Raízes teóricas do Subdesenvolvimento: Alemanha, Brasil, Estados Unidos e Rússia.1 Flávio Marques Prol 1. Introdução O debate sobre a regulação do pré-sal brasileiro suscita posicionamentos divergentes e relevantes para se pensar o(s) desenvolvimento(s) nacional(is) no século XXI. São vários os lados nessa disputa: temos o governo brasileiro, dirigido pelo PT, que tenta modificar a forma como a exploração do óleo vinha ocorrendo até o momento, por meio da criação de uma nova estatal e de um novo sistema de partilha; o PSDB e o DEM tentam, por sua vez, demonstrar que esse é um sistema antiquado para a realidade brasileira e que o sistema vigente, no qual o Estado não seria tão interventor, é superior; para não nos prolongarmos demais, podemos citar ainda a posição de outras forças nacionais, como o PSOL, que afirmam que a regulação proposta é insuficiente e que o papel do Estado deveria ser mais relevante2. A despeito dessa discussão, que é essencial para definir os rumos de nosso país, considera-se relevante, nesse trabalho, colocar em questão alguns pontos a partir de textos de economia política com o intuito de problematizá-los com alguma profundidade. Por conta da limitação do autor, essa contribuição será limitada a contornar principalmente duas questões: a) qual o posicionamento desses teóricospolíticos a respeito da intervenção do Estado na economia?; b) como isso se conecta ao posicionamento peculiar de algumas nações no quadro internacional, ou seja, há alguma relação dessa discussão sobre intervencionismo com os países centrais ou periféricos? São quatro os textos e os autores que serão trabalhados no decorrer do texto: a) Report on the manufactures, de Alexander Hamilton (1791); b) Sistema Nacional de Economia Política, livros primeiro e segundo, de Friedrich List (1855 - tradução de Luiz Baraúna, 1983); c) O desenvolvimento do capitalismo na Rússia – o processo de formação do 1 Trabalho desenvolvido tendo em vista discussões ocorridas no grupo Direito e Subdesenvolvimento, coordenado pelos professores Gilberto Bercovici e Alessandro Octaviani. Nessas discussões auxiliou o professor Octaviani, de forma irremediável, Marco Aurélio... 2 É evidente que essas não são as únicas forças que disputam e se posicionam em relação à regulação do setor. No entanto, consideramos relevante colocarmos as forças políticas nacionais como expressão de uma disputa que se dá também em outros ambientes, como o acadêmico e judicial (questionamentos perante o STF). Para mais: http://www.valoronline.com.br/?impresso/caderno_a/83/5792463/0/presalreforca-vies-estatizante (último acesso em 18/09/09). 1 mercado interno para a grande indústria, capítulo I, de Vladimir Ilitch Lênin (1899 – tradução de José Paulo Neto, 1988); d) Formação econômica do Brasil, de Celso Furtado (1959). É interessante notar que os textos selecionados são de teóricos-políticos3 porque os quatro autores influenciaram a política estatal de seu país em algum grau ou diretamente (exercendo cargos no governo) ou por meio da prevalência de suas idéias nas estratégias nacionais de desenvolvimento4. No texto de Hamilton isso fica evidente: não se trata de uma obra teórica, mas de um relatório encaminhado por ele, então Secretário do Tesouro estadunidense, para o Congresso (“House of Representatives”), sobre o tema das manufaturas. Da mesma forma, é relevante que os países de origem dos autores sejam todos de um desenvolvimento industrial capitalista posterior ao primeiro país que se desenvolveu dessa forma, a Inglaterra5. Assim, pode-se considerar que um problema comum a todos seja a questão de como o seu país está inserido no quadro geral de desenvolvimento capitalista no globo. 2. O secretário e a intervenção Pode-se afirmar que o relatório de Hamilton, Report on the manufactures, propõe-se a trabalhar com duas questões: a) debater com os defensores do setor primário, demonstrando a importância da produção de manufaturas para o desenvolvimento da produção geral da economia estadunidense6; b) reivindicar um papel central para o Estado na condução e na indução da industrialização do país. É relevante considerar que essa preocupação em demonstrar a relevância da indústria para o desenvolvimento nacional não é questão de pouca importância nos dias atuais. A 3 O autor não acredita que seja possível que alguma pessoa, mesmo que assim declare, seja somente teórica. No entanto, com o termo teórico-político expressamos a intenção dos autores de serem teóricos, mas ao mesmo tempo objetivarem influenciar as políticas nacionais respectivas. 