Uma política travesti: notas etnográficas sobre a campanha eleitoral de Fernanda Benvenutty na Paraíba Autora: Silvana de Souza Nascimento, Profa. Adjunta I de Antropologia da Universidade Federal da Paraíba. Resumo expandido: Este trabalho é um desdobramento de uma pesquisa etnográfica, realizada entre 2009 e 2011, com financiamento do CNPq, que buscou mapear e compreender trajetórias individuais e redes de sociabilidade de mulheres que se prostituem, travestis, transexuais e transformistas em dois contextos distintos: na capital João Pessoa e na pequena cidade de Mamanguape, no Litoral Norte do estado. A pesquisa demonstrou a existência de uma pluralidade de redes de relações e identidades de gênero que escapam ao modelo da heteronormatividade compulsória e, ao mesmo tempo, colocam em questão a construção de identidades políticas que são constantemente acionadas pelos movimentos LGBTs (lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais). Observou-se que, entre essas definições, há novas articulações que possibilitam pensar em transitividades ou deslocamentos de gênero e de sexualidade. Essa transitividade é observada em diferentes espaços, em maior ou menor grau: no circuito do sexo e da beleza (espaços de prostituição, espetáculos e concursos) e no circuito dos movimentos sociais LGBTs. Neste paper, darei atenção a esse último a partir da trajetória e da militância de Fernanda Benvenutty, travesti que foi duas vezes candidata a vereadora por João Pessoa e, na última eleição, candidata a deputada estadual pelo Partido dos Trabalhadores. Ao longo de sua trajetória, percebe-se que Fernanda Benvenutty transita por diferentes universos e, apesar de ser uma das fundadoras da Associação das Travestis e Transexuais da Paraíba (ASTRAPA) e ser reconhecida como uma das principais lideranças do movimento LGBT (lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais) no Brasil, circula por ambientes familiares heteronormativos e universos femininos tradicionais. Além disso, possui um estreito vínculo com sua família e sua cidade de origem, Remígio, no semi-árido paraibano. Fernanda é uma travesti de 50 anos, mãe de dois filhos, funcionária pública que trabalha há 20 anos como técnica de enfermagem. Sua especialidade é o atendimento pré-natal e a sala de partos. Alterna seu trabalho como mãe, parteira e a fundadora da escola de samba Império do Samba em João Pessoa, com as intensas atividades de militância em diferentes cidades do país. No período que antecedeu às eleições o ano passado, depois de alguns contatos e aproximações com lideranças dos movimentos LGBTs em João Pessoa, pude acompanhar Fernanda Benvenutty na sua campanha eleitoral. Visitamos casas em vários bairros da capital, como Geisel, Valentina Figueiredo, Centro, Cristo, etc. Principalmente mulheres recebiam Fernanda carinhosamente e chamavam amigas e vizinhas para conhecer a candidata. Nos espaços íntimos da casa, Fernanda abraçava as pessoas, posava para fotografias, estava presente em almoços e churrascos. Do lado de fora das casas, curiosos tentavam entender o que se passava e algumas vezes negavam-se a conhecer a candidata simplesmente pelo fato de sua identidade de gênero não corresponder a do seu sexo biológico. Impressionou-me seu jogo de cintura e sua facilidade em transitar por diferentes ambientes e suas estratégias para transitar nos espaços urbanos de forma mais ou menos segura. Em suas visitas, estava sempre ao lado de sua equipe de campanha, composta de três a quatro pessoas, membros de organizações LGBTs. Além de João Pessoa, Fernanda e sua equipe visitaram outras cidades como Campina Grande, e também foram para a sua terra natal: Remígio, cidade localizada no agreste paraibano, com aproximadamente 15 mil habitantes. À medida que Fernanda caminhava na cidade, lembrava-se dos seus tempos de infância e adolescência. Ela me apresentou sua cidade, revivendo pedaços de sua história. Em Remígio, ela visitou vários parentes – irmãos, tios, sobrinhos. Em cada casa, deixava santinhos e