A dicotomia entre cidade versus mata e as conseqüentes relações

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A DICOTOMIA ENTRE CIDADE VERSUS MATA E AS
CONSEQÜENTES RELAÇÕES (NEO) COLONIALISTAS EM
VINTE E ZINCO, DE MIA COUTO
Robson Lacerda Dutra
UniverCidade
Unigranrio
A paisagem ocupa lugar de destaque nas narrativas africanas uma vez que é em torno
dela que grande parte dos textos poéticos é originada. A questão do mar, da terra, da
insularidade e da natureza tem sido tema da obra de escritores em prosa e verso. A poesia
do são tomense Francisco José Tenreiro, por exemplo, idealiza e erotiza a terra como o
corpo da mulher amada que amorosamente lhe oferece seus ramos, suas flores e seus frutos,
criando, com isso, uma relação intrínseca entre o homem e o espaço. Do mesmo modo, para
o poeta cabo-verdiano Jorge Barbosa, a paisagem se revela, sobretudo, terreno da
alteridade, do espaço que teve que ser dividido à revelia com um outro, no caso o
descobridor, que, ao afundar seu pé calçado na praia africana, benze-se e, de imediato,
pensa em El-Rei, iniciando, com estes gestos, o processo não apenas de ocupação, mas
também de dominação daquela terra.
Esta preocupação com o solo e, conseqüentemente, com a identidade tem sido analisada
mais intensamente pela geografia cultural, sobretudo a partir da década de 80. Apesar do
processo de globalização em suas múltiplas facetas, não se tem verificado a uniformização
do planeta. Ao contrário, as diferenças de natureza cultural têm-se acentuado sobremaneira,
levando mesmo a se minimizar a idéia de que a organização do espaço seja inteligível
apenas com base nos processos de produção. Essa preocupação espacial surgiu inicialmente
na Europa vindo, contudo, a ter maior expressão nos EUA. Como uma das muitas
conseqüências, surgiu a chamada Escola de Bekerley, na década de 20, que impulsionou o
movimento de reação ao determinismo ambiental. A partir de então, muito tem sido
publicada sobre a análise e a história da geografia cultural, as áreas e a ecologia cultural,
centradas na ação do homem como agente de alteração da paisagem.
Dentre algumas das possíveis definições de geografia cultural está a caracterização por
componentes materiais, sociais, intelectuais e simbólicos que formam sistemas de
justaposição coerente que nos fornecem meios de análise da cultura e de suas relações com
o meio. Segundo Sauer1, a geografia cultural se origina, difunde e evolui no tempo, sendo
compreensível no seu tempo e perceptível no espaço. Capel, outro geógrafo de renome,
salienta que cabe a esta ciência integrar o saber sobre a natureza com o que se sabe do ser
humano.
Deste modo, a geografia cultural se constituirá por um conjunto de formas materiais
dispostas e articuladas entre si no espaço, tal como as árvores, as casas, os santuários em
1
SAUER, C., (1963), p. 37.
suas diversas formas, cores e estilos. Na realidade, a paisagem é, de um lado, o resultado de
uma dada cultura que a modelou e, de outro, constitui-se uma matriz cultural. Como
resultado deste processo, o meio-ambiente torna-se uma vitrine permanente de saber,
expressando a cultura em seus aspectos distintos e variados, originando valores funcionais e
simbólicos.
Cosgrove2 afirma que a paisagem geográfica contém um significado simbólico porque é
produto da apropriação e transformação da natureza, na qual foi impressa através da
linguagem, dos símbolos e traços culturais do grupo social em questão. Cabe, portanto, aos
estudiosos das muitas ciências que compõem a geografia cultural — e a literatura encontrase entre elas —, decodificar esta paisagem e aprender a ler seus significados.
A partir desta visão, observam-se dois tipos possíveis de paisagem: o da cultura
dominante, que revela os meios pelos quais seu poder é exercido, e o das paisagens
alternativas, criadas por grupos não dominantes e que, por isso, apresenta menor
visibilidade. Cosgrove identifica ainda outros subtipos de paisagens residuais, cujo
interesse está no fato de permitirem uma análise e reconstrução do passado: as emergentes,
que são oriundas de novos grupos de caráter transitório, tal como foram os hippies na
década de sessenta e são os Sem-Terra do Brasil de hoje e as excluídas, associadas às
minorias e grupos pouco identificados com a sociedade, tal como os ciganos e outras
minorias raciais e religiosas. Estas paisagens têm caráter autóctone e são, muitas vezes,
imperceptíveis aos olhos da cultura dominante, mas ricas de símbolos e significados para o
grupo excluído.
Como a literatura é uma possibilidade de leitura da paisagem e, conseqüentemente, de
um grupo social, centramos nosso estudo no romance Vinte e zinco, do escritor
moçambicano Mia Couto que, pelas razões que mencionamos anteriormente, tem na
paisagem um dos pontos capitais de sua obra.
