Comentário das respostas da pergunta “que é a fé?”, parte da série "Reflexões sobre a espiritualidade e a ciência", onde o ocultista Marcelo Del Debbio e o cético Kentaro Mori responderam a 7 perguntas sobre o tema. Para saber mais, leia a premissa da série. [Raph] Estamos em alguma parte relativamente gélida do globo, e existe um lago aquecido pelo calor que brota do solo, para onde alguns se dirigem e mergulham durante as tardes de vento mais frio. Lá, os nadadores dizem que são mais felizes do que aqueles que estão de fora, pois não são obrigados a suportar todo o rigor do inverno... Os que ficam de fora, porém, alegam ter uma excelente razão para tal: dizem que os vapores que brotam das águas do lago também são psicoativos, e provocam alucinações que, com o tempo, terminam por minar a racionalidade dos nadadores. Já os nadadores se defendem: na realidade, é o frio intenso que acabou por congelar o coração daqueles que se abstiveram do mergulho, e por isso mesmo não foram escolhidos pelo “espírito do lago” para essa tal benção consoladora. É assim que muitos dos que se alistaram em guerras entre a fé e a razão, o ceticismo e a crença, a espiritualidade e a ciência, gostariam que você imaginasse tal cenário... E por acaso alguém não poderia simplesmente mergulhar no lago dia sim e dia não, para que não se acostumasse demasiadamente nem com o calor da fé, nem com o frio da razão, ao ponto de se esquecer de uma dessas potencialidades do ser? Não, é óbvio que não, dirão os radicais, os dogmáticos: ou você crê, e é salvo, ou estará condenado ao inferno gelado; ou você se abstém por completo de mergulhar, ou estará infectado pelo veneno dos vapores da fé... São apenas dois lados de uma mesma moeda. O caminho do meio, apesar de ser talvez o mais árduo de se seguir, é de longe o mais recompensador – ou, pelo menos, foi seguindo o caminho do meio que muitos de nossos grandes cientistas e espiritualistas entraram para nossa história como alicerces do nosso conhecimento. Em seu curto e demolidor A vontade de crer [1], o filósofo americano William James, um dos fundadores da psicologia e do pragmatismo, nos traz uma explicação um tanto quanto “vulgar” para o real motivo de nossas crenças, mas que, não obstante, parece ser o caso na grande maioria das vezes: “Nossa razão estará perfeitamente satisfeita, em 999 em cada 1.000 de nós, se puder encontrar alguns argumentos para apresentar no caso de nossa credulidade ser criticada por alguém. Nossa fé é a fé na fé de outro e, nas maiores questões, esse é quase sempre o caso. Nossa crença na própria verdade, por exemplo, de que existe uma verdade e de que nossa mente e essa verdade são feitas uma para a outra – o que é isso senão uma afirmação apaixonada de desejo, em que nosso sistema social nos dá suporte? Queremos ter uma verdade; queremos acreditar que nossas experiências, nossos estudos e nossas discussões devem nos colocar numa posição continuamente melhor para isso [...] Mas, se um cético pirrônico [2] nos perguntar como sabemos tudo isso, será que nossa lógica poderá encontrar uma resposta? Não! Certamente não poderá. É apenas uma volição [vontade] contra a outra – nós, dispostos a encarar a vida com base em uma confiança ou pressuposição que ele, por seu lado, não acha importante adotar. Para os primeiros céticos, seguidores do pirronismo na antiga Grécia, o “caminho do sábio” consistia em refletirmos sobre três questões fundamentais: Primeiro devemos perguntar o que são as coisas e de que são constituídas. Segundo, como estamos relacionados a estas. Terceiro, perguntar qual deve ser nossa atitude em relação a elas. Os próprios pirrônicos respondiam: Sobre o que as coisas são, podemos apenas responder que não sabemos nada. Sabemos apenas de sua aparência, mas somos ignorantes de sua substância íntima. A mesma coisa aparece diferentemente a diferentes pessoas, e assim é impossível saber qual opinião é a correta. A diversidade de opiniões entre os sábios, como entre os leigos, prova isso. Podemos ter opiniões, mas certeza e conhecimento são impossíveis. Daí nossa atitude frente às coisas (a terceira pergunta) deve ser a completa suspensão do julgamento. Não podemos ter certeza de nada, mesmo as afirmações mais triviais. Dessa conclusão radical, enraizada nos primórdios da própria filosofia, podemos retirar que a única certeza de que temos é a certeza de que existimos, de que somos um ser pensante, e assim o sendo, de que podemos tão somente refletir e filosofar acerca do mundo sem, no entanto, jamais termos certeza de qualquer outra coisa... Os empiristas, grandes entusiastas do método científico, jamais chegaram a um ceticismo tão radical: para eles, o fato de algo poder ser detectado por nossos sentidos já é alguma boa