a leitura da história de Israel em seu
favor e ambos necessitavam das escrituras judaicas.
OS MOVIMENTOS EM TORNO DE JESUS
Segundo Burton Mack, antes do estabelecimento do novo
culto em torno de Jesus, precisamos analisar os movimentos que
antecederam
ao estabelecimento desse culto e que se
convencionou denominar de movimentos de Jesus. Neste ponto
é importante frisar duas correntes principais. A primeira na qual
Mack se encaixa que é a de considerar o nascimento destes
movimentos em torno da figura de uma pessoa histórica que
seria Jesus, embora Mack afirme não ser necessária a figura de
um Jesus Histórico para explicar estes grupos.
Nesta abordagem pode-se considerar que estamos
novamente diante do ovo de Colombo. Historiadores como Earl
Doherty, não aceitam essa posição, inclusive imputando Burton
Mack de culpa, por usar a própria estratégia que critica nos
historiadores ditos cristãos, embora seja ele mesmo, Mack, um
cristão. A outra corrente não aceita que esses movimentos
partiram de uma figura, no caso Jesus, e sim que todos esses
81
OS ESSÊNIOS E O CRISTIANISMO
grupos, produzindo visões díspares entre si a partir de uma
matriz comum de ingredientes, acabaram por convergir numa
figura composta de um suposto fundador que refletia os vários
grupos sectários e que se tornou a corporificação de todos os
elementos do período.
Neste livro estaremos abordando a visão de Mack,
contrapondo as argumentações contrárias quando existentes e
sempre nos referiremos às citações, especialmente em Q e no
evangelho de Tomé, como sendo de Jesus, embora cientes que
muitas destas, senão a maioria, foi atribuída a Jesus como era do
costume das escolas no estilo grego de atribuir a sabedoria
evoluída, a seu fundador.
As culturas entraram em conflito nos tempos GrecoRomanos, e o mediterrâneo Oriental explodia com uma mistura
pesada e volátil de povos, poderes e idéias. Três modelos de
sociedade estavam na cabeça de todos durante a era GrecoRomana (segundo século Antes da Era Cristã até segundo
século E.C.); o antigo estado-templo Judeu, as cidades-estado
da Grécia (polis) e a república Romana.
A Galiléia foi governada pelos reis de Jerusalém somente
duas vezes nos mil anos que precederam a época de Jesus, por
breve período de tempo. No início dos reinos de David e
Salomão, por apenas 80 anos, posteriormente foi governada por
Tiro,
Samária,
Damasco,
Assíria,
Neo-Babilônia,
Pérsia,
Ptolomeus, e Seleucidas antes de ser retomada pelos Judeus em
104. Não há nada que sugira que os Galileus estavam felizes
com essa anexação. O povo da Galiléia era Galileu e não Sírio,
Samaritano ou Judeu.
82
OS ESSÊNIOS E O CRISTIANISMO
Durante o período Helenista, A Galiléia foi introduzida na
linguagem, filosofia, arte e cultura Gregas, através da fundação
de cidades no modelo grego em localizações estratégicas acima
e abaixo do vale do rio Jordão, a leste do mar da Galiléia, ao
longo da costa marítima a oeste e, eventualmente, dentro da
própria Galiléia. Durante a época de Jesus havia cerca de doze
cidades Gregas dentro de um raio de 40 quilômetros de sua
cidade natal, Nazaré.
Sabemos, que a tentativa Grega de exportar Atenas foi
mal sucedida. Atenas, não era um produto de exportação. Ao
invés de realçar as grandes tradições da Grécia Clássica, as
cidades Helenistas geraram confusão ideológica e conflito
cultural. Desta maneira a mistura de povos, culturas e poderes
políticos era a característica mais óbvia e desafiadora daqueles
tempos.
Durante a dominação dos romanos o quadro não mudou,
pois embora estes sempre se mostrarem bons em manter a
ordem, e no desenvolvimento de melhorias com trabalhos
públicos, isto não era suficiente para criar uma cultura comum.
Nenhum dos povos subjugados era fascinado com a história,
religião e cultura romanas. Assim, a cidade do Tibre era
respeitada, mas não amada. Os romanos não inspiravam
lealdade e o império que criaram não tinha uma alma cultural. Lei
e ordem nunca foram suficientes para manter um povo
dançando.
O detalhamento do caldeirão cultural daqueles tempos
demandaria uma digressão fora do escopo deste pequeno livro e,
83
OS ESSÊNIOS E O CRISTIANISMO
portanto, limitaremos a registrá-la, pois grande será o seu papel
na criação do mito cristão.
Jesus nasceu na Galiléia e aparentemente tinha alguma
educação a julgar por esses movimentos que o lembram como
seu fundador. Porém, é totalmente impossível relatar-se alguma
coisa dele como pessoa, e muito menos escrever sua biografia.
As "memórias" sobre ele diferem muito e todas possuem
características mitológicas e o melhor que se pode fazer é
ensaiar-se algumas conclusões, a partir dos ensinamentos
atribuídos a ele.
Estes ensinamentos pertencem aos movimentos que se
iniciaram em seu nome. Temos que inferir que tipo de mestre era
ele, a partir dos ensinamentos que foram desenvolvidos naqueles
movimentos. Ele com certeza tinha alguma intelectualidade,
porque os ensinamentos dos movimentos derivados dele são
carregados de idéias e pontos de vistas penetrantes. Ele não
criou um programa social para os outros seguirem ou uma
religião que sugerisse que os seguidores o considerassem um
Deus. Ele simplesmente falava coisas mais claras do que o
costume e fazia sentido quando falava da vida em seu mundo,
devendo com isto ter atraído outras pessoas, a juntarem-se ao
seu mundo.
O teor dessas falas pode ser visto nos ensinamentos de
Jesus que seus seguidores preservaram. Os ensinamentos são
na verdade uma coleção de aforismos sentenciosos, que
atingiram o coração das questões éticas. Uma análise profunda
desses aforismos revela uma interveniência de dois temas que
marcam a genialidade do movimento.
84
OS ESSÊNIOS E O CRISTIANISMO
O primeiro é um desafio bem humorado e irritante
destinado a empreender uma contracultura no estilo de vida.
Esses desafios eram lançados com toda seriedade, mas
marcados pelo humor. A mais próxima analogia desse tipo de
convite, para um tipo de vida fora da corrente principal, é
encontrada no discurso Cínico da época.
Um outro tema é o interesse em um conceito social
chamado "O Reino de Deus". Este conceito não foi trabalhado
com nenhuma clareza, mas da maneira como foi usado mostra
alguma coisa de visão social nos ensinamentos de Jesus. O
Reino de Deus referia-se a uma sociedade ideal, imaginada
como alternativa ao modo pelo qual o mundo estava vivendo sob
o domínio de Roma.
É interessante notar que, nesta fase, o Reino de Deus
dos ensinamentos de Jesus não era uma projeção apocalíptica
ou de um paraíso celeste de um desejo extramundo. Era
impulsionado por um desejo de imaginar de que deveria haver
uma melhor maneira de viver. Pelos aspectos culturais
mencionados acima a Galiléia parecia ser um lugar perfeito para
experimentos de crítica social, e tentativas de uma melhor
maneira de viver. Assim, os ensinamentos de Jesus podem ser
descritos como uma combinação criativa destes dois temas, ou
um desafio para os indivíduos explorarem uma noção de
alternativa social.
Se assim era, o gênio de Jesus foi deixar que a centelha
se difundisse entre duas sensibilidades culturais diferentes, a
Grega e a Semítica. Todos os ingredientes essenciais estavam
presentes: crítica social, visão alternativa social, soberania divina
85
OS ESSÊNIOS E O CRISTIANISMO
e virtude pessoal. E, todavia, nada estava presente a não ser
idéias. Nada tinha sido explicitado. Tudo havia sido deixado para
mais conversas, conversas e experiências com as novas idéias.
E isto, foi exatamente, o que aconteceu. As conversas
sobre o Reino começaram com os ensinamentos de Jesus e
então atraíram cada vez mais pessoas. Não podemos saber ao
certo de que maneira esses grupos se formaram e como o
movimento do reino se espalhou de um lugar a outro. O que
sabemos é que, quando os escritos sobre Jesus começaram a
aparecer, as conversas sobre o reino resultaram na formação de
diferentes formas de associação. E então uma nova religião
começou a nascer.
Os movimentos de Jesus começaram na Galiléia, durante
os anos 30 e 40 do primeiro século da E.C. Grupos de pessoas
se juntaram em torno da combinação de três novas idéias que
estavam pairando no ar, desde a ruptura dos traços culturais
tradicionais da era Greco-Romana.
A combinação dessas três idéias gerava um grande
excitamento social.
A primeira era a noção vaga de uma sociedade perfeita
conceituada como um reino. Esta era uma noção usada por
muitos grupos para idealizar uma maneira melhor de viver. O
povo de Jesus se agarrou a esta idéia e agia como se o reino
que eles imaginavam fosse uma possibilidade real, a despeito
dos romanos. Eles o chamavam, de Reino de Deus.
A segunda idéia, era de que qualquer indivíduo, não
importasse seu extrato social, ou capacidade inata era talhado
para o reino. O povo de Jesus dizia: "venha, você pode, você
86
OS ESSÊNIOS E O CRISTIANISMO
pode viver como se pertencesse ao reino de Deus" e "Se você
vier, ou agir como tal, o reino de Deus, certamente, se espalhará
por todo o mundo".
A terceira idéia, era uma combinação das duas
anteriores. Consistia na idéia nova de que a mistura de povos,
era exatamente o que o reino de Deus deveria buscar.
Que poderoso conceito social deve ter formado esta
combinação de idéias, um corte nos limites sociais e culturais,
colocando abaixo um enorme apelo individualista com um
objetivo, inteiramente, social além de insistir que a ponte entre
um ideal inacreditável e sua materialização social poderia ser
construída.
E assim, o movimento de Jesus começou. Nos primeiros
quarenta anos somos capazes de identificar, pelo menos sete
correntes diferentes dentro do movimento de Jesus, embora elas
pudessem ser em um número bem maior. Temos sorte de
sabermos alguma coisa, pois esse era um período experimental
onde os grupos se expandiam tão, rapidamente, quanto
mudavam seus pontos de vista. No início, ninguém pensou em
registrar nada, além de existir muito pouco a registrar que não
fosse rumor ou conversa informal. O que temos escrito desse
período, chegou a nossos dias graças a uma combinação de
puro acidente histórico com a laboriosa investigação dos
estudiosos.
O acidente histórico consiste no fato de que algumas
tentativas de se escrever as coisas e compartilhar idéias foram
salvas, embelezadas e, eventualmente, retrabalhadas por
escritores posteriores, cujos escritos acabaram por serem
87
OS ESSÊNIOS E O CRISTIANISMO
incluídos no Novo Testamento. Se isto não tivesse acontecido, a
maior parte do registro das memórias do primeiro período teriam
se perdido para sempre, porque nem os primeiros movimentos,
nem depois a igreja estavam interessados em manter essas
memórias antigas vivas.
Segundo
Mack:
do
período
inicial
temos
alguma
evidência documental que nos permite identificar cinco diferentes
grupos do povo de Jesus, além do grupo chamado "Família de
Jesus" do qual temos apenas algumas poucas indicações e a
Congregação de Cristo, que falaremos mais tarde. Mack se
refere aos cinco grupos, dentro do movimento de Jesus como:
- A Comunidade Q, a qual produziu Os Evangelhos de
citações Q;
- A Escola de Jesus, que produziu as estórias tipo
pronunciamentos pré-Marcos;
- Os Discípulos Verdadeiros, que produziram o evangelho
de Tomé.
- A Congregação de Israel, que produziu o conjunto de
estórias de milagres pré-Marcos;
- As Colunas de Jerusalém, sobre as quais, temos
apenas o relato de Paulo, na carta aos Gálatas.
Cada um destes grupos difere dos outros de forma
notável, mas todos eles compartilham algumas características.
Uma particularidade comum já foi indicada, qual seja o
investimento na idéia do Reino de Deus e o fato de todos
estarem engajados na formação de grupos. Outra característica
88
OS ESSÊNIOS E O CRISTIANISMO
que
eles
podem
ter
compartilhado,
embora
de
difícil
documentação em cada grupo, é a prática de reuniões para
fazerem refeições juntas e, obviamente, todos consideravam
Jesus como o fundador de seu movimento. Mas a despeito das
características
comuns,
cada
grupo
desenvolveu-se
diferentemente e as visões e práticas diferentes aplicadas são
umas evidências de que Jesus não legou um programa para o
lançamento de uma nova religião. A estrada de Jesus até a
religião Cristã que finalmente emergiu no quarto século, com o
mito de Jesus como filho de Deus solidamente colocado, é um
caminho longo e tortuoso. O Cristianismo não nasceu de uma
concepção imaculada. Foi o produto de miríades de momentos
de trabalho intelectual e negociação de acordos sociais, do povo
investido dessa experiência.
Esta descoberta tem sido difícil de ser aceita por muitos
Cristãos. Isto porque a idéia tradicional do começo do
Cristianismo coloca Jesus sabendo, antecipadamente, o que se
espera dele e dos seus discípulos, na tarefa de estabelecer a
religião Cristã. Nenhum grupo primitivo de Jesus encarava Jesus
como o Cristo, ou o próprio grupo como uma igreja Cristã. É
muito importante compreender que esses movimentos se
desenvolveram como escolas de pensamento, e não como
comunidades religiosas do tipo que se juntam em celebração ao
mito de Cristo. É muito importante nessa fase que o retrato de
Jesus mostrado nos evangelhos seja deixado de lado. Esta
imagem só ocorreu quando Marcos escreveu sua estória de
Jesus, depois da guerra Romano-Judaica.
89
OS ESSÊNIOS E O CRISTIANISMO
A COMUNIDADE Q
Segundo Burton L. Mack, os escritos da comunidade "Q"
são os primeiros registros que temos dos movimentos primitivos
de Jesus, e é um texto verdadeiramente precioso. Eles
documentam a história de um grupo específico do movimento
primitivo de Jesus, por um período de cerca de 50 anos, desde a
época em que Jesus tinha 20 anos até após a guerra RomanoJudaica nos anos 70. O notável sobre este grupo é que ele se
desenvolveu dentro de uma comunidade, firmemente, interligada
e produziu uma vasta e grandiosa mitologia, simplesmente
atribuindo, mais e mais ensinamentos a Jesus. Eles não
precisaram imaginar Jesus no papel de um Deus ou contar
estórias sobre sua ressurreição dos mortos para honrá-lo como
um mestre. Em outras palavras eles não eram cristãos eram
simplesmente, uns grupos de Jesus.
OS ENSINAMENTOS DE “Q”
As camadas primitivas dos ensinamentos de Jesus em Q
são as menos interpoladas de todas as suas citações em
documentos existentes. Isto significa, que Q nos coloca mais
próximos do Jesus Histórico do que jamais poderemos estar.
Portanto, é enorme a importância de Q e do desafio
sobre a concepção popular das origens Cristãs é claro. Se a
visão convencional dos primórdios do Cristianismo está certa,
como podemos explicar esses pioneiros de Jesus. Será que não
90
OS ESSÊNIOS E O CRISTIANISMO
entenderam a mensagem? Eram ignorantes do evangelho da
salvação ou os repudiavam?
Se, entretanto, os primeiros seguidores de Jesus
entendiam o propósito do movimento, da maneira descrita em Q,
como explicaremos a aparição dos cultos de Cristo, as
fantásticas mitologias dos evangelhos narrativos e o eventual
estabelecimento do culto e da religião Cristã?
Q nos força a repensar as origens do Cristianismo como
nenhum outro documento dos primeiros tempos. Após a
descoberta de Q, os evangelhos narrativos não poderia mais ser
visto como relatos dignos de confiança sobre os eventos
históricos que culminaram com o estabelecimento da fé Cristã.
Temos agora que considerar os evangelhos como resultados da
elaboração do primitivo mito Cristão. Como já dissemos, Q força
essa questão, porque não concorda com os relatos dos
evangelhos narrativos.
Q é oriundo da palavra alemã Quelle, que significa
"fonte". O texto obteve este nome quando historiadores
descobriram que tanto Mateus como Lucas usaram uma coleção
de citações de Jesus como uma de suas "fontes" para seus
evangelhos, sendo a outra fonte o evangelho de Marcos. Os
estudiosos sabiam a mais de 150 anos que alguma coisa como Q
tinha que ter existido, mas apenas recentemente tiveram a
certeza. Apesar de tudo, todos sabíamos qual o conteúdo do
documento porque os seus ensinamentos estavam lá, nos
evangelhos de Mateus e Lucas.
Uma
vez
que
não
tínhamos
um
manuscrito
Q
independente que teria sido perdido na balbúrdia do início do
91
OS ESSÊNIOS E O CRISTIANISMO
segundo século, um conhecimento profundo de Mateus e Lucas
seria necessário caso quiséssemos reconstruir o texto original
que eles tinham em comum. Foi uma surpresa, quando alguns
especialistas curiosos, começaram a reconstruir um texto
unificado
e
olharam
Q
como
uma
peça
de
literatura
independente, uma peça de literatura que tinha conduzido um
movimento de Jesus por meio século, antes de Mateus e Lucas
sequer pensarem em mesclá-lo com a estória de Marcos sobre
Jesus.
Um mundo Cristão, inteiramente, diferente veio à tona.
Uma vez que o texto de Q não é encontrado
separadamente, em nenhuma cópia do Novo Testamento,
teremos que nos referir ao seu conteúdo citando o capítulo e
versículo no evangelho de Lucas. A preferência de Lucas sobre
Mateus é devida ao fato de que Lucas não alterou a seqüência e
terminologia das citações tanto quanto Mateus alterou (assim Q
11:1-4 = Lucas 11:1-4).
Q coloca os primeiros povos de Jesus no foco, e o
quadro é tão diferente daquele que todos sempre imaginaram
que se torna surpreendente. Ao invés de pessoas se reunindo
para adorar um Cristo, como nas congregações Paulinas, ou
preocupando-se com o que significa ser um seguidor de um
mártir, como nas Comunidades de Marcos, o povo de Q estava,
completamente, dedicado às questões presentes sobre o Reino
de Deus e com o comportamento necessário para alguém
abraçá-lo seriamente.