4 Não queremos afirmar, com isso, que os autores sejam desenvolvimentistas. Os desenvolvimentistas correspondem a pensadores e políticos que atuaram, principalmente, no pós-guerra e, por isso, não contemplam pelo menos três dos quatro autores. 5 É importante ressaltar que se trata de desenvolvimento industrial capitalista e não desenvolvimento capitalista como um todo. O exemplo que nos oferece Furtado, nesse caso, é exemplar: o autor insere a colônia brasileira em um quadro capitalista, desde o começo da relação metrópole e colônia, no entanto, o desenvolvimento industrial capitalista brasileiro só se dá, na leitura furtadiana, a partir da crise da economia cafeeira. Ver infra. 6 Esse debate, sem dúvida, também foi travado em outros países. No caso brasileiro, o exemplo é o famoso debate político e acadêmico das décadas de 1930 e 1940 entre Roberto Simonsen e Eugênio Gudin. 2 Organização Mundial do Comércio, por exemplo, estimula que os países se especializem cada vez mais no que fazem de melhor, baseando-se na análise da vantagem comparativa7, e não concebem a importância da indústria. No entanto, Hamilton, já em 1791 dizia: “If the system of perfect liberty to industry and commerce were the prevailing system of nations – the arguments which dissuade a country in the predicament of the United States, from the zealous pursuits of manufactures would doubtless have great force […] In such a state of things, each country would have the full benefit of its peculiar advantages to compensate for its deficiencies or disadvantages […] But the system which has been mentioned, is far from characterizing the general policy of Nations. The prevalent one has been regulated by an opposite spirit [...] The regulations of several countries, with which we have the most extensive intercourse, throw serious obstructions in the way of the principal staples of the United States” (HAMILTON, 1791, p.7, grifos meus)8 A questão dos subsídios e das tarifas elevadas em determinados setores aplicados pelos países centrais demonstra a atualidade de tal afirmação. Mas Hamilton, nesse relatório, tentava convencer parlamentares sobre a importância da política estadunidense para as manufaturas. Portanto, o argumento sobre a importância de se apostar na indústria 7 Por exemplo, esse excerto retirado do texto “What is the WTO?”.: “Comparative advantage: This is arguably the single most powerful insight into economics. Suppose country A is better than country B at making automobiles, and country B is better than country A at making bread. It is obvious (the academics would say “trivial”) that both would benefit if A specialized in automobiles, B specialized in bread and they traded their products. That is a case of absolute advantage. But what if a country is bad at making everything? Will trade drive all producers out of business? The answer, according to Ricardo, is no. The reason is the principle of comparative advantage. It says, countries A and B still stand to benefit from trading with each other even if A is better than B at making everything.If A is much more superior at making automobiles and only slightly superior at making bread, then A should still invest resources in what it does best — producing automobiles — and export the product to B. B should still invest in what it does best — making bread — and export that product to A, even if it is not as efficient as A. Both would still benefit from the trade. A country does not have to be best at anything to gain from trade. That is comparative advantage. The theory dates back to classical economist David Ricardo. It is one of the most widely accepted among economists. It is also one of the most misunderstood among noneconomists because it is confused with absolute advantage. It is often claimed, for example, that some countries have no comparative advantage in anything. That is virtually impossible. Think about it ...” (OMC, 2009, p.14). 8 Hamilton continua: “In such a position of things, the United States cannot exchange with Europe on equal terms; and the want of reciprocity would render them the victim of a system, which should induce them to confine their views to Agriculture and refrain from Manufactures”. 