Relendo a Bíblia, Revendo a Teologia

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Relendo a Bíblia, Revendo a Teologia
Paulo Neto
Análise crítica de alguns temas bíblicos de acordo com uma visão não
dogmática.
Mar/2007.
Se eu estiver certo por mais que você esperneie ou grite isso não vai
adiantar nada, mas se eu estiver errado, então, você não tem com o que se
preocupar.
Agradecimentos
Os nossos sinceros agradecimentos a todos os membros do Grupo Apologético
Espírita – GAE, (www.apologiaespirita.org) pelo apoio e incentivo nas
pessoas dos amigos Maurício C. Pimenta, João Frazão e Hugo Alvarenga,
pelas suas valiosas sugestões aos textos colocados nesse nosso livro.
Créditos aos amigos Thiago Toscano Ferrari e Vladimir Vitoriano da Silva
cujos textos “A Serpente é Satanás?”e “Deuteronômio – Lei divina ou
mosaica?, respectivamente, os fizemos em conjunto.
À minha esposa Rosana e aos meus filhos Ana Luísa, Rebeca e João Pedro,
que souberam compreender o tempo que lhes retiramos para dedicar a esse
livro.
Índice
Agradecimentos
3
Apresentação
5
Prefácio
7
Toda Escritura é mesmo inspirada? 9
O Paraíso Perdido 18
A serpente é satanás? 21
A Arca de Noé
23
Torre de Babel: o carro na frente dos bois
Sodoma e Gomorra 32
Matança dos varões nascidos de hebreus 44
Moisés, o Libertador
48
Mar Vermelho: a travessia que não existiu
E aconteceu no Sinai
57
Deuteronômio – lei divina ou mosaica?
63
Milagres de ordem cósmica
68
A morte de Saul 70
Os mortos estariam dormindo? 72
O caso do arrebatamento de Elias 75
A Lenda Bíblica de Jó 78
Satanás – ser ou não ser, eis a questão.
Jonas e a baleia 86
Nascido de uma virgem 91
A Fuga para o Egito
93
Nazareno: o significado
95
Mediunidade no tempo de Jesus
102
Mistérios ocultos aos doutos e inteligentes
João Batista é mesmo Elias? 116
Eucaristia: Jesus a instituiu?
126
Pedro, tu és Papa?
129
O Ritual do Batismo
154
27
51
83
113
A traição de Judas – uma história mal contada 162
A Questão do Bom ladrão
166
O Enigma do Sudário
169
Espíritos em Prisão
171
A morte de Agripa 173
A conversa de Jesus com Nicodemos 176
O Antigo Testamento foi revogado por Jesus?
183
Será que os profetas previram a vinda de Jesus?
Ressurreição, o significado bíblico
207
Jesus ficava calado?
216
Ecos do Passado - O paganismo no cristianismo 224
Ressurreição da Carne? 229
Ressurreição ou Reencarnação?
233
Inferno ou Purgatório? 237
Os milagres existem?
245
A mulher na Bíblia
249
O que efetivamente nos salva?
252
O fim dos tempos 262
Comunicação com os mortos na Bíblia
274
Os textos originais na Bíblia
281
Podemos questionar as escrituras? 287
Inspiração dos textos sagrados
289
Ajustes a dogmas 298
O espírito é imortal? 302
Conclusão Final 314
Referências Bibliográficas
315
188
Apresentação
A Bíblia é um livro excepcionalmente importante para toda a
Humanidade.
Foi o primeiro livro a ser impresso tipograficamente, sendo também
a obra publicada no maior número de idiomas em todo o mundo.
Para alguns, o livro representa a palavra de Deus, de capa a capa.
Para outros, entretanto, seu texto deve conduzir à reflexão e apreciado
como literatura alegórica, em muitas oportunidades.
A Bíblia é chamada de “O Livro Sagrado”, pelo respeito exacerbado
que, ao longo dos séculos, foi construído pela Igreja. A reforma
protestante exaltou, ainda mais, o texto bíblico, buscando torná-lo
inatacável.
As gerações humanas se sucederam, sem que, mesmo quanto aos
trechos da Bíblia notoriamente exagerados ou controversos se colocasse
qualquer observação, sob pena de granjear, o audacioso que assim
procedesse, o epíteto de herege ou sacrílego.
É inegável o excepcional valor de muitos ensinamentos do livro.
É inaceitável, contudo, afirmar-se ser, todo o seu conteúdo a
palavra de Deus, tantas são as menções carentes de racionalidade.
Com a evolução temporal, surgiram vários estudiosos que
deliberaram esclarecer, debater e reparar as passagens bíblicas
merecedoras de observação.
No Brasil, anteriormente, destacaram-se, como críticos da Bíblia,
o conspícuo Dr. Carlos Imbassahy, espírita convicto e militante e o Dr.
Mário Cavalcanti de Melo, autor do livro “Da Bíblia aos Nossos Dias”,
cujo subtítulo é: “Suas lendas, seus erros e contradições”, em obra
prefaciada pelo Professor Deolindo Amorim.
Hodiernamente, irrompe outro grande estudioso da Bíblia, em seus
múltiplos aspectos, o estimado confrade Paulo da Silva Neto Sobrinho, com
os mesmos objetivos colimados por aqueles precursores ilustres, qual
seja, o de retirar as “escamas” que perduram nos olhos de tantos,
incrustados num dogmatismo irremovível.
O escopo de Paulo Neto, nesta obra, confunde-se integralmente ao
daqueles baluartes, o que se pode depreender da transcrição que, com a
devida vênia faremos, de excerto do prefácio do Professor Deolindo Amorim
à obra de Mário Cavalcanti de Melo:
“A preocupação do Autor, entretanto, é de quem, não estando
conformado com certos ensinos bíblicos até agora aceitos como definitivos
e verdadeiros, quer rasgar o véu que ainda encobre muitas passagens da
Bíblia e, assim, afastar dúvidas ou equívocos sensivelmente prejudiciais
à exata compreensão de muitos pontos da História.”
A maior virtude desta nova obra analisadora e revisora dos textos
bíblicos é o enfoque de novos aspectos, sob uma ótica, raciocínio e
lógica diferentes. Entretanto, acontece com todos aqueles que buscam
estudar a Bíblia com base no realismo, serem considerados heréticos e
inimigos da fé.
Anteriormente, Paulo Neto lançou outra apreciada obra sobre o
mesmo tema: “A Bíblia à Moda da Casa”.
Evidenciando o fato de que a análise do texto bíblico prossegue
suscitando muito interesse, surgiu esta nova obra, com nova formatação,
em que os temas são estudados em tópicos separados.
As incongruências, insubsistências e diatribes são exaustivamente
estudadas, e o Autor demonstra excepcional capacidade ao demonstrá-las, e
mais, de extrair conclusões eivadas de racionalidade das suas colocações.
Assim como aconteceu com a sua obra antecedente, “A Bíblia à Moda
da Casa”, este novo trabalho do Autor é um libelo contra o fanatismo e o
dogmatismo.
Tudo porque o enfoque dado ao texto bíblico é calcado num
raciocínio embasado na Doutrina dos Espíritos, de Allan Kardec.
O Espiritismo trouxe novos conhecimentos e novas luzes, em campos
do saber humano até então inamovíveis, seja pelo tradicionalismo, seja
pela oclusão mental. “Mais vale repelir dez verdades do que admitir uma
só mentira”, lecionou o Codificador.
Paulo Neto embasa suas reflexões, observações e conclusões no
conhecimento espírita, que vem amealhando ao longo de seus estudos, em
estrita observância aos preceitos doutrinários.
Todo o seu trabalho é, mui certamente, oriundo de exaustivas
pesquisas e de uma busca incessante de fontes confiáveis, pois a
abordagem e a temária mexe e incomoda aos exegetas de plantão. O
embasamento é necessário e, muitas vezes, imprescindível, para abafar
reações esdrúxulas dos que se sentem atingidos com a exposição realista
que é apresentada.
Não é possível, entretanto, que se continue aceitando como verdade
intocável e inamovível certas colocações e certas passagens bíblicas, à
vista de equívocos e impossibilidades que saltam à vista de quantos as
compulsem.
Esta não é uma obra de leitura, mas sim de estudo. Apresentada em
tópicos , cada um deles vai suscitar reflexão por parte do leitor. Alguns
dos raciocínios e explicações apresentados serão apreciados com surpresa,
levando o leitor a uma pergunta inevitável: “como nunca pensei nisso
antes?”
Honra ao raciocínio, à crítica e à capacidade intelectiva de Paulo
Neto, lançando esta nova obra sobre assunto tão delicado e tão profundo
quanto o conteúdo da Bíblia.
Usufruamos desse manancial de informações.
