1 IMANÊNCIAS NA TELA: a dissecação artística do corpo mediada pelas tecnologias da videodança Ana Flávia Mendes1 RESUMO O presente artigo tem como intenção verificar os conceitos de imanência e dissecação artística do corpo no contexto da videodança. A ideia é pensar sobre esses conceitos, inicialmente aplicados à dança de caráter presencial, em uma linguagem de interface entre dança e vídeo no sentido de reafirmá-los e/ou complementá-los. Traça-se, então, uma reflexão sobre o uso do vídeo como estratégia para dissecar o corpo, virtualizado no espaço e no tempo a partir da interferência de uma câmera e de um programa de edição de imagens. Palavras-chave: Dissecação artística. Dança imanente. Corpo virtual. ABSTRACT This article’s intention is to verify the application of concepts as immanence and artistic body dissection in the videodance context. The idea is to think about these concepts, used first in present dance, in one interface language between dance and video in order to reaffirm and/or complement them. Then, one reflection is made under the use of video as strategy to the body dissection, virtualized in space and time by a camera and one images edition software interferences. Key words: Artistic dissection. Immanent dance. Virtual body. 1 Ana Flávia Mendes é doutora e mestra em Artes Cênicas pela Universidade Federal da Bahia, professora efetiva da Universidade Federal do Pará (Instituto de Ciências da Arte/ Escola de Teatro e Dança), fundadora e diretora artística da Cia Moderno de Dança. É membro dos grupos de pesquisa PACA – Pesquisadores em Artes Cênicas na Amazônia e Poéticas Tecnológicas da Dança. 2 Para refletir sobre meus experimentos em videodança, proponho inicialmente rememorar alguns pontos relativos à dança contemporânea, pois, em meu entendimento, os princípios que regem uma e outra são semelhantes. Reporto-me, aqui, a características como a multiplicidade, a interdisciplinaridade e o hibridismo, além da liberdade criativa, já que essas danças não se encontram formatadas por padrões estabelecidos previamente, mas por um amplo espaço para experimentação e descoberta de formas. A dança contemporânea caracteriza-se pela diversidade de poéticas e modos de fazer em que prevalecem a multiplicidade de técnicas. Diante da dificuldade de defini-la, Siqueira (2006) propõe falar em danças contemporâneas, explicando que não se trata de um gênero de dança delimitado pela unicidade. Pelo contrário, por abraçar diferentes técnicas e metodologias, tem a pluralidade como princípio, razão pela qual se torna possível a referência ao termo de modo pluralizado, isto é, danças contemporâneas. A autora vale-se da imagem de um guarda chuva para argumentar que a dança contemporânea é uma estética que abrange diferentes poéticas. Dentre elas destacam-se a dança pós-moderna, a dança-teatro e o teatro físico, por exemplo. Trata-se, assim, de um conjunto múltiplo de poéticas contemporâneas de dança. Silva (2005) estuda os princípios da pós-modernidade aplicados à dança e constata que não somente a pluralidade, mas a interdisciplinaridade e a liberdade de criação, em meio a outras características, constituem-se como preceitos das poéticas contemporâneas de dança. Um dos pontos levantados pela autora é o corpo nestas danças, refletido, discutido e apresentado cenicamente como forma e conteúdo de obras coreográficas. Em síntese, é possível dizer que, em meio à diversidade de poéticas, uma das tendências da dança contemporânea é a metalinguagem2 do corpo. Em meus estudos de doutorado propus chamar isto de metacorpo. A partir desta noção compreendo que haja uma confluência entre vida e cena, uma vez que o corpo dança a si mesmo, conferindo ao dançarino maior espaço para a subjetividade. 2 A metalinguagem decorre da metalinguística, isto é, da maneira segundo a qual uma linguagem fala de si mesma, em forma de função acentuadora de seu próprio sentido e reveladora de seu próprio instrumento. Cf. JAKOBSON, R. Linguística e comunicação. São Paulo: Cultrix, 2001. 