Estudos recentes identificaram três camadas de material
de instrução em Q. Cada uma dessas camadas corresponde a
92
OS ESSÊNIOS E O CRISTIANISMO
um estágio na história da comunidade Q. Isto permite rastrear a
história dos primeiros movimentos de Jesus acompanhando as
mudanças nas referências a respeito da idéias do Reino de
Deus. Nenhum outro texto ou conjunto de textos do primeiro
século nos preenche com as histórias inteiras de uma
comunidade "Cristã" primitiva. Os estudiosos agora se referem a
essas camadas como Q1, Q2 e Q3 .
A camada mais antiga, Q1, consiste, extensivamente, das
citações sobre a sabedoria de ser um verdadeiro seguidor de
Jesus. Q2, por outro lado, introduz pronunciamentos de
julgamentos proféticos e apocalípticos sobre aqueles que se
recusarem a ouvir os ensinamentos de Jesus. E, finalmente, Q 3
registra uma retratação ao desgaste de encontros públicos para
tratar de idéias de paciência e piedade para os iluminados
enquanto esperam seu momento de glória num certo futuro no
fim da história humana.
Um fato notável sobre o material de Q é que ele advoga
por um estilo de vida evolucionário, transformando aforismos em
prescrições de comportamento. Uma injuriosa recriminação tal
qual "Deixa os mortos sepultarem os seus mortos, tu vai e
anuncia o reino de Deus", pode ser isolada no núcleo de um
pequeno aglomerado de citações, tornando-se um princípio de
comportamento adequado ao novo reino. Neste caso, o
comportamento recomendado é simplesmente o compromisso
com o reino (Q 9:57-62).
Podemos identificar sete temas no bloco Q:
93
OS ESSÊNIOS E O CRISTIANISMO
A maior unidade (Q 6:20-49) consiste de ensinamentos
de Jesus a respeito de a quem pertence o reino de Deus ("os
pobres, famintos, os que choram"), e como tratar os outros (“o
que quereis que os homens vos façam, fazei-lhes o mesmo a
eles"), e sobre julgamentos aos outros ("não julgueis e não sereis
julgados");
O segundo bloco de Q1 é sobre tornar-se um seguidor e
trabalhar para o reino de Deus (Q 9:57-10:11);
O terceiro é sobre ter confiança em pedir a Deus (o Pai)
(Q 11:1-13);
O quarto diz que não se deve ter temor de falar (Q 12:27);
O quinto explica que não deve existir preocupação com
alimentação, vestuário e que o desejo por coisas pessoais é
tolice (Q 12:13-34);
O sexto ensina que como a semente e o fermento, o
reino de Deus crescerá (Q 13:18-21);
O sétimo fala sobre os encargos de ser um seguidor e
sobre as conseqüências de não levar o movimento a sério (Q
14:11, 16-24, 26-27, 34-35).
Se datarmos esse material em cerca de 50 d.C., na altura
dos primeiros vinte anos do movimento poderá se verificar, o que
o povo de Jesus vinha fazendo. Eles estavam profundamente
envolvidos em definir, exatamente, o que significava pertencer à
escola de Jesus. Com isto, eles despenderam um grande esforço
intelectual para encontrar argumentos para um determinado tipo
de atitudes e ações consideradas fundamentais para alcançar-se
o reino de Deus.
94
OS ESSÊNIOS E O CRISTIANISMO
Podemos definir o perfil do estilo de vida que eles
estavam recomendando? Se fizermos uma lista dos imperativos
que estão próximos aos núcleos das menores unidades de Q 1
podemos começar a enxergar que um tipo de programa estava
na mente dos primeiros povos de Jesus.
A lista inclui os seguintes imperativos ou regras de
comportamento:
Ame os seus inimigos (Q 6:27);
Se apanhar numa face ofereça a outra (Q 6:29);
Dê a todos que pedem (Q 6:30);
Não julgue e não sereis julgados (Q 6:37);
Remova primeiro a trava do seu próprio olho (Q 6:42);
Deixe os mortos enterrarem os seus mortos (Q 9:60);
Eis que vos mando como cordeiros ao meio dos lobos (Q
10:3);
Não leveis bolsa, nem alforje, nem sandálias (Q 10:4);
Dizei-lhes: É chegado o reino de Deus (Q 10:9);
Pedi e dar-se-vos-á (Q 11:9);
Não estejais apreensivos pela vossa vida (Q 12:22);
Buscais antes, o reino de Deus (Q 12:31).
Um programa com muitos riscos parecia estar em
andamento. Ricos, mau uso da autoridade e poder, hipocrisias e
pretensões, iniqüidades sociais e econômicas, injustiças e até
mesmo, lealdades familiares normais estavam, inteiramente, sob
suspeita.
O
reino
ideal
estava
95
sendo
estabelecido
em
OS ESSÊNIOS E O CRISTIANISMO
antagonismo aos costumes tradicionais, através da orientação de
que os seguidores de Jesus deveriam praticar a pobreza
voluntária, o afastamento dos laços familiares, a renúncia de
bens, a coragem de falar e aplicar a não-retaliação.
Um tremendo programa. Fazia esse programa algum
sentido?
A resposta é afirmativa. O estilo de vida do povo de
Jesus guardava estrita semelhança com a tradição grega da
filosofia popular característica dos Cínicos. Os Cínicos também
promoveram um afrontoso estilo de vida como maneira de criticar
os costumes convencionais e os temas dos dois grupos,
Cínicos e povo de Jesus, eram bastante coincidentes. Os
Cínicos ajudaram ao homem comum a ganhar alguma percepção
sobre a maneira como seu mundo funcionava, desta forma as
pessoas não encontraram problemas para entender o que o povo
de Jesus estava dizendo.
A diferença entre o povo de Jesus e os Cínicos era a
seriedade com a qual o movimento de Jesus encarava a nova
visão social do reino de Deus. Isto era reflexo da preocupação
judaica por uma sociedade trabalhadora real, como sendo o
contexto necessário para qualquer bem-estar individual. Foi esse
interesse em explorar uma visão social alternativa que afastou o
movimento de Jesus de um mero apelo Cínico. Pode-se ainda
detectar algum humor do tipo Cínico no estilo aforístico das
citações:
"Porque onde estiver o vosso tesouro ali estará também o
vosso coração" (Q 12;34);
96
OS ESSÊNIOS E O CRISTIANISMO
"Pode porventura o cego guiar o cego" (Q 6:39);
"Porque qualquer que pede recebe" (Q 11:10).
Assim a fase inicial dos movimentos de Jesus devem ter
sido caracterizada por um espírito mais brincalhão do que aquela
caracterizada pelo material Q1 que chegou até nós.
Mas o processo de formação dos grupos, e a fase de agir
seriamente como grupos, estabeleceu uma atitude não-Cínica.
Todos os blocos do material de Q1 revelam uma tentativa
estudada de expressar um claro conjunto de códigos para o
movimento de Jesus como uma formação social, códigos estes
que giravam em torno de definir quem, realmente, pertencia ao
reino.
As instruções Q 10: 1-11, por exemplo, são direcionadas
para orientar um comportamento adequado quando se tivesse
que representar o movimento de Jesus em outra cidade. Estas
instruções mostram que existia uma rede de pequenas
assembléias de grupos, que poderia ser considerada como
suporte ao movimento. Assim, o período inicial de tentar um novo
reino por intermédio do estilo tipo Cínico, evoluiu para uma bem
mais complexa empreitada. O foco não estava somente no
estabelecimento de uma lista de códigos para definir um
verdadeiro
discípulo,
mas
em
estabelecer
padrões
para
reconhecimento e para os relacionamentos autênticos dentro da
comunidade dos companheiros seguidores de Jesus. A formação
social do povo de Jesus e a visão social do reino de Deus
começaram a se espelhar uma na outra.
97
OS ESSÊNIOS E O CRISTIANISMO
A motivação em Q2 é, drasticamente, diferente. O
processo de formação social tinha pagado o seu preço. Famílias
tinham sido separadas, um código de comportamento estrito
tinha sido estabelecido pelos demais Judeus para censurar ou
levar ao ostracismo o povo de Jesus, algumas cidades os
incitavam a se afastarem e alguns membros antigos decidiram
que o estresse era muito grande. A lealdade era nessa hora o
apelo principal, e alguns seguidores de Jesus tiveram que decidir
entre a família e o movimento. Aqueles que permaneceram fiéis,
a despeito das tensões sociais, encontraram novas razões para
dizer sim ao movimento de Jesus, mas a maioria dessas razões
era o lado secundário de argumentos extravagantes de
comparação com aqueles que eram considerados do lado errado.
"Mas ai de vós fariseus. Vocês são como sepulturas
bonitas por fora, mas cheia de poluição por dentro" (Q 11:42; cf
Mateus 23:27).
"E digo-vos que mais tolerância haverá naquele dia para
Sodoma do que para aquela cidade" (Q 10:12).
Assim, ao invés do estilo de crítica social através dos
aforismos alegres, característicos dos primeiros tempos de
experimentação social, ou mesmo do tom mais sério de instrução
que definiu o posterior desenvolvimento do povo de Jesus, a
comunidade Q adotou uma postura firmemente judicatória em
relação ao mundo. Pronunciamentos apocalípticos ameaçadores
do juízo final eram dirigidos contra aqueles que recusavam o
98
OS ESSÊNIOS E O CRISTIANISMO
programa do reino. E assim o tempo para a completa realização
do reino foi adiado para o fim dos tempos (eschaton).
Os conflitos sociais refletidos em Q provavelmente
tiveram lugar durante os anos 50 e 60, embora algumas das
citações seriam de melhor entendimento como uma linguagem
cunhada nas sombras da guerra Romano-Judaica. Com este tipo
de linguagem soando em seus ouvidos, os escribas do
movimento de Jesus tiveram que rever seus manuais de
instrução sobre Jesus. Eles mantiveram os livros antigos de
instruções e sabedoria ética que hoje identificamos como Q,
porque esses haviam se tornado em ensinamento padrão para a
comunidade. Mas adicionaram material judicatório e profético
para promover o enquadramento na nova motivação. O novo
manual foi arranjado de maneira cuidadosa, tecendo o material
apocalíptico e judicatório no conjunto primitivo de instruções,
dando a impressão que o material original tinha sido preparado
com o juízo final em mente.
Entretanto, dois problemas conceituais tinham que ser
resolvidos para que essa revisão fosse realizada. O primeiro era
o fato de que o povo de Jesus tinha se acostumado a encarar
Jesus como um mestre de sabedoria e agora tinham que
imaginá-lo como sendo também um profeta apocalíptico. Isto
requeria uma grande mudança na caracterização.
O outro problema era que, tendo experimentado um
fracasso adiando a realização de sua visão até a data da
justificação, a comunidade tinha agora a obrigação de estar bem
segura de estar no caminho certo. Isto requeria um horizonte de
99
OS ESSÊNIOS E O CRISTIANISMO
história bem mais vasto do que a comunidade jamais tinha
considerado ser necessário.
Ambos os problemas foram resolvidos com revisões
imaginativas da figura de Jesus e do seu papel na história épica
de Israel.
Estas revisões foram engenhosas.
O primeiro movimento foi introduzir a figura de João
Batista
como
profeta
do
julgamento
e
pregador
do
arrependimento (Q 3:7-9).
O segundo movimento foi João prever "aquele que virá"
quem ajuntará o trigo no seu celeiro, mas queimará a palha com
fogo que nunca se apaga“. (Q 3:16-17).
Então, esses escribas deixaram João e Jesus falarem um
sobre o outro para ver o que cada um sabia do outro (Q 7:18-19,
22-28, 31-35). Como os escribas imaginaram, Jesus reconhece
João como o último dos profetas de Israel e assim "aquele que
virá", e João previu um ainda "maior" para vir, o qual,
obviamente, era Jesus. Jesus era "maior", de acordo com os
escribas, porque ele era tanto um sábio como um profeta. Ele era
um sábio pelo virtuosismo de seus ensinamentos em Q. Ele era
um profeta em virtude dos seus julgamentos apocalípticos que
breve seriam ouvidos de seus lábios.
A possibilidade espantosa oferecida por essa simples
história imaginária era que, como filho da sabedoria, Jesus
poderia saber o que Deus teria desejado desde o início da
criação. E como um profeta apocalíptico ele poderia saber o que
aconteceria no final dos tempos.
100
OS ESSÊNIOS E O CRISTIANISMO
Resultado:
Jesus tornou-se o vidente da história passada e o profeta
do fim da história. Seus seguidores poderiam agora sentirem-se
seguros que eles estavam, exatamente, onde deveriam estar,
unidos com o grande plano de Deus para Israel e prontos para
assumir seus lugares quando o julgamento final ocorresse.
Esta solução engenhosa para seus problemas tem que
ser julgada como um golpe de gênio na criação do mito, não
importando o que se pense propriamente sobre o mito. Sobre o
João Batista histórico e sua relação com esse movimento, os
estudiosos ainda estão quebrando a cabeça entre várias opções.
O fato importante para nossos propósitos é que João entrou na
cena da imaginação da comunidade Q sobre Jesus como um
segundo estágio na criação do mito, de maneira a redesenhar o
próprio papel de Jesus.
As adições de Q foram feitas algum tempo depois da
guerra
Romano-Judaica.
Elas
incluem
o
lamento
sobre
Jerusalém (Q 13:34-35), a estória da tentação de Jesus (Q 4:113), afirmações sobre a importância da lei Mosaica (Q 16:16-18)
e a promessa final aos fiéis:
"E vós sois os que tende permanecido comigo sentareis
no trono, julgando as doze tribos de Israel" (Q 22:28-30).
Q não é uma grande revisão do manual, mas introduz
algumas novas idéias sobre o relacionamento do povo de Q com
a história de Israel, e elevou a mitologia de Jesus ao nível de um
101
OS ESSÊNIOS E O CRISTIANISMO
ser divino que poderia ser imaginado conversando com Deus
como seu Pai e debatendo com Satanás como seu tentador. O
Tópico em ambos os casos era a própria "autoridade de Jesus
sobre todo o mundo" (Q 4:6-7).
Tudo parece crer que a poeira do período Q 2 havia
baixado e que o povo de Q teria afinado o tom de suas respostas
àqueles que lhes eram críticos. Talvez a guerra tenha se
encarregado dos antagonismos primitivos ou transformado a
paisagem cultural tão drasticamente, que a postura pré-guerra do
movimento se apresentasse então tola, mesmo para o povo de
Jesus.
Foi o livro de Q, no nível Q3, que atraiu a atenção de
outros grupos de Jesus, foi então copiado e lido por outra
geração dentro dos movimentos de Jesus e, eventualmente,
incorporado nos evangelhos de Mateus e Lucas e se perdeu até
recentemente para a história, quando então os estudiosos o
reconstruíram.
Historiadores da segunda corrente diferente de Mack,
considerando que se está apostando muitas fichas na primeira
camada de um documento não mais existente, construído a partir
de outros, Mateus e Lucas, escritos após meio século e algumas
revisões. Estes historiadores consideram que o Jesus, mestre
com o estilo dos Cínicos, é inteiramente ausente nas epístolas do
primeiro
século,
e,
portanto,
deveria
ser
examinada
a
possibilidade de que esta camada de Q não pertencesse a
Jesus, e sim ser o produto de algum reduto Cínico que teria
encontrado seu caminho dentro de algum movimento de
102
OS ESSÊNIOS E O CRISTIANISMO
pregação judaica na Galiléia e somente mais tarde teria sido
anexada à idéia de uma figura histórica.
Questionam, igualmente, a incongruente mudança de
motivação da camada Q1 para a camada Q2, não considerando
adequadas às explicações de Mack, que as atribuiu às tensões
resultantes das rejeições. A visão convencional do Cristianismo
assumia uma visão apocalíptica no início e, gradualmente,
mudava para a linguagem da sabedoria quando o mundo não
acabava conforme se apregoava. Agora, a seqüência estava
disposta de maneira inversa. A mudança não era mais da
mensagem apocalíptica para o advento da instrução e da
sabedoria, mas da sabedoria para o apocalíptico.
Reafirmamos que esta mudança implica numa total
reconsideração das origens Cristãs e da maneira como a função
da linguagem apocalíptica foi entendida.
Na minha opinião um forte componente corrobora essa
segunda corrente, trata-se do desinteresse da comunidade Q
pelos destinos de seu fundador. Isto é certamente incrível. Se, o
mestre e fundador tivesse sofrido o destino relatado em
Jerusalém, seria crível que a comunidade ignorasse isto ou
permanecesse ignorante do fato?
Um fato marcante a respeito da comunidade Q é que eles
não eram cristãos. Eles não encaravam Jesus como o Messias
ou o Cristo. Eles não consideravam sua morte como um evento
divino, trágico ou redentor. E eles não imaginavam que ele fosse
ascender dos mortos para governar um mundo transformado. Ao
contrário,
eles
pensavam
nele
como
um
mestre
cujos
ensinamentos tornaria possível viver com verve naqueles dias
103
OS ESSÊNIOS E O CRISTIANISMO
turbulentos. Assim eles não se reuniam para cultuar em seu
nome, honrá-lo como um deus, ou cultivar sua memória através
de hinos, orações e rituais. O povo de Q, era um povo de Jesus,
não cristãos.
O desafio de Q ao conceito popular das origens do
cristianismo é claro. Se a visão convencional das origens do
cristianismo é correta, como explicar estes primeiros seguidores
de Jesus?
Teriam eles falhado quanto a compreender a mensagem?
Estavam ausentes quando o inesperado aconteceu?
Teriam seguido em ignorância ou repúdio ao evangelho
cristão de salvação?
Se, entretanto, os primeiros seguidores de Jesus
entenderam o propósito de seu movimento tal qual Q o descreve,
como podemos explicar o surgimento do culto de Cristo, da
fantástica mitologia dos evangelhos narrativos, e o eventual
estabelecimento da igreja e religião cristã?