Belo Horizonte, em 15/04/2005.
Gil Restani de Andrade (1941-2006)
N.A.: Infelizmente o nosso companheiro e mestre Gil Restani desencarnou
em 29/11/2006. A ele nossa eterna gratidão.
Prefácio
Ao longo de nossos estudos da Bíblia sempre nos deparávamos com
passagens controvertidas cujas respostas, oferecidas pela teologia
dogmática, não nos deixavam satisfeitos.
Assim, resolvemos fazê-los como se não tivéssemos nenhuma
informação sobre o assunto enfocado para que nada pudesse nos
influenciar, já que o que aprendemos no passado poderia nos levar, sem
que o quiséssemos, ao mesmo lugar onde se encontram os equívocos
teológicos, cujos conceitos parecem não preocupar a seus representantes.
Estamos vivendo na Era da Informação e os naturais questionamentos
pipocam, quando nos vemos diante de determinadas passagens bíblicas, nas
quais percebemos, por força da razão, que as explicações que nos foram
dadas fogem da realidade contextual, histórica, geográfica e científica.
Por incrível que pareça, o raciocínio sempre nos guiou para
resultados completamente diferentes dos que estávamos acostumados a
acreditar. Entretanto, as bases consistentes e sólidas que buscamos para
nossos questionamentos nos levaram a esses resultados, novos é verdade,
porém dotados de razão e lógica para sustentá-los.
Sabemos que o presente estudo poderá chocar alguns, mas não mais
que nós próprios o ficamos, quando nos deparamos com situações até
contrárias ao que tínhamos em nossa bagagem cultural, que, segundo
acabamos por perceber, estava cheia de peças colocadas por pessoas que
não tinham o mínimo compromisso com a verdade, fato que nos levou a
pensar: e se o que nos passaram não corresponder à realidade? Foi assim,
em busca da verdade que fomos, nesse tempo todo, pautando os nossos
estudos, não nos preocupando a qual resultado final poderíamos chegar.
O choque mais extraordinário que tivemos foi quando, no estudo das
citadas profecias a respeito de Jesus, não encontramos uma só que
pudéssemos nos apegar como uma verdadeira profecia, explícita e direta, a
seu respeito. Acreditamos que isso também irá chocar a muitos,
entretanto, achamos que a verdade deverá se sobrepor, até mesmo porque
Jesus nos recomendou: “Conhecereis a verdade e a verdade vos libertará”.
Agora, mais do que nunca, entendemos o verdadeiro sentido dessa frase.
Falava o Mestre justamente das adulterações, das interpolações, das
interpretações de conveniência que fariam de seus ensinamentos, buscando,
principalmente, subjugar os fiéis, os quais se tornam, em suas mãos, nada
mais que simples joguetes do interesse do poder social ou financeiro,
base fundamental de seus princípios, que nada tem, é claro, a ver com a
verdade que liberta.
Poderá nosso estudo, se bem divulgado, causar descontentamento em
determinada liderança religiosa, essa a qual mais evidência o interesse
do poder e do dinheiro, da qual já falamos. Mas encontrará repercussão
favorável naqueles em que, como nós, o mais importante é a verdade
legítima, não a fabricada por interesses como essas que vigoram entre
quase todas as denominações cristãs.
Esperamos, sinceramente, que outros autores, mais gabaritados que
nós, possam levar adiante esse estudo que ora iniciamos com esse livro
Relendo a Bíblia, Revendo a Teologia, que oferecemos ao leitor, como um
trabalho crítico, livre dos conceitos dogmáticos tradicionais.
Uma revisão teológica, que achamos urgente e necessária de se
fazer, acreditamos tem tudo para ser feita por um espírita, pois, em sua
grande maioria, se desembaraça dos conceitos do passado, por ser um livre
pensador, cujo compromisso é a verdade. Mas não são todos os espíritas
que agem assim, já que em nosso meio existem ex-fiéis de quase todas as
correntes religiosas, que ainda trazem, por atavismo, os conceitos
equivocados da teologia tradicional. Muitos desses, ainda acreditam que a
Bíblia seja totalmente de inspiração divina, de onde se deve, para
entendê-la bem, buscar o significado oculto de suas narrativas. Por
nossos estudos, estamos concluindo que, por ser um livro escrito por
homens e como tal impregnado das visões distorcidas da realidade,
mescladas com superstições e crendices, bem como inúmeros relatos que não
encontrariam apoio científico, são, em parte, produtos da imaginação de
seus autores.
Podemos, então, estar apenas mostrando a ponta do iceberg, para
que outros possam identificar o muito ainda que se encontra camuflado
pela teologia dogmática. Esperamos que isso possa fazer com que as
pessoas venham a acreditar muito mais nas coisas divinas, do que como
acontece agora, pela maneira como nos são transmitidos esses
conhecimentos teológicos ultrapassados, que, na realidade, funcionam como
verdadeiras fábricas de ateus. Esperamos, sinceramente, que Deus possa
iluminar alguém para enxergar a extrema necessidade disso.
Estaremos fazendo esse nosso estudo de forma a abranger a Bíblia
como um todo. Os textos serão colocados, quando for possível, na ordem em
que os assuntos aparecem no AT e no NT, quando não, obedecerão a ordem
cronológica em que foram escritos.
Achamos, por bem, isolar um dos textos, porquanto servirá ao
leitor para avaliar se vale a pena continuar ou não a leitura, para
evitar que o conteúdo desse livro choque com os seus princípios
religiosos, adquiridos ao longo do tempo. Trata-se do texto “Toda
Escritura é mesmo Inspirada?” que virá em primeiro lugar.
Paulo Neto
Toda Escritura é mesmo inspirada?
Sempre nos aparecem pessoas defendendo a origem divina da Bíblia,
usando, para sustentar essa posição, a seguinte passagem:
“Toda Escritura é inspirada por Deus e é útil para ensinar, para refutar,
para corrigir, para educar na justiça, a fim de que o homem de Deus seja
perfeito, preparado para toda boa obra” (2Tm 3,16-17).
Ora, como foram os homens que escreveram a Bíblia, retirar, dela
mesma, algo para provar sua veracidade não seria agir com bom senso.
Seria como aceitar o argumento de um falsário de que aquilo que ele fez é
verdadeiro. Como já dissemos, em outras oportunidades, usar desse tipo de
argumentação, é ficar rodando em círculo. Aliás, os que fazem isso são,
normalmente, aqueles que dificilmente lêem alguma coisa fora do meio
religioso em que vivem. Aí vale a frase: “Quem ouve um sino só escuta um
som, não podendo, portanto, saber se está afinado” (LETERRE, 2004).
Essa forma de argumentação é, segundo Rodrigo Farias, do tipo
“Raciocínio circular ou Petição de Princípio”, que assim explica:
Esse é um erro comuníssimo em debates ou pregações religiosas.
Trata-se simplesmente de afirmar a mesma coisa com outras palavras.
Alguns exemplos:
1. "Por que a Bíblia é a Palavra de Deus? Ora, porque ela foi
inspirada pelo próprio Criador."
ou, ainda, no que eu chamaria de "variação Tostines":
2. "A Bíblia é perfeita porque é a Palavra de Deus. E como sabemos
que ela é a Palavra de Deus? Pela sua perfeição."
Esse exemplo é fácil de encontrar, especialmente nos meios
evangélicos mais conservadores. É importante ressaltar que ele foi posto
aqui apenas para ilustrar um tipo de raciocínio falacioso muito
freqüente, não para desmerecer a Bíblia ou a crença de quem quer que
seja.
Um exemplo laico agora:
3. "Eu acho que alpinismo é um esporte perigoso porque é inseguro e
arriscado."
Dizer que algo é "inseguro e arriscado" não é o mesmo que dizer que
ele é "perigoso"? Ora, o que essa "explicação" acrescentou que
justificasse a idéia de que alpinismo é perigoso? Nada. Simplesmente,
repetiu-se a primeira afirmação com outras palavras.
4. "Por que eu sou a pessoa mais indicada para o trabalho? Porque
eu descobri que, dentre todos os outros candidatos, e considerando minhas
qualificações, eu sou a melhor pessoa para o trabalho."
Valem as mesmas observações. Porém prestemos atenção num detalhe:
às vezes, quando a "justificativa" é muito longa, podemos nos perder e
não notarmos que a pessoa acabou não dando evidências para aquilo que
disse. Um exemplo trágico poderia ser a frase de Goebbels, propagandista
do regime nazista alemão: "Uma mentira, repetida muitas vezes, acaba se
tornando uma verdade." Afirmações muito repetidas podem ganhar um status
tal que as pessoas podem nunca ter parado para pensar realmente no porquê
de acreditarem nelas. Crenças inculcadas desde a infância ou em períodos
de fragilidade emocional são casos típicos. Por isso, tenhamos a máxima
prudência com aquilo que nos chega aos ouvidos e com a maneira como
abordaremos certas crenças arraigadas num debate; antes de questionar os
outros, convém darmos uma olhada na nossa própria fé em certas premissas,
que talvez nunca tenhamos analisado criticamente. (FARIA, 2007).