3 deveria ir além da demonstração de que os Estados Unidos não poderiam se basear na política externa de livre comércio e na especialização agrícola. Assim, afirma que o desenvolvimento manufatureiro é importante porque além de incrementar a produção nacional, estimula especialmente a agricultura, pois fortalece o mercado interno por meio da criação de uma demanda sustentável e não sujeita a choques externos9. Além disso, possibilita a produção interna dos bens necessários para seus habitantes, sem que se necessite de oferta estrangeira10. Nesse contexto, Hamilton apresenta onze instrumentos que poderiam ser utilizados (em alguns casos já eram utilizados) pelos Estados Unidos em sua política para promoção de manufaturas11, dentre eles: proibição de artigos rivais ou taxas equivalentes a proibições, subsídios, prêmios e estímulo de novas descobertas, particularmente as relacionadas à maquinaria (cita como dois exemplos: recompensas pecuniárias ou privilégios exclusivos). Percebe-se, assim, que alguns políticos estadunidenses não estavam preocupados, na virada do século XVIII para o XIX, com a possibilidade de intervenção do Estado na economia. Pelo contrário: viam essa atitude como uma das únicas para permitir o desenvolvimento industrial do país. Para tanto, iam desde o estabelecimento de estímulos à inovação (o oitavo instrumento da lista anterior) a barreiras alfandegárias (segundo instrumento), passando pelo fornecimento de subsídios. 3. O diagnóstico alemão Friedrich List, em seu livro Sistema Nacional de Economia Política, escrito em meados do século XIX, utilizará outro tipo de argumentação em comparação a Hamilton para Como afirma Hamilton: “The foregoing considerations seem sufficient to establish, as general propositions, that it is the interest of nations to diversify the industrious pursuits of the individuals, who compose them that the establishment of manufactures is calculated not only to increase the general stock of useful and productive labour; but even to improve the state of Agriculture in particular; certainly to advance the interests of those who are engaged in it.” (HAMILTON, 1791, p.7) 10 “Not only the wealth; but the independence and security of a Country, appear to be materially connected with the prosperity of manufactures. Every nation, with a view to those great objects, ought to endeavour to possess within itself all the essentials of national supply. These comprise the means of Subsistence habitation clothing and defence.” (HAMILTON, 1791, p.14) 11 É interessante notar a seguinte percepção do autor: por vezes, complicações no comércio internacional favorecem a produção interna de manufaturas. Isso é relevante, pois é uma indicação que voltará a estar presente, em alguma medida, nos textos dos outros autores aqui estudados. Diz Hamilton: “It is no small consolation, that already the measures which have embarassed our Trade, have accelerated internal improvements, which upon the whole have bettered our affairs. To diversify and extend these improvements is the surest and safest method of indemnifying ourselves for any inconveniences, which those or similar measures have a tendency to beget.” (p.7) Para mais: HAMILTON, 1791, pp.9 e ss. 9 4 atingir resultados semelhantes. O desenvolvimento industrial alemão, para List, é o elemento principal que poderá conduzir o país12 à condição de potência econômica. E, para isso, as teorias econômicas liberais que prevaleciam, tendo Adam Smith como principal expoente, não seriam de grande valor. Pelo contrário, o seu predomínio favoreceria, na visão de List, principalmente os países que já atingiram o “mais alto grau de riqueza e poder”13. Assim, dois pontos parecem essenciais para a compreensão do diagnóstico de List: a) como se combinam diversos elementos para permitir ao país disputar a hegemonia econômica com a Inglaterra; b) como a questão de distribuição de poder entre as nações condiciona e é condicionada pelos desenvolvimentos econômicos nacionais. Ao contrário de Hamilton, não há em Sistema Nacional de Economia Política um texto propositivo em relação a políticas nacionais de desenvolvimento industrial para cada setor (como acontece ao final da obra do estadunidense). O objetivo de List, ao escrever o texto, como se depreende da leitura de seu prefácio, era “investigar quais seriam os erros dessa teoria [teoria da