3 Ressalto que o conceito de corpo aqui apresentado não é compreendido pelas lentes dicotômicas que tendem a separar matéria e emoção, carne e espírito. O corpo que dança a si mesmo dança sua própria emoção encarnada. A subjetividade a que me refiro não é oposta à noção de objetividade, ou ainda, para esclarecer nossa compreensão ocidental, trata-se de uma subjetividade objetivada naquilo que, no senso comum, em oposição à noção de mente, entendese como corpo. Refiro-me a essa oposição apenas como estratégia para esclarecer que em minha abordagem de dança penso corpo e mente como uma só instância. Não há submissão de um ao outro e não há distinção entre sujeito e objeto. O corpo é o sujeito, a dança é o corpo e, logo, a dança é o sujeito e, uma vez que o corpo investiga a si mesmo para criar a dança, ele é objeto de si. De um modo ou de outro, é na indistinção que consiste o que entendo como metacorpo. A dança, neste sentido, contribui e corrobora a abordagem de corpo aqui apresentada. Na dança do metacorpo é a imanência que informa o processo criativo. Deleuze (s/d, p. 2) explica que “a imanência não se remete a alguma coisa como unidade superior a todas as coisas nem a um sujeito como ato que opera a síntese das coisas. [...]. A pura imanência é uma vida, nada mais”. É da vida que se fala quando se fala em corpo. É da vida que se fala quando se fala em dança. Falo, portanto, de uma dança imanente, que se utiliza de imanências para conceber a cena. Deleuze e Guatarri opõem a imanência à transcendência e esclarecem que a primeira, ao contrário da segunda, não é algo distante e inatingível, mas sim, algo que é a própria vida. Os autores explicam que “a imanência só é imanente a si mesma, e então toma tudo, absove o TodoUno, e não deixa subsistir nada a que ela poderia ser imanente. Em todo caso, cada vez que se interpreta a imanência como imanente a Algo, pode-se estar certo de que este Algo reintroduz o transcendente” (2000, p. 63). A transcendência não cabe nas expectativas dos filósofos, pois o imanente não está subjugado ao transcendente, ou melhor, o imanente não está subjugado a nada que não seja a própria imanência. O conceito de Deleuze e Guatarri tem origem na filosofia de Espinosa3. Para este filósofo a imanência está relacionada a afirmação de que Deus é “uma única substância diferenciada infinitamente em qualidades infinitas” (MOSTAFA e NOVA CRUZ, 2009. p. 52). Espinosa concebe um plano de imanência radicalmente contrário à transcendência. Ao aproximar Deus 3 Baruch de Espinosa (1632-1677), filósofo holandês. 4 dos homens distribuindo-o na natureza de tudo e todos, o filósofo rompe com a transcendência e promove, de certa forma, um modo de materizalização do transcendental. Ou, para usar uma argumentação menos eufêmica, Espinosa desconsidera a existência da transcendência, situando Deus como imanência. Em minha pesquisa de doutorado propus construir uma dança imanente a partir de uma estratégia que denominei de dissecação artística do corpo. Esta dissecação deu-se por meio de uma experiência criativa com a Companhia Moderno de Dança, resultando, além do produto teórico (tese), em um produto artístico, o espetáculo Avesso. A criação de Avesso configurou-se como um exercício de dissecação a partir do centramento dos dançarinos/intérpretes-criadores em si mesmos, considerando para tal, as imanências. A dissecação artística é uma proposição que se fundamenta na noção oriunda das ciências biológicas, mas que vai além das considerações desta área de conhecimento. Para os estudiosos da saúde, dissecar consiste em separar as estruturas do corpo a fim de estudá-las em detalhes. Segundo o Dicionário de Termos Médicos trata-se de “separar com instrumental cirúrgico ou não, os componentes anatômicos de um corpo, por doença, com finalidade de estudo ou para execução de um procedimento” (LEITE, 2007). A ação de dissecar, entendida deste modo, focaliza seu olhar sobre o corpo restringindo-o à fisicalidade como matéria prima para o estudo. Tomando o conceito emprestado para as artes, é possível pensar em outras dimensões para o mesmo. Dissecar em arte, mais que separar o corpo em partes para conhecer a estrutura de sua anatomia, é subverter o próprio sentido da anatomia, comungando das noções contemporâneas de corpo e considerando como corpo as estruturas que vão além da matéria. É deixar-se perceber o que mais há no corpo além de ossos, músculos, órgãos, ou ainda, procurar nessas estruturas a própria história de vida do corpo. Para chegar às imanências por meio da dissecação, o processo de criação do espetáculo Avesso desenvolveu-se a partir de estratégias metodológicas de aprimoramento da consciência do corpo, destacando-se aí o Body-mind centering4 e a conscientização do movimento proposta por Angel Vianna5, além do uso de exames médicos diagnosticados por imagem. 4 O Body-mind centering (BMC) é um método de trabalho corporal inserido no campo da educação somática. Cf. COHEN, Bonnie Bainbridge. An introduction to Body Mind Centering®. Disponível em: <http://www.bodymindcentering.com>. Acesso em: 25 ago. 2005. 