O filósofo Baruch de Espinosa (1632-1677), em seu livro Tratado
Teológico-Político, fez uma interessante observação, que é atualíssima;
vejamo-la:
Toda a gente diz que a Sagrada Escritura é a palavra de Deus que
ensina aos homens a verdadeira beatitude ou caminho da salvação: na
prática, porém, o que se verifica é completamente diferente. Não há, com
efeito, nada com que o vulgo pareça estar menos preocupado do que em
viver segundo os ensinamentos da Sagrada Escritura. É ver como andam
quase todos fazendo passar por palavra de Deus as suas próprias invenções
e não procuram outra coisa que não seja, a pretexto da religião, coagir
os outros para que pensem como eles. Boa parte, inclusive, dos teólogos
está preocupada é em saber como extorquir dos Livros Sagrados as suas
próprias fantasias e arbitrariedades, corroborando-as com a autoridade
divina. (ESPINOSA, 2003, p. 114).
Espinosa, falando a respeito das interpretações bíblicas,
apresenta um argumento desconcertante, tanto quanto oportuno, qual seja:
Os comentadores, porém, na tentativa de conciliar essas
contradições manifestas, inventa cada um aquilo que pode e o engenho lhe
deixa, e, enquanto estão assim adorando as letras e as palavras da
Escritura, mais não fazem, como já o dissemos, que expor os autores da
Bíblia ao ridículo, a ponto de parecer até que eles não sabiam falar nem
expor com nexo aquilo que tinham para dizer. (ESPINOSA, 2003, p. 181).
E, ainda, sobre os que crêem cegamente em tudo que consta da
Bíblia, não deixou, também, de fazer suas valiosas considerações, com o
seguinte teor:
Julgam que é piedoso não se fiar na razão e no próprio juízo e que
é ímpio duvidar daqueles que nos transmitiram os livros sagrados: mas
isso não é piedade, é pura demência! Afinal, pergunto eu, o que é que os
preocupa? O que é que receiam? Porventura a religião e a fé só podem ser
mantidas se os homens forem totalmente ignorantes e despedirem
definitivamente a razão? Se é isso o que pensam, então é porque a
Escritura lhes inspira mais medo que confiança. (ESPINOSA, 2003, pp. 225226).
Sempre estamos recorrendo a esse renomado filósofo, porquanto,
vemos tudo aquilo que fala como coisas bem atuais, que, se não o
citássemos como origem, certamente, elas seriam tomadas como sendo de um
autor hodierno.
Não vamos, neste momento, relacionar textos bíblicos para provar
que eles não são inspirados, porquanto, já o fizemos isso, conforme se
verá mais à frente. A nossa proposta aqui será apenas a análise dessa
frase com a qual abrimos esse estudo. Entretanto, para uma visão geral,
traremos a seguinte informação resultante do grupo The Jesus Seminar
(Seminário de Jesus), que contou, entre exegetas e teólogos, com cerca de
duzentos acadêmicos, que se debruçaram, por sete anos, no exame dos
Evangelhos.
Em última análise, esses acadêmicos chegaram à conclusão de que
Jesus jamais disse 82% do que os evangelhos atribuem a ele. A maior parte
dos 18% restantes foram considerados duvidosos, sobrando apenas 2% de
dizeres incontestavelmente autênticos. (STROBEL, 2001, citando Gregory A.
BOYDE, Jesus under siege, Wheaton, Victor, 1995, p. 88).
Vê-se, portanto, que a coisa é muito mais séria do que,
inicialmente, poder-se-á supor. Uma outra opinião, que reputamos de
grande valor, é a do ex-evangélico Bart D. Ehrman, porquanto ele é
considerado, segundo os entendidos, a maior autoridade em Bíblia do
mundo. Ehrman é Ph.D. em Teologia pela Princeton University e dirige o
Departamento de Estudos Religiosos da University of North Carolina,
Chapel Hill. É especialista em Novo Testamento, igreja primitiva,
ortodoxia e heresia, manuscritos antigos e na vida de Jesus.
Gravou uma série de conferências, muito populares nos Estados
Unidos, para a Teaching Company, além de ser prefaciador do livro
Evangelho de Judas, publicado recentemente. Leiamos o que ele afirma em
seu livro O que Jesus disse? O que Jesus não disse?:
[...] Eu sempre voltava a meu questionamento básico: de que nos
vale dizer que a Bíblia é a palavra infalível de Deus se, de fato, não
temos as palavras que Deus inspirou de modo infalível, mas apenas as
palavras copiadas pelos copistas – algumas vezes corretamente, mas outras
(muitas outras!) incorretamente? De que vale dizer que os autógrafos
(isto é, os originais) foram inspirados? Nós não temos os originais! O
que temos são cópias eivadas de erros, e a vasta maioria delas são
centúrias retiradas dos originais e diferentes deles, evidentemente, em
milhares de modos. (EHRMAN, 2006, p. 17). (grifo nosso).
[...] Uma coisa é dizer que os originais foram inspirados, mas a
verdade é que não temos os originais. Então, dizer que eles foram
inspirados não me serve de grande coisa, a não ser que eu possa
reconstruir os originais. E além disso, a vasta maioria dos cristãos, em
toda a história da Igreja, não teve acesso aos originais, fazendo de sua
inspiração um objeto de controvérsia. Nós não apenas não temos os
originais, como não temos as primeiras cópias dos originais. Não temos
nem mesmo as cópias das cópias dos originais, ou as cópias das cópias das
cópias dos originais. O que temos são cópias feitas mais tarde, muito
mais tarde. Na maioria das vezes, trata-se de cópias feitas séculos
depois. E todas elas diferem umas das outras em milhares de passagens.
(EHRMAN, 2006, p. 20). (grifo nosso).
Em suma, meus estudos do Novo Testamento grego e minhas pesquisas
dos manuscritos que o contêm me levaram a repensar radicalmente o meu
entendimento do que é a Bíblia. Antes disso – a começar de minha
experiência de novo nascimento no ensino fundamental, passando por meu
período fundamentalista no Moody, até chegar aos meus tempos de
evangélico em Wheaton -, minha fé baseava-se completamente em uma certa
visão da Bíblia como palavra infalível de Deus, integralmente inspirada.
Agora, deixei de ver a Bíblia desse modo. A Bíblia passou a ser para mim
um livro completamente humano. Do mesmo modo como os copistas humanos
copiaram, e alteraram, os textos das Escrituras, outros autores humanos
escreveram os originais dos textos das Escrituras. Ela é um livro humano
do começo ao fim. E foi escrita por diferentes autores humanos, em
diferentes épocas e em diversos lugares para atender a diferentes
necessidades. Muitos desses autores sem dúvida se sentiam inspirados por
Deus para dizer o que disseram, mas tinham suas próprias perspectivas,
suas próprias crenças, seus próprios pontos de vista, suas próprias
necessidades, seus próprios desejos, suas próprias compreensões, suas
próprias teologias. Tais perspectivas, crenças, pontos de vista,
necessidades, desejos, compreensões e teologias deram forma a tudo o que
eles disseram. Por todas essas razões é que esses escritores diferem um
do outro. Entre outras coisas, isto significava que Marcos não disse a
mesma coisa que Lucas porque não quis dar a entender o mesmo que Lucas.
João é diferente de Mateus – eles não são os mesmos. Paulo é diferente
dos de Atos dos Apóstolos. E Tiago é diferente de Paulo. Cada autor é um
autor humano e precisa ser lido por aquilo que ele (supondo que se trate
sempre de autores homens) tem a dizer. A Bíblia, feitas todas as contas,
é um livro inteiramente humano.
Essa era uma perspectiva inédita para mim, obviamente em tudo
distinta da visão que eu tinha quando era um cristão evangélico – e que
não é a visão da maioria dos evangélicos de hoje. (ERMAN, 2006, pp. 2122). (grifo nosso).
Mas será que Ehrman não estaria sendo radical? É o que veremos no
decurso deste estudo.
Esse texto, objeto de nosso exame, foi retirado da segunda carta a
Timóteo, cuja autoria alguns exegetas ainda atribuem a Paulo. A nossa
pesquisa, entretanto, nos remete a uma outra hipótese. O que julgamos
importante dela é que constatamos que não foi só um crítico quem colocou,
sob sérias dúvidas, essa suposta autoria de Paulo. É o que passaremos a
ver a partir de agora.