Q força a questão de se repensar às origens do
cristianismo como nenhum outro documento da antiguidade
força. Os evangelhos narrativos não podem mais ser visto como
relatos fidedignos dos raros e estupendos eventos históricos na
fundação da fé cristã. Os evangelhos, agora teriam que serem
vistos como resultados da antiga fabricação de mitos cristãos.
Q força a questão, pois documenta uma história antiga
que não concorda com o relato dos evangelhos narrativos.
OS PRONUNCIAMENTOS
104
OS ESSÊNIOS E O CRISTIANISMO
Segundo Burton L. Mack, os evangelhos sinóticos
incluem muitas estórias sobre Jesus que os especialistas
costumam chamar pronunciamentos. Jesus é descrito em uma
certa situação; alguém questiona o que ele está dizendo ou
fazendo; e Jesus dá umas respostas satíricas, irônicas e às
vezes mordazes. Em muitos casos estas estórias foram
embelezadas para descrever a situação, explicar porque a
questão foi levantada e discriminar os opositores. Mas mesmo se
a passagem se transformar em um diálogo, Jesus tem sempre a
última palavra, e freqüentemente uma longa narrativa pode ser
reduzida a uma simples troca de desafios e respostas.
Vejamos alguns exemplos, numerados para referência
futura com J de Jesus como prefixo:
(J-1) Quando perguntado por que comia com os coletores de
impostos e os pecadores, Jesus respondeu, Aqueles que tem
saúde não precisam de médico”. (Mar 2:17).
(J-2) Quando perguntado porque seus discípulos não jejuavam,
Jesus respondeu, "Por acaso podem jejuar os amigos do noivo
enquanto o noivo estiver com eles?" (Mar 2:19).
(J-3) Quando perguntado porque seus discípulos colhiam grãos
no sábado, Jesus respondeu, "O sábado foi feito para o homem e
não o homem para o sábado" (Mar 2:27).
(J-4) Quando perguntado porque comiam com as mãos sem
105
OS ESSÊNIOS E O CRISTIANISMO
lavar, Jesus respondeu, "Nada há fora do homem, que, entrando
nele o possa contaminar; mas o que sai dele isso é que
contamina o homem" (Mar 7:15).
(J-5) Quando perguntado quem era o maior, Jesus respondeu,
"Se alguém quiser ser o primeiro será o último de todos e o servo
de todos". (Mar 9;35).
(J-6) Quando alguém o chamou de "Bom Mestre", Jesus
retrucou, "Porque me chamas de bom?" (Mar 10:18).
(J-7) Quando perguntado se o rico poderia entrar no reino de
Deus, Jesus respondeu, "É mais fácil passar um camelo por um
buraco de agulha, do que um rico entrar no reino de Deus". (Mar
10:25).
(J-8) Quando alguém lhe mostrou uma moeda com a inscrição de
César e perguntou, "É lícito pagar impostos a César ou não?
Jesus respondeu, Dai a César o que é de César e a Deus o que
é de Deus". (Marc 12:17).
(J-9) Quando uma mulher na multidão elevou sua voz e disse-lhe
"Bem-aventurado o ventre que te trouxe e os peitos que
mamaste". Jesus respondeu, "Antes bem-aventurado os que
ouvem a palavra de Deus e a guardam". (Lu 11:27-28).
(J-10) Quando alguém da multidão lhe disse, "Mestre, dize a meu
irmão que reparta comigo a herança". Jesus respondeu, "Homem
106
OS ESSÊNIOS E O CRISTIANISMO
quem me pôs a mim por juiz ou repartidor entre vós?". (Lu 12:1314).
Estas estórias são bastante similares a um grande
número de anedotas contadas pelos Gregos sobre os fundadores
das várias escolas de filosofia. É evidente a propensão grega
pelas formulações rebuscadas, bem como pelo encantamento
com as réplicas inteligentes e com o humor satírico. Chamadas
de chreiai (úteis), anedotas como estas eram usadas para testar
professores,
avaliando
sua
capacidade
de
manterem
a
credibilidade diante de seus alunos, e de saírem incólumes de
situações desafiadoras.
Assim as chreiai eram "'úteis" para compor o que os
gregos
chamavam
uma "vida"
(bios
de
onde
retiramos
"biografia"). Isto é porque além do humor, havia outra importante
função para essas estórias. As chreiai eram capazes de revelar
uma impressão do caráter de um professor (ethos). As chreiai
criavam o que os especialistas chamam de uma situação
retórica,
repleta
de
circunstâncias,
oradores,
discurso
e
audiência. Isto significa que boas chreiai podem ser usadas para
representar uma escola de tradição. Podem-se verificar como as
chreiai foram postas a serviço das construções filosóficas, na
obra, Vida de Filósofos Eminentes, do escritor Diógenes Laércio,
no início do terceiro século.
Anedotas do tipo das contadas sobre Jesus eram
freqüentes entre as tradições Socráticas e Cínicas. É, portanto,
valioso comparar as estórias citadas com algumas anedotas
típicas dos Cínicos.
107
OS ESSÊNIOS E O CRISTIANISMO
Um jogo de escaramuças parece ter sido jogado com os
Cínicos por aqueles que tinham coragem para enfrentá-los. Uma
vez que os Cínicos viviam numa espécie de alienação em
relação
à
sociedade,
demonstrando
indiferença
às
suas
convenções, mas, na realidade totalmente dependentes dela
para seu viver, qualquer situação poderia servir para pegá-los em
uma armadilha. O objetivo era flagrar o Cínico, em uma atitude
inconsistente, apontando a sua falta de completa independência
da sociedade. De maneira a vencer o desafio, o Cínico colocava
uma abordagem inteiramente diferente sobre a matéria deixando
a impressão de que o desafiador não tinha entendido a situação.
Vejamos
alguns
exemplos
de
Diógenes
Laércio,
numerados para referência usando-se um C de Cínico:
(C-1) Quando censurado pelo costume de andar em má
companhia, Aristenes respondeu, "Bem, os médicos atendem
seus pacientes sem pegar a febre." (DL 6:6).
(C-2) Quando alguém disse a Aristenes, "Muitos elogiam você",
ele respondeu, "O que fiz de errado?". (DL 6:8).
(C-3) Quando alguém desejava estudar com Diógenes, ele davalhe um peixe e dizia para seguir atrás dele. Quando por
embaraço o estudante logo atirava o peixe fora o deixando,
Diógenes ria e dizia, "Nossa amizade foi quebrada por um peixe"
(DL 6:36)
(C-4) Quando alguém o reprovava por freqüentar lugares
108
OS ESSÊNIOS E O CRISTIANISMO
impuros, Diógenes respondia que o sol também entra nas
intimidades sem sair desonrado. (DL 6:63).
(C-5) Quando perguntado porque suplicava a uma estátua,
Diógenes respondeu, "Para praticar em ser recusado". (DL 6:49).
Os Gregos mediam a resposta pelo seu humor e
inteligência e uma certa lógica era envolvida em sair-se ileso do
anzol. Assim funcionava a lógica; um interlocutor colocava o
Cínico na berlinda (C-4): como você pode freqüentar lugares
socialmente inadequados (um eufemismo para casas de
prostituição)? O primeiro movimento era identificar a questão
enfatizada pelo desafio.
Neste caso era a noção de ser "contaminado" ao visitar
um local "impuro", isto é, um local socialmente inadequado. O
segundo movimento era mudar o foco e encontrar um exemplo
de "entrada em local impuro" no qual não havia contaminação. O
sol, por exemplo, "entra" nas intimidades sem ficar sujo. A
ausência inteligente de correlação entre os dois exemplos criava
o humor. Não havia o objetivo de um ensinamento explícito. O
interlocutor poderá, certamente, não se vir a meditar sobre
teorias de pureza ou impureza, mas ele poderá muito bem se
afastar rindo e deixar o Cínico seguir seu caminho ou mesmo
dar-se conta sobre a natureza arbitrária da categorização de puro
ou impuro quando usada para uma circunstância social
específica.
109
OS ESSÊNIOS E O CRISTIANISMO
Quanto ao Cínico, este tendo aceitado o desafio e tendo
administrado a confusão momentânea na lógica da situação foi
capaz de escapar da armadilha.
As anedotas atribuídas a Jesus operavam através da
mesma lógica. Em todos os casos os desvios Cínicos são uma
característica das réplicas de Jesus. As mudanças na ordem do
discurso são facilmente identificáveis.
Em J-1, a questão da contaminação é removida pela
mudança do foco das condutas de alimentação para a prática
médica. É muito parecida com a anedota sobre Aristenes em C1.
Em J-2 a discrepância tem relação com a ocasião na qual
o jejum é apropriado.
J-3 sustenta a distinção entre duas regras sobre o
trabalho nos sábados, uma a proscrição a outra a permissão.
Em J-4 a incongruência é criada pela justaposição de
condutas de alimentação com observações escatológicas.
É similar à resposta de Diógenes em C-4 confundindo
contaminação social com natural.
As colocações em J-4 e J-5 sustentam a crítica a valores
sociais comuns relacionados com a classe social.
E a anedota de Jesus em J-10 é semelhante a um grande
número de anedotas Cínicas nas quais os estudantes são
duramente corrigidos por alguma má interpretação e conduzidos
de volta aos seus próprios recursos para poderem enxergar
melhor a coisa, e, começarem a estudar o método Cínico.
Uma forma branda desta posição do professor contra o
futuro aluno é ilustrada em C-3.
110
OS ESSÊNIOS E O CRISTIANISMO
Existem muitas chreiai de Jesus no evangelho de
Marcos. Em razão da forma que estas estórias terminam,
deixando
com
Jesus
a
última
palavra,
os
especialistas
denominam essas passagens de estórias de pronunciamentos.
Marcos usava essas estórias com grande vantagem na
construção do seu evangelho, parcialmente porque elas se
constituíam nos blocos de construção para a "vida" (bios) que ele
queria escrever, parcialmente porque elas criavam um conflito, o
conflito básico da conspiração contra Jesus que Marcos queria
desenvolver e parcialmente porque este era o tipo de estória que
a própria comunidade de Marcos aprendera a contar sobre
Jesus.
Existem 28 estórias deste tipo no evangelho de Marcos.
Destas, doze estórias tratam de questões que dividiam o povo de
Jesus dos Fariseus. A maioria delas foi identificada pelos
estudiosos como estórias pré-Marcos, que foram contadas na
comunidade de Marcos antes de Marcos decidir usá-las na sua
vida de Jesus. Estas são as estórias que tem interesse para nós,
pois elas fazem um conjunto e podem ser usadas como janela
dentro de um ramo do movimento de Jesus que se opôs à
tradição da escola dos escribas e Fariseus.
De acordo com a velha tradição Grega, o povo de Jesus,
da comunidade de Marcos, imaginava Jesus como defensor de
sua própria escola de tradição e o pintavam contra os Fariseus
dizendo chreiai. Isto significava que eles se consideravam
discípulos da Escola de Jesus.
As estórias de pronunciamentos que apresentam Jesus
em debate com os Fariseus todas endereçam questões que tem
111
OS ESSÊNIOS E O CRISTIANISMO
a ver com a pureza. O conceito de pureza era básico para o
sistema social e de propriedade judeu. A partir de grandes
sistemas legais, éticos e da lei do sacrifício que foi desenvolvida
durante o período do segundo templo, os Fariseus tiveram
sucesso em separar uma pequena lista de práticas ritualistas que
eles poderiam realizar em casa. Isto, eles afirmavam, em estrita
observância das leis e tradições judaicas.
A lista incluía o dízimo, dar esmola, observância do
sábado (incluindo oração diária e um dia de jejum na semana),
limpeza (lavagem após atividades que traziam impurezas), regras
para as seleção e separação da comida, regras a respeito das
pessoas com as quais se podia sentar à mesa. Estas regras não
deviam ser entendidas como leis, porque os Fariseus não tinham
autoridade oficial sobre nenhuma instituição judaica. Elas eram
sinais de piedade, de uma seita progressiva engajada em
redefinir o que significava ser Judeu à sombra da destruição do
templo. Elas eram, no entanto, extremamente importantes para o
reconhecimento de qualquer judeu que desejava ser "puro", isto
é, ser reconhecido na comunidade judaica como leal às tradições
dos judeus.
Cabe aqui, para os que não estão familiarizados, uma
descrição de quem eram os Fariseus, erradamente há já algum
tempo, apresentados no linguajar de gíria brasileira, como uma
qualificação pejorativa. Tomando a descrição de Josefos (Guerra
dos Judeus 5:2) os Fariseus eram "um corpo dentro da
comunidade judaica que professava ser mais religioso que os
outros e pretendia explicar a lei mais precisamente". Embora
sejamos levados a pensar nos fariseus como rigidamente
112
OS ESSÊNIOS E O CRISTIANISMO
ortodoxos
eles
eram,
em
certos
aspectos,
o
elemento
progressivo no Judaísmo. De maneira a encontrar novas
condições após a queda do templo, os Fariseus se colocaram a
interpretar a lei. O desenvolvimento e manutenção das sinagogas
como um centro de adoração e instrução é uma conquista dos
Fariseus. Eles eram bastante admirados pelos judeus que não
eram filiados a nenhuma seita judaica. Os Fariseus clamavam
pela autoridade da fé e da instrução enquanto os Saduceus, a
classe alta da nobreza e de onde saíam os sumos-sacerdotes,
clamava por aquela do sangue e da posição.
Se fizermos uma lista das questões sob debate nas
estórias de pronunciamento da comunidade pré-Marcos o
resultado é uma notável correlação com as questões dos
Fariseus. Além das questões apontadas de J-1 a J-10 existe um
grande número de questões que se colocavam entre o povo de
Jesus e os Fariseus, tais como a legitimidade do divórcio, o
pagamento de taxas, a lei Mosaica, a base da autoridade, os
sinais de honra e as causas das doenças e "espíritos impuros".
Portanto quer parecer que este ramo do movimento de Jesus
trabalhou sua autodefinição através de um violento debate com
os padrões Fariseus. Porque isso?
Mack explica isso afirmando que o cenário mais
adequado indica que alguns integrantes do povo de Jesus
continuaram a se considerar como judeus mesmo estando
inteiramente ligados no movimento de Jesus. Pode-se imaginar a
disseminação do movimento de Jesus nas regiões de Tiro e
Sidom onde uma das estórias de pronunciamento de Marcos
(Mar 7:24-30) foi elaborada. Alguns judeus atraídos pelo
113
OS ESSÊNIOS E O CRISTIANISMO
movimento continuavam a participar da vida da sinagoga ou
pertenciam a famílias que continuavam. Naturalmente surgiram
conflitos com as próprias famílias e com os líderes das sinagogas
à respeito da lealdade às tradições judaicas. Em certo momento
as diferenças relativas principalmente aos códigos de pureza
Fariseu e as "impurezas" do povo de Jesus tornaram-se uma
questão crítica e algumas pessoas tiveram que optar entre
acompanhar o povo de Jesus ou desistir da participação. Alguns
relacionamentos familiares devem ter ficado sob tensão. O
grande problema era que ser "impuro" pelos padrões Fariseus
era justamente o ponto principal do movimento.
Embora as considerações de Mack sejam razoáveis ele
parece passar ao largo de um aspecto importante. O motivo da
resistência judaica aos Romanos era a religião judaica.
Igualmente o quadro apresentado no Novo Testamento é aquele
de uma instituição agregada ao "status quo". Não há indicação
no Novo Testamento de nenhum conflito entre a religião judaica e
o poder romano.
O objetivo claro dos evangelhos é apresentar a questão
revolucionária como sendo entre Jesus é o "Establishment"
judeu. O fato de existir uma Instituição Romana contra a qual
existiam forças revolucionárias é ocultado de maneira que a
instituição contra
a qual Jesus
se rebelava
possa ser
representada como inteiramente judia. Existia é verdade, um
pequeno partido, os Saduceus, o quais eram colaboracionistas,
sustentavam a situação e aceitavam cargos oficiais sob os
romanos. O Sumo-sacerdote, propriamente, era Saduceu e é
importante que se note, era nomeado pelos romanos. Como
114
OS ESSÊNIOS E O CRISTIANISMO
membro de uma minoria colaboracionista, ele era encarado com
suspeito pela grande massa da nação. A autoridade religiosa, no
entanto, não permanecia com os sacerdotes mas, com um corpo
completamente diferente de pessoas, denominados Rabinos, os
líderes dos Fariseus.
Assim os evangelhos falham em não mostrar que com
relação ao povo a verdadeira instituição era o partido dos
Fariseus que sem posição de destaque político, cujos líderes
jamais receberam reconhecimento pelos romanos, constituía-se
na primeira e última resistência contra os romanos. A imagem
apresentada nos evangelhos sobre os Fariseus, colocando-os
como interessados apenas em salvaguardar suas posições, é
inteiramente equivocada.
Assim Jesus tornou-se o mestre-fundador de um
movimento que trabalhou sua autodefinição no debate contra os
ensinamentos
dos
Fariseus.
Isto
nos
dá
um
quadro
completamente diferente daquele mostrado pela comunidade Q,
ou como veremos, o povo de Tomé, a Congregação de Israel e
as colunas de Jerusalém. Um grupo particular do movimento de
Jesus investiu inocente e fortemente na idéia de pensar-se como
apto aos dois padrões, judaico e de Jesus. Este grupo, e isto é
uma questão da máxima relevância, voltou-se para as práticas
das escolas de tradição helenistas, quanto a atribuir todas as
razões para pensar da maneira que pensavam, ao seu fundador.
Eles não desenvolveram nenhuma teoria ou mito da autoridade
de Jesus como homem divino, salvador ou mártir da nova causa.
Também, não desenvolveram nenhuma visão apocalíptica de
julgamento final ao final dos tempos.
115
OS ESSÊNIOS E O CRISTIANISMO
O que fizeram, foi colocar Jesus no papel de legislador,
tal qual os escribas dos Fariseus, mas então desenvolveram sua
habilidade retórica de maneira a superar os escribas em seu
próprio jogo.