economia política atualmente dominante] e as causas fundamentais em que radicam tais erros” (LIST, 1983, p. 3), ou seja: trata-se de uma obra eminentemente teórica, mas que não deixa de querer influenciar diretamente as políticas de desenvolvimento nacional, que se utilizavam da teoria dominante. O autor, a partir de sua leitura da história, que se divide conforme países ou regiões e que ocupa os dez primeiros capítulos da obra, chega à conclusão de que não se pode estudar a economia política desatrelada de conceitos como nação e instituições. Dá, ainda, um passo além e explica que é impossível a análise de qualquer período histórico sem a observação da constante pressão recíproca entre forças e condições sociais e forças e condições individuais. Afirma o autor: 12 Apesar de não existir, na época, um país alemão, e sim uma série de pequenos Estados, quando utilizarmos a expressão país, estaremos nos referindo ao conjunto de Estados que formavam para o autor a Alemanha (termo utilizado por List em seu livro). 13 Afirma List: “A História ensina-nos que as nações dotadas pela Natureza de todos os recursos necessários para atingirem o mais alto grau de riqueza e poder podem e devem, sem comprometer os objetivos que visam, modificar seus sistemas de acordo com o estágio de seu próprio progresso: no primeiro estágio, adotando comércio livre com nações mais adiantadas como meio de saírem elas mesmas de um estado de barbárie e para fazerem progresso na agricultura; no segundo estágio, promovendo o crescimento das manufaturas, da pesca, da navegação e do comércio exterior, adotando restrições ao comércio; e no último estágio, após atingirem o mais alto grau de riqueza e poder, retornando gradualmente ao princípio do comércio livre e da concorrência sem restrições, tanto no mercado interno como no mercado internacional, de maneira que seus agricultores, comerciantes e manufatores possam ser preservados da indolência e estimulados a conservar a supremacia que adquiriram.” (LIST, 1983, pp. 8586) 5 “Em toda a parte a História nos demonstra um intenso processo de ação recíproca entre as forças e condições sociais e as forças e condições individuais. Nas cidades italianas e hanseáticas, na Holanda e na Inglaterra, na França e na América, observamos que as forças de produção – e conseqüentemente a riqueza dos indivíduos – aumentam em proporção às liberdades vigentes, ao grau de perfeição das instituições políticas e sociais, ao passo que essas, a seu turno, extraem material e estímulo para seu ulterior aperfeiçoamento do aumento da riqueza material e da força produtiva dos indivíduos.” (LIST, 1983, p.81, grifos meus)14 E não se pode pensar que List está defendendo liberdades e instituições desligadas de noções como hierarquia e hegemonia entre nações: “Assim, a História demonstra que as restrições à liberdade de comércio não são tanto invenções de mentes meramente especulativas, mas antes conseqüências naturais da diversidade de interesses e dos anseios das nações por independência ou ascendência de poder, e, por conseguinte, de emulação nacional e guerras, e que, portanto, não se pode dispensar tais restrições antes que cesse esse conflito de interesses nacionais, ou seja, antes que todas as nações possam ser unidas sob o mesmo sistema legal” (LIST, 1983, p.85, grifos meus) A despeito da sua visão eurocêntrica e idealista de uma federação internacional, o que List está defendendo é a necessidade de se pensar a hierarquia entre nações e seus diversos interesses para elaborar uma teoria de economia política. É a partir da apresentação dessa sua leitura histórica que o autor pode, então, passar à crítica dos teóricos econômico liberais. Assim, define uma contraposição entre dois tipos de Economia: a Economia Cosmopolítica, de Adam Smith, e a Economia Política. Essa divisão significa que a 14 É interessante notar que Douglas North, ganhador do prêmio Nobel, é aclamado por ter escrito textos como “The institutions matters”, no final do século XX, mas que outros autores, como List, já deixavam isso expresso em livros com no mínimo um século de antecedência. Isso mostra como a teoria prevalecente e o senso comum na época de List, mesmo após as diversas críticas recebidas (pra citar alguns: List, marxistas, desenvolvimentistas), continuam com uma relevância forte até os dias atuais. 