A epígrafe do romance, uma citação de Alfred Metraux, de 1959, evoca a participação
da paisagem da cultura dominante ao afirmar que “o homem nunca é cruel e injusto com
impunidade: a ansiedade que cresce naqueles que abusam do poder freqüentemente toma a
forma de terrores imaginários e obsessões dementes”.3 A citação evoca um espaço
dominado ocupado pelo poder soberano do colonizador português, que, por sua vez se
confronta constantemente com um terror que cresce na mesma proporção da dominação por
ele imposta. O medo, o excesso do trabalho e os castigos imputados nas plantações durante
o dia eram revertidos, à noite, para estes senhores que, da casa-grande, tinham as mais
profundas camadas da alma aterrorizadas pelos batuques dos negros e as possíveis
feitiçarias oriundas das senzalas.
A tessitura romanesca gira em torno de Lourenço de Castro, chefe da PIDE4, um dos
órgãos de repressão do governo de António Salazar. Lourenço é herdeiro de Joaquim
Castro, sem pai, tanto no cargo quanto nas atitudes. Como representante de Portugal
naquele lugar, cabe ao filho ameaçar e reprimir qualquer ameaça à soberania da antiga
metrópole e evidenciar os desníveis culturais e sociais existentes entre brancos e negros. O
limite entre estes está justamente no espaço geográfico: apesar da dominação, poucos são
os brancos que pisaram o território negro, o “mato africano”: o padre Ramos, o médico
Peixoto, o administrador Marques e o agente Diamantino. Apesar do poder imposto, o Pide
exerce sua liderança da antiga sede fundada por seu pai, de paredes imaculadamente
brancas e chão polidamente vermelho.
2
COSGROVE, D., (1989), p. 126.
COUTO, M., (1999), p. 13.
4
Polícia Internacional de Defesa do Estado.
3
Lourenço, de acordo com a voz enunciadora, foi levado pelo pai a uma de suas inúmeras
missões de extermínio de negros revoltosos. O Pide pai, fardado, os punha em um
helicóptero de onde os jogava no mar, cumprindo, assim, o que supunha ser sua missão em
África. Na tentativa de amadurecer o filho e livrá-lo dos malefícios que os mimos de
Margarida, a mãe, poderia trazer-lhes, Joaquim levou o menino para assistir a um destes
espetáculos para torná-lo forte, porque, segundo ele, “os fracos não gozam a história”5. No
entanto, na ocasião, uma teia de pernas que os negros, cientes do seu destino, fizeram
crescer em volta do Pide ocasionou também que este fosse jogado do helicóptero nas águas
do Índico.
Deste modo, a apresentação de Lourenço é marcada pela imobilidade: seus atos
espontâneos são apenas aqueles que se referem aos mandos que seu cargo lhe permitiam de
modo que as demais ações passaram a ser pautadas sempre pela iniciativa da mãe. Apesar
do poder que o cargo lhe conferia, Lourenço evoca a epígrafe da obra, uma vez que receia
os males do lado colonizado da paisagem: a maldição dos negros que lhe chega todas as
noites pelo som do batuque aterrorizante que vem das matas e o ruído do ventilador que lhe
traz à memória o episódio da morte de seu pai. Em casa, longe do poder outorgado pela
representação da cidade, Lourenço torna-se “infanciado”, dependente da mãe que lhe fala
frases repletas de palavras terminadas pelo sufixo -inho, marca do despojamento do poder e
da dependência da personagem.
O sentimento de rejeição aos negros se concentra, sobretudo, na figura de Tchuvisco, um
jovem cego que, segundo a voz enunciadora, é o maior receptáculo das críticas, temores e
maldições do Pide. Esta personagem metaforiza todo o ódio racional de Lourenço que, sem
saber, este sentimento é também herança do pai. A marca de transigência dos valores
adotados pelo Pide pai é quebrada no sentido dito “moral” do homossexualismo em relação
aos negros que ele, preconceituosamente, sempre discriminou. A característica
homossexual de Joaquim Castro era, pois, escamoteada em técnicas de tortura, mesclando,
desta forma, a aversão e o prazer com relação aos negros daquela vila moçambicana. A
estrutura psicológica tanto do pai, quanto do filho é assinalada por uma exacerbação,
segundo Lacan, do gozo. Sua repressão leva à histerização não no sentido de histeria de
uma estrutura clínica, mas, sim, ao fato de que o Pide, através de gestos e palavras, começa
a falar o sistema. Nessa personagem, o sentido deste gozo é sádico e se veicula pela tortura,
pois ela se dá no campo de uma sexualidade pervertida. Através, pois, da anulação do negro
como homem surge a satisfação do torturador pelo rebaixamento do ponto de vista humano.
Os presos de cor eram transformados em objeto de um prazer doentio do colonizador que
impõe a ele e a sua cultura.