indicação de que efetivamente exista. E este algo, se puder ser visto por muitos outros de nós, e em todos concordando em que ele realmente é deste ou daquele jeito, podemos talvez afirmar, enfim: sim, isto existe! Mas pode não ser tão simples. Digamos que os nadadores do lago tenham visto muitos cisnes nadando de uma margem à outra, até que saíssem para outros cantos. Ora, ao longo dos anos, centenas de cisnes passaram pelo lago, e todos eram brancos. Aqueles que estão fora do lago prontamente chegaram a uma conclusão inteiramente baseada na observação: “Interessante, cisnes existem, e todos os cisnes são brancos”. Mas uma criança que mergulhava no lago sempre insistia: “Não, uma vez eu vi um cisne negro, mas ele passou sorrateiro na margem oposta e ninguém mais o viu”. Ora, ocorre que apenas alguns poucos nadadores tinham fé na afirmação do menino, aqueles racionais encasacados do lado de fora somente davam de ombros, irônicos: “É, pode ser, quem vai saber? Ah, as crianças e a sua imaginação!”... Até o dia em que um cisne negro nadou em meio a todos no lago, e foram forçados a mudar de opinião, e de crença (ou descrença). Karl Popper, um filósofo austríaco do século XX, tentou resolver tal problema através do falsificacionismo. Segundo ele, o que existem são teorias que podem ou não ser confirmadas em experimentação, e não conclusões finais e derradeiras. Por exemplo, no caso dos cisnes: para Popper o fato de todos os cisnes serem brancos seria tão somente uma teoria, incompleta no que tange aos cisnes, como sabemos... A partir do momento em que um único cisne negro é descoberto, a teoria se ajusta e adapta, e passa a afirmar: “A grande maioria dos cisnes é branca, mas existem alguns cisnes negros”. Se acaso um dia viessem centenas de cisnes negros, ou amarelos e azuis, nadando pelo lago, a teoria teria de ser novamente revista [3]. Ora, se estendermos essa ferramenta do pensar elaborada por Popper para a região da crença, e não somente da ciência, teremos algo muito parecido com um caminho do meio, um certo equilíbrio entre a fé e a razão: Podemos, sim, crer em muitas coisas que jamais foram detectadas, porém, na medida em que muitos de nós experienciam tais coisas subjetivamente, e trocam ideias entre si acerca delas, e muitas dessas ideias se assemelham umas com as outras, podemos dizer que chegamos a hipóteses, teorias lógicas acerca de tais experiências. E, naturalmente, umas serão mais embasadas do que outras, embora todas estejam ainda além da experimentação científica, além da “prova cabal” de que efetivamente existam nalgum lugar. No fundo, tudo o que existe é o que nossa própria mente é capaz de detectar, conceber, elaborar, interpretar, imaginar, e crer... Não há como realmente escapar do risco de crermos em algo que, no fim, jamais existiu. Decerto, na verdade, fazemos isso o tempo todo. A grande questão é que devemos sempre considerar que podemos estar errados, e que dogmas e textos infalíveis nunca foram saudáveis, nem para a espiritualidade, nem para a ciência. *** [1] Publicado no Brasil pelas Edições Loyola (coleção Leituras Filosóficas). [2] Pirro de Élis foi um filósofo grego da antiguidade (360 - 270 a.C.), fundador do pirronismo, e considerado por muitos como o primeiro cético. Sim, o ceticismo nasceu da filosofia, e não da ciência. [3] Mas mesmo o falsificacionismo de Popper não está imune a erros graves. Se considerarmos, por exemplo, a teoria copernicana de que a Terra gira em torno do Sol, temos que quando ela foi inicialmente elaborada, críticos indicaram duas observações que poderiam falsificá-la: Primeiro, se a Terra se move, um objeto derrubado de uma torre alta deveria cair em ângulo, não na vertical. Pois se a Terra se move um pouco enquanto o objeto está caindo, ele deveria cair a certa distância do ponto diretamente abaixo daquele em que foi solto. Mas, claro, quando objetos são soltos de torres, caem sempre na vertical. Essa observação parece falsificar a teoria de imediato. Segundo, se a Terra gira em torno do Sol, as estrelas fixas deveriam parecer se mover de um lado para o outro do nosso campo de visão ao longo de um ano. No entanto, nenhum movimento aparente como esse, ou “paralaxe”, era observado. Alguns tentaram defender Copérnico insistindo que as estrelas deviam estar distantes demais para que a paralaxe fosse detectável pelos instrumentos da época (o que de fato é verdade). Mas essa era, é claro, uma resposta ad hoc. Ainda assim, apesar dessas e outras objeções, a teoria de Copérnico não foi rejeitada, e mais tarde cientistas provaram que estava correta. Se, entretanto, todos os cientistas seguissem a risca o falsificacionismo, a evolução da ciência se atrasaria por muitos e muitos anos, ao ignorar a teoria copernicana.