6 primeira é a “ciência que ensina como a humanidade inteira pode atingir a prosperidade” (LIST, 1983, p.93), ou seja, é uma teoria que desconsidera a organização material da sociedade e o seu desenvolvimento histórico. Por outro lado, a Economia Política é “a ciência que limita seu ensinamento a investigar como determinada nação pode obter (nas condições vigentes do mundo) a prosperidade, a civilização e o poder” (LIST, 1983, p.93). E, por isso, considerando a Economia Cosmopolítica como a escola popular conclui15: “A escola popular cometeu o erro de considerar como já existente um estado de coisas que ainda está por vir. Supõe a existência de uma união universal e de um estado de paz perpétua, deduzindo disso os grandes benefícios do livre comércio [...] Uma república universal (na acepção de Henrique IV e do Abade de Saint-Pierre), ou seja, uma união das nações da terra, reconhecendo todas elas as mesmas condições de direito entre si e renunciando aos próprios interesses egoísticos, só pode ser realizada se um grande número de nações atingir mais ou menos o mesmo grau de indústria e civilização [...] O sistema protecionista, na medida em que constitui a única maneira de colocar as nações ainda atrasadas em pé de igualdade com a nação predominante (a qual, aliás, nunca recebeu da Natureza um direito perpétuo ao monopólio industrial, senão que apenas conseguiu adiantar-se às demais em termos de tempo), esse sistema protecionista, considerando sob este ponto de vista, apresenta-se como o meio mais eficaz para fomentar a união final das nações e, portanto, também para promover a verdadeira liberdade de comércio” (LIST, 1983, p.93) List explicita o que estava um tanto quanto implícito no relatório de Hamilton. Não é possível se imaginar o desenvolvimento industrial como simplesmente o progresso material e a independência econômica de um determinado país. Mas deve se aliar a isso 15 Pelo escopo desse trabalho, considerou-se desnecessário apresentar todos os elementos levantados por List em sua obra para apresentar toda sua teoria de Economia Política. Para tanto ver: List, pp. 89 e ss. 7 a importância da indústria para a possibilidade de um determinado país configurar como grande potência internacional16. 4. O revolucionário do século XX e o mercado interno O desenvolvimento do capitalismo na Rússia – o processo de formação do mercado interno para a grande indústria, não é uma obra com objetivos semelhantes aos dois textos analisados anteriormente17. Lênin, apesar de escrever distante da Revolução de Outubro de 1917, que o levou a condição de personalidade histórica das mais comentadas, já era marxista em 1899 e, conforme se percebe da leitura do prefácio, tinha como meta analisar o processo de desenvolvimento do capitalismo na Rússia em seu conjunto para poder identificar a possibilidade real de uma revolução proletária que conduzisse o país rumo ao socialismo. Sua preocupação inicial é demonstrar como a divisão social do trabalho, que é a base da economia de mercado, desenvolveu-se na Rússia e, portanto, não fazia sentido afirmar que a Rússia não era capitalista18. A partir disso, o autor pode explorar seu objeto de trabalho, qual seja: a formação do mercado interno para o capitalismo russo. Finalmente, o autor conclui que inexiste possibilidade de se falar em problema do mercado interno em separado do problema do desenvolvimento do capitalismo. Pois, “o mercado interno aparece quando aparece a economia mercantil, ele é criado pelo desenvolvimento dessa economia e é o grau de fragmentação da divisão social do trabalho que determina o nível desse desenvolvimento.” (LENIN, 1988, p. 33) Ao afirmar que a divisão de trabalho é o elemento fundamental no processo de formação do mercado interno, Lênin está se referindo à separação entre agricultura e indústria que ocorre por conta do processo de especialização comum a toda economia mercantil, ou seja, que produz mercadorias. Com isso, tem-se como conseqüência o fato de que a população não-agrícola tende a crescer mais rapidamente que a população agrícola. 16 Essa é exatamente uma das influencias de List em relação aos cepalinos, conforme a observação de Cristovam Buarque, na apresentação da versão brasileira do livro. 17 É importante ressaltar que não trabalharemos toda a obra, somente alguns aspectos do primeiro capítulo do livro. 