A TRAJETÓRIA DO HCTE1 Saul Fuks Professor do HCTE/UFRJ A generosidade, embora fora de moda, ainda é cultivada no HCTE e explica a homenagem que me é prestada. Agradeço, especialmente, ao Ricardo Kubrusly e ao Carlos Koehler. Se algum mérito me cabe, na criação do HCTE, foi o de ter expressado o pensamento de nossos professores, na sua visão interdisciplinar do conhecimento, na crítica à nossa sociedade e à nossa vida acadêmica e na crítica à própria ciência enquanto rainha dominante do conhecimento, ideias apresentadas no manifesto de Wilhelm Von Humboldt, quando criou a Universidade de Berlim. Num tempo de incerteza, como o nosso, de grandes mudanças paradigmáticas, a dúvida se apresenta, permanentemente, não apenas, na sua visão cartesiana, como método de busca da verdade (ao passar pelo teste de todos os possíveis questionamentos da teoria), mas como uma dúvida mais cruel dos próprios axiomas básicos do conhecimento em todas as áreas da vida. Nosso lema principal é a não aceitação dogmática das verdades. A verdade não é como algo eterno, absoluto e inquestionável, e sim como uma permanente busca. Quando a encontramos sabemos que ela é passageira, provisória e que no futuro será comprovada como falsa, como ensinava K. Popper. Buscamos, também, uma epistemologia da convergência em oposição à epistemologia da dissociação fundada na especialização num pensamento que divide e subdivide e que estabelece fronteiras rígidas entre as disciplinas, relegando ao ostracismo. O pressuposto da unidade necessária dos meios de conhecimento da realidade. A criação do HCTE foi, de fato, um esforço coletivo, corajoso, persistente, fruto de uma crença num conjunto de ideias. Como interpretar a história do HCTE? Vem à minha memória um episódio narrado na Ilíada de Homero. A pitoniza tinha afirmado que os gregos ganhariam a guerra, no entanto surgiu uma peste que matou grande parte das forças gregas. Os gregos consultaram um vidente, Calcas, para esclarecer o paradoxo. Homero, pela voz de Calcas mostra o que significa interpretar um fenômeno. Interpretar, diz ele, é integrar numa unidade o passado o presente e as expectativas do futuro. Palestra proferida por ocasião do Mini-Simpósio “O Eterno Novo em Saul Fuks”, ápice do congresso Scientiarum Historia IV, como homenagem ao professor Saul Fuks. 1 Vamos tentar essa trajetória na história da criação do HCTE, se para tanto não nos faltar engenho e arte. Essa criação tem uma pré-história em que se geraram as condições de possibilidade de seu desenvolvimento. A gestação dessas condições se deu na COPPE e não por acaso. Creio que somente na COPPE isto seria possível. Por quê? Pelo seu compromisso com a interdisciplinaridade, pela existência de um caldo cultural onde surgiram as primeiras discussões que resultaram na criação do HCTE, na década de 80, quando deixávamos para trás o século XX e com ele os últimos vestígios de uma confiança absoluta no progresso automático, irrefletido e unidirecional, tendo resistido a genocídios, guerras, bombas atômicas etc. Com a quebra dessa confiança, ressurgiram novas ideias sobre ciência, tecnologia e sobre valores e usos de suas criações. A COPPE nasceu e cresceu comprometida com a renovação da universidade brasileira e com a busca da excelência acadêmica, visando aproximar as estâncias da produção e integração do saber com a sociedade. Era, por isso, necessário refletir sobre o papel da ciência na sociedade que desemboca nas grandes questões da história e filosofia da ciência. Cerca de metade dos programas da COPPE tem características interdisciplinares. São dados na COPPE cursos sobre a ética de Levinas, a filosofia de M. Buber, relações entre técnica e cultura, sobre a escola de Franckfurt, sobre o pensamento de Habermas, Bruno Latour e Amanta Sen; o que revela o grau de abertura da COPPE para a interdisciplinaridade e a heterodoxia. Podemos dividir a história do HCTE em 3 períodos: - o 1° Período (Pré-história) de 1988-1999. 1888 é a data da criação do grupo de Filosofia de Ciência na COPPE. 1999 é a data da aprovação, pela COPPE, do programa interdisciplinar de História e Filosofia da Ciência. - o 2° período de 1999 a 2005. 