5 Angel Vianna, bailarina e coreógrafa brasileira residente no Rio de Janeiro desenvolveu, ao longo de sua carreira, um intenso trabalho de pesquisa para a preparação corporal de atores. A conscientização do movimento é uma 5 O espetáculo carcteriza-se, tanto em processo quanto em produto, como estética que fala aos diferentes sentidos, razão pela qual prefiro entendê-la como uma estética multisensorial. Aos dançarinos cabe perceber suas imanências não somente pelo sentido visual, mas por todos os demais sentidos, sendo criada, portanto, uma dança cuja plasticidade não se fundamenta em técnicas formais, mas sim nas referidas percepções. “Estamos numa estética de forças e não uma estética de formas” (BARDAWIL, 2008, p. 14). É importante salientar, entretanto, que se tratou até aqui de dança contemporânea enquanto dança presencial. Minha intenção é pensar sobre a aplicabilidade dessas noções na condição da videodança e, talvez, pensar a videodança como uma poética contemporânea de dança situada no guarda chuva proposto por Siqueira. A questão é: como é dissecar artisticamente o corpo por meio das tecnologias comuns a esta dança? Antes de iniciar as argumentações sobre o questionamento aqui posto, proponho apresentar o que viria a ser a chamada videodança. Para tanto, é necessário explicar em que contexto ela se insere. Santana (2006, p. 11) a situa naquilo que denomina de cultura digital, explicando que “a cultura digital é esse universo caldaloso que tem propiciado a emergência de novos fenômenos pela inevitável implicação entre o que somos e aquilo que temos aprendido, produzido e recolocado no mundo”. Segundo a autora a cultura digital seria a condição de infinitas possibilidades propiciadas pelas tecnologias das quais dispomos na contemporaneidade. Trata-se de um mundo “paralelo” ao qual cada vez mais pertencemos, na medida em que interagimos com ele, alterando-o e sendo por ele alterados. Na cultura digital é possível situar o computador, a internet, os chips, a televisão e tantos outros aparatos comuns à era digital. Ao estudar a dança na cultura digital destaco algumas tendências desta linguagem artística. Essas tendências não são categorias fechadas e podem ser verificadas em uma mesma obra, até mesmo confundindo-se. Proponho a argumentação sobre elas, porém, apenas a título de organização, para propiciar ao leitor um breve panorâma das possibilidades da dança na cultura digital. proposta metodológica que tem como intuito promover, ao seu praticante, o aprimoramento da consciência corporal. Cf. TEIXEIRA, Letícia. Conscientização do movimento. In: Julieta Calazans, Jacyan Castilho e Simone Gomes (coords.). Dança e educação em movimento. São Paulo: Cortez, 2003. 6 Uma das tendências que localizo é a criação da dança mediada pelas novas tecnologias, que se caracteriza como experiência que ultrapassa o uso das tecnologias digitais apenas como ferramenta cenográfica para o produto artístico e recorre a essas ferramentas no próprio processo criativo. Isto significa que a dança está na dependência dos aparatos tecnológicos digitais. Na verdade, trata-se de uma relação de interdependência, tendo em vista que dança e tecnologias digitais criam e são criados mutuamente. Como exemplo é possível citar Merce Cunningham, coreógrafo norte americano que, por meio de um programa de computador, o Life Forms, criava movimentos inicialmente dançados pelo corpo digital de um dançarino computacional e, em seguida, pelo corpo do dançarino propriamente dito. Outra tendência que observo é criação da dança para o ambiente virtual da internet, como é o caso da Companhia Mulleras, que realiza uma proposta com dança no universo da web. Desenvolvendo uma linguagem de videoclip e com uma configuração específica determinando a melhor configuração de imagens para o ambiente de rede, o usuário pode assistir a uma série de pequenos arquivos em movimento (...) que fazem parte da obra Mini@tures. (...). O trabalho dos Mulleras parece abordar a busca da tecnologia pela miniaturização (SANTANA, 2006, pp. 110 – 111). Por fim, destaco a tendência da dança na cultura digital que diz respeito especificamente a estes escritos: a videodança. Segundo Galanopolou (2008, p. 19), “videodança é um ponto de encontro entre a dança e a câmera”. A autora complementa seu raciocínio explicando que “a câmera torna-se cúmplice do coreógrafo; uma câmera-coreógrafa que recompõe a coreografia” (p. 21). O fato é que a videodança é uma das formas com que a dança se articula com o vídeo e, obviamente, com a câmera. Podem existir outras formas, tais como o documentário, a vídeo instalação coreográfica e, até mesmo, o registro de dança. A videodança, porém, possui a particularidade de ser um acontecimento especificamente criado para uma tela e construído a partir do enfoque da câmera que seleciona a imagem e direciona o olhar do espectador. Trata-se de uma linguagem híbrida e de interface entre a dança e o cinema que opera numa zona interdisciplinar e, portanto, abrange um dos princípios da pós-modernidade. 