Um instrumento excepcional surgiu quando este grupo
decidiu usar as anedotas de Jesus para registrar seu debate com
os escribas dos Fariseus. Quando se prepara uma chreiai os
argumentos são os de quem prepara, não os dos protagonistas
da chreiai. Assim que o povo de Jesus desenvolveu as chreiai
com argumentos mais elaborados eles preferiram não tomar os
créditos pelos argumentos que encontraram. Ao invés, como na
tradição grega de atribuição de novos ensinamentos ao fundador
da escola, eles deixaram Jesus receber os créditos não só pelas
chreiai como pelos argumentos em seu favor. Isto resultou em
dar a Jesus dois pronunciamentos em cada chreiai elaborada,
com
a
última
afirmação,
invariavelmente,
marcando
um
pronunciamento da correção de seus pontos de vista. Assim, ao
final da chreiai sobre trabalho no sábado, Jesus diz, "O sábado
foi feito para o homem, não o homem para o sábado". Assim,
intencionalmente ou não, a Escola de Jesus produziu uma autoreferência de autoridade para seu mestre-fundador.
No princípio esta caracterização de Jesus parece frágil,
se não tola, e a lógica da argumentação fraca. Mas, ao combinarse este estilo de auto-referência de Jesus com outros papéis
míticos
para
Jesus,
resulta
um
símbolo
de
autoridade
extremamente impenetrável. O evangelho de Marcos mostrará
isto mais tarde. No meio tempo, como pode a Escola de Jesus
tomar seu espaço no mundo, tendo se excluído de uma
116
OS ESSÊNIOS E O CRISTIANISMO
proeminente
definição
de
judaísmo,
definição
esta,
que
aparentemente, foi considerada suficientemente importante, a
ponto de se assumir muito seriamente o desafio com os
Fariseus? Não podemos dizer com certeza, pois temos apenas o
evangelho de Marcos como a próxima janela para dentro de seu
pensamento. Olhando através desta janela parece-nos que a
Escola de Jesus passou por um momento de desorientação e
ansiedade no processo de se tornar uma seita independente.
O EVANGELHO DE TOMÉ
Em 1945, após o final da 2a guerra mundial, uma coleção
de citações de Jesus foi descoberta juntamente com outros 50
manuscritos antigos, próximo ao vilarejo de Nag Hammadi, junto
a uma curva do Nilo, no Egito. No título do documento lia-se:
"Estas são as palavras secretas que o Jesus vivo falou e Judas
Tomé, o Dídimo, registrou". A assinatura no final aponta, o
Evangelho segundo Tomé.
Os estudiosos ficaram estupefatos com essa descoberta.
Ali estava um evangelho real, bastante similar a Q, provando que
o povo de Jesus tinha realmente produzidos evangelhos
constituídos de seus ensinamentos. Antes de Tomé essa era
uma construção dos estudiosos, a partir dos sinóticos para
chegar-se ao evangelho Q, não tendo existido um exemplar de Q
que tenha chegado às nossas mãos.
Os escritos tinham sido traduzidos do Grego para o
Copta, segundo estudiosos, no último quarto do primeiro século e
algumas das citações possuem conotação nitidamente gnósticas
117
OS ESSÊNIOS E O CRISTIANISMO
tendo sido, portanto, difícil de se encaixar, no início, O Evangelho
de Tomé no quadro das origens cristãs. Segundo Mircea Eliade
em sua obra Histoire des Croyances et des Idées Religieuse
(traduzido em português e editado pela Zahar Editores em 1979),
o evangelho de Tomé seria a versão completa dos Logia
atribuídos a Jesus nos papiros de Oxirrinco e conhecida desde
1897. Mircea aponta as "origens judeu-cristãs de algumas
escolas gnósticas importantes". As pesquisas sobre a gnose e o
gnosticismo evoluíram bastante nos últimos anos, mas, suas
origens ainda suscitam dúvidas. A biblioteca descoberta numa
talha em Nag Hammadi deu lugar a inúmeros trabalhos.
A descoberta, o estudo e a publicação da Biblioteca de
Nag Hammadi, poderia ser usada como roteiro para uma
aventura cinematográfica digna de Indiana Jones, na qual
participaram
governos,
pesquisadores,
comerciantes
de
antiguidades, envolvendo-se em tramas, fugas, peripécias no
deserto e maldições proféticas.
Tal qual o evangelho Q, o evangelho de Tomé consiste
em citações de Jesus e ambos os documentos iniciam com uma
narrativa que estabelece o cenário para o resto do documento.
Em Q é a entrada em cena de João Batista que introduz Jesus
como uma combinação de profeta e sábio. O evangelho de Tomé
inicia
com
Jesus
estabelecendo-se
como
a
fonte
de
conhecimento esotérico e na 13ª citação, Jesus afasta-se com
Tomé e troca com ele "três palavras". Quando Tomé retorna a
seus companheiros, eles perguntam o que Jesus disse a ele, e
Tomé responde, "Se vos disser algumas das coisas que ele me
118
OS ESSÊNIOS E O CRISTIANISMO
falou, vós tomareis de pedras e me apedrejareis e o fogo sairá
das pedras e vos consumirá”. (TO 13).
Não existe nenhuma referência de onde se passa essa
cena, não existe em todo o evangelho nenhum interesse
biográfico em Jesus não sendo mencionado nada sobre a
crucificação ou ressurreição de Jesus. O Povo de Tomé, tal qual
o povo de Q, estava apenas interessado nos ensinamentos de
Jesus. Eles se consideravam os verdadeiros discípulos de Jesus.
A mensagem é fortemente de contra-cultura: afasta-se do
materialismo e direciona o leitor na direção de uma vida simples,
uma existência espiritual. Jesus aqui não é o Messias, mas um
reformador social radical, falando aos ouvintes para renegar os
valores vazios do mundo de negócios. No evangelho de Tomé
encontramos Jesus antes de ser Cristo, antes dos séculos de
disputas e embelezamentos eclesiásticos que criaram a figura
mitológica dos dias de hoje.
A primeira ação que se sugere é a comparação com o
livro Q. Sob os aspectos da forma ambos são, aproximadamente,
do mesmo tamanho apresentando o mesmo tipo de material;
aforismos, instruções de comportamento, parábolas e analogias
para explicar o reino de Deus seguidas de dispositivos para a
crítica aos que não aderirem.
É importante notar que um terço das citações possuem
paralelo em Q e 60 por cento delas são da camada Q 1. Não
existindo indicações de que o evangelho de Tomé tenha copiado
estas citações de Q ou dos evangelhos sinóticos, parece claro
que a tradição de Tomé registrou citações de um período anterior
quando o movimento de Jesus compartilhava material de ensino
119
OS ESSÊNIOS E O CRISTIANISMO
semelhante. Muitas das citações que não possuem paralelo em
Q, são enigmáticas e intencionalmente misteriosas. A conclusão
é de que, da mesma forma do que o evangelho Q, o evangelho
de Tomé documenta um movimento de Jesus com história
própria.
Desvendar esta história é um pouco mais difícil que no
caso do povo de Q. Isto, porque a segregação do evangelho de
Tomé em camadas históricas como foi feito para Q, ainda não foi
possível de ser feita. O conjunto de citações não evoluiu da
mesma maneira. Entretanto, é possível estabelecer-se algumas
observações sobre alguns tipos de materiais que devem refletir
estágios na história do povo de Tomé.
Iniciando-se com o último estágio, fica claro que uma
conotação gnóstica foi aplicada na coleção como um todo. A
primeira citação referindo-se a todas as citações diz:
"Quem quer que descubra a interpretação destas
citações não experimentará a morte". (TO 1).
Lendo-se a coleção, verifica-se que os ensinamentos de
Jesus procuram dotar os discípulos com o esclarecimento
(iluminismo) necessário a guiá-lo em relação ao seu destino,
sendo
este
iluminismo,
diretamente,
relacionado
com
o
entendimento individual da verdadeira identidade de cada um,
como ser espiritual.
Se o tópico é reino de Deus, a interpretação oculta é que
"o reino está dentro de vós e fora de vós" (TO 3), ou que está
"espalhado por sobre a Terra, e as pessoas não o vêem" (TO
120
OS ESSÊNIOS E O CRISTIANISMO
113). Se questão é relacionada com o mundo, a interpretação é
que é um "cadáver" (TO 56) ou um mero "corpo" (TO 80) ou, um
"campo" que pertence a alguma outra pessoa (TO 21). Jesus não
se apresenta como um "professor" comum. Ao contrário, aqueles
que
alcançarem
a
verdadeira
interpretação
dos
seus
ensinamentos se tornarão tão iluminados como ele próprio e não
precisarão mais dele uma vez que enxergarão a luz.
"Eu não sou teu Mestre, porque tu bebeste da Fonte
borbulhante que te ofereci e nela te inebriaste". (TO 13).
"Quem beber da minha boca se tornará como eu. E eu
serei o que ele é. E as coisas ocultas lhe serão reveladas" (TO
108).
Então Jesus é o símbolo do iluminismo, a luz em si
próprio: “Eu sou a luz, que está acima de todos. Eu sou o Todo.
O Todo saiu de mim, e o Todo voltou a mim. Rachai a madeira lá estou eu. Erguei a pedra - lá me achareis”. (TO 77). Isto
significa que o verdadeiro discípulo deve "Olhar para o Vivo,
enquanto viver, para que não morra e deseje ver aquele que já
não pode ver" (TO 59). Mas "Se vos conhecerdes, sereis
conhecidos e sabereis que sois filhos do Pai Vivo” (TO 3). Um
discípulo que percebe que não pertence ao mundo mas ao reino
de Deus torna-se um "transeunte" com relação ao mundo (TO
42) e "um" com relação à união com o divino. E ao final da vida
haverá o retorno para o reino da luz de onde originalmente
viemos ao mundo ( TO 49 - 50)
121
OS ESSÊNIOS E O CRISTIANISMO
Sair com uma conotação gnóstica dos ensinamentos de
Jesus significa que o povo de Tomé tomou una decisão em
algum momento de sua história que o povo de Q não tomou. As
circunstâncias
que
acompanharam
este
desvio
podem,
felizmente, ser discernidas no próprio texto do evangelho em
subtítulos que se apresentam do início ao fim. Estes temas
(subtítulos) caracterizam "os discípulos" de Jesus e as perguntas
que eles lhe fazem, algo completamente inexistente no livro de
Q. Os discípulos são referenciados de forma coletiva, mas Pedro,
Mateus, Jaime, Tomé, Salomé e Maria são mencionados pelo
nome. Jaime e Tomé são os garantidores da tradição. Salomé e
Maria dizem as coisas certas e representam os verdadeiros
discípulos. Pedro, Mateus e os "discípulos", coletivamente,
representam um grupo ou grupos do povo de Jesus dos quais
Tomé discorda.
Através
do
texto
estes
discípulos
endereçam
as
perguntas erradas e tem que ser corrigidos. Uma pergunta
constante que estes discípulos fazem é a respeito do futuro, de
quando o reino de Deus surgirá, e como eles saberão que ele
chegou. Fica claro
que
desejavam
alguma interpretação
apocalíptica de Jesus. O interesse deles era tratado por Jesus
como interpretação errônea de seus ensinamentos que então
explicava que o reino já estava presente.
Outro
tema
tinha
relação
com
o
comportamento
ritualístico. Os discípulos desejavam saber sob jejum, oração, dar
esmola, limpeza, dieta e sobre a necessidade da circuncisão. Em
todos os casos Jesus tratava as perguntas como tolas, sem
importância e tratava de transformar a menção numa metáfora
122
OS ESSÊNIOS E O CRISTIANISMO
para esclarecimento e auto-entendimento. Assim, por exemplo,
quando os discípulos perguntaram a Jesus, "Diga nos como será
nosso fim". Jesus respondeu dizendo, "Abençoado é aquele que
permanece no princípio; ele conhecerá o fim e não experimentará
a morte" (TO 18).
Não existe anúncio de apocalipse em Tomé, pelo
contrário, o Evangelho de Tomé vai à outra direção, em busca de
um "começo perfeito" ao paraíso reconquistado, completamente
alienado do mundo presente ele propõe um caminho para o que
seria um novo amanhecer da criação. O primeiro passo nesta
jornada às origens, mostra Jesus como a encarnação da
sabedoria divina, admoestando o mundo a encontrar seu
caminho perdido. Esta abordagem não só realça a perfeição da
criação como põe por terra qualquer clamor por uma solução
terminal.
Este material é nitidamente polêmico. O povo de Tomé
sabia que alguns grupos de Jesus tinham evoluído na direção de
comunidades apocalípticas e outros para comunidades judaicocristãs. Eles então se esforçavam para se distinguirem destes
dois grupos e o faziam através de Jesus, quando este contrariava
as teimosias de ambos. Para executarem isso desenvolveram
duas
estratégicas
retóricas
diferentes.
A
primeira
era
simplesmente negar: Não, tu não entendeste, "O que tu procuras
já chegou, mas tu não se dás conta" (TO 51). A outra abordagem
era utilizar uma citação que parecia afirmar o que o povo de
Tomé não queria que Jesus afirmasse, mas que era interpretada
de uma maneira diversa de sua interpretação aparente. Um
123
OS ESSÊNIOS E O CRISTIANISMO
exemplo é a citação apocalíptica "Dois descansaram no leito, um
morrerá, o outro viverá" (TO 61).
Em Q, este dito aparece de uma maneira, inteiramente,
apocalíptica (Q 17:34).
No evangelho de Tomé, ao contrário, esta citação é
interpretada através do entendimento de Salomé que explica que
não existe referência ao final dos tempos (eschatom), mas ao
iluminismo envolvendo Jesus e ela própria, quando este deitado
à sua mesa ensinou-lhe o verdadeiro sentido de "morrer" e
"viver" (TO 61-62).
Podemos caracterizar, pelo menos, três momentos na
história do povo de Tomé. Começaram como um movimento de
Jesus que deve ter tido muito em comum com a fase mais antiga
do movimento Q. Em certo momento, se viram diante das
pressões de duas tendências, o cultivo de uma mentalidade
apocalíptica ou uma codificação de atividades ritualísticas
similares às práticas judaicas. Conseguindo resistir a ambas as
tendências, a comunidade de Tomé desenvolveu um caráter de
distanciamento do mundo social e cultivou uma noção de um
mundo de luz imaginário como seu mundo real. O mundo de luz
era imaginado como um remanso para as vicissitudes de um
mundo visto como ganancioso, violento e destrutivo. Muitos ditos
do evangelho de Tomé enxergam o mundo como um local onde
alguém pode ser "engolido" ou "comido vivo". A meta era
permanecer "intocável" às pessoas, eventos e preocupações que
motivavam e controlavam o mundo social.
E quanto à guinada tomada pelo povo de Tomé em
relação ao povo de Q e outros ramos do movimento de Jesus?
124
OS ESSÊNIOS E O CRISTIANISMO
Teria sido mais profunda do que a guinada do povo de Q quando
fez sua opção em direção a uma visão apocalíptica da história?
Provavelmente não. Tanto Q, como a comunidade de Tomé,
tiveram suas raízes na mesma combinação tensa de idéias
características dos ensinamentos de Jesus, uma chamada para
mudar o estilo de vida e para manifestar o reino de Deus. O
pessoal de Q era obcecado pela visão social que acompanhava o
discurso do reino de Deus. Já o pessoal de Tomé concentrou-se
mais no individualismo radical do desafio do novo estilo de vida.
Nenhum dos dois grupos logrou controlar e manter sob equilíbrio
as tensões originais, mas ambos desenvolveram caminhos que
eram entendidos como respostas aos tempos tormentosos.
Com relação aos aspectos sociais do reino de Deus,
aparentemente, o povo de Tomé deve ter tido um senso
comunitário a despeito da redução de todos os símbolos do reino
a metáforas intimistas. Os ditos são endereçados no plural aos
candidatos a discípulos; existem instruções de como enxergar e
tratar um outro como Verdadeiros Discípulos; e existem algumas
indicações de que o grupo estava interessado no significado
simbólico de alguns rituais, tais como o batismo e a comunhão na
mesa. Portanto, embora não possamos estar seguros de suas
práticas, a comunidade de Tomé deve ter se agrupado para
cultivar sua busca, pela transcendência pessoal.
É extremamente importante notar que o povo de Tomé
desenvolveu sua mitologia revestindo as citações de Jesus de
significado
esotérico.
Embora
esses
ensinamentos
são
creditados a Jesus, sabemos que eles eram eventualmente os
ensinamentos
da
comunidade
125
de
Tomé,
pois
esta
se
OS ESSÊNIOS E O CRISTIANISMO
desenvolveu como uma escola de tradição helênica que
continuava atribuindo novas idéias ao fundador da escola. Alguns
especialistas têm se perturbado, com o uso do termo "Jesus
Vivo”, imaginando que possa se referir à mitologia da
ressurreição de Jesus da morte. Isto significaria que os membros
do povo de Tomé eram cristãos os quais transformaram o
salvador crucificado em um redentor gnóstico. É como se o povo
de
Tomé
tivesse
conhecimento
da
mitologia
cristã
e
possivelmente usassem o termo "Jesus Vivo" com a intenção de
rechaçar esta mitologia. Mas não é o caso que sua visão de
Jesus como incorporação da "luz", "vida" e "sabedoria" fosse
dependente de uma mitologia baseada na ressurreição. Assim
Jesus tornou-se o símbolo encarnado do conhecimento e da luz
porque era isto o que seu ensinamento distribuía. Não havia
necessidade da realização de milagres, de profecias do fim do
mundo, de morrer na cruz como salvador ou ressuscitar para o
juízo final.
A segunda corrente citada considera que o fato de tanto
Q como o evangelho de Tomé, serem oriundos de duas
comunidades distintas, com nenhum interesse biográfico na vida,
morte e ressurreição de Jesus, deveria disparar alarmes para
dirigir a consciência dos historiadores a examinar a possibilidade
de que esses dois documentos se iniciaram como simples
coleções de ditos, desanexadas de qualquer relação com a figura
de qualquer Jesus.
AS ESTÓRIAS DE MILAGRES
126
OS ESSÊNIOS E O CRISTIANISMO
A vida de Jesus contada por Marcos é pautada pelas
estórias de milagres que Jesus realizou e das coisas miraculosas
que aconteceram a Jesus. Estas estórias pretendem fornecer a
impressão do poder divino influindo na história humana, na
pessoa de Jesus. Segundo Burton L. Mack, da mesma forma que
os pronunciamentos, Marcos usou os milagres baseando-se em
coleções de estórias antigas que possuíam uma interpretação
diferente. Esta interpretação pode ser observada em dois
conjuntos de cinco milagres, que tiveram sua origem num
movimento pré-Marcos.