2005 é a data da legalização do programa HCTE pela CAPES e pela UFRJ. - o 3° período, de 2005 em diante, corresponde à existência autônoma do HCTE (independente). No primeiro período o grupo Filosofia da Ciência da COPPE foi organizado por mim, Legey, Pinguelli e Ildeu. Foram ministrados diversos cursos sobre T. Kuhn, K. Popper, Fayreband etc e muitos ciclos de conferências que citarei para termos uma ideia sobre os temas debatidos e os conferencistas. Platão e a Matemática – J. A. Peçanha Caos e Determinismo – Ildeu de Castro Moreira Linguagens Naturais e Formais, seus Relacionamentos – Chateaubriand O Nascimento da Ciência Moderna – Pierre Thuillier Bachelard e o Novo Espírito Científico – Hilton Japiassu A Teoria do Conhecimento em Kant – F. Trein Os Limites da Inteligência Artificial – W. Mendonça Kuhn e as Revoluções Científicas – Einstein e Galileu – Lobo Carneiro A Visão de Popper de Filosofia da Ciência – Shozo Motoyama Os Limites do Paradigma Newtoniano – Luiz Pinguelli Rosa A Ciência Grega dos Pré-Socráticos a Aristóteles – C. Leão Introduzimos, posteriormente, reflexões sobre: incerteza, teoria da decisão e lógica nebulosa. Em 1988 foi organizado um congresso internacional, na COPPE: 350 anos do “Discorsi Intorno a Due Nuove Scienze” de Galileu Galilei, que deu origem a um livro com o mesmo nome. Participaram as maiores autoridade mundiais em Galileu, citarei alguns dos conferencistas e os temas abordados: P. Thuillier – U. Paris – 1° Jornada dos Discorsi. Stillman Drake – U. Toronto – De Galileu a Newton. Ludovico Geymonat – U. Milão – Relação entre Matemática e Experimento. Viceuzo Capelloti – O Drama de Galileu. Organizamos em 1992 e 1993 dois congressos nacionais no Fórum da Ciência e Cultural da UFRJ. Sobre o caos, acaso e determinismo, (foi publicado um livro com idêntico nome). Os trabalhos apresentados cobriam um espectro que ia da Física à Filosofia, passando pela Matemática, Economia e História, numa tentativa interdisciplinar de descrever adequadamente muitos fenômenos naturais complexos. Foi, também, debatido, o caos determinístico que se apresenta quando existe uma grande sensibilidade à variação das condições iniciais, o que impõe severas restrições a uma previsão rigorosa do comportamento futuro do sistema. Em 1966, o grupo de filosofia da ciência da COPPE em conjunto com o MAST, IFCS e Instituto de Matemática (UFRJ) promoveu um colóquio internacional: Descartes 400 anos (do qual resultou um livro com idêntico nome). Eis alguns dos participantes estrangeiros: Richard Westfale – U. Indiana, Stefan Gaukroger – U. Sidney, Michel Blay – CNRS França – Hanstiger – U. Tubenger, Peter Mac Laughtlin – U. Konstanza. Como coroamento de todo esse elenco de atividades, em 1999, o grupo dirigente submeteu ao conselho de coordenadores da COPPE uma proposta de criação de uma área interdisciplinar: História das Ciências, das Técnicas e Epistemologia envolvendo os programas de produção, planejamento energético e sistemas e computação. A área abrigava um curso de mestrado e doutorado com cerca de 30 alunos oriundos de diferentes áreas, muitos deles ex-alunos da UFRJ; além de docentes da COPPE participaram professores do Instituto de Química, Instituto de Matemática, Instituto de Física e IFCS (todos da UFRJ). Foi decisivo o apoio do Pinguelli e de toda a diretoria da COPPE a esta proposta, pois havia um certo dogma contra a criação de novos programas e alguns coordenadores temiam que o recém-criado programa desejasse permanecer na COPPE permanentemente. (vários programas como Planejamento Urbano, COPPEAD e Economia Industrial foram gerados na COPPE e posteriormente emigraram). O novo programa, para sobreviver, teve que cometer algumas irregularidades formais. Algumas das disciplinas já eram ministradas nos programas de Engenharia de Produção e de Sistemas, mas não era possível registrar disciplinas novas (com novas siglas). Por exemplo, utilizei a disciplina de doutoramento da Produção – Tópicos em Engenharia de Produção para dar um curso sobre a obra de T. Kuhn. Não havia possibilidades de registrar cursos novos (autônomos). Neste esquema era possível o estudante se formar com título de mestre ou doutor em Engenharia de Produção