7 Ressalto que a videodança não se limita ao uso do corpo humano para a construção de obras, podendo ser concebida a partir de fontes como paisagens naturais e objetos diversos, dentre outras referências. Entretanto, sendo os conceitos de imanência e dissecação os pontos de partida para esta argumentação, pretendo centrar minhas reflexões sobre a presença do corpo na linguagem da videodança. “Um campo experimental em visão e movimento, a videodança é o que o seu material – o filme – permite-lhe ser: material para experimentar, um meio criativo, enquanto ao mesmo tempo, talvez inconscientemente, preserva imagens como material de arquivo” (GALANOPOLOU, 2008, p. 21). É essa abertura para o experimento em dança que, particularmente, me interessa. Penso que a permissividade propiciada pela videodança, no que diz respeito à criação de imagens, assemelha-se à permissividade da dança contemporânea em sua disponibilidade para o inusitado na criação de movimentos. Isto é, assim como na dança contemporânea, é possível inventar padrões em detrimento de seguir outros já existentes, na videodança pode-se reinventar o corpo, o espaço e o tempo na combinação de imagens. Liberdade criativa, eis outro princípio da pós-modernidade em que a dança contemporânea e a videodança se tocam. A videodança, porém, por meio de suas tecnologias, amplia ainda mais esta liberdade. À câmera soma-se o recurso da edição e estas tecnologias atuam como ferramentas para subverter a própria dança e, portanto, o sujeito, isto é, o corpo. O que é limitado pelo tempo e espaço reais, pode ser ampliado, miniaturizado ou suspenso por intermédio das tecnologias digitais. Nesta dança da cultura digital, o inimaginável pode ser realizado. Se na dança contemporânea as imanências são investigadas e tornadas coreografia, na videodança é possível reinventar as imanências ou até mesmo descobrir e revelar imanências que os sentidos humanos não captariam sem o uso de recursos como a câmera e o programa de edição de imagens. As imanências são investigadas no corpo, mas também na câmera e na edição. Os resultados da ação de dissecar são ampliados para além do movimento humano. A dissecação não acontece como na dança presencial, em que o coreógrafo lança um estímulo ao dançarino e este pesquisa em si aquilo que irá dançar. Na videodança, o procedimento da dissecação consiste em perceber as imanências e transfigurá-las em arte por meio da soma dos esforços de ambos os lados, o da dança e o do vídeo. “As demandas são outras e, para construir esta relação entre dança e tecnologia, seja ela de interatividade, de justaposição, 8 ou de qualquer outro tipo de co-existência, é preciso um mecanismo organizador e balizador de todas as partes envolvidas” (SANTANA, 2006, p. 111). A proposta aqui apresentada pretende descobrir esses mecanismos a fim de utilizá-los na estratégia da dissecação artística do corpo. Na videodança, quem pesquisa e cria os movimentos de dança trabalha conjuntamente com quem capta e edita as imagens. Captar e editar as imagens, por sua vez, ultrapassam as ações de olhar a dança e registrá-la, mas requerem pensar no corpo, no espaço e no tempo que se deseja imprimir na obra. Isto é algo que precisa ser negociado e compartilhado entre os artistas das linguagens em questão. Todos esses elementos são determinantes para algo elementar em processos de criação em videodança: a virtualização do corpo. A palavra virtual vem do latim virtualis, derivado por sua vez de virtus, força, potência. Na filosofia escolástica, é virtual o que existe em potência e não em ato. (...). Em termos rigorosamente filosóficos, o virtual não se opõe ao real mas ao atual: virtualidade e atualidade são apenas duas maneiras de ser diferentes (LÉVY, 1996, p. 15). A atualização é a transfiguração de algo já existente potencialmente. A atualização inventa e apresenta uma solução. É possível exemplificar esta noção na dança presencial quando se pensa que o sujeito