pregava adesivos e cartazes nas portas, demarcando espacialmente sua campanha eleitoral. Em toda a cidade, podia-se realizar uma cartografia eleitoral a partir das propagandas das casas. Em cada visita, ouvíamos sempre a promessa do voto e de um compromisso pessoal com Fernanda. Contudo, algumas pessoas nas ruas e calçadas demoravam para reconhecê-la e muitas vezes chamavam-na pelo nome de nascimento – Eliziário Bemvindo da Silva. Inclusive seu próprio pai apostava que, se ela tivesse colocado nome masculino no material de campanha, ela ganharia mais votos de pessoas conhecidas da família. Depois de duvidar, o pai também resolveu colocar uma bandeira da filha ou do filho na porta de sua casa. O sobrenome Benvenutty foi uma forma de dar continuidade ao sobrenome familiar, Bemvindo, traduzido livremente para o italiano. Na sua terra natal, Fernanda pôde visitar lugares onde pouco freqüentou ao longo desses anos e rever pessoas que, até então, conheciam Eliziário e não Fernanda. O retorno às suas origens possibilitou uma atualização do presente reforçando sua ascensão social, retornando à sua cidade não mais como um rapaz que “dava muito trabalho” para a família mas como uma travesti bem sucedida, candidata a deputada estadual pelo PT. Do ponto de vista das travestis que observamos no nosso trabalho de campo na Paraíba, o passado é visto como algo que se deseja superar. Esta superação acontece por ruptura com a família, em casos de extrema violência e intolerância, ou por distanciamento. Temos visto que muitas delas mantêm o vínculo com sua cidade natal, enviam dinheiro e presentes para a família e retornam em grande estilo, seja como candidata a veradora no caso de Fernanda, seja com um belo carro do ano, um sapato caríssimo comprado na Europa, um corpo todo feito, com belo par de seios de silicone comprados em São Paulo, etc. Desse modo, mesmo as “européias” – que vão principalmente para a Itália e para a Espanha – retornam para suas cidades natais, em pequenos municípios no interior. No caminho para ascender socialmente e ter sua identidade como travesti valorizada de algum modo, há uma hierarquia de lugares, que organizam suas escolhas de acordo com sua situação econômica e também a partir das redes de relações criadas entre travestis de diferentes lugares: municípios rurais > municípios urbanos (de média escala) > capitais > cidades da Europa (mobilidades transnacionais). Fernanda realiza justamente este trânsito entre diferentes cidades, com diferentes escalas, não necessariamente almejando sair da Paraíba e morar no exterior. Mas essa mobilidade permite uma maior liberdade de manobra para lidar com diferentes universos culturais e permite a construção de arranjos políticos ampliados. A candidatura de Fernanda foi construída como uma representação unificada do movimento LGBT na Paraíba, e aglutinou diversos grupos e associações (Movimento do Espírito Lilás, em João Pessoa; Gayrreiros do Vale do Paraíba, em Itabaiana; Associação de Homossexuais de Campina Grande (AHCG), etc.).Contudo, ao longo da sua campanha, ela também realizou um trabalho microscópico em casas e bairros em algumas cidades da Paraíba, e apresentou propostas de forma a não colar à sua imagem somente às bandeiras LGBTs mas ampliar seu público aos setores populares e especialmente às mulheres. Desse modo, apresentou temas universais como saúde e violência que esbarram em sua trajetória como travesti e técnica de enfermagem e que, ao mesmo tempo, tornaram sua campanha mais próxima do universo feminino dito mais tradicional, baseado na heteronormatividade. Essa aproximação não é inovadora mas revela a possibilidade de um diálogo de segmentos do movimento LGBT, representados na pessoa de Fernanda Benvenutty, com modelos de sexualidade compulsória. São essas fissuras, deslocamentos, estratégias entre padrões de gênero e modelos de sexualidade, por meio de uma campanha eleitoral travesti, que serão o foco do meu texto, que não tem o teor de uma pesquisa acaba mas de anotações e ensaios etnográficos.