Uma vez surpreendido pelo olhar de Andaré Tchuvisco, o Pide pai decidiu cegá-lo e,
não, simplesmente, eliminá-lo. Sua tentativa em tirar a visão do rapaz objetivou apagar da
mente de Tchuvisco a sua imagem maculada e não mais casta, como também sugere seu
nome, já que ao ser visto, ele saiu do lugar de agente para o de paciente, ou seja, “viu
sendo visto”, o que lhe causou o horror que o fez praticar a crueldade contra o rapaz. Sua
compulsão, também herdada pelo filho, de manter as paredes imaculadamente brancas e o
chão vermelho luzidio, sem a lembrança de uma gota sequer do sangue dos torturados,
exacerba esta idéia de retidão que ele queria impor à sua figura que, na verdade, era,
justamente, o contrário disso.
A queda do regime colonialista de Salazar ocasionou muito mais que uma mudança
política. Representou, acima de tudo, a visão real de uma situação político-social que se
5
Idem, Ibidem, p. 26.
revela na paisagem e nos é informada na enunciação de que este chão já não tinha limpeza
possível6.
Se nos detivermos na estrutura do romance percebemos, em Vinte e zinco, uma clara
divisão entre suas personagens: os Pide pai e filho ocupam posição antagônica aos negros e
mestiços representados por Tchuvisco, Jessumina, Marcelino, Tio Custódio, Dona Graça.
Irene, irmã de Margarida e tia de Lourenço é elemento de transição e causadora de conflitos
domésticos, já que, portuguesa e branca, optou por romper os liames que a separavam dos
negros. Seu amor por Marcelino e a preservação desse sentimento, mesmo após o
assassinato dele, fê-la decidir por cruzar de vez esta fronteira. Embora sua pele fosse
coberta pelas mesmas tatuagens que enfeitavam os ventres das negras e ela buscasse os
ensinamentos míticos de Jessumina, a adivinhadora que teve seu aprendizado com as
divindades residentes no fundo de um lago, é no “matope”, ou seja, na lama que está o
ponto de interseção entre estes dois espaços. Se coube ao português a conquista e o domínio
da terra, foi na água que o negro guardou grande parte do repositório de suas tradições e
ancestralidade. “Ao vagar pelas margens, pântanos e pressentir as garças como panos
brancos”,7 Irene buscou o seu caminho e cobriu-se de lama, resultado final da mistura da
terra e da água e metáfora de sua posição intermediária na estrutura ficcional.
No entanto, ao longo da narrativa, percebe-se que há um deslocamento contínuo das
personagens em direção ao espaço dos negros. No fim do romance, após o caos do dia vinte
e cinco de abril, nada mais restou aos brancos senão deixarem a terra. Com a revolução dos
prisioneiros e sua fuga da cadeia, instaurou-se o descontrole e a inevitável morte de
Lourenço Castro. Ao tornar-se agente deste ato, Irene, sua tia, deu o passo final em direção
à sua trajetória mítica. Como Jessumina, ela também escolheu o caminho da descida às
águas do lago, em busca de um espaço alternativo onde pudesse também adquirir o
conhecimento de novas “verdades”, no sentido benjaminiano do termo.
É, pois, no cruzamento dos espaços da cidade e da mata, do mítico com o histórico que
se encontra a vertente atual das literaturas produzidas nas muitas Áfricas, uma vez que aí
reside a possibilidade do resgate completo da paisagem. Isto fará com que, para os negros,
vinte e cinco passe a representar concretamente o início de uma nova era e não remeta o
leitor apenas para a segunda epígrafe do romance, que aponta, pela fala de Jessumina, que
vinte e cinco foi importante apenas para aqueles que vivem na cidade, enquanto que para os
negros a data lhes faça tão somente recordar as folhas de zinco que cobrem suas casas.
Por esta razão, Vinte e zinco não tem final fechado, logo, muitas leituras são cabíveis e
em todas elas está a abertura que sugere uma integração espacial que resultará na
reconstrução de cada um desses países.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
BARTHES, Roland. Mythologies. Paris: Seuil, 1985.
COUTO, Mia. Vinte e zinco. Lisboa: Caminho, 1999.
CAPEL, Horácio. Filosofia y ciência em la geografia contemporânea. Barcelona:
Barcanova, 1981.
6
7
COUTO, (1999), p. 117.
Idem, Ibidem, p. 135.
COSGROVE, Denis. Geography is everywhere: culture and symbolism in human
geography. London: Macmillan, 1980.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir — história da violência nas prisões. Petrópolis:
Vozes, 1999.
LACAN, Jacques. Seminário, livro 2, o eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise.
Rio de Janeiro: Zahar, 1985.
MEMMI, Albert. Retrato do colonizador precedido pelo retrato do colonizado. Rio de
Janeiro: Paz e terra, 1989.
ROUANET, Sérgio Paulo. Édipo e o anjo - itinerários freudianos em Walter Benjamin.
Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1981.
SAUER, Carl. The morphology of landscape. Bekerley: The University of Carolina Press,
1963.
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