na modalidade de História das Ciências e das Técnicas e Epistemologia. Nesta ocasião apresentamos um pedido de credenciamento do HCTE na CAPES (precipitadamente). O pedido não foi aceito, mas as exigências feitas nos ajudaram a preparar, mais tarde, um segundo pedido. Em 2005, Luiz Bevilaqua, dirigente dos grupos interdisciplinares da CAPES e antigo professor da COPPE, nos ajudou a formular um novo pedido que foi aprovado com conceito 4 (o maior conceito possível para programas iniciais). Por ser aposentado, pedi demissão da coordenação do programa que passou a ser coordenado por Luiz Alfredo Vidal. Restava um grande obstáculo, aprovar o HCTE na UFRJ (CEPG). Eu e Luiz Alfredo nos reunimos várias vezes com a relatora do CEPG, representante do Museu Nacional, Mariângela Menezes, que inicialmente achava o projeto excelente, mas apresentava um grande defeito, embora bem feito, inviável, na prática, devido à estrutura departamental da UFRJ. Depois de muita discussão, conseguimos convencê-la da viabilidade da proposta. Na reunião do CEPG, a relatora defendeu, arduamente, o nosso pedido, que foi aprovado integralmente por 12 votos favoráveis e uma abstenção. O projeto já havia sido aprovado na COPPE, no Instituto de Matemática e no Instituto de Química e contava com o apoio do Instituto de Física e do IFCS. A esta altura éramos um programa legalizado na UFRJ e na CAPES, portanto com direito à vida normal, mas havia uma série de dificuldades: o HCTE não tinha professores de tempo integral, todos eram professores de outros departamentos que voluntariamente davam aulas e apoio ao HCTE (parcialmente). Havia também dificuldades operacionais e burocráticoadministrativas. O sistema não aceitava siglas numéricas dos novos cursos do HCTE, era preciso alterar vários procedimentos. Os alunos se sentiram inseguros. Havia problemas de espaço, secretaria, inexistência de salas de aulas etc. Em 2008, o HCTE elegeu novo coordenador, Carlos Alberto Filgueiras e mudou da COPPE para o Instituto de Química (rotatividade exigida pelo novo estatuto). Nesta fase é intensa a atividade do Filgueiras com o apoio da direção do Instituto de Química e do Reitor Aloísio Teixeira. A partir de Setembro de 2008, Ricardo Kubrusly (vice-coordenador do HCTE) assumiu a coordenação acadêmica do Programa e contou com o apoio da Pró-Reitoria de PósGraduação e Pesquisa/PR-2. Muitas dificuldades foram sanadas pela dedicação e experiência de Regina Dantas, que conhecendo bem os meandros da administração da UFRJ vai pouco a pouco colocando o HCTE nos canais de comunicação pertinentes. Houve, também, nesta fase resistências, conflitos internos no HCTE; dois professores queriam restringir o escopo do HCTE entorno de um programa de História da Ciência não havendo lugar para a epistemologia, filosofia da mente e inteligência artificial. Como resultado do conflito os dois pediram demissão voluntária. Ainda em 2008, o HCTE organizou o seu 1° Congresso Nacional de História e Filosofia da Ciência (Scientiarum História) com grande êxito resultando na publicação de um livro dos anais do congresso. Em 2009, foi realizado, também sob a coordenação de Filgueiras, o congresso Scientiarum Historia II/Encontro Luso Brasileiro de História da Ciência com a participação de pesquisadores portugueses. Em Janeiro de 2010, Filgueiras se aposentou e a coordenação foi passada interinamente para Ricardo Kubrusly. Em Junho do mesmo ano, Kubrusly foi eleito coordenador do HCTE, tendo como vice-coordenadora a professora Nadja Paraense e, desde que se engajou no Programa, realizou uma contribuição valiosa não somente por meio dos inúmeros cursos que deu, mas pelo empenho incessante ao aprimoramento do trabalho coletivo, antes, mesmo de assumir a coordenação. Em 2010 e 2011, foram realizados os congressos Scientiarum Historia III e IV que também proporcionaram publicações de livros de anais. Em todas as nossas atividades, tivemos a ajuda dos Decanos do CCMN Angela Rocha e João Graciano. Vencemos as dificuldades iniciais de todo tipo, mas há um longo caminho a percorrer. Incorporaram-se a nós novos professores com grande experiência e produção acadêmica. Cada dia aparece novos pedidos de