Ao lermos o evangelho de Marcos, logo percebemos que
existem duas estórias sobre Jesus e os discípulos cruzando o
mar e duas estórias sobre Jesus alimentando a multidão. Esta
questão desencadeia outras questões sobre os milagres que
aconteceram ao redor desses dois eventos principais. (Mar 4:35 8:10).
Um estudo, efetuado por Paul Achtemeier em 1970,
mostrou que Marcos usou dois conjuntos de cinco estórias
milagrosas,
tendo
cada
um
deles
sido,
originariamente,
pretendido ser independente. Isto, não explica porque Marcos
usou dois conjuntos ao invés de um, mas sugere que deveria
existir um sentido ou razão na existência e uso dos conjuntos de
estórias independentemente da maneira que Marcos as usou
para ajudar a compor o seu evangelho. Isto, porque os dois
conjuntos seguem um mesmo padrão; primeiro um milagre sobre
travessia no mar, depois uma combinação de um exorcismo e
duas curas e finalmente um relato de alimentação de uma
multidão. Os dois conjuntos estão listados abaixo:
127
OS ESSÊNIOS E O CRISTIANISMO
Acalmando a multidão.
(4:35-41)
Andando sobre o mar.
Mar (6:45-51)
O possesso de Gérasa.
(5:1-20)
O cego de Betsaida.
(8:22-26)
A filha de Jairo.
(5:21-23, 35-43)
A mulher
cia.
(7:24-30)
A mulher com hemorragia.
(5:25-34)
O surdo-mudo.
(7:32-37)
Alimentando 5000.
(6:34-44, 53)
Alimentando 4000.
(8:1-10).
Sírio-Fení-
Os leitores terão que esperar, até chegarmos ao
Evangelho de Marcos, para obter a resposta do porquê da
necessidade de dois conjuntos de milagres ao invés de apenas
um. No momento, é o significado do padrão que queremos
compreender, pois ele nos fornecerá uma nova janela para
enxergarmos
outro momento
da
formação
do mito
nos
movimentos antigos de Jesus.
Numa primeira avaliação estas estórias assemelham-se
aos relatos de milagres, especialmente as curas, típicas da era
Greco-Romana. Centenas desses relatos foram coletados para
comparação e o gênero é sempre exatamente o mesmo, sejam
os milagres contados sobre o santuário de Epidaurus, aos
reportados pelo Deus grego da cura, Asclépio, sejam aqueles
contados sobre Jesus. Mas dai, algumas diferenças começam a
serem notadas. Achtemeier e outros foram capazes de mostrar,
que embora as características formais das estórias individuais
128
OS ESSÊNIOS E O CRISTIANISMO
correspondem à maneira como os milagres foram contados
durante o império Grego-Romano, o conteúdo das estórias de
Jesus trazia uma mudança especial. Os temas e alguns detalhes
pareciam ser reminiscências dos épicos de Israel. Uma travessia
milagrosa e uma alimentação milagrosa da multidão eram itens
clássicos na estória do Êxodo do Egito e os milagres do meio do
conjunto trazem a visão dos milagres de Elias e Eliseu, profetas
do povo durante as confusões originadas com a queda dos
reinos de David e Salomão.
Uma pesquisa que fiz na literatura judaica do período
mostra que eram usadas com freqüência referências à milagrosa
travessia do mar e a alimentação do povo judeu, com o Maná,
para lembrar a estória inteira do Êxodo. Para os milagres de Elias
e Eliseu existe alguma evidência da tradição popular sobre Elias
retornando para recuperar Israel nos tempos de convulsão social.
Portanto, começa a nascer a suspeita de que alguns grupos de
Jesus queriam retratá-lo com contornos de um fundador
parecendo-se de alguma maneira com Moisés e um pouco como
Elias.
Uma vez que o padrão e o simbolismo são desvendados,
uma terceira observação sobre o conjunto de milagres ganha
significação. Estamos nos referindo ao problema de que as
pessoas que recebem os milagres estão na margem da
sociedade
judaica.
Tratava-se
de
casos
de
doentes
desenganados, incluindo possessão demoníaca e morte. Uma
verificação acurada mostra que os personagens das estórias são
candidatos com pouca chance de serem resgatados pela
sociedade de Israel. Nenhum deles seria levado ao ostracismo
129
OS ESSÊNIOS E O CRISTIANISMO
pelas atitudes judaicas de então, mas todos eles estariam fora
das classificações quando os sacerdotes priorizassem os papéis
sociais de importância para a sociedade de trabalho judaica.
E se essas pessoas nas estórias foram escolhidas para
desempenhar um papel, tal qual Jesus foi retratado nos papéis
de Moisés e Elias? Mas que papel seria esse?
Este papel se configura como um maravilhoso mito sobre
a origem de um grupo de Jesus. Jesus, o fundador de um
movimento novo, seria como Moisés, os líderes da saída dos
filhos de Israel do Egito, e como Elias, o profeta cuja aparição
resgataria o legítimo papel dos filhos de Israel como povo de
Deus. No entanto esse fato demonstra que a congregação de
Jesus era conduzida e orientada para as pessoas socialmente
marginais que não se encaixava nos padrões do povo judeu.
Para que uma incongruente mistura de pessoas fosse legitimada,
de acordo com os padrões judaicos, seria necessária uma boa
quantidade de "milagres" de algum tipo. Assim os milagres
tinham o propósito de associar Jesus e as pessoas que o
seguiam, com Moisés, Elias e o povo de Israel. O resultado era
uma forte sugestão que os ouvintes ou leitores sofreriam,
imaginando
o
novo
movimento
de
Jesus,
como
uma
Congregação de Israel.
Tão logo este ponto importante entra em foco, os
contornos do movimento de Jesus começam a surgir. O povo
etnicamente misto era congregado para as refeições em comum,
tinha líderes que se preocupavam com a associação e suas
necessidades,
talvez
possuíssem
alguma metodologia
de
distribuir alimentos entre os seguidores e poderiam estar num
130
OS ESSÊNIOS E O CRISTIANISMO
processo de criar ritualismos e simbolismos para suas refeições
comuns. Eis aqui um movimento de Jesus, que prestou atenção
em seus membros, verificou a formação social em andamento,
deliciou-se com sua inovação, teve consciência de quão estranho
deveriam
parecer
para
os
outros,
surpreendeu-se
ao
imaginarem-se em comparação com outros povos, considerou
fascinante a comparação com "Israel", e divertiram-se tentando
vários cenários antes de estabelecer o conjunto de milagres que
personificava Jesus nos papéis de um Moisés e de um Elias.
Veja-se que não existe polêmica nestas estórias, como
se outras maneiras de pertencer a Israel fossem erradas, nem
nenhuma reivindicação de quanto ao movimento de Jesus ser a
única forma correta de ser judeu. Observe-se que não existe
referência de qualquer conflito que Jesus tenha tido com as
autoridades judaicas e nenhuma necessidade de pensar que este
povo tenha sido transformado pela mensagem de uma dramática
crucificação ou milagrosa ressurreição.
Foi uma audaciosa combinação de idéias que produziu
este conjunto de estórias, e também uma combinação que pode
ser imaginada para um movimento no norte da Palestina à busca
por um mito de origem. Moisés era o legendário profeta-rei de
especial significância para o épico Samaritano, e o ciclo de
estórias Elias-Eliseu era uma tradição do reino norte de Israel.
Moisés e Elias não eram propriedade privada dos judeus.
Uma vez, que a idéia de usar as estórias de milagre para
remodelar o movimento de Jesus como uma nova Congregação
de Israel estava em andamento, outros conjuntos de milagres
poderiam ser criados para ilustrar outras características dessa
131
OS ESSÊNIOS E O CRISTIANISMO
congregação. Marcos soube fazer isso muito bem e conseguiu
vantagens para os propósitos do seu próprio evangelho, como
veremos mais tarde.
AS COLUNAS DE JERUSALÉM
Em algum ponto, durante os primeiros vinte anos dos
movimentos de Jesus, formou-se um grupo em Jerusalém,
presumivelmente formado por Galileus. Eles não deixaram
nenhum
registro
ou
documento
escrito
que
tenhamos
conhecimento, mas fontes secundárias nos dizem alguma coisa
sobre eles. É importante que tentemos reconstruir aquilo que
podemos, simplesmente porque o quadro que a maioria de nós
possui em mente, é altamente mitográfico e frustrará nossa
reconstrução das origens cristãs, a menos que o submetamos a
alguma análise.
A referência mais antiga que temos está contida na carta
de Paulo aos Gálatas, escrita em 55 E.C. Nesta carta, Paulo nos
relata as duas visitas que fez aos "colunas" em Jerusalém com o
propósito de comparar seu evangelho com o deles. Infelizmente,
Paulo não nos conta nada do "evangelho" deles, mas faz menção
nominal a Cefas (Pedro), Jaime e João e discorre sobre a
questão principal da conversa. A questão tinha relação com a
aceitação dos gentios no movimento do reino de Deus e
especialmente se os colunas em Jerusalém exigiriam que um
gentio fosse circuncidado. É importante notar que essa é uma
questão que Paulo, especificamente, gostaria de ver respondida,
pois refletia sua preocupação com esse problema entre as
132
OS ESSÊNIOS E O CRISTIANISMO
congregações que havia convertido e fundado. Não temos
sequer condição de saber se o grupo de Jerusalém teria pensado
alguma vez sobre essa questão e muito menos se teria
compartilhado as preocupações ou interesse de Paulo nesta
matéria.
Do relato de Paulo, é significante o fato de eles haverem
concordado que os gentios não fossem circuncidados e que eles,
somente solicitaram a Paulo, que "se lembrasse dos pobres",
muito provavelmente uma referência a eles próprios e à sua
condição empobrecida. Isto não é muito para prosseguir, mas
nos permite imaginar que o grupo de Jerusalém deve ter sido um
movimento, não uma congregação cristã do tipo Paulina, uma
distinção a ser discutida, posteriormente, nas partes seguintes.
Estes aspectos do grupo de Jerusalém nos permitem
estabelecer o seguinte perfil para o grupo:
- Temos os nomes de seus líderes Cefas (Pedro), Jaime
e João;
- A localização em Jerusalém e o interesse em viver lá,
está claro:
- Existe a (aparente) aceitação de algumas práticas e
idéias judaicas, tais como código de pureza regendo as
companhias à mesa.
Nenhum outro movimento de Jesus compartilhava essas
características. Em todas as comunidades, seja a comunidade Q,
a Escola de Jesus dos pronunciamentos, ou a Congregação de
Israel era uma idéia integral o fato de Jesus possuir discípulos
133
OS ESSÊNIOS E O CRISTIANISMO
(ou estudantes), mas nenhum desses grupos menciona Pedro,
Jaime, João ou qualquer outro discípulo pelo nome. A próxima
menção nominal desses discípulos após lidos na carta de Paulo,
e no evangelho de Marcos escrito nos anos 70, quando a estória
de Marcos os coloca em foco como estudantes que não
compreenderam seu mestre. O mesmo papel é desempenhado
por Pedro e "os discípulos" no Evangelho de Tomé. Estes
discípulos eram muito estúpidos para entender a mensagem do
reino que Jesus pintava. Temos que esperar até a estória de
Mateus, escrita nos anos 80 ou 90, para vê-los reabilitados como
estudantes aplicados de Jesus e para quem as chaves do reino
de Deus eram entregues (Mat, 17:17-19). Portanto, não sabemos
muito sobre as figuras reais de Pedro, Jaime e João, os Pilares
em Jerusalém.
Com relação ao interesse de Jesus em Jerusalém,
existem apenas duas citações dentro do material que temos dos
movimentos de Jesus que abordam essa questão, e ambas são
meramente observações marginais da destruição do templo em
70 E.C.
Uma é o lamento em Q3, “Jerusalém, Jerusalém, Quantas
vezes quis juntar teus filhos. Eis que vossa casa ficará deserta”.
(Q 13:34-35). A outra é a citação de Jesus que "prediz" a
destruição do templo. Esta é a citação mais problemática do
evangelho de Tomé, porque escrita no estilo de Marcos, parece
ser uma criação de Marcos (TO 71, Mar 14:58). Isto mostra que a
motivação para os colunas se estabelecerem em Jerusalém tem
que ser deixada à especulação, porque não há indicação que
nenhum outro grupo de Jesus tenha feito qualquer conexão entre
134
OS ESSÊNIOS E O CRISTIANISMO
Jesus, o movimento de Jesus, o reino de Deus e a cidade de
Jerusalém.
Isto conduz a questão da aderência dos pilares ao código
de pureza judaico. Em todos os outros grupos do movimento de
Jesus a resposta quanto a essa questão era uma só: o povo de
Jesus não seguia esses códigos. Havia, na verdade, uma
tendência a sentir-se orgulho de rejeitar estas práticas em favor
da respeitabilidade e autodefinição do grupo. Portanto, o que
fazer com o fato de que os colunas estivessem do outro lado
desta questão?
É extremamente difícil entender o que o grupo de
Jerusalém pensava. Não existe nada nos ensinamentos de
Jesus, ou nas estórias primitivas sobre Jesus que sugeriria uma
motivação
para
Jesus
e
seus
discípulos
dirigirem-se,
primeiramente, para Jerusalém, muito menos para Galileus irem
para lá após Jesus tê-la deixado.
E ainda existe uma outra questão, a estória de Marcos
não ajuda por três razões importantes:
A primeira é que a conspiração que ele inventou para
levar Jesus a Jerusalém somente poderia ser imaginada após a
guerra Romano-Judaica.
A segunda é que, se tivermos que aceitar a estória de
Marcos sobre a marcha de Jesus para Jerusalém, para
confrontar as autoridades judaicas constituídas, e ser morto por
representar uma grande ameaça ao estado-templo em virtude de
alguma coisa tão inócua como ensinar nos arredores do templo,
fica muito difícil imaginar que seus seguidores não fossem
135
OS ESSÊNIOS E O CRISTIANISMO
também ameaçados ou mortos quando assumissem residência
em Jerusalém para promover o programa pelo qual Jesus foi
morto.
A terceira razão segundo a qual a estória de Marcos não
ajuda é que de acordo com o próprio Marcos, Jesus e seus
discípulos foram acusados de violar os códigos de pureza não os
guardando. Portanto, teríamos que vislumbrar outro cenário que
faça sentido com os dados que Paulo nos forneceu.
Marcos era tendencioso e crítico na imagem que produziu
dos discípulos o que significa que os discípulos, tal qual se
apresentavam, devem ter representado uma posição com a qual
Marcos discordava. Seria uma diferença de opinião em relação
aos códigos de pureza?
No
evangelho
de
Tomé,
Pedro
e
os
discípulos
representam uma posição com interesse na manutenção dos
códigos de pureza judaicos. E isto está em concordância com a
caracterização de Paulo sobre os colunas em Jerusalém. Se
Paulo e o evangelho de Tomé estão certos sobre a questão dos
códigos de pureza, isto certamente se ajustaria com a posição
contra a qual Marcos estava escrevendo. Assim, embora não
possamos saber com certeza, parece que Pedro e companhia,
simplesmente, tiraram dos ensinamentos de Jesus, conclusões
sobre o reino de Deus que divergia dos outros grupos de Jesus.
Deve-se notar que o grupo de Jerusalém durou pouco
tempo. No final da estória de Marcos, Pedro e os discípulos são
ordenados a ir para a Galiléia para formar lá uma congregação.
Marcos pode ter sabido que Pedro e o grupo de Jerusalém não
estavam mais residindo em Jerusalém. Tradições posteriores
136
OS ESSÊNIOS E O CRISTIANISMO
falam da ida do grupo de Jerusalém para Pela no centro da
guerra e Paulo menciona que Pedro, posteriormente, residiu em
Antioquia. Quanto a Tiago, sabe-se que ele foi martirizado no ano
62 E.C., durante o crescimento das hostilidades que precipitaram
o rompimento da guerra Romano-Judaica em 66 E.C. O que
restou, foram pistas fragmentadas de um grupo que residiu em
Jerusalém por um período, relativamente, curto de tempo.
Agora, colocando estas peças juntas, parece que Tiago,
que era irmão de Jesus, juntamente com Pedro e outros, fizeram
algumas ligações entre os ensinamentos de Jesus sobre o reino
de Deus e o reino-templo em Jerusalém. O que estas conexões
poderiam
ter
sido,
permanece
obscuro.
Uma
vez
que
consideravam os códigos de pureza compatíveis com os
ensinamentos de Jesus, uma posição com a qual Mateus,
escrevendo muito tempo mais tarde, concordará, eles pareciam
para muitos, meramente, como uma seita farisaica. Talvez eles
se considerassem como fermento apropriadamente colocado em
Jerusalém para florescer os ideais de devoção e assim contribuir
para sua sustentação ou regeneração como cidade do grande
rei.
O
lamento
sobre
Jerusalém,
em
Q,
foi
escrito,
exatamente, a partir desta perspectiva. Portanto, sabemos que
pensamentos como este eram possíveis dentro dos movimentos
de Jesus, mesmo se nem todos os sustentassem. Infelizmente
para os colunas, supondo que eles pensavam que os
ensinamentos de Jesus sobre o reino eram mais adequados em
uma escola em Jerusalém, a destruição da cidade significou
também o fim de sua missão.
137
OS ESSÊNIOS E O CRISTIANISMO
O estabelecimento desse grupo por Mack é objeto de
muita crítica por alguns historiadores. Sabemos que O "Culto de
Cristo", segundo o professor Mack, se constitui na única e mais
antiga "resposta" a Jesus, antes dos evangelhos o transformarem
no filho de Deus. Temos que realmente ficar boquiabertos com a
distância que separa a mente de Paulo, daqueles que
consideravam Jesus apenas como um advogado contra as
práticas de pureza judaicas. Doherty chega a afirmar que toda a
teoria desmorona sobre o peso dessa consideração. Lembremos,
no entanto, que na definição dos cultos de Jesus, Mack afirma
que nenhum culto primitivo de Jesus o concebia como o Cristo.