18 Lênin está se contrapondo aos economistas populistas, que viam no desenvolvimento econômico e histórico russo não o desenvolvimento do capitalismo, mas exatamente um desenvolvimento que não propiciou o surgimento desse modo de produção no país. Esse diagnóstico permitiu a muitos russos, dentre eles os próprios economistas populistas, apostarem na necessidade de um período capitalista antes da passagem para o socialismo. 8 No entanto, com a passagem da economia mercantil para a economia capitalista, ou seja, com a separação dos meios de produção do produtor direto (o que ocorre principalmente com a população não agrícola), ocorre a formação do mercado interno, pois o que era antes produzido pelo próprio produtor para sua subsistência, passa agora a ser considerado artigos de consumo, que a população deverá comprar com sua remuneração. Da mesma forma, a demanda por meios de produção também provoca o surgimento de um mercado interno para os meios de produção. Assim, conclui Lênin: “O grau de desenvolvimento do mercado interno é o grau de desenvolvimento do capitalismo no país. É incorreto colocar a questão dos limites do mercado interno independentemente da questão do grau de desenvolvimento do capitalismo – como fazem os economistas populistas.” (LENIN, 1988, p.33) Essas observações são essenciais para compreender a possibilidade de desenvolvimento do capitalismo industrial no Brasil a partir da década de 1930. 5. Um desenvolvimentista? A obra de Celso Furtado, Formação Econômica do Brasil, poderá agora ser analisada19 recebendo contribuições de todas as análises anteriores. Não se esgotando nesses exemplos, podemos citar de Hamilton o fato de que Furtado era um homem preocupado com propostas práticas para o Brasil de seu tempo. A sua interpretação do “complexo econômico nordestino” guiará a formação da SUDENE, tanto que Furtado foi o primeiro superintendente dessa instituição20. De List, a importância da industrialização para o desenvolvimento nacional. E de Lênin, a relevância do mercado interno para o processo de industrialização. 19 De forma alguma queremos retomar aqui a brilhante exposição de Furtado em sua obra clássica. Tampouco queremos analisar detalhadamente cada aspecto do livro, o que demandaria uma pesquisa extremamente apurada. Somente queremos utilizar Formação Econômica do Brasil para análise das duas questões explicitadas na introdução de nosso texto, ou seja: a) qual a posição dos teóricos-políticos a respeito da intervenção estatal na economia?; b) há alguma conexão disso com o posicionamento peculiar no contexto internacional das nações trabalhadas?. 20 Para mais: OLIVEIRA, Francisco de. “Formação Econômica do Brasil” in MOTA, Lourenço Dantas, Introdução ao Brasil: um banquete no trópico. São Paulo: SENAC, 2004. 9 Aliás, Hamilton é mencionado diretamente por Furtado, e dessa passagem, já se percebe o posicionamento do autor quanto ao papel do Estado na promoção da industrialização: “Ambos [Alexander Hamilton e Visconde de Cairu] são discípulos de Adam Smith, cujas idéias absorveram diretamente e na mesma época na Inglaterra. Sem embargo, enquanto Hamilton se transforma em paladino da industrialização, mal compreendida pela classe de pequenos agricultores norte-americanos, advoga e promove uma decidida ação estatal de caráter positivo – estímulos diretos às indústrias e não apenas de caráter protecionista – Cairu crê supersticiosamente na mão invisível e repete: deixai fazer, deixar passar, deixai vender.” (FURTADO, 2006, pp.152-153)21 Não podia ser outra a opinião de Furtado em relação à intervenção estatal na economia (defendendo estímulos diretos, além de estímulos protecionistas). Da leitura de sua obra, depreende-se que há uma tensão constante no Brasil entre o “setor moderno” industrializado e o “setor arcaico” que não acompanha o desenvolvimento do primeiro. A decadência do setor arcaico, dirá o autor, não decorre do desenvolvimento industrial regionalmente localizado, mas constitui “um fenômeno secular, muito anterior ao processo de industrialização do sul do Brasil” (FURTADO, 2006, p.333). E sua razão de ser está ligada a “incapacidade do sistema para superar as formas de produção e utilização dos recursos estruturados na época colonial” (FURTADO, 2006, p.333). Esse é um dos problemas principais que a política estatal deverá se preocupar. Há necessidade de uma nova forma de integração de modo a se utilizar de forma mais racional os recursos e