O primeiro da lista é Ernest Renan (1823-1892), filósofo e
historiador, que, na sua obra sobre a vida apostólica de Paulo, disse:
[...] Imperfeitas e pesadas são as Epístolas apócrifas do Novo
Testamento, por exemplo as escritas a Tito e a Timóteo; [...]
[...] Cabe destacar ainda que Márcion, que em geral também se
inspirou na crítica dos textos de Paulo e que repudiava com convicção as
Epístolas a Tito e a Timóteo, admitira sem contestar, na sua compilação,
as duas Epístolas citadas. [Colossenses e Efésios]. (RENAN, Paulo 13º
Apóstolo, 2004, p. 17) (grifo nosso).
Sobram as duas Epístolas a Timóteo e a Epístola a Tito. Grandes
obstáculos oferece a autenticidade destas três epístolas. Eu as considero
como peças apócrifas. Para o provar, poderia demonstrar que a linguagem
destes três textos não é a de Paulo; poderia destacar uma quantidade de
períodos e de expressões ou exclusivamente próprias ou particularmente
utilizadas pelo autor que, sendo características, deveriam encontrar-se
em proporção análoga nas outras epístolas de Paulo, o que não acontece.
Além disso, faltam-lhes outras expressões, que são como a assinatura de
Paulo. Poderia principalmente mostrar que estas epístolas contêm um
elevado número de detalhes que não se apropriam ao autor suposto, nem aos
supostos destinatários.(36). A habitual característica das cartas
elaborada com uma intenção doutrinária é a de que o falsário vê o público
sobre a cabeça do destinatário e escreve a este coisas muito conhecidas,
muito familiares, mas que o falsário pretende fazer conhecidas do
público. As três epístolas que discutimos têm, num grau elevado, esta
característica (37). Paulo, cujas cartas autênticas são tão especiais,
tão precisas, Paulo que, acreditando num fim do mundo próximo, nunca
supõe que virá a ser lido através dos séculos, teria sido aqui um
pregador geral, despreocupado com o seu correspondente para lhe fazer
sermões que não tinham nenhuma relação com ele e dirigir-lhe um pequeno
código de disciplina eclesiástica, considerando o futuro (38). Mas estes
argumentos, que por si só seriam decisivos, posso perfeitamente dispensálos. Para provar a minha tese, utilizarei apenas argumentos que o sejam
por assim dizer materiais; procurarei demonstrar que não existe maneira
desta epístolas encaixarem-se nem no quadro conhecido nem no quadro
provável da vida de Paulo. Inicialmente muito importante é a semelhança
perfeita destas três epístolas entre si, semelhança que nos impede a
admiti-las como autênticas ou a repeli-las como apócrifas. As
particularidades que as distinguem profundamente das outras epístolas de
Paulo são as mesmas. As expressões pouco usuais ao estilo de Paulo,
encontram-se por igual em todas as três. As imperfeições, que tornam a
sua linguagem indigna de Paulo, são idênticas. É esquisito que cada vez
que Paulo escreve aos seus discípulos, se esqueça da sua maneira
corriqueira, caindo nas mesmas divagações, nas mesmas bobagens. As
próprias idéias dão lugar a uma observação análoga.
As três epístolas estão repletas de conselhos vagos, exortações
morais de que Timóteo e Tito, familiarizados por um comércio cotidiano
com as idéias do apóstolo, não tinham nenhuma necessidade. Uma espécie de
gnosticismo são os erros que nelas se combatem. Nas três epístolas a
preocupação do autor não muda; reconhece-se a idéia obsidiante e
incansável de uma ortodoxia já formada e de uma hierarquia já
desenvolvida. Muitas vezes os três escritos repetem-se entre si (39) e
copiam as outras epístolas de Paulo (40). Sem dúvida que, se estas três
epístolas foram ditadas por Paulo, todas são de um determinado período da
sua vida (41), distante em muitos anos do tempo em que redigiu as outras
epístolas. Qualquer hipótese que coloque entre estas três epístolas um
intervalo de três ou quatro anos, por exemplo, ou que coloque entre elas
algumas das outras epístolas, deve ser repudiada inteiramente. Existe
apenas uma única hipótese para explicar a semelhança das três epístolas
entre si e a sua dessemelhança com as outras, ou seja, que é a de que
foram escritas num espaço de tempo muito curto e muito tempo após as
outras, numa época em que todas as circunstâncias que rodeavam o apóstolo
tinham mudado, tendo ele envelhecido e alterado as suas idéias e o seu
estilo. A possibilidade de provar essa hipótese, não significa que se
resolva a questão. O estilo de um homem pode mudar; mas de um estilo o
mais impressionante e inimitável que nunca existiu, não se passa para um
estilo prolixo e sem vigor (42). Além disso, tal hipótese é formalmente
destruída pelo que nós conhecemos, com segurança, da vida de Paulo. A
seguir, isso será demonstrado.
________
36 Por exemplo, as direções solenes (confronte-se com Filém., 1; e
contudo Paulo era menos amigo de Filémon do que de Tito e Timóteo); as
longas dissertações que Paulo faz sobre o seu apostolado (I Tim., I, 11 e
seg.; II, 7), dissertações que, sendo dirigidas a um discípulo, são
completamente inúteis; a enumeração das suas virtudes (II Tim., 10,11); a
sua convicção na salvação final (II Tim. IV, 8; cf. I Cor., IV, 3-4; IX,
27) I Tim., I, 13, é bem do estilo de um discípulo de Paulo. I Tim., II,
2, não pode explicar-se nos últimos anos de Nero; devia ser escrito
depois da proclamação de Vespasiano. Ibid. V, 18, encontra-se aí citada
com graphé uma passagem de Lucas, X,7: ora o Evangelho de Lucas não
existia, pelo menos como graphé, antes da morte de Paulo. Por fim a
organização das igrejas, a hierarquia, o poder presbiterial e episcopal
são, nessas epístolas, muito mais desenvolvidos do que seria natural
supor nos últimos anos da vida de Paulo (ver. Tit. I,5 e seg. etc.;
Timóteo recebeu as insígnias espirituais pela imposição das mãos do
colégio dos padres de Listres: I Tim., IV,14). A doutrina sobre o
casamento I Tim., II, 15; IV,3: V,14 (cf. III, 4,12; V,10) é também de
uma época mais atual e está em contradição com I Cor., VII, 8 e seg., 25
e seg. O destinatário das Epístolas a Timóteo supõe-se em Éfeso; por que
não se encontra nestas epístolas nenhuma comissão, nenhuma saudação
específica para os efésios?
37 Observe-se, por exemplo, II Tim., III,10-11, ou melhor, I Tim., I,3 e
seg., 20; Tit., I,5 e seg., e a menção de Pôncio Pilatos, I Tim., VI, 13
etc.
38 Destaca-se a insignificância da passagem I Tim., III, 114-115, que
procura mostrar razão destas inúteis ampliações.
39 Compare-se I Tim., I,4; IV,7; II Tim., II,23; Tit., III,9; I Tim. III,
2; Tit., I,7; I Tim., IV,1 e seg., II Tim., III, 1 e seg.; I Tim., II,7;
II Tim., I,11. Observe-se a analogia na maneira de introduzir no assunto.
I Tim., 1,3, e Tit. I, 5.
40 II Tim., I,3 (Rom.,l,9), 7 (Rom., VIII,15); II,20 (Rom., IX, 21); IV,
6 (Fil., I,30; II,17; III, 12 e seg.).
41 Nas duas epístolas que lhe são dirigidas observe-se que Timóteo figura
como um homem ainda jovem: I Tim., IV,12; II Tim., II,22.
42 Apesar de Lamennais ter mudado muito, o seu estilo manteve sempre a
mais perfeita unidade.
(RENAN, Paulo - o 13º apóstolo, 2004, pp. 24-26). (grifo nosso).
Na seqüência, Renan faz considerações sobre estas epístolas de
Paulo, demonstrando que, pelas características e pelo conteúdo, não podem
ser mesmo desse autor bíblico.
Vejamos também o que o escritor e professor de História Antiga,
Robin Lane Fox, disse:
[...] as duas epístolas a Timóteo são postas sob suspeita pelo
estilo, e são por fim desautorizadas por seu conteúdo e por sua
localização (um bispo único; a falta de conhecimento de Timóteo e sua
descrição descabida dos acontecimentos que o cercavam). Seus autores
foram muito ousados em sua falsificação. “Pedro, apóstolo de Cristo”,
“Paulo, apóstolo de Cristo Jesus”, é como se dizem chamar. Talvez
estivessem escrevendo o que achavam que Pedro e Paulo “devessem” ter
escrito, mas ainda assim mentiram para seus leitores. Se a Primeira
Epístola a Timóteo é obra do século II, bem podia estar levando em conta
o terceiro Evangelho quando cita o texto sobre “o salário do
trabalhador”. Também atribuída a Paulo um texto enfático contra a
ordenação das mulheres: “Pois não permito que a mulher ensine, nem tenha
domínio sobre o homem, mas que esteja em silêncio” (I Timóteo 2:12).