Se os cultos de Jesus eram desenvolvidos através dos tempos
nas grandes comunidades de gentios, fora da Palestina, Doherty
considera inconcebível não ter sido avaliado por Mack, a
inadequação da conversão de Paulo neste quadro. Paulo não
parece demonstrar que, criticamente, suas crenças diferiam
muito daquela sustentada pelos colunas de Jerusalém. Quem
então transformou Jesus, no próprio coração de Israel, numa
divindade cósmica, adornando-o com mitologias helênicas tão
logo baixou à sepultura? Como podemos conciliar o fato de que
se o chamado grupo de Jerusalém não considerava Jesus como
divino, não atribuía nenhum significado à sua morte e
presumivelmente desconhecia a ressurreição, tal diferença de
opinião não tenha aflorado quando Paulo foi a Jerusalém para
"discutir o evangelho? Como podia Paulo se referir a eles como
"apóstolos antes de mim" e se estes não "pregavam um Cristo
redentor”?
138
OS ESSÊNIOS E O CRISTIANISMO
O cerne de tais questionamentos está na conclusão, ou
pelo menos encaminhamento, da possibilidade de que um Jesus
histórico jamais tenha existido. Jesus seria uma obscura
personagem, talvez como o brasileiro Enri, que em Curitiba se diz
reencarnação de Jesus. Este personagem acabou sendo
escolhido para encarnar o fundador das seitas oriundas do
movimento social nascido com a dinâmica cultural daqueles
tempos.
Finalizando os movimentos de Jesus, não poderíamos
deixar de tocar num tópico que será abordado com maior riqueza
de detalhes, posteriormente, quanto chegarmos às cartas de
Paulo, mas dado à conexão com os colunas de Jerusalém vamos
mencionar aqui, de passagem. Na tese defendida por Marcelo
Carreiro, no tópico II.1, “Uma Conspiração Silenciosa”, consta o
seguinte texto:
"Como é estranho que todos os escritores cristãos do
primeiro século, com toda a devoção que eles mostram sobre
Cristo e a nova fé cristã, nenhum deles expressa o mais tênue
desejo de ver o local de nascimento de Jesus, de visitar sua terra
natal de Nazaré, os locais de sua pregação, a sala da Santa ceia,
a tumba de onde ele surgiu entre os mortos. Tais lugares jamais
são mencionados. Acima de tudo, não há a menor peregrinação
ao próprio calvário, onde a salvação da humanidade teria sido
consumada. Como um local como este não teria se tornado um
templo“.
139
OS ESSÊNIOS E O CRISTIANISMO
Com relação a Paulo em sua visita a Jerusalém,
reportada na carta aos Gálatas, Marcelo escreve:
"É concebível que Paulo não desejasse correr para o
Calvário, para se prostrar ao solo sagrado sobre o qual passou o
sangue do senhor assassinado? Certamente, ele teria partilhado
dessa experiência intensamente emocional com seus leitores.
Nem Paulo nem qualquer outro escritor de cartas do primeiro
século pronunciam um sussurro sobre tal coisa".
A Conspiração Silenciosa será mais detalhada quando
chegarmos aos escritos de Paulo e outros escritores do primeiro
século, sendo ela uma marca importante do mito cristão.
CONCLUSÃO
Muitos outros grupos podem ter se formado na esteira do
Jesus Histórico. Os poucos que discutimos são suficientes,
entretanto, para nos deixar ver a realidade dos primeiros
quarenta anos do movimento de Jesus, vamos citar alguns
passos.
No começo, Jesus era lembrado como um mestre que
desafiava os indivíduos a pensar como cidadãos do reino de
Deus. O conceito do reino de Deus era, aparentemente,
oportuno. Ele fazia as pessoas, que estavam conscientes
daqueles tempos tumultuados se agruparem, propiciando-lhes
um foro para debates e ação. Mas o conceito do reino, embora
direcionados sobre noções que já pairavam no ar e, portanto não
140
OS ESSÊNIOS E O CRISTIANISMO
completamente vazias, eram no, entretanto, mais vagas e
sedutoras do que claras e programáticas. Assim os vários grupos
que se formaram eram experimentais. Eles experimentaram
grandes mudanças assim que atraíram outros por sua falação
sobre o reino, desenvolveram suas próprias práticas sociais e
identidade de grupo, respondendo às pressões e dando-se conta
de si próprios como uma pequena sociedade com grandes idéias.
A estratégia comum era atribuir a sabedoria que tinham adquirido
a Jesus, colocando-as sob a forma de instruções oriundas dele e
revisadas de forma a se ajustar à escola de pensamento que
estavam desenvolvendo. Fizeram exatamente como qualquer
escola helenista de filosofia teria feito. E o resultado deste
desenvolvimento foi que a voz e imagem de Jesus, seu fundador,
foi também repetidamente refundida. Como vimos, os retratos de
Jesus são estritamente diferentes à medida que transitamos de
um grupo para outro, dentro do movimento de Jesus.
FORMAÇÃO DO CULTO CRISTÃO - FRAGMENTOS
Os movimentos sociais mudam com o tempo. Isto
acontece em resposta às novas circunstâncias, mas, também
porque as experiências dentro de um grupo freqüentemente
introduzem novos padrões de comportamento e de pensamento.
Líderes sobem e caem, os humores vão e vêem e as estratégias
mudam, algumas vezes abruptamente. Olhamos fascinados,
porque a vida em grupos define a empreitada humana e as
pessoas no processo de mudança de padrões de vida e
141
OS ESSÊNIOS E O CRISTIANISMO
pensamento sempre chamam a nossa atenção. Poderemos
aprender alguma coisa tanto sobre os outros como também
sobre nós mesmos. O aprendizado se torna especialmente
significativo se for focado na formação das comunidades
primitivas, cujas estratégias de convivência em comum ainda se
nos apresentam como legados, transferidos dos episódios da
fundação de nossa história cultural. Este processo de formação
social é, exatamente, o que observamos de forma privilegiada, à
medida que o culto Cristão surge a partir dos movimentos de
Jesus.
Começando em algum lugar ao nordeste da Síria,
provavelmente na cidade de Antióquia, espalhando-se através da
Ásia Menor para dentro da Grécia, o movimento de Jesus, sofreu
uma mudança de conseqüências históricas. Foi uma mudança
que transformou o que estamos chamando de movimento de
Jesus no culto de um Deus, chamado Jesus Cristo. À primeira
vista, é difícil imaginar que o Culto de Jesus, fosse em alguma
época, o movimento de Jesus, tal a maneira drástica e rápida em
que parece ter acontecido a mudança. Mas, se detalharmos o
processo, calmamente, movendo-nos através dos complexos
desenvolvimentos
de
cerca
de
vinte
e
cinco
anos
de
experimentação social, e observando as pistas que os estudiosos
descobriram
para explicar as razões que sustentam
as
transformações que tiveram lugar, traremos à luz uma história
bastante compreensível.
O Culto de Jesus se diferencia do movimento de Jesus
em dois aspectos principais.
142
OS ESSÊNIOS E O CRISTIANISMO
Um é o foco sobre a significância do destino e morte de
Jesus. A morte de Jesus foi entendida como tendo sido um
evento que trouxe uma nova comunidade à existência. Este foco
sobre a morte de Jesus trouxe como resultado o afastamento da
atenção sobre os ensinamentos de Jesus e da noção de
pertencer-se à sua escola. Gerou em contrapartida, uma
elaborada preocupação com a noção do martírio, ressurreição e
com a transformação de Jesus em uma presença espiritual
divina.
A outra diferença foi a formação de um culto orientado
para aquela presença espiritual. Hinos, orações, aclamações e
doxologias foram compostos e utilizados quando os cristãos se
reuniam em nome de Jesus. Refeições e outros rituais de
congregação celebravam, tanto a memória de Jesus, como a
presença de seu espírito.
Estas características são distintas e apontam o culto de
Jesus como sendo, estritamente, diferente dos movimentos de
Jesus, conforme já observamos. Como explicar essas diferenças
tem sido a tarefa dos estudiosos que hoje já aprenderam o
suficiente para rastrear essas mudanças, que transformaram os
movimentos de Jesus no Culto de Jesus. Neste tópico,
estaremos apresentando a estória dessas transformações e
oferecendo explicações para os mitos e os rituais que estes
povos de Cristo produziram.
As evidências para estudarmos o culto de Jesus são,
principalmente, oriundas das cartas de Paulo, escritas durante os
anos 50. Se não fosse pela sua correspondência com estas
congregações, talvez nunca soubéssemos que estes cultos
143
OS ESSÊNIOS E O CRISTIANISMO
existiam, pelo menos não em período tão antigo e, certamente,
sem o auxílio das vigorosas comunidades vivas que os
estudiosos foram capazes de reconstruir.
Quando se analisa este primórdio da religião cristã, assim
como o especialista cristão tem que se abster da fé para poder
fazer uma análise historiográfica, também os não-crentes, em
sentido oposto, tem que compreender o que significou para o
crescimento do cristianismo a exuberância do espírito de Paulo,
se visto por dentro de sua fé. Nós pouco saberíamos sem Paulo,
pois mesmo as comunidades cristãs mais antigas, que
continuaram
o culto de
Cristo não foram, capazes
de
compreender a complexa mitologia dos primeiros Cristãos
refletidos nas cartas de Paulo. Se tivéssemos apenas as
tradições primitivas de Jesus para construir as origens cristãs,
nenhum estudioso moderno teria imaginado que algo como o
culto Cristão poderia ter se desenvolvido a partir delas.
Desta maneira, as cartas de Paulo são uma preciosa
dose de evidência do experimento social do primeiro século que
de outra forma nos seria inimaginável. Suas cartas são tão
importantes para o nosso conhecimento do culto Cristão como o
são os Manuscritos do Mar Morto para o nosso conhecimento da
comunidade de Qumram.
Entretanto, as cartas de Paulo dizem muito mais sobre o
próprio Paulo e do seu entendimento do culto de Cristo do que
sobre o culto para o qual ele se converteu. Precisamos, pois,
distinguir entre os dois, se quisermos compreender o culto
Cristão como algo que já existia na ocasião em que Paulo o
encontrou. O culto Cristão marcava sua presença de modo a
144
OS ESSÊNIOS E O CRISTIANISMO
gerar em Paulo, no primeiro contato, um sentimento contrário de
hostilidade. Porém, ele deve ter sido atrativo o suficiente para
causar sua conversão posterior. Teremos que explorar estas
cartas e a mente de Paulo para entender o culto Cristão refletido
nestas cartas.
Felizmente, uma boa quantidade de material textual do
culto está disponível através das cartas de Paulo. Isto pode
parecer estranho, uma vez que as cartas são claramente
compostas por Paulo. Mas a feliz circunstância é que Paulo
incorporou nestas cartas, não somente as idéias que havia
absorvido dos Cristãos, mas também fragmentos de sua
produção literária. Estes fragmentos de produção literária não
podem ser colocados juntos formando uma única e grande
composição e, portanto, não temos um texto composto dessas
primeiras comunidades. Mas as pequenas unidades que foram
preservadas compartilham um mesmo teor e manifesta outras
características literárias que o tornam um conjunto coerente.
Estes conjuntos poéticos nos dão suficiente informação, de
maneira a pintar uma figura interessante desse povo ao qual
Paulo odiava, mas não pode resistir. Dado que estas pessoas
foram as primeiras a usar o termo Cristo quando se referiam a
Jesus, podemos imaginá-los como os primeiros Cristãos.
Para isolar esses fragmentos das cartas de Paulo temos
que fixar nossa atenção detalhadamente nas idéias de Paulo e
no uso característico da linguagem. Quando ocorre em uma de
suas cartas, mesmo numa pequena unidade, uma variação da
maneira costumeira de Paulo se expressar é necessário uma
verificação acurada da unidade de texto, especialmente, nos
145
OS ESSÊNIOS E O CRISTIANISMO
casos nos quais a pequena unidade se assemelha com poesias
seguindo
regras
antigas
de
composição.
Nestes
casos,
dificilmente, evitamos a suspeita de que Paulo tenha se valido de
empréstimos
e
muita
argumentos.
Usando
criatividade
material
que
para
era
estabelecer
seus
familiar
estas
a
congregações, embora sob novo formato, Paulo atingia seus
propósitos atuando como um talentoso retórico. Esta atitude não
era incomum naqueles tempos, pelo contrário, o uso de material
da tradição sem, necessariamente, creditar as autorias era uma
prática comum entre os autores Greco-Romanos. Como fazê-lo
era ensinado nas escolas, e fazê-lo bem trazia as mais altas
honrarias.
Assim, tem sido possível identificar e colecionar um
número considerável de unidades literárias pequenas, que
refletem os pontos de vista e as realizações das congregações
Cristãs com as quais Paulo mantinha conversação. Quando se
olha conjuntamente para essas unidades literárias, vislumbra-se
um quadro compreensivo do culto Cristão.
Entre estas peças encontramos pequenas fórmulas de
credo sobre o significado da morte e ressurreição de Jesus
(como em Rm. 3:24-26 e Rm. 4:25) e bem elaborados sumários
do mito Cristão (como em, 1 Cor: 15:3-5). Aparecem também
poemas e orações de Cristo como um Deus (Fl. 2:6-11) e do
amor Agape como poder espiritual (1 Cor. 13:1-13). Aclamações
("Jesus é o Senhor," Fl. 2:11), motivações (tais como "Todas as
coisas me são lícitas," 1 Cor 10:23), e doxologias abundantes
(como por exemplo, "A nosso Deus e Pai seja dada glória para
todo o sempre," Fl 4:20), E existem extratos de alegorias das
146
OS ESSÊNIOS E O CRISTIANISMO
escrituras que revelam uma enérgica atividade intelectual e de
escrita (como exemplo a alegoria da estória do êxodo em 1
Corintios 10:1-5 e dos filhos de Abraão em Gálatas 4:22-26).
A importância desses pedaços de composição literária é
enorme não só porque eles provêem evidência para as
congregações de Cristo para as quais Paulo foi convertido mas
também porque elas sustentam as hipóteses que precisamos
para explicar a transformação do movimento de Jesus em um
culto a Cristo.
Simplificadamente, o que aconteceu foi que o movimento
de Jesus se espalhou pelas cidades da Síria, Ásia Menor e
Grécia aonde atraiu não só judeus vivendo em diáspora bem
como a pagãos. Foram assim formadas, por aqueles que se
reuniam regularmente, células para discutir sobre o reino de
Deus. Surgiram patronos entre os que eram capazes de
hospedar estas reuniões em suas casas. As refeições tornaramse, naturalmente, a ocasião para as reuniões e comer junto
tornou-se a marca dos que pertenciam ao novo agrupamento. O
novo agrupamento desafiou de início preconceitos étnicos e
sociais devido à sua constituição missegenada e liberou
considerações precipitadas sobre novas maneiras de experiência
comunitária.
A
proposta
estava
lançada.
Participação
nos
grupamentos que falavam do reino de Deus era o mesmo que
pertencer ao reino de Deus. E esta associação envolvia todos,
independente da identidade social costumeira. Assim, uma nova
mentalidade nascia. Era a idéia de que a participação em uma
comunidade devia ser definida tendo como base uma mesma
147
OS ESSÊNIOS E O CRISTIANISMO
visão social compartilhada e não por marcas tradicionais de
identidade étnica ou classe social. Foi certamente esta
característica da nova formação social, que se tornou irresistível
a Paulo. Assim ele se expressou sobre isto tão logo conseguiu
vencer seus antagonismos à idéia; "Nisto não há judeu nem
grego; não há servo nem livre, não há macho nem fêmea, porque
todos vós sois um em Cristo Jesus" (Gl 3:28). Tal afirmação é,
naturalmente, um puro exagero, mas atinge o cerne da questão.
Mas lançar a idéia é uma coisa, e convencer-se a si
próprio e aos outros que ela é uma verdade é outra. A primeira
tentativa de ser mais preciso a respeito de identificar o reino de
Deus como o "povo de Deus" encontrou dificuldades. A razão
residia no fato de que esta noção estava enraizada no conceito
de Israel, e o conceito de Israel pertencia aos judeus. E os
gentios? Como apagar os limites étnicos? Como poderia a
tradição de Israel ajudar se ela transformava os gentios em
cidadãos de segunda classe? E supondo-se que a noção de
Israel fosse expandida para receber os gentios, como ficariam os
códigos tradicionais judaicos de rituais e de devoção? Seriam
eles ainda aplicáveis? Mesmo para os gentios? Seriam todos
eles ainda aplicáveis? E se não fossem, não estariam os cristãos
numa embaraçosa competição com as sinagogas da diáspora
aonde os judeus e gentios tementes a Deus tinham propostas
maiores em nome de Israel? Se assim fosse, como deveria ser o
argumento para que a proposta cristã fosse considerada razoável
e correta? Como deveriam ser os códigos de comportamento?
Quais seriam as marcas que distinguiriam aqueles que
148
OS ESSÊNIOS E O CRISTIANISMO
pertencessem à comunidade cristã? O que na realidade fariam
os cristãos quando se reunissem?
Estas questões devem ter surgido e criado uma agitação.
Fazer
uma
proposta
de
que
um
grupo
missegenado
representasse o plano de Deus para a reconstrução da
sociedade humana não era uma tarefa simples.
Não temos registros de como esses debates foram
conduzidos. O que temos na realidade são apenas os resultados
acordados nas primeiras rodadas de negociações. Estes acordos
estão contidos nos fragmentos do culto Cristão que passaremos
a mostrar.
O MITO CRISTÃO
Os textos mais importantes para trabalharmos sobre a
lógica do culto cristão são encontrados nas cartas de Paulo aos
Corintios (1 Cor. 13;3-5) e Romanos (Rm. 3:24-26 e 4:25). Todos
enfocam o significado que os cristãos primitivos atribuíam à
morte de Jesus e cada um deles trás à luz uma visão distinta e
complementar do sentido de sua morte. Tomados como um
conjunto eles possuem todas as pistas que precisamos para
descobrir os fundamentos do mito. Cada um merece uma análise
específica.