capacidades no conjunto nacional22. Porém, as tensões Há, no livro, outra passagem em que Furtado menciona Hamilton: “à semelhança do que ocorreu ao Brasil ao se abrirem os portos, a balança comercial dos EUA com a Inglaterra era via de regra deficitária nos primeiros decênios do século XIX. Contudo, esse déficit, em vez de pesar sobre o câmbio – como foi o caso no Brasil – e provocar um reajustamento a níveis mais baixos de intercâmbio, tendia a transformarse em dívidas de médio e longo prazos, invertendo-se em bônus dos governos centrais e estaduais. Formou-se assim, quase automaticamente, uma corrente de capitais que seria de importância fundamental para o desenvolvimento do país. Isso foi possível graças à política financeira do Estado, concebida por Hamilton, e à ação pioneira do governo central primeiro e estaduais depois na construção de uma infraestrutura econômica e no fomento direto de atividades básicas”. (FURTADO, 2006, pp. 157-158) . No relatório de Hamilton sobre as manufaturas já se percebe uma preocupação do então secretário do tesouro com a formação do capital no país. Para mais: HAMILTON, 1791, pp.10-13. 22 Diz Furtado: “O processo de integração econômica dos próximos decênios, se por um lado exigirá a ruptura de formas arcaicas de aproveitamento de recursos em certas regioes, por outro requererá uma visão de conjunto do aproveitamento de recursos e fatores no país”. (FURTADO, 2006, p. 334) 21 10 enfrentadas pelos políticos nacionais não se resumem à questão de como promover a industrialização diminuindo as desigualdades regionais. A promoção da industrialização enfrenta uma série de desafios, como a tendência ao desequilíbrio externo, os riscos inflacionários e a desigualdade social no país. Inclusive o processo de industrialização no sul do país decorreu, em grande medida, dessas tensões permanentes. Nos capítulos XXXI (Os mecanismos de defesa e a crise de 1929) e XXXII (Deslocamento do centro dinâmico), Furtado demonstra como o setor cafeeiro, ao elaborar várias estratégias para se proteger aos choques externos, como alterações na taxa cambial, aumento do volume de exportação e retenção ou mesmo destruição de estoques, permitiu a manutenção de dinamicidade nos outros setores da economia brasileira (ou seja, mantendo em atividade o mercado interno) e conduziu o país rumo à industrialização. 6. E o pré-sal? O objetivo de refletir a respeito de duas questões que foram colocadas no início do texto23 parece, nesse momento, ter sido atingido e, assim, talvez a discussão sobre o présal possa ser retomada com alguns elementos adicionais. Por um lado, ficou claro que pelo menos um grande país (- talvez por coincidência? - que prega justamente o contrário hoje) se utilizou fortemente do Estado para promoção de sua industrialização. Por outro, não se deve pensar que todos os Estados são iguais ou possuem desenvolvimento igual no sistema capitalista. Nesse contexto, é interessante, como propôs Hamilton em seu relatório, utilizar distintos instrumentos para estimular o desenvolvimento nacional de cada país, conforme suas peculiaridades. Talvez mais relevante seja a visão qualificada da industrialização que tinha aquele pensador, ao ressaltar a importância de novas descobertas relacionadas à maquinaria para se pensar o estímulo a produção de manufaturas. No contexto atual, relacionar desenvolvimento e inovação não é mais importante, mas pressuposto para se criar qualquer política que seja eficaz e que vise superar a condição periférica. O estudo também revelou que não é correto se conceber desenvolvimento industrial e poder político internacional como duas moedas distintas, senão como duas faces de uma 23 As duas questões foram: a) qual o posicionamento desses teóricos-políticos a respeito da intervenção do Estado na economia?; b) como isso se conecta ao posicionamento peculiar de algumas nações no quadro internacional, ou seja, há alguma relação dessa discussão sobre intervencionismo com os países centrais ou periféricos? 