É a Segunda Epístola a Timóteo que contém o texto que os
fundamentalistas tanto idealizam: “Toda escritura é divinamente inspirada
e proveitosa para ensinar, para repreender, para corrigir” (II Timóteo
3:16). A tradução é discutível, bem como a autoridade do texto. Isto dá
uma boa idéia das complexidades envolvidas na veracidade da Bíblia: o
texto que foi indevidamente empregado em apoio de uma visão literal da
inspiração divina de toda a Bíblia é, ele próprio, obra de um autor que
mentiu sobre sua identidade. (FOX, 1996, pp. 125-125).(grifo nosso).
Agora iremos ver, para ampliar a abrangência de nossa pesquisa, o
que dizem alguns tradutores bíblicos, pessoas com inegáveis conhecimentos
sobre a Bíblia, cujas opiniões destacamos:
As cartas a Timóteo e a Tito são dirigidas a dois dos mais fiéis
discípulos de Paulo (At 16,14; 2Cor 2,13). Elas dão diretivas para a
organização e conduta das comunidades confiadas a eles. É por isso que se
tornou costumeiro, desde o século XVIII, chamá-las “pastorais”. Essas
cartas divergem de maneira significava de outras cartas paulinas. Há
considerável diferença de vocabulário. Muitas das palavras comuns em
outras epístolas desapareceram, e há também uma proporção muito maior de
palavras não usadas em outro lugar por Paulo. O estilo não é mais
apaixonado e entusiasta, mas mitigado e burocrático. O modo de resolver
problemas mudou. Paulo simplesmente condena falso ensinamento em lugar de
argumentar persuasivamente contra ele. Finalmente, é difícil situar essas
cartas na vida de Paulo, assim como é conhecida dos Atos dos apóstolos. É
compreensível, portanto, que a autenticidade das pastorais seja
disputada.
Muitos explicam as diferenças postulando um Paulo mais velho, que
deve ter dado muito mais espaço a um secretário (possivelmente Lucas, 2Tm
4,11) e levando em conta que nada conhecemos da vida de Paulo subseqüente
à sua libertação da prisão em Roma. Igual número de estudiosos rejeitam
tais argumentos como subjetivos demais, e sustenta que as pastorais foram
compostas por um discípulo de Paulo no fim do século I para tratar de
problemas de uma igreja muito diferente. Embora não impossível em si
mesma, esta hipótese não é sustentada por qualquer evidência de que
cartas pseudo-epigráficas fossem comuns e aceitáveis. 2Ts 2,2 e Ap 22,18
mostram que os primeiros cristãos viam a necessidade de distinguir entre
escritos autênticos e forjados. Uma posição intermediária entre esses
dois extremos defende-a por uma minoria que acredita que um leal seguidor
de Paulo herdou três cartas que Timóteo e Tito conservaram até sua morte.
Ele então expandi essas cartas, acrescentando o que pensava que seria
dito por Paulo diante das circunstâncias mudadas da igreja. As pastorais
então não são do Apóstolo, mas contêm fragmentos paulinos autênticos
(p.e., 2Tm 1,15-18; 4,9-15; Tt 3,12-14). A falta de concordância sobre a
extensão e número dos fragmentos é uma séria fraqueza dessa hipótese, que
também falha em prover qualquer evidência contemporânea desta pratica
editorial postulada.
A natureza insatisfatória de todas as hipóteses correntes sugere
que poderia ter sido um engano tratar as pastorais como um bloco
unificado. Nessa aproximação, observações e afirmações são confusas. O
que é visto como verdadeiro para uma carta é afirmado como válido para as
outras duas. O exame minucioso, porém, revela que 1Tm e Tt são mais
próximas um da outra do que ambas a 2Tm. Se a última é considerada
separadamente, não há objeções convincentes de elas terem sido escritas
por Paulo. Dirigidas a indivíduo, sua divergência em relação a epístolas
dirigidas a igrejas tem seu paralelo nas diferenças entre as cartas de
Inácio à igreja de Esmirna e ao seu bispo, Policarpo. Uma vez que se
reconheça que 2Tm 4,6 não é referência à morte próxima, 2Tm se coloca
naturalmente dentro do último período da prisão de Paulo em Roma (At
28,16s), quando olhava para a liberdade.
Se 2Tm é aceita como autêntica, o isolamento de 1Tm e Tt no corpus
paulino torna-se cada vez mais marcante. Em particular elas desenvolvem
uma visão do ministério que contrasta vividamente com o ethos missionário
dinâmico de Paulo (1Ts 1,6-8; Fl 2,13-16. Predomina um conceito burguês
pela respeitabilidade e aceitação, 1Tm 2,1-2; 6,2; Tt 3,1-2), e as
qualidades dos ministros são as requeridas de todos os burocratas (1Tm
3,1-13; Tt 1,5-9). Deste modo houve uma evolução definida nas igrejas
paulinas. Uma igreja entusiástica radiante com o Espírito tornou-se um
cômodo lar. Todavia, embora a liderança carismática tenha dado caminho á
direção institucional, não há evidência do tipo do episcopado monárquico
atestado por Inácio de Antioquia. A autoridade na igreja é colegial, e os
“bispos” (1Tm 3,22-5), têm as mesmas funções que os “anciãos” (1Tm 5,17).
Cada “ancião” precisa ter as qualidades de “bispo” (Tt 1,6-9). Assim, 1Tm
e Tt não deveriam ser datadas muito tardiamente no primeiro século.
(Bíblia de Jerusalém, Introdução às Epístolas de Paulo, pp. 1963-1964).
“Epístolas pastorais” é o nome dado aos escritos dirigidos a
Timóteo e a Tito, companheiros de missão de Paulo. A expressão
caracteriza bem a natureza destas cartas, desde o II século atribuídas a
Paulo. Elas contêm instruções e exortações sobre o reto desempenho do
ministério pastoral nas comunidades, sobre a organização da Igreja e a
luta contra as heresias. As três epístolas foram escritas na mesma época
e pelo mesmo autor.
[...]
É difícil enquadrar estes dados na vida de Paulo como nós é
conhecida dos Atos e de suas epístolas autênticas. Agora Paulo está
algemado (2,9), enquanto na primeira prisão em Roma vivia em prisão
domiciliar (At 28,16). Clemente Romano e o Cânon de Muratori admitem que
Paulo, depois da primeira prisão romana, pregou na Espanha por certo
tempo, foi novamente preso e por fim martirizado em Roma. Ora, as
epístolas pastorais supõem viagens de Paulo no Oriente após a prisão
romana (61-63). Este quadro histórico depõe contra a autenticidade das
Pastorais. Além do mais, a teologia, a linguagem e o estilo, a
organização da Igreja e a luta contra as heresias dificilmente se
coadunam com o que sabemos de Paulo a seu tempo. A hipótese de um
secretário ter redigido as epístolas enquanto Paulo estava preso a
segunda vez em Roma, ou de que nestas epístolas temos fragmentos
autênticos, são insuficientes para afastar as sérias objeções da crítica
contra a autenticidade das Pastorais.
O mais provável é que o seu autor não seja um discípulo imediato de
Paulo, mas um admirador da segunda ou da terceira geração cristã. Segundo
o costume da literatura helenística e judaica da época, produziu estas
cartas pseudônimas, atribuindo-as a Paulo a quem considerava o maior dos
apóstolos. O motivo que o levou a escrever foi o desejo de ser fiel ao
evangelho pregado pelo grande apóstolo, diante da ameaça das heresias e
da necessidade de organizar bem as comunidades a fim de esconjurar os
perigos para a fé apostólica. Neste sentido a 1Tm e Tt podem ser vistas
como a primeira constituição eclesiástica, e a 2Tm como o discurso de
despedida, ou o testamento espiritual de Paulo às vésperas de seu
martírio. A data de composição pode ser colocada pelo ano 100. (Bíblia
Sagrada Editora Vozes, As Epístolas Pastorais, p. 1407). (grifo nosso).
Introdução
[...]
Supôs-se que as cartas fossem de Paulo, e acreditou-se nisso
durante séculos. Porém surgiu a crítica dos estudiosos e, com ela, a
dúvida, como indicam as passagens em que Paulo fala de si na primeira
pessoa (p. ex. 1Tm 1,11.12-16; 2Tm 4,6-8.16-18 etc.)