dançante contém potencialmente, como imanência, a sua dança, que se atualiza mediante a experiência do processo de criação, resultando em dança de fato. Já a virtualização, conforme explica Lévy (1996, p. 17) “pode ser entendida como movimento inverso da atualização”. Pela virtualização o atual pode tornar-se realidade. O autor argumenta que a virtualização é um dos vetores da realidade. Isto significa dizer que, se na dança presencial, a imanência é atualizada em coreografia, na videodança, a imanência atualizada na coreografia do dançarino é virtualizada em vídeo, criando, então, uma outra realidade. Nesse sentido, a videodança virtualiza o corpo que dança. Para compreender o processo de virtualização do corpo, Lévy propõe refletir sobre a percepção, cuja função é virtualizada pelos sistemas de telecomunicação. 9 O telefone para a audição, a televisão para a visão, os sistemas de telemanipulações para o tato e a interação sensório-motora, todos esses dispositivos virtualizam os sentidos. E ao fazê-lo, organizam a colocação em comum dos órgãos virtualizados. As pessoas que vêem o mesmo programa de televisão, por exemplo, compartilham o mesmo grande olho coletivo. Graças às máquinas fotográficas, às câmeras e aos gravadores, podemos perceber as sensações de outra pessoa, em outro momento e outro lugar. Os sistemas ditos de realidade virtual nos permitem experimentar, além disso, uma integração de modalidades perceptivas. Podemos quase reviver a experiência sensorial completa de outra pessoa (LÈVY, 1996, p. 28). A virtualização é algo mais próximo do que se imagina e está, seguramente, no cotidiano contemporâneo. O fato de uma pessoa virtualizar-se, seja em um e-mail, seja em um site de relacionamento ou em um blog, faz com que ela passe a existir em outros mundos, paralelos ao real. O corpo vive, assim, a experiência da onipresença. A virtualização por meio da videodança possibilita essa experiência da onipresença e, logo, a multiplicação da sensorialidade do corpo que dança para a câmera. O dançarino desdobra-se do tangível ao recortado e esses recortes se multiplicam e se dispersam em imagens e sonoridades que atravessam o tempo e o espaço. Transmite-se, pela videodança, não somente imagens de um corpo, mas sua presença virtualizada; sua onipresença. O espectador, por sua vez, para assistir a uma obra de videodança, aguça sua percepção visual e sonora, além de aguçar também o tato, sentido imprescindível para que se estabeleça o primeiro contato com a obra, que parte da ação de clicar o botão play de um aparelho leitor de vídeo. Aproveito-me das reflexões em pauta como lente para observar os recentes experimentos de meu projeto de pesquisa realizado na Univerisidade Federal do Pará (UFPA), o qual tem título homônimo a este artigo. Na pesquisa em questão tenho verificado um relevante peso conceitual, traçado a partir dos estudos acerca da abordagem de Deleuze e Guatarri, tanto em nível teórico quanto prático, até porque um dos objetivos do projeto consiste em verificar a aplicabilidade dos conceitos de imanência e dissecação artística, instituídos inicialmente para a dança presencial, no contexto da vídeodança. 10 Na pesquisa em questão, ainda em andamento, considera-se três pontos de vista, que são: 1) O de quem está diante das câmeras (dançarino/ intérprete-criador); 2) O de quem está por trás das câmeras (video maker e diretor); 3) O de quem atua com os resultados obtidos pelas câmeras (editor). Participo da pesquisa como coordenadora do projeto. Além de mim, fazem parte da equipe um aluno bolsista de iniciação científica, alunos orientandos interessados no tema e um grupo de dançarinos voluntários. A ideia é oportunizar aos envolvidos a vivência dos diferentes pontos de vista a que me referi anteriormente. Deter-me-ei, por enquanto, a falar de minha experiência particular. Na qualidade de coordenadora da pesquisa optei por exercer, para além das três funções (pontos de vista) citadas, a tarefa de conceber a proposta artística. Com base no conceito de imanência como princípio e de dissecação como procedimento, foram executados, até o presente momento, quatro obras. A título de exemplicaficação, falarei neste artigo sobre a primeira dessas obras, em que tive o privilégio de estar diante das câmeras e atuar como intérprete-criadora, além de assinar a edição das imagens. A criação da obra em questão foi norteada por um ponto-chave: o lugar, que deveria estar ligado à minha própria história de vida a fim de transfigurar imanências para o vídeo. O