professores que desejam integrar o HCTE. O professor Marcio Luchese da UFRJ, membro da Academia Brasileira de Letras nos ofereceu o número de Março da revista Tempo Brasileiro, para publicar trabalhos dos nossos alunos e professores e também participar das conferências a serem realizadas na Academia Brasileira de Letras sobre temas científicos. Vejo grandes possibilidades de consolidação e aprimoramento do HCTE no futuro. Os desafios vão desde problemas materiais como montar uma biblioteca própria e sala para os alunos até a consolidação de cursos e áreas já existentes. Enfrentamos o risco de ampliarmos demais nossos horizontes (onde não temos massa crítica adequada) e cairmos na simplificação e na superficialidade; risco inerente a todo programa interdisciplinar. Algumas idéias poderão ser amadurecidas nos debates no colegiado; como por exemplo, o reforço da área de Redes Neurais e Inteligência Artificial. Acho, também, viável e importante a criação de uma sub-área de lógica por possuirmos uma excelente massa crítica no programa. Poderemos, também, criar cursos novos como: Economia e Cultura, Economia Matemática, História da Filosofia, As contribuições de Kuhn e Popper à Filosofia da Ciência etc. Seria, também, de nosso interesse a ampliação do contato com áreas afins como: Museu de Astronomia, Instituto Osvaldo Cruz, Universidade Federal Fluminense etc. Um incentivo ao aumento das publicações de professores e alunos, necessário para aumentar o conceito 4 do HCTE na CAPES para 5, seria submeter parte da tese de doutoramento a uma revista nacional ou internacional. Uma das características dos professores do HCTE é possuirmos um grande potencial de crença (necessidade, vontade de crer); mas vivemos também em busca de novas crenças. Acreditamos na possibilidade de corrigir as injustiças humanas, de consertar o mundo, a maioria de nós, somos homens de ilusões perdidas, (nos tornamos desiludidos do socialismo real). Somos homens dos tempos sombrios. As ilusões, porém, renascem após cada naufrágio. Conta a lenda que um discípulo de um velho mestre místico, moribundo, foi visitá-lo; durante a viagem pensou sobre uma pergunta que poderia fazer ao mestre, à beira da morte, que fosse essencial . Quando o viu perguntou: “Você ainda espera algo da vida?” Este é o principio de esperança. As realidades de hoje foram utopias do passado, gens, embriões que fecundaram a história. Nessa concepção, utopia não é algo irreal, inviável, sonho romântico, irrealizável (que é a idéia de utopia na linguagem cotidiana). Ao contrário a utopia é a própria condição de possibilidade do devir, do futuro florescimento do novo; são os anseios, às vezes, ainda não amadurecidos que aguardam a sua vez nos labirintos da História. Esta é a concepção de utopia de H. Bloch e M. Buber. No livro sexto da História dos Animais, onde Aristóteles faz reflexões sobre a distinção ente os homens e os animais (o que os diferencia), é citado o início de um dos mais belos poemas, da grande poetisa Safo, que diz: “O homem é o único ser que rompe o silêncio da noite cósmica.” Recordo-me da belíssima área de Flauta Mágica de Mozart: “Die sonna. Strahlen Vertraiben di macht” (os raios de sol expulsão a noite). No conflito das duas vertentes humanas, no contraponto ente luzes e sombras que Rembrandt imortalizou, há uma tensão trágica e um mistério, assim é a vida humana. Navegar é preciso, viver não é preciso (lema da 1ª escola de navegação grega) que nos leva a buscar nas raízes da existência nutrição para o nosso pensamento; como disse Goetche a teoria é cinzenta, verde é a árvore da vida. Algumas palavras sobre o nosso colegiado de professores do HCTE sob a coordenação alegre e produtiva do mestre Kubrusly, que é um conjunto harmonioso onde as diferenças e controvérsias não levam ao conflito, mas a uma superação. Predominam a amizade e as idéias comuns. Nossas reuniões refletem este clima que não é muito comum na UFRJ. Desejo agradecer, novamente, ao carinho da homenagem, mas após o meu relato sobre a criação do HCTE faz sentido estendê-la à toda nossa equipe de professores, funcionários e alunos, que construíram o nosso programa desde o início até hoje. Muito obrigado.