Autenticidade
As razões contra a autenticidade são fortes; referem-se à
linguagem, à mentalidade, à situação proposta, e afetam as três cartas
como corpo.
a) O vocabulário. Segundo um cálculo cuidadoso, de 848 palavras que
as três cartas usam, 306 não aparecem no resto do chamado corpo paulino,
175 não constam no resto do NT; faltam palavras típicas do vocabulário
paulino, outras freqüentes escasseiam, algumas mudam de significado;
díkaios significa honrado, pístis é um corpo de doutrina. Estilo:
apararam-se a vivacidade, a paixão e o movimento; não argumenta para
provar seu ensinamento; predomina uma tonalidade pacata e suave. A língua
grega é mais depurada, mais próxima do grego helenístico.
b) Mentalidade. A preocupação central das três cartas é garantir as
igrejas como instituição, conservar o ensinamento tradicional e defenderse das ameaças de desvio doutrinal. Para isso é preciso nomear chefes
competentes e confiáveis, manter a ordem e a concórdia, regular o culto.
O autor repete o adjetivo “são/sã” para referir-se à ortodoxia, fala da
“verdade”, repete que “alguns se afastaram de...” Ao ímpeto de
evangelizar sucede aqui o esforço por manter.
c) O quadro em que as cartas se inserem não combina com o que
sabemos por outras informações de Paulo. Se o apóstolo vai morrer em
breve (2Tm 4,5-8), como pode chamar Timóteo de jovem (1Tm 4,11)? O ancião
deverá ter saído da sua prisão romana para retomar sua atividade no
Mediterrâneo oriental.
Essas razões somadas são mais fortes, mas não determinantes. Os
defensores da autenticidade as rebatem, principalmente com evasivas; que
com os anos o vigor e a combatividade de Paulo amainaram; que um tema
diferente exigia uma linguagem nova; que se valia de um secretário
redator; que seu pensamento tinha evoluído. E que em nossa informação
sobre a atividade de Paulo há importantes lacunas, e aí as cartas
poderiam encaixar-se. As réplicas são fracas: um ancião muda radicalmente
de vocabulário? Esquece seus temas preferidos?
Teorias sobre o autor
Aceitando como mais provável a não autenticidade das três cartas,
pensa-se que é um discípulo imediato ou mediato, da geração seguinte.
Recorre à pseudonímia, procedimento corrente naquela época. Dá às suas
instruções a forma de carta, escolhendo como destinatários dois insignes
personagens do círculo paulino. Aceitamos que pôde utilizar material
original do apóstolo. Provavelmente sentia-se herdeiro legítimo de Paulo;
talvez os rivais citassem Paulo, deformando seu ensinamento.
Não faltou a teoria de um compilador que teria composto e dado
forma às três cartas com fragmentos autênticos do apóstolo.
Nada do que foi dito diminui o valor canônico das Pastorais. São
parte integrante do NT, reconhecida sempre por todas as confissões
religiosas. [...]
A data de composição seria o final do séc. I ou começo do séc. II.
(Bíblia do Peregrino, Introdução - Primeira e segunda carta a Timóteo e
carta a Tito, pp. 2847-2848). (grifo nosso)
Assim, por mais três fontes diferentes, chegamos à mesma conclusão
de que a Epístola, em que se encontra o passo citado, visando tornar
evidente a inspiração bíblica como sendo divina, não é de Paulo. À guisa
de informação, detalhamos: Bíblia do Peregrino versão do Pe. Luís Alonso
Schökel, contou com uma equipe de quatorze colaboradores; Bíblia Sagrada
Ed. Vozes, coordenação geral Ludovico Garmus, junto com mais onze
pessoas, entre tradutores e revisores, e a Bíblia de Jerusalém, em cujo
corpo, composto de católicos e protestantes, havia três coordenadores e
um número de dezoito tradutores/revisores. Como se vê é uma quantidade
respeitável de pessoas envolvidas, cuja competência não poder-se-á ser
colocada em dúvida.
Vamos à análise do texto. Em nosso estudo, deparamos com essa
frase escrita de duas maneiras diferentes, as quais transcrevemos apenas
o início, porquanto, é ele o que nos interessa neste momento:
“Toda Escritura é inspirada por Deus é útil para instruir,...”
“Toda Escritura divinamente inspirada, é útil para ensinar,...”
A primeira frase é encontrada nas Bíblias pelas versões Mundo
Cristão, Traduções Novo Mundo, Santuário, Vozes, Ave Maria e Paulus: de
Jerusalém, do Peregrino e Pastoral e a segunda pelas versões Barsa,
Loyola, Paulinas, SBB.
A equipe de tradutores da Bíblia de Jerusalém, que sabemos ter
sido composta de exegetas católicos e protestantes, informa-nos (p. 2077)
que, na Vulgata, ela se encontra dessa forma:
“Toda Escritura, inspirada por Deus, é útil.”
É interessante observar a mudança na redação dessa frase,
porquanto dizer que “Toda Escritura é inspirada por Deus” é uma coisa bem
diferente daquilo que se quer afirmar dizendo “Toda Escritura divinamente
inspirada”. A idéia que se passa por essa última frase é que existem
outras Escrituras, porém não inspiradas. Ora, isto vai ao encontro da
afirmação de Paulo (e da conclusão apresentada pelos vários biblicistas
citados), viabilizando-a como de maior chance de ser a mais próxima do
original. Isso agora compromete os próprios tradutores bíblicos,
deixando-nos a crer na possibilidade de que mais lhes preocupavam eram
suas idéias do que a dos autores aos quais traduziam.
A afirmação pela frase de que “Toda Escritura é inspirada por
Deus”, aproxima-se daquilo que Faria, denominou de “raciocínio do '8 ou
80'”, no caso, por conta do significado da palavra “toda” nesta frase.
O que se percebe dos que se apressam em apontar textos da Bíblia,
para justificar sua origem divina, é que não se dão ao trabalho de
pesquisa, não analisam nada. E questionar? Nem pensar! Já que, para eles,
tudo que lá se encontra é absolutamente verdadeiro. É claro que, diante
dessa premissa, certamente não conseguirão ver nenhum erro ou
contradição, por mais óbvios que sejam.
Apenas cabe-nos apresentar alguma coisa visando a corroborar tudo
quanto foi colocado anteriormente, já que, pela consistência e coerência,
inclusive, quanto ao número significativo de exegetas envolvidos nas
traduções, revisões e estudos bíblicos aqui citados, nos alinhamos com as
opiniões mostradas neste estudo.
Começaremos por um questionamento bem simples: será que o termo
“Escritura”, dito por Paulo, se refere à Bíblia como um todo? A resposta
iremos encontrar na explicação ao passo 2Tm 3,15-16: “Neste tempo, o NT
estava ainda em período de gestação. Por isso, o termo 'Escrituras'
refere-se, em concreto aos livros do AT”. (Bíblia Sagrada Edição
Santuário, p. 1768). Isso é um golpe mortal naquilo que se apresenta como
forte indício da inspiração divina ser “capa a capa”. Mas estaria essa
informação coerente com os textos bíblicos? Sim, pois Paulo foi, acima de
tudo, um ferrenho defensor do Evangelho e que, ao mesmo tempo, combatia a
Lei.
Pode-se, por exemplo, vê-lo, num corpo a corpo, contra a
circuncisão, ritual judaico, contido no Antigo Testamento (Lv 12,3) que
determinava que todos os meninos deveriam ser circuncidados, aos oito
dias de nascido. Isso era aplicado, talvez por analogia, aos convertidos
não procedentes do judaísmo. Assim é que, nos primórdios do cristianismo,
queriam aplicar essa lei aos que se convertiam a essa nova crença; mas
que ainda não haviam sido circuncidados. A atitude de Paulo, quanto a
isso, foi radical, disse ele:
1Cor 7,17-19: “De resto, cada um continue vivendo na condição em que o
Senhor o colocou, tal como vivia quando foi chamado. É o que ordeno em
todas as igrejas. Alguém foi chamado à fé quando já era circuncidado? Não
procure disfarçar a sua circuncisão. Alguém não era circuncidado quando
foi chamado à fé? Não se faça circuncidar. Não tem nenhuma importância
estar ou não estar circuncidado. O que importa é observar os mandamentos
de Deus”.
Seu combate à legislação mosaica ainda poderá ser visto em:
Rm 7,4-6: “Meus irmãos, o mesmo acontece com vocês: pelo corpo de Cristo,
vocês morreram para a Lei, a fim de pertencerem a outro, que ressuscitou
dos mortos, e assim produzirem frutos para Deus. De fato, quando vivíamos
submetidos a instintos egoístas, as paixões pecaminosas serviam-se da Lei
para agir em nossos membros, a fim de que produzíssemos frutos para a
morte. Mas agora, morrendo para aquilo que nos aprisionava, fomos
libertos da Lei, a fim de servirmos sob o regime novo do Espírito, e não
mais sob o velho regime da letra”.