lugar selecionado foi o campus básico da UFPA, localizado às margens do rio Guamá, na cidade de Belém, e com o qual possuo laços afetivos devido ao exercício profissional de meus prógenitores que, desde minha infância, já transitavam, e me faziam transitar, pela UFPA. No experimento, denominado de Tempo Verde, a imanência foi acionada pelo tempo (época) e pelo espaço (lugar) que, por sua vez, determinaram a fotografia, o ângulo, o movimento da câmera e o meu próprio movimento. Nesta etapa contei com o auxílio do aluno bolsista e de um voluntário da pesquisa, que exerceram a função de assistente e video maker, respectivamente. A partir da captação das imagens teve início a etapa de edição, que fiz questão de assumir pessoalmente a fim de experimentá-la como recurso de dissecação. Nesta etapa, o computador e o programa de edição foram as ferramentas facilitadoras da dissecação. Na edição, como na captação, as imanências foram transfiguradas, desdobradas, transformadas em arte. Câmera e edição apresentaram-se como elementos de detecção, recorte e reconstrução de imanências, as quais impulsionaram a criação em vídeodança. 11 Na experiência da dança presencial, sobretudo no caso do espetáculo Avesso, as imanências foram buscadas no corpo, porém, considerando a fisicalidade como referência primeira e trazendo em seu pano de fundo elementos como tempo e espaço de uma história de vida. Diante do corpo (carne) mediado e virtualizado pela lente da câmera, a abordagem da videodança, por sua vez, teve como referência mais urgente outras imanências, situadas em aspectos menos físicos, se é que é possível, quando se trata de corpo, pensar a fisicalidade sem considerar tudo o que a ela se refere como, por exemplo, a cultura. O conceito de corpomídia (GREINER, 2005) elucida exatamente isto, argumentando que a cultura está inscrita no corpo, isto é, na fisicalidade. O corpomídia entende o corpo como agenciador entre natureza e cultura, de modo que não somente a genética determina as características de um ser, mas também o meio em que este se insere tem a propriedade de ser parte de sua fisicalidade. De um modo ou de outro, ao que parece, o exercício da criação artística em vídeodança a partir de imanências corrobora o que é defendido pelo corpomídia e por demais abordagens contemporâneas de corpo. Por meio do experimento Tempo Verde observo uma inclinação metalinguística de corpo que vê o corpo não somente na carne, mas também na memória. É claro que na dança presencial do espetáculo Avesso a memória esteve materializada na carne, pois, como já fora visto, o que não é matéria torna-se material desenhando o corpo enquanto forma e conteúdo. O que percebo em Tempo Verde, porém, é que a experiência facilita a compreensão sobre as reflexões envolvendo natureza e cultura na construção do corpo. No mais, a “ausência” da carne no ambiente virtual do vídeo, faz com que outros recursos sejam necessários à dissecação. As estratégias inicialmente elencadas para a dança imanente presencial são, portanto, ampliadas. O Body-mind centering e a conscientização do movimento, utilizados como prioritários, dão conta, sim, de aspectos físicos e imateriais do corpo na pesquisa de movimentos para a cena, entretanto, no tocante à construção da vídeodança, é preciso mais que isto. Para conceber uma dança em ambiente virtual é preciso dissecar virtualmente, já que a câmera não utiliza o tato. E para dissecar virtualmente é preciso estar ainda mais sensível às imaterialidades. Partindo desse princípio, a dissecação artística enquanto procedimento, a partir da vídeodança, amplia-se, reorganiza-se e recorre a outras estratégias, como o simples ato de traçar paralelos entre passado e presente, ou seja, refletir sobre imanências e potencializá-las a partir do uso de implementos como a câmera e a edição. 12 A videodança amplia a compreensão da noção de imanência, tornando viável aplicar o conceito de Deleuze na dança, não somente como potência atualizada pelas dissecações (autopercepções), mas também como potência atualizada e virtualizada. Ao ser virtualizada na tela da videodança, a imanência é distribuída, compartilhada e manuseada por homens e máquinas, conferindo ao corpo outras danças possíveis. REFERÊNCIAS DELEUZE, Gilles. A imanência: uma vida. Trad.: Alberto Pucheu e Caio Meira. Disponível em: <http://www.letras.ufrj.br/ciencialit/terceiramargemonline/numero11/xiii.html>. Acesso em: 07. out. 2007. DELEUZE, Gilles e GUATARRI, Felix. 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