11 só moeda. O desenvolvimento industrial, como demonstrado por todos os autores, influencia e é condicionado pela posição hierárquica que um país ocupa no quadro de forças internacionais. Não é por acaso que os produtos de maior valor agregado são produzidos, em sua maior parte, nos países centrais (Europa ocidental e Estados Unidos). No entanto, é importante ressaltar que os objetivos dos textos citados, apesar da forma de exposição escolhida em nosso trabalho, a qual indica uma grande similitude de abordagens, destoam entre si de forma considerável. De modo sucinto, podem-se apresentar como exemplos algumas características peculiares a Hamilton e List. No primeiro, vê-se um político que vislumbrava a industrialização como ápice de desenvolvimento de um determinado país. O relatório evidencia isso quando indica a possibilidade de integração de mulheres e crianças na produção de manufaturas, extratos da população que ordinariamente não encontram ocupação e que, a partir desse momento, passariam a produzir24. Já em relação a List, percebe-se um elitista e o idealismo de um liberal (compartilhado por Hamilton) quando expõe seu eurocentrismo e a suficiência do crescimento de algumas nações para a formação de uma federação internacional que estimularia o desenvolvimento de todos25. Por outro lado, com Celso Furtado e Lênin, ao menos nos textos lidos, a preocupação com a questão social (concentração de renda e classes sociais que predominam no cenário político) e com as tensões e contradições internas de um país na periferia do Afirma Hamilton: “The husbandman himself experiences a new source of profit and support from the encreased industry of his wife and daugthers; invited and stimulated by the demands of the neighboring manufactories” (HAMILTON, 1791, p.5) 25 Em Hamilton ver p. 3, acima e:a seguinte passagem em que o secretário do tesouro não percebe a contradição entre o desenvolvimento industrial no nordeste estadunidense e o desenvolvimento agrícola do sul. Diz Hamilton: “This Idea of na opposition between those two interests is the common error of the early periods of every country, but experience gradually dissipates it. Indeed, they are perceived so often to succour and to befriend each other, that they come at length to be considered as one: a supposition which has been frequently abused and is not universally true. Particular encouragements of particular manufactures may be of a nature to sacrifice the interests of landholders to those of manufacturers; but it is nevertheless a maxim well established by experience, and generally acknowledged, where there has been sufficient experience, that the aggregate prosperity of manufactures and the aggregate prosperity of Agriculture are intimately connected.” (HAMILTON, 1791, p.14) – o que a experiência não demonstrou a Hamilton foi a possibilidade de que a prosperidade conjunta de industria e agricultura demorasse a surgir e o mundo presenciasse uma das mais violentas Guerras já vista no mundo até então. Em List: “Se existisse na realidade uma confederação de todas as nações, como é o caso dos Estados que compõe a União norte-americana, o excesso de população, de talentos, de habilidades profissionais e de capital material fluiria da Inglaterra para os Estados do continente, de maneira semelhante àquela em que se emigra dos Estados do leste da América do Norte para os Estados do Oeste, desde que prevalecessem nos Estados do continente a mesma segurança para as pessoas e para a propriedade, a mesma constituição e as mesmas leis gerais, e desde que o Governo inglês estivesse sujeito à vontade unida da confederação universal.” (LIST, 1983, p.95) 24 12 mundo capitalista parece ganhar espaço, o que resulta em obras bem distintas das de List e Hamilton. Por fim, vale destacar novamente o escopo desse trabalho, que tentou contornar por meio da análise de textos de economia política a forma de intervenção estatal na economia e a especificidade de alguns países na ordem internacional. Assim, espera-se que ele contribua em algum grau para a compreensão da especificidade de se pensar o desenvolvimento brasileiro. BIBLIOGRAFIA: FURTADO, Celso. Formação Econômica do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. HAMILTON, Alexander. Report on the manufactures, Biblioteca do Congresso dos EUA, 1791 LENIN, Vladimir Ilitch. O desenvolvimento do capitalismo na Rússia – o processo de formação do mercado interno para a grande indústria, vol. I, 3ª edição, pp.1-33. São Paulo: Nova Cultural, 1988. LIST, Friedrich. Sistema nacional de economia política, pp. 5-136. São Paulo: Abril Cultural, 1983. OLIVEIRA, Chico. “Formação Econômica do Brasil”, in MOTA, Lourenço Dantas Introdução ao Brasil um Banquete nos trópicos. São Paulo: SENAC, 2004. 13