Gl 2,21: “Portanto, não torno inútil a graça de Deus, porque, se a
justiça vem através da Lei, então Cristo morreu em vão”.
E o próprio Jesus, também estabelece essa divisão, entre a nova
lei e a lei mosaica, quando disse que “a Lei e Profetas vigoraram até
João” (Lc 16,16), ou seja, esse foi o período – de Moisés a João Batista
-, no qual ela teve valor como regra religiosa, depois, só aquilo que
estiver relacionado à missão de Jesus que foi a de implantar o Evangelho.
Essa sim, foi a grande preocupação de Paulo, conforme, para exemplo,
podemos ver nessas passagens:
Rm 1,1: “Paulo, servo de Jesus Cristo, chamado para ser apóstolo e
escolhido para anunciar o Evangelho de Deus,”
Rm 1,16: “Não me envergonho do Evangelho, pois ele é força de Deus para a
salvação de todo aquele que acredita, do judeu em primeiro lugar, mas
também do grego”.
Rm 10,16: “Mas, nem todos obedeceram ao Evangelho. Isaías diz: 'Senhor,
quem acreditou em nossa pregação?'"
Rm 15,16: “Sou ministro de Jesus Cristo entre os pagãos, e a minha função
sagrada é anunciar o Evangelho de Deus, a fim de que os pagãos se tornem
oferta aceita e santificada pelo Espírito Santo”.
1Cor 1,17: “De fato, Cristo não me enviou para batizar, mas para anunciar
o Evangelho, sem recorrer à sabedoria da linguagem, a fim de que não se
torne inútil a cruz de Cristo”.
1Cor 9,16: “Anunciar o Evangelho não é título de glória para mim; pelo
contrário, é uma necessidade que me foi imposta. Ai de mim se eu não
anunciar o Evangelho!”.
1Cor 15,2: “É pelo Evangelho que vocês serão salvos, contanto que o
guardem do modo como eu lhes anunciei; do contrário, vocês terão
acreditado em vão”.
Ef 1,13: “Em Cristo, também vocês ouviram a Palavra da verdade, o
Evangelho que os salva...”
2Ts 1,6-8: “Deus fará o que é justo: vai mandar tribulações para aqueles
que os oprimem, e a vocês, que são agora oprimidos, como também a nós,
ele dará descanso, quando o Senhor Jesus se manifestar. Ele virá do céu
com seus anjos poderosos, em meio a uma chama ardente. Virá para vingarse daqueles que não conhecem a Deus e não obedecem ao Evangelho do Senhor
Jesus”.
2Tm 1,9-11: “Ele nos salvou e nos chamou com uma vocação santa, não por
causa de nossas obras, mas conforme seu próprio projeto e graça. Esta
graça nos foi concedida em Jesus Cristo desde a eternidade, mas somente
agora foi revelada pela aparição de nosso Salvador Jesus Cristo. Ele não
só venceu a morte, mas também fez brilhar a vida e a imortalidade por
meio do Evangelho, do qual eu fui constituído anunciador, apóstolo e
mestre”.
Deixaremos aos que, porventura, ainda queiram alegar que Paulo
pregava a validade das “Escrituras”, como um todo, o ensejo de nos
apresentarem as passagens em que ele estaria dando essa orientação. Nem
mesmo a podemos considerar como toda a revelação divina, pois Cristo não
deixou dúvida quanto a isso ao afirmar: “Tenho ainda muito que vos dizer,
mas não podeis agora suportar” (Jo 16,12), reservando, portanto, para o
futuro outras revelações, quando passariam a ter melhores condições de
assimilá-las.
E, para finalizar, vemos que todas as opiniões, que citamos neste
estudo, a respeito de serem outros os autores das epístolas mencionadas,
são, de fato, coerentes, o que poderemos confirmar com o próprio Paulo
que reclamara sobre isso; vejamos:
2Ts 2,1-3: “Agora, irmãos, quanto à vinda de nosso Senhor Jesus Cristo e
ao nosso encontro com ele, pedimos a vocês o seguinte: não se deixem
perturbar tão facilmente! Nem se assustem, como se o Dia do Senhor
estivesse para chegar logo, mesmo que isso esteja sendo veiculado por
alguma suposta inspiração, palavra, ou carta atribuída a nós. Não se
deixem enganar de nenhum modo!...”.
Assim, não há alternativa mais coerente, senão aquela de aceitar a
hipótese levantada por Renan de que as três cartas pastorais (as duas a
Timóteo e uma a Tito) são, sem dúvida alguma, apócrifas. A conseqüência
disso é que, por tabela, a pessoa encarregada de escolher os livros para
comporem a “Vulgata”, S. Jerônimo, fatalmente, também, ele não estava
“totalmente” inspirado pelo Espírito Santo, segundo afirmou Clemente VIII
(papa de 1592 a 1605), derrubando todo o alicerce dos que advogam tal
coisa.
O biblicista José Reis Chaves trata deste assunto em seu livro A
Face Oculta das Religiões, ele, pessoalmente, nos resumiu da seguinte
forma:
É óbvio que se existisse a tal de inspiração tal qual dizem, São
Jerônimo teria que ser o mais inspirado, pois foi ele que escolheu os
livros tidos como canônicos (legais), verdadeiros, o que não aconteceu
com os apócrifos (ocultos, desconhecidos), para formar a Vulgata.
Lembremo-nos de que a Vulgata já existia, mas foi a de São Jerônimo que
se tornou oficial e aprovada pelo Papa Dâmaso e passou a ser a Bíblia do
cristianismo, com seu Velho e Novo Testamentos.
Por tudo isso, e, especialmente, por vários outros textos, nos
quais estudamos inúmeras outras passagens bíblicas, acabam derrubando,
inevitavelmente, e a contragosto de muitos bibliólatras, a crença literal
de que é a palavra de Deus e de que ela é toda inspirada por Deus,
colocando a Bíblia, como um livro de cunho eminentemente humano.
Certamente, que nossa opinião, reconhecemos, não tem mesmo um grande
valor, mas, pelo menos, ela vai ao encontro da conclusão pessoal a que
também chegou Ehrman, considerado por muitos estudiosos como sendo a
maior autoridade em Bíblia do mundo. Nosso conhecimento, pois, nem de
longe se pode comparar com o dele.
Antes de finalizar esse estudo, voltemos, mais uma vez, ao
eminente filósofo holandês:
[...] Não quero, no entanto, acusar de impiedade os adeptos das
várias seitas por adaptarem às suas opiniões as palavras da Escritura.
[...] Acuso-os de não querer reconhecer aos outros a mesma liberdade e
perseguir como inimigos de Deus todos os que não pensam como eles, por
mais honestos e praticantes da verdadeira virtude que sejam, ao mesmo
tempo que estimam como eleitos de Deus os que os seguem em tudo, ainda
quando se trata de pessoas moralmente incapazes. (ESPINOSA, 2003, p.
215).
[...] A fé, portanto, concede a cada um a máxima liberdade de
filosofar, de tal modo que se pode, sem cometer nenhum crime, pensar o
que se quiser sobre todas as coisas. As únicas pessoas que ela condena
como heréticas e cismáticas são as que ensinam opiniões que incitem à
insubmissão, ao ódio, às dissensões e à cólera; em contrapartida, só
considera fiéis aqueles que, tanto quanto a sua razão e as suas
capacidades lhes permitem, espalham a justiça e a caridade. (ESPINIOSA,
2003, p. 222).
Ao encerrar este estudo, convém deixar bem explícito que o nosso
objetivo, desde o início, é somente a busca da verdade, aliás, essa
deveria ser a meta de todos nós. Plena razão tem o teólogo alemão
Kersten, quando disse:
Uma pessoa que freqüenta uma igreja cristã não pode deixar de
assumir uma postura crítica, frente à proliferação de obscuros artigos de
fé, e dos deveres e obrigações que a envolvem. Sem termos tido outros
conhecimentos, e por termos crescido sob a única e exclusiva influência
do estabelecido, somos levados a acreditar que, por subsistirem há tanto
tempo, devem, necessariamente, ser verdade. (KERSTEN, 1988, pp. 12-13)
Em hipótese alguma deveremos deixar de procurar a verdade,
porquanto, é através disso que estaremos indo ao encontro dessas palavras
de Jesus: “conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará” (Jo 8,32).