1 Coríntios 15:3-5
Este fragmento tem sido chamado de Kérygma [4]
(proclamação ou evangelho) dos cristão primitivos, nele Paulo diz
149
OS ESSÊNIOS E O CRISTIANISMO
ter recebido esta tradição e a passa em suas orações. Vejamos a
tradição:
Que Cristo morreu por nossos pecados, segundo as
Escrituras;
E que foi sepultado, e que ressuscitou ao terceiro dia,
segundo as Escrituras;
E que foi visto por Cefas, e depois pelos doze.....
A primeira coisa a se notar é o fato deste texto além de
padronizado, ser cuidadosamente composto. Quatro eventos
estão em evidência (morte, sepultamento, ressurreição e
aparição), dois dos quais são fundamentais, a saber, a morte e a
ressurreição do Cristo. Cada um deles é introduzido através de
uma unidade redacional composta de modo a oferecer uma
interpretação para o evento. As unidades para a morte e a
ressurreição estão, formalmente, balanceadas, isto é, elas estão
compostas de linhas ou pensamentos que correspondem a linhas
similares na outra unidade. Esta característica é mais clara na
referência às escrituras, que é repetida em cada unidade, mas
também
aparece como função retórica de cada evento
subordinado. O sepultamento enfatiza a realidade da morte de
Cristo, da mesma forma que a aparição credita a realidade da
ressurreição. Somente no caso do significado primário da morte e
da ressurreição é que existe um pequeno desbalanceamento,
uma vez que a morte ocorreu "por nossos pecados" enquanto a
ressurreição
aconteceu
"no
terceiro
dia".
Esta
fórmula
"querigmática" não foi criada em um momento de inspiração. Ela
150
OS ESSÊNIOS E O CRISTIANISMO
reflete um longo período de trabalho intelectual coletivo, incluindo
acordos sobre a importância do foco na morte de Jesus como o
evento de maior significado para a comunidade, o que
representava este significado, o uso do nome Cristo ao invés de
Jesus, o pensamento de que Jesus tenha ressuscitado, a
importância da referência às escrituras e o tipo de argumentação
que faria com que os dois eventos dependentes se tornassem
reais (sepultamento e aparição).
De maneira a entendermos a linha de pensamentos
contida nesta formulação de credo precisamos explicar duas
mitologias que sustentam a lógica que permeia toda esta
argumentação. Uma é o mito grego da morte nobre. A outra o
mito judaico do mártir. O conceito grego da morte nobre pode ser
rastreado através da história do pensamento grego até suas
origens na honra devida ao guerreiro que morre por seu país (ou
povo, cidade ou leis). Com Sócrates a aplicação do conceito foi
estendida para abraçar a filósofos e mestres que sofreram
banimento e morte em razão de seus ensinamentos. Neste caso
a morte era considerada honrada se o mestre permanecesse fiel
a seus ensinamentos e morresse por eles. Este conceito da
morte nobre era absolutamente fundamental para a visão grega
de cidadania, da honra e da virtude.
A mudança do guerreiro para o filósofo enfatizou o
significado da morte nobre transformando a pessoa que morre
com nobreza em um mártir por uma causa. O requisito para
alcançar-se à virtude de uma morte como essa era a integridade
pessoal (com relação aos ensinamentos ou causas pelos quais
151
OS ESSÊNIOS E O CRISTIANISMO
alguém se dispunha a morrer) e a resistência (ou lealdade à
causa mesmo diante da morte).
Em Blessings and Boundaries Interpretations of Jesus'
Death in Q - David Seeley sustenta que em Q14:27 está a mais
antiga interpretação da morte de Jesus nos escritos Q.
Entre os círculos judaicos o conceito do mártir tomou
outra direção. Transcrita a partir da imagem antiga do guerreiro
que morre por sua pátria e simbolizando essa morte um sacrifício
oferecido em defesa de um povo, a idéia adquiriu para alguns o
sentido de que a morte de um mártir deveria ser eficaz. Com isso
quer se dizer que a morte traria um fim às circunstâncias que a
provocaram e contribuiria para reforçar a causa pela qual teria
perecido o mártir em questão.
Assim a história dos Macabeus que lutaram por uma
Judéia independente dos Seleucidas durante a metade do
segundo século A.C., foi gradualmente se transformando no
martírio dos sete irmãos que "morreram pela lei" e assim
garantiram a derrota do poder estrangeiro contra o qual lutaram.
O mito judaico do profeta perseguido era também popular
naqueles tempos. Variantes mais antigas do mito incluíam as
estórias de José, Ester e Daniel, bem como aparecem em muitos
Salmos que abordam os momentos de resgate dos piedosos em
desgraça. A trama inclui dois episódios principais. O primeiro é a
acusação injusta de deslealdade que coloca o profeta "nas mãos"
de um déspota estrangeiro que ameaça contra a sua vida. O
segundo episódio era a revelação ou descoberta da piedade e
lealdade do profeta pelo déspota. Esta revelação acabava por
152
OS ESSÊNIOS E O CRISTIANISMO
resgatar o homem justo e promover sua elevação a uma posição
honrosa.
A história social dos judeus durante o último período do
segundo templo ameaçou seriamente o final feliz do velho mito
da sabedoria. Assim sendo, embora a honestidade exigia o
reconhecimento de que nem sempre o justo era resgatado das
perseguições, dos poderes estrangeiros e da morte, o conto foi
revisado para garantir ao justo um destino post-mortem,
projetando-se a cena do resgate para um outro tempo e lugar
(em algum outro mundo) depois da morte. O tratado denominado,
As Sabedorias de Salomão, um precioso documento do
pensamento e literatura judaicos, é um exemplo estrito de uma
meditação bem elaborada sobre esta variante do conto, que
acabou encontrando seu lugar na Bíblia cristã. Para qualquer
estudante que queira entender a mitologia dos antigos cristãos,
torna-se indispensável debruçar-se sobre as Sabedorias de
Salomão.
Ambos os mitos, seja o da morte nobre como a revisão
do mito do profeta perseguido, dependiam da morte do
protagonista. Pode-se verificar como eles podem ser facilmente
combinados e na realidade alguns aspectos das estórias de
Macabeus 4 e da Sabedoria de Salomão sugerem que foi
idealizada uma tentativa de fusão das duas tramas. O mito de
Cristo está também enraizado em uma combinação dessas duas
estórias, sendo a morte de Jesus retratada sobre a lógica do
martírio e o significado da ressurreição retirada do conto da
sabedoria. O ligeiro desbalanceamento entre os dois episódios,
que se nota no kérygma acima, é devido, parcialmente, à
153
OS ESSÊNIOS E O CRISTIANISMO
diferença na lógica dos dois contos. Note-se que o significado da
morte de Jesus é creditado como sendo efetivo para a
comunidade ("por nossos pecados"), enquanto o significado da
ressurreição é somente relacionado ao próprio destino e honra
de Jesus.
Três características do texto indicam que pensava-se no
mito do mártir enquanto o mito de cristo era idealizado. A
primeira é o significado crítico da frase "morreu por". Esta é a
única indicação sobre o objeto do kérygma . É a única afirmação
de propósitos, motivação ou efetividade do evento. Sem ela não
se saberia porque a morte de Jesus teria atraído tanta atenção.
Não é apenas mais uma interpretação de se encarar sua morte
dentro do culto. É a única interpretação, e ela aparece
repetidamente dentro das cartas Paulinas, aonde quer que seja
feita referência ao significado da morte de Cristo.
"Morrer por" é um termo técnico para expressar o
propósito do martírio. Aparece também repetidas vezes no
martírio dos Macabeus e somente faz sentido naquele contexto.
Não existe outro significado.
A segunda característica do mito de Cristo, que o
identifica como martirial, é o fato de que o propósito da morte
teria que causar efeito na comunidade cristã como um todo.
Nesse caso o propósito teria algo relacionado com "nossos
pecados". A formulação no plural é extremamente importante
indicando, como realmente acontece, que o martírio estava
sendo pensado em relação à comunidade como uma unidade
social. O aspecto da comunidade a exigir uma defesa por um
mártir é referido como "pecados". O uso do termo pecados trouxe
154
OS ESSÊNIOS E O CRISTIANISMO
complicações para o entendimento do kérygma porque ele é tão
somente entendido com facilidade à luz da posterior visão cristã
sobre pecado, culpa e perdão ou redenção para os indivíduos. A
perspectiva de sua interpretação original ganha força quando se
nota que em outras referências da morte de Jesus o propósito
pode ser simplesmente expresso como "por vós" (no plural) sem
nenhuma menção aos "pecados". (1 Cor. 11:24; Rom. 8:32).
Qual foi então a intenção em caracterizar a comunidade cristã em
termos de seus pecados?
A palavra pecado aparece freqüentemente em textos
antigos judaicos referenciando comportamentos em desacordo
com a Tora. Tora referia-se ao estilo judeu de vida e pecado
referia-se à conduta em desacordo com esse estilo de vida,
códigos ou etiquetas. O termo entretanto, não se referia à
experiência religiosa individual, pecado ou a falha em guardar a
lei; a devoção ou lealdade à lei eram matérias objetivas e o termo
pecadores podia então ser usado para classificar as pessoas
cujos atos ou padrões não eram reconhecidos pela lei do Tora.
Encontramos,
por
exemplo,
a
organização
dos
sacerdotes taxada como de "pecadores" aos olhos dos judeus
que viam nela uma violação do Tora. Encontramos também os
gentios como uma classe inteiramente classificada como
"pecadores", simplesmente, devido a seu estilo de vida não ser
governado pela lei judaica. Portanto, quer parecer que o uso do
termo “pecadores” , tanto no contexto martirial tal como no mito
de Cristo, referia-se ao estilo de vida do grupo, à constituição do
grupo ou à existência problemática em relação às normas
judaicas. Talvez, todas as três razões.
155
OS ESSÊNIOS E O CRISTIANISMO
A terceira característica desse kérygma é a referência a
Cristo sendo "ressuscitado". A palavra grega para ressuscitar não
tem conotação mitológica. Heróis e homens divinos se tornavam
deuses de outras maneiras e as pessoas passavam para outra
vida sem ressurreição. Ressuscitar significava somente acordar
alguém de um sono ou levantar alguém. Usado aqui, como um
eufemismo, para trazer Cristo de volta da morte, ou ressuscitar
um corpo teria como resposta da maioria das pessoas, incluindo
tanto judeus como Gregos, um sonoro "O Quê?". Isto, porque
para os gregos a noção de imortalidade não incluía o corpo. A
imortalidade era entendida, se tanto, como a essência do espírito
(mente, psique e sabedoria) deixando o corpo. Para os judeus, a
imortalidade pessoal era uma idéia problemática, não facilmente
integrável com sua antropologia social e um cadáver era sinal de
impureza e morte. Os judeus supunham que espíritos dos mortos
partiam, não perambulavam ao redor do corpo e o encontro com
um cadáver vivo não era uma experiência considerada
agradável.
Havia apenas uma estória na qual as idéias de
ressurreição de corpos era considerada apropriada e isto era no
final do mundo, quando em alguns apocalipses judaicos, as
pessoas se levantariam de seus túmulos para presenciarem o
julgamento final. Portanto, medo e aversão seriam as reações
naturais de gregos e judeus ao ouvirem relatos sobre uma
pessoa levantar-se após ser morta e enterrada. Porque então a
ênfase no fato de Cristo ser ressuscitado?
A Martiriologia não requeria tal premissa para retratar a
nobreza ou efetividade da morte de uma pessoa. E aonde o
156
OS ESSÊNIOS E O CRISTIANISMO
conto de sabedoria começou a se mesclar com o mito do
martírio, como parece ter acontecido em Macabeus e na
Sabedoria de Salomão, a reabilitação post-mortem do mártir era
esculpida em termos de transformação espiritual, nunca física.
Isto significa que o significado da morte de Jesus como
um martírio para a causa Cristã forçou uma idéia nova e rara.
Mártires morriam por causas reais e já estabelecidas; Jesus teria
que morrer por uma causa ainda não estabelecida. Mártires
morriam nas mãos de forças externas; Jesus teria que confrontar
uma condição dentro da comunidade pela qual ele iria então
morrer. Considerando-se que ambas, causa e condição, eram
altamente
questionáveis
caracterizadas
por
pecados
e
pecadores, a matéria torna-se ainda mais complicada. Desta
maneira não era suficiente o uso da lógica do martírio para
reivindicar a justiça da causa. Era necessário também confrontála também com sinais claros de defesa do mártir. Esta era uma
tarefa difícil pois Jesus era um estranho mártir morrendo por uma
causa
impensável.
A
única
maneira
de
sobrepujar
as
contradições implícitas era exagerar no drama e considerar o
evento do ponto de vista de Deus. O que seria melhor do que ter
o próprio Deus envolvido na ação? Quatro características do
kerygma são resultados diretos desta imaginação.
O primeiro aspecto da teologia do mito é o uso do termo
Cristo , significando que Jesus era imaginado como tendo sido
"ungido" ou aprovado por Deus para o serviço divino. Outro
aspecto é a caracterização da comunidade como "pecadores".
Uma terceira é o apelo "às escrituras", uma reivindicação
implícita que os maravilhosos eventos de Cristo estavam em total
157
OS ESSÊNIOS E O CRISTIANISMO
concordância com o destino que Deus havia engajado e
projetado para a história de seu povo. E uma quarta, é que
aquele Deus tinha aprovado tanto Jesus como sua causa ao
ressuscitá-lo da morte. A voz passiva "ele foi elevado" contrasta
com a ativa "ele morreu por", indicando que um considerável
trabalho de preparação tinha sido dedicado aos tópicos de
operacionalização do drama. Portanto, foi a necessidade de
imaginar o envolvimento de Deus em um, de outra forma,
implausível martírio por uma causa bastante problemática, que
resultou na estranha e grotesca noção de Deus elevando Jesus
dos mortos.
Como veremos, o mito da ressurreição de Jesus atingiu
seu propósito e foi vitorioso, mas nem uma só comunidade cristã
primitiva estava satisfeita com seu nível literal. Era muito bruto
para isso e além do mais o assunto que realmente interessava
tinha pouco a ver com fantasmas e corpos. O que importava era
a causa pela qual Jesus tinha morrido.
Romanos 3:21-26
Este texto da carta de Paulo aos Romanos nos coloca em
contato com um período bastante primitivo do desenvolvimento
do mito cristão. Ele documenta um estágio no pensamento dos
cristãos primitivos que antecede as formulações refinadas do
kérygma . A morte de Jesus estava em foco e seu significado
como martírio tinha sido trabalhada sem nenhuma necessidade
de imaginar-se uma ressurreição. Paulo modelou a formulação
destas idéias a seu gosto acabando por substituir os ditos
158
OS ESSÊNIOS E O CRISTIANISMO
originais com a forma pela qual os citou. Por sorte, os estudiosos
foram capazes de reconstruir o cerne da idéia nos fragmentos
pré-Paulinos. A reconstrução que se segue faz parte de um
estudo detalhado de Sam Williams em 1975:
Nos tempos passados Deus ignorou os pecados dos
gentios.
Mas agora Deus considerou a morte de Jesus como um
meio de expiação por causa de sua fé (plenitude).
Ele fez isso para mostrar justiça, e justificar (ou fazer
justiça) para aquele cuja fé provém da própria fé de Jesus.
Quatro idéias convergem nesta interpretação da morte de
Jesus. A primeira é que Deus levou em conta o problema que
afetava a nova comunidade, no sentido de que a inclusão dos
gentios tinha que ser justificada. A segunda é que Deus
considerou a morte de Jesus como uma expiação pelos seus
pecados. A terceira é que a eficácia da morte de Jesus era
devida à sua fé. E a quarta é que aquele que aprende a ser fiel
segundo o modelo da fidelidade de Jesus está justificado aos
olhos de Deus.
A lógica desta mitologia é extremamente interessante. É
baseada em uma martiriologia na qual considera-se Jesus ter
sido "fiel" e a palavra para isso é pistis, um termo que aparece
nas estórias de mártires para expressar a virtude que lhes é
essencial. Significa algo como "comprometido" e em conjunto
com o termo "resistência" refere-se à firmeza dos mártires,
mesmo diante da morte. A causa pela qual Jesus é fiel não é
159
OS ESSÊNIOS E O CRISTIANISMO
expressada, mas é possível que os cristãos primitivos iniciaram
essa linha de raciocínio imaginando Jesus ter sido fiel a seus
próprios ensinamentos e/ou à visão do Reino de Deus. Isto teria
sido um passo fácil a ser dado, imaginando-se que a morte
convinha para figura de um fundador cuja integridade era
inquestionável.
Assim podemos ver como foi alcançada a transição de
um movimento de Jesus para um culto de Cristo. De qualquer
maneira, esta martiriologia primitiva é sobre Jesus, não sobre o
Cristo. O fator que transformou este martírio em um evento que
justificasse a nova comunidade, e assim desse crédito à idéia de
que a nova comunidade era a causa de sua morte não foi
derivada das próprias intenções de Jesus mas da maneira pela
qual a visão de Deus sobre o evento era entendida.
Os termos estabelecidos para justificar a inclusão dos
gentios em um movimento que se auto-idealizava no modelo de
Israel, o povo de Deus, eram pecadores e justos. Como vimos
pecadores era uma designação genérica para qualquer um e
todos que não viviam de acordo com os padrões judeus de
devoção. Aqueles que atendiam ao padrão eram chamados de
justos. Assim, os termos trabalhavam em par e podiam distinguir
Judeus de gentios com relação à aceitação ou não-aceitação das
leis judaicas e dos padrões de virtude. Desta forma, os termos
eram completamente apropriados para a situação de um grupo
perturbado por sua constituição mista.
Tudo o que temos que fazer é notar que as palavras
justo, justiça e justificar (absolvido como justo), termos usado
nesta mitologia para registrar o julgamento de Deus sobre uma
160
OS ESSÊNIOS E O CRISTIANISMO
comunidade, são todos análogos ao Grego dikaios , que significa
"legítimo" ou "certo". A imagem é aquela de um julgamento, na
qual Deus, o juiz justo, justifica os gentios como membros justos
da comunidade, somente se eles considerassem Jesus na forma
que a mitologia o retratava. Começamos então a perceber
alguma coisa do poder dessa persuasão que cativou a atenção
de Paulo. Estes, pelo menos, são os verdadeiros termos do
argumento que Paulo adornaria como seu evangelho.
A lógica essencial do mito cristão deve estar clara agora
e o trabalho intelectual investido na sua construção deve estar
também óbvio. Vemos o mito desenvolvendo-se, exatamente, no
momento em que o movimento de Jesus se transforma no culto
do Cristo. A necessidade de justificar a inclusão dos gentios,
mudou o foco de atenção de Jesus o mestre e seus
ensinamentos, para focalizar sua morte como um evento
dramático que estabelece a reivindicação do movimento em se
constituir no povo de Deus.
Deve ficar claro que o mito de Cristo não era uma
narrativa da paixão de Jesus, tal qual encontramos nos
evangelhos posteriores. Como martiriologia e especialmente na
sua forma "kerigmática", o mito cristão possui efetivamente um
potencial para tornar-se uma estória. Mas em sua primeira
concepção ele tem pouca relação com reminiscências históricas
e não possui nenhuma motivação para estabelecer este evento,
em qualquer contexto histórico. Somente a figura de Jesus, a
indicação de seu martírio, o envolvimento de Deus e seu
significado para a comunidade são de interesse. Imaginar mais,
privaria o kérygma de sua lógica. Poderia na verdade até destruir
161
OS ESSÊNIOS E O CRISTIANISMO
sua lógica. Dado o propósito do mito, qualquer informação
suplementar na estória, para incluir circunstâncias sociais que
conduziram à morte de Jesus, quem o condenou à morte, porque
o fizeram e o que aconteceu a Jesus e àqueles ao seu redor,
transformaria a apresentação do mito cristão em um forum para
debates políticos, com distinções étnicas e questões acusatórias
fácil e perigosamente detonáveis.
Estas eram as verdadeiras questões que o mito tinha que
sobrepujar. Assim, apenas a motivação de Deus e seu martírio
tinham papel garantido nesta estória. Não existe a mais leve
sugestão, em qualquer texto do corpo Paulino, de que ele ou os
cristãos que ele convertera pensassem de Jesus ou de si
próprios como opositores aos regulamentos do templo em
Jerusalém, como Marcos dirá em seu evangelho. O kérygma e a
narrativa da paixão no evangelho de Marcos, são dois mitos
diferentes e incongruentes.
Podemos também notar que desde que estes mitos são a
primeira referência que possuímos sobre a morte de Jesus pela
cruz e desde que a estória de Marcos é dependente do mito do
martírio no kérygma nós não temos, realmente, condição de
saber nada sobre as circunstâncias históricas da morte de Jesus.
Na verdade, apesar de todo o estudo sobre os movimentos de
Jesus e sobre o culto do Cristo não somos sequer capazes de
afirmar, categoricamente, a existência histórica de Jesus e temos
que endereçar a possibilidade de nunca ter existido um Jesus
histórico. Não existe referência à morte de Jesus na cruz no
material pré-Marcos sobre Jesus. A única possível exceção é o
dito sobre "Quem não carrega a sua cruz e não me segue, não
162
OS ESSÊNIOS E O CRISTIANISMO
pode ser meu discípulo" em Q 14:27 (kai ostiv ou bastazei ton
stauron autou kai ercetai opisw mou ou dunatai mou einai
mayhthv). Mas desde que "a cruz" entre Estóicos e Cínicos tinha
se tornado em uma metáfora para testar o brio das pessoas, esta
passagem não pode ser usada como prova positiva que o povo
de
Q
sabia
que
Jesus
tinha
sido
crucificado.
O RITUAL DAS CEIAS
Outro importante aspecto das Congregações cristãs é o
retrato, pintado por Paulo, da comunidade à ceia em 1 Coríntios
11. O texto é familiar aos cristãos nos evangelhos sinóticos
quando a última ceia com os discípulos provê o roteiro para a
celebração cristã da Eucaristia e da Missa. Na imaginação cristã
o texto Paulino é baseado na recordação da última ceia em que
Jesus antecipa seu sacrifício, dando ao pão e ao vinho
significado simbólico e instruindo seus discípulos praticarem-no
em sua memória ( as ditas palavras de instituição).
1 Coríntios 11: 23-25
Este é outro texto ao qual Paulo denomina a "tradição"
que ele "recebeu" e passou aos Coríntios. A tradição lê-se como
se segue:
O Senhor Jesus , na noite em que foi entregue, tomou o
pão e, depois de dar graças, partiu-o e disse:
163
OS ESSÊNIOS E O CRISTIANISMO
"Isto 'é o meu corpo, que se dá por vós; fazei isto em
memória de mim".
Do mesmo modo, depois de cear, tomou o cálice
dizendo:
"Este cálice é a nova Aliança no meu sangue; todas as
vezes que deles beberdes, fazei-o em memória de mim".
Surpresa pode muito bem ser a primeira reação de
qualquer leitor moderno deste texto. Mesmo após entender a
sofrida lógica do mito cristão, ninguém está, efetivamente,
preparado para esta chocante imagem de Jesus, calmamente
anunciando sua iminente imolação. Os estudiosos do Novo
Testamento não forneceram muita ajuda para que este quadro
fizesse algum sentido. Parte do problema é que a liturgia e
iconografia carregaram esta cena com as tintas da piedosa
devoção a um personagem totalmente divino apresentando
absoluta serenidade face à idéia de seu próprio sacrifício para
livrar o mundo da perdição. Esta imagem tende a frustrar a
análise crítica. Outra parte do problema é que o cenário
dominante das origens cristãs, automaticamente, coloca esta
cena no contexto da narrativa dos evangelhos e a trata como
histórica.
A tarefa da análise poderia ser imaginar como aconteceu,
como se ajustaria com o que sabemos do Jesus histórico, como
os discípulos teriam entendido e o que Jesus queria significar
com isto. Este conjunto de questões que partem do princípio que
esta cena aconteceu, não leva a lugar algum. Assim, a primeira
conclusão é que a cena não faz sentido como história. A cena
164
OS ESSÊNIOS E O CRISTIANISMO
não é histórica mas imaginária. Foi uma criação da congregação
de Cristo em consonância com sua mitologia. As razões para a
mitologia são claras, o que precisamos agora entender são as
razões para imaginar-se esta imagem de Jesus à mesa.
O ponto de partida é a observação de que este ícone
retrata uma ceia. Uma vez que os antigos cristãos se reuniam
para a ceia e desde que Paulo usou este texto da ceia para dizer
algo sobre a maneira pela qual alguns Coríntios estavam se
comportando quando se reuniam para cear, a suspeita é de que
a imagem de Jesus se relaciona com a prática antiga da ceia dos
cristãos. Assim, tudo que temos fazer para compreender o texto
da última ceia é reconhecer que a formação social organizou-se
do modelo de associações, que as reuniões eram reconhecidas
como o momento em que o propósito do grupo era vivenciado e
que os símbolos escolhidos eram mais do que naturais. Não há
nenhum sentido em buscar-se um significado alegórico secreto
do pão e do vinho invocados nas palavras de Jesus. Tanto pão
como o vinho, bem como partir o pão e beber o vinho eram
símbolos básicos, com uma ampla gama de significados
metafóricos. Não são os símbolos, propriamente, mas a estranha
maneira que o significado martiriológico foi aplicado a eles que
causa tanta surpresa no ícone. A morte de Jesus foi um
"sacrifício" que selou uma "aliança" que fundou a comunidade
cristã e a comunidade cristã confirmou esta fundação fazendo de
sua ceia comum uma recordação daquele sacrifício.
Isto
não
significa
que
os
cristãos
tenham
sido
demasiadamente solenes com o ícone que criaram. A descrição
de Paulo sobre o comportamento dos Coríntios durante as
165
OS ESSÊNIOS E O CRISTIANISMO
reuniões mostra que eles não o eram. Desta maneira nosso uso
do termo culto não deve ser confundido com a altamente refinada
experiência ascética associada com o termo adoração . Este foi
um desenvolvimento cristão posterior. O que o texto demonstra é
que os cristãos primitivos meditaram sobre suas ceias realizadas
em comum e verificaram que seria a coisa certa para o povo do
reino fazer. Encontraram assim, uma maneira de confirmar isto
pela associação da ceia com o seu mito. O mito seria logo
lembrado nas
duas
importantes
ocasiões
das
atividades
vespertinas e a ceia seria considerada como "comemoração" do
evento da fundação da comunidade. É esta ênfase sobre os dois
momentos da ceia e sua simbolização que sugeriu um ritual
primitivo. Como esse ritual era realizado, não sabemos.
Entretanto, um ponto deve ficar claro: Os textos da ceia em
Coríntios (e Marcos) não tinham a intenção de servirem de
roteiros para encenação dramática. A noção de sacerdotes
tomando o lugar de Jesus na encenação da "última ceia" não
ocorreu senão em algum momento do terceiro século.
O HINO DE CRISTO
Hino de Cristo é o nome que os estudiosos modernos
têm dado a um gênero de oração poética que aparentemente era
bastante popular entre os círculos dos primeiros cristãos. Existem
vários exemplos no Novo testamento (Fl. 2:6-11;Cl. 1:15-20;Ef.
2:14-16; 1 Tm. 3:16;1 Pd3:18-22;Hb 1:3; e Jo 1:1-18) e muitos
outros na literatura cristã posterior. O mais antigo desses
166
OS ESSÊNIOS E O CRISTIANISMO
exemplos é o poema em Filipenses 2:6-11, outro fragmento préPaulino:
Que sendo em forma de Deus, não teve por usurpação
ser igual a Deus.
Mas aniquilou-se a si mesmo, tomando a forma de servo,
fazendo-se semelhante aos homens.
E, achado na forma de homem, humilhou-se a si mesmo,
sendo
obediente
até
a
morte,
até
a
morte
da
cruz.
Pelo que também Deus o exaltou soberanamente, e lhe deu
um nome que é sobre todo o nome;
Para que ao nome de Jesus se dobre todo o joelho dos
que estão nos céus, e na terra, e debaixo da terra.
E toda a língua confesse que Jesus Cristo é o Senhor,
para glória de Deus Pai.
O hino contém duas estrofes, cada uma possuindo três
linhas dobradas. As estrofes balanceiam uma a outra de forma
que na primeira estrofe se descreve três estágios descendentes
(ou de humilhação) de uma pessoa "na forma de Deus",
enquanto que na segunda estrofe descreve-se três estágios de
exaltação (ou ascendentes). O padrão lembra o kerygma da
morte e ressurreição, mas o foco aqui, no hino de Cristo, não é
mais o martírio. A reflexão sobre a morte crucificado e a
ressurreição como um resgate do mártir não é mais o interesse
primordial. (Alguns estudiosos até ponderaram sobre isso em
virtude da frase "até a morte da cruz" no versículo 8, mas a
maioria concorda que foi Paulo quem introduziu esta linha).
167
OS ESSÊNIOS E O CRISTIANISMO
Este novo mito com seu padrão descendente/ascendente
praticamente anula o kérygma . Ao invés de uma martiriologia, os
cristãos primitivos têm agora um mito de destino cósmico em
suas mãos. Assim o poema não é realmente sobre Cristo; é um
hino sobre Jesus Cristo como Senhor.
Esta é uma mitologia de escala cósmica. No mundo
Greco-Romano, Senhor significa soberano. Precisamos apenas
saber o nome do Senhor em questão para localizar seu domínio.
O Deus de Israel era o Senhor para os Judeus. Outros deuses
eram Senhores para seus povos. O poema diz que Jesus Cristo
é o nome do Senhor acima de qualquer outro Senhor. Esta é
uma estupenda reivindicação, clamá-la para Jesus, o mártir,
certamente viraria muitas cabeças. Assim, temos que nos
perguntar o que causou a idéia de que Jesus tivesse sido ou era
um Deus.
As pistas estão disponíveis nos mitos que estão
mesclados
neste
poema
sobre
Jesus.
Os
estudiosos
identificaram pelo menos três panos de fundo mitológicos para
esse poema. O primeiro é a estória da criança sábia que é
resgatada das forças que a aprisionavam. Que Jesus teria sido
uma criança sábia não era uma idéia nova, pois já estava
presente nas tradições sobre Jesus, como em Q, e era também
um ingrediente básico do mito cristão no kérygma . Na tradição
de Jesus , a idéia de Jesus como uma criança sábia não era
parte da martiriologia. Era baseada na extensão de seus
conhecimentos, conhecimentos estes que somente um homem
divino poderia possuir.
168
OS ESSÊNIOS E O CRISTIANISMO
Uma segunda mitologia em cena era uma caracterização
romântica sobre o rei ou governante ideal. De acordo com este
romance,
desenvolvido
durante
o
período
helenista,
o
"verdadeiro" governante não tiraria vantagem de sua aparência e
poder divinos, mas os deixaria de lado de maneira a servir aos
interesses de seu povo. Note-se que os romances reais
compartilham o padrão humilhação/exaltação com as estórias de
sabedoria.
Uma terceira fonte para o hino de Cristo era um padrão
de mito comum a quase todas as culturas da época, que
estabelecia que os deuses desceriam dos céus, apareceriam às
pessoas como mensageiros, e então retornariam aos céus. Na
mitologia gnóstica isto era altamente desenvolvido. Aqui,
novamente, o padrão descendente/ascendente é o ponto de
correspondência com as duas mitologias anteriores.
Existe também a possibilidade que o livro de Isaias possa
ser uma quarta fonte para alguma das imagens no hino de Cristo.
O servo sofredor descrito em Isaias 52:13 - 53-12 tem a forma de
um servo, que foi humilhado, morto e exaltado. E o estilo de "se
dobrará todo joelho" e "toda língua jurará" traz um paralelo muito
próximo a uma reivindicação feita pelo próprio Deus em Isaias 45
(v. 23).
Ao percebermos que o hino de Cristo é um amálgama
desta três (ou quatro) mitologias, facilmente combináveis porque
possuem um padrão humilhação/exaltação comum, a meditação
refletida que deve ter ocorrido começa a aparecer na superfície.
A forma do kérygma evoluiu através das reflexões posteriores
sobre a nova perspectiva da natureza do ressuscitado. Pensava169
OS ESSÊNIOS E O CRISTIANISMO
se na ressurreição como uma exaltação para a posição de
soberania. O resultado era que agora, a posição de Jesus
suplantava todos os reinos imagináveis, dentro de uma
perspectiva cósmica. Assim, Jesus podia ser cantado com o
Senhor de tudo.
Entretanto, isto apenas torna claro o processo da
criação do mito, no sentido desse ou daquele arranjo de idéias
para produzir uma imagem poética orgânica. Não engaja os
fatores críticos ou circunstâncias sociais ou interesses de grupos
que tivessem motivado ou pleiteado por tal mito. Não responde à
pergunta porque as congregações cristãs primitivas desejaram
ou necessitaram fundir esses mitos.
Assim, precisamos notar que o culto de Cristo tinha
encontrado uma série de questões embaraçosas em função de
suas reivindicações extravagantes. Se eles não estavam mais
vivendo em acordo com os costumes de suas culturas herdadas
o que dizer de sua lealdade aos poderes constituídos
prevalecentes? Deveriam os cristãos observar as regras, os
governantes e os sistemas de autoridade que esperavam sua
obediência? Se não, que autoridade poderiam esses cristãos
primitivos reivindicar para viverem como se pertencessem a outro
mundo, outra ordem social? O hino de Cristo era sua resposta a
estas questões. É o canto de uma congregação que viria a
enxergar-se como parte de um "reino" que era superior e
independente dos reinos do mundo. O novo mito não era o
resultado de uma mera especulação ou de um desejo ardente de
possuir uma divindade protetora. Nem era o resultado de
experiências religiosas pessoais de algum visionário que poderia
170
OS ESSÊNIOS E O CRISTIANISMO
"ter visto (o Deus) Jesus" , forma que alguns Cristão modernos
interpretam Paulo. Não. O mito imergiu enquanto lutando com um
conflito de autoridade. Era a resposta à ardente questão sobre
quem tinha o direito de definir procedimentos e controlar suas
obediências e fidelidades. Podemos estar seguros disso porque o
denominador comum de todos esses mitos não era a divindade
das figuras míticas envolvidas, mas sua soberania. O verdadeiro
absurdo das reivindicações de Jesus como o Senhor de todos,
sinaliza o embaraço que a questão da autoridade se colocou
primeiramente para estes cristãos.
O hino de Cristo revela então que aqueles cristãos se
consideravam muito seriamente como uma sociedade alternativa.
Eles pensaram sobre as formas que suas congregações diferiam
de outras formações sociais e procuraram maneiras de expressar
o quanto sua visão de comunidade humana era melhor para as
pessoas viverem juntas no mundo. O hino de cristo era a
resposta a este pensamento crítico. Assim, também o hino de
Cristo era o resultado ao protesto dos cristãos terem apenas um
rei, Jesus.
Que reivindicação audaciosa! Comparado com outros
reinos do mundo ou mesmo com outros grupos com raízes em
antigas tradições étnicas, nacionais ou religiosas estes cristãos
não eram nada além do que células de pessoas desgostosas
experimentando uma nova noção social. Não tinham status,
poder ou tradição cultural próprias e clamavam um Senhor mais
exaltado que o imperador romano e tão exaltado como o Deus de
Israel. Tão absurdas e pretensiosas reivindicações traziam perigo
intrínseco para as boas relações com seus vizinhos. E era
171
OS ESSÊNIOS E O CRISTIANISMO
exatamente esta audácia que recomendava o reino de Deus aos
primitivos cristãos como a melhor maneira de expressar sua
identidade e transmitir o que é que eles representavam.
Considerar-se membro de tal reino pode ter sido uma
opção muito atrativa para aliciar pessoas e a transformação do
movimento de Jesus em um culto de Cristo, não ainda de
adoração mas no qual Jesus Cristo era aclamado como o senhor
do universo, marca uma importante conjuntura do início do
cristianismo.
172
OS ESSÊNIOS E O CRISTIANISMO
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