Descobrimos um pensamento de Paulo, do qual temos, freqüentemente,
nos utilizado, e que é: “...o Senhor é o Espírito; e onde se acha o
Espírito do Senhor aí existe a liberdade” (2Cor 3,17). Isso que nos leva
à conclusão de que, onde não existe liberdade, o Espírito do Senhor não
se encontra. Mas o que isso tem a ver com o assunto em pauta? Poderá
alguém nos perguntar. Em princípio nada, mas quando ficamos sabendo o que
ocorre “por detrás dos bastidores”, vemos sua aplicação prática. Leiamos
o seguinte relato:
Bruce me convenceu a tentar me tornar um cristão “sério” e a me
dedicar por inteiro à fé cristã. Isso significava estudar Escrituras em
período integral no Moody Bible Institute, o que, entre outras coisas,
implicaria uma drástica mudança de estilo de vida. ...matriculei-me no
Moody, entrei e lá permaneci até o segundo semestre de 1973.
A experiência no Moody foi intensa. Decidi me formar em teologia
bíblica, o que significava encarar muito estudo bíblico e vários cursos
de teologia sistemática. Ensinava-se uma só perspectiva em todos esses
cursos, subscrita por todos os professores (eles todos assinavam um termo
de compromisso) e por todos os estudantes (nós também o assinávamos): a
Bíblia é a palavra infalível de Deus. Ela não contém erros. É
completamente inspirada e é, em todos os seus termos, “inspiração verbal
plena”. Todos os cursos que fiz pressupunham e ensinavam e ensinavam essa
perspectiva; qualquer outra era considerada desviante e até mesmo
herética. Acho que alguém pode chamar isso de lavagem cerebral. [...]
(EHRMAN, 2006, p. 14) (grifo nosso).
Entendemos, assim, que, com esse modesto estudo vamos convencer a
muitos, mas não aos doutos e críticos, já que estamos cientes de que a
“técnica de lavagem cerebral” se aplica por ai a mancheias, o que resulta
na validade do ditado popular: “o pior cego é aquele que não quer ver”.
O Paraíso Perdido
Sempre ouvimos falar dessa história do paraíso, mas até hoje não
nos apontaram a sua exata localização. É de estranhar-se, pois, supondose, como querem muitos, que os relatos bíblicos sejam verdadeiros; isso
não poderia ocorrer de forma alguma, por colocar em cheque a onisciência
divina. Será que estamos diante de um paraíso perdido, isto é, não
localizado? E, como é de se esperar, os bibliólatras de plantão não irão
gostar desse nosso novo questionamento. Mas o que fazer?... Não abrimos
mão de usar a inteligência que Deus nos deu, uma vez que é pelo uso dela
que nos diferenciamos dos irracionais.
A passagem em questão é:
Gn 2,8-14: “Iahweh Deus plantou um jardim em Éden (b), no oriente, e aí
colocou o homem que modelara. Iahweh Deus fez crescer do solo toda
espécie de árvores formosas de ver e boas de comer, a árvore da vida no
meio do jardim, e a árvore do conhecimento do bem e do mal. Um rio saía
de Éden para regar o jardim e de lá se dividia formando quatro braços
(d). O primeiro chama-se Fison; se encontram o bdélio e a pedra de ônix.
O segundo rio chama-se Geon: rodeia toda a terra de Cuch. O terceiro rio
se chama Tigre: corre pelo oriente da Assíria. O quarto rio é o
Eufrates”.
A descrição é tão confusa que nem mesmo os vários tradutores e
exegetas bíblicos conseguiram explicá-la de maneira uniforme; senão
vejamos:
b) “Jardim” é traduzido por “paraíso” na versão grega, e depois em
toda a tradição. “Éden” é nome geográfico que foge a qualquer
localização, e inicialmente pode ter tido o significado de “estepe”:
poderia ser comparado ao bit adini assírio-babilônico, região à margem do
Eufrates de que falam também alguns textos bíblicos (Am 1,5; 2Rs 19,12;
Is 37,12; Ez 27,23). Mas os israelitas interpretaram a palavra segundo o
hebraico, “delícias”, raiz ‘dn. A distinção entre Éden e o jardim,
expressa aqui e no v. 10, se esfuma em seguida; fala-se do “jardim de
Éden (v. 15; 3,23.24) Em Ez 28,13 e 31,9, “Éden é o jardim de Deus”, e em
Is 51,3, Éden o “jardim de Iahweh”, é o oposto ao deserto e à estepe.
(Bíblia de Jerusalém, p. 36)
Aqui está se admitindo, sem rodeios, que Éden é nome geográfico
que foge a qualquer localização. Louvável atitude, pois, como veremos
mais adiante, não se consegue mesmo saber a exata localização desse
“paraíso”.
Na seqüência explicam-nos:
d) Os vv. 10-14 são um parêntesis, provavelmente introduzido pelo
próprio autor, que utilizava velhas noções sobre a configuração da terra.
Sua intenção não é localizar o jardim do Éden, e sim mostrar que os
grandes rios, que são as artérias vitais das quatro regiões do mundo, têm
sua fonte no paraíso. O Tigre e o Eufrates são muito conhecidos e têm sua
fonte nos montes da Armênia, mas o Fison e o Geon são desconhecidos.
Hévila é, segundo Gn 10,9, uma região da Arábia, e Cuch em outro lugar
designa a Etiópia, mas não é seguro que esses dois nomes devam ser
tomados aqui em sentido habitual. (Bíblia de Jerusalém, p. 36).
Os versículos citados são os que nomeiam os rios que correm pelo
jardim de Éden, que, em condições normais, seriam para identificar sua
localização, conforme lemos:
Este inciso é uma tentativa de localizar o paraíso, cuja posição
permanece vaga. Trata do antigo tema do rio paradisíaco que irrigava os
quatro pontos da terra. A bênção da fertilidade proporcionada pelos
atuais rios é vista como uma sombra da fertilidade produzida pelo rio
paradisíaco. (Bíblia Vozes, p. 30).
Entretanto, aqui ocorreu justamente o contrário, ou seja, mantevese a confusão, uma vez que, paradoxalmente, “reúne os rios mais ilustres
e caudalosos e lhes atribui um manancial único”. (Bíblia do Peregrino, p.
18).
E, deixando-se de lado a descrição, explicam, tentando salvar a pátria,
que:
Éden em sumério significa “planície fértil”. Aqui indica uma região
ao sul da Mesopotâmia. A ressonância do termo com a palavra hebraica que
significa “delícia”, e a presente descrição, levaram a entender o jardim
em Éden como “jardim de delícias” ou “paraíso” (cf. Is 51,3; Ez 31,9).
(Bíblia Vozes, p. 29).
Essa região ao sul da Mesopotâmia, é onde se localiza a Babilônia,
cujo povo, certamente, era mais antigo que os hebreus e, culturalmente,
mais desenvolvido, do qual, entre outras coisas, tomaram emprestados de
sua cultura: a Torre de Babel e o dilúvio bíblico. Agora, pelo que foi
dito, estabelecem essa região como sendo o paraíso. Também, não podemos
deixar de registrar, que “os babilônios desenvolveram as leis morais mais
tarde incorporadas por Moisés nos Dez Mandamentos e que ainda hoje
constituem os alicerces do cristianismo” (VAN LOON, 1951, p. 103).
Sempre aparecem os que, firmando o pé que a Bíblia não contém
erros, buscam, desesperadamente, interpretar seus textos de maneira a
demonstrar que nela não existem contradições. Vejamos o que Geisler e
Howe, dizem sobre o assunto:
Gn 2,8: O jardim do Éden foi um lugar real ou apenas um mito?
Problema: A Bíblia declara que “plantou o Senhor um jardim no Éden, na
banda do Oriente” (Gn 2,8), mas não há evidência arqueológica de que tal
lugar tenha existido. Será apenas um mito?
Solução: Em primeiro lugar, não seria de se esperar evidência
arqueológica alguma, uma vez que não há indicação de que Adão e Eva
tenham feito objetos de cerâmica ou construído edificações duradouras. Em
segundo lugar, há uma evidência geográfica do Éden, já que dois dos rios
mencionados ainda existem hoje – o Tigre (Hiddekel) e o Eufrates (Gn
2,14). Além disso, a Bíblia até mesmo os localiza na “Assíria” (v. 14),
atual Iraque. Finalmente, qualquer evidência que tenha havido do Jardim
do Éden (Gn 2,3), foi provavelmente destruída por Deus por ocasião do
dilúvio (Gn 6-9). (GEISLER e HOWE, 1999, p. 38).
A questão não é procurar evidência arqueológica, mas provar sua
localização geográfica. A citada evidência geográfica apontando dois rios
é parte da verdade, pois o texto bíblico diz que são quatro os rios
afluentes de um outro maior que existia na região. Para elucidar melhor
essa questão, vamos recorrer a Flávio Josefo, escritor e historiador
judeu, que viveu entre 37 a 103, e que, contando a história de seu povo,
diz:
Moisés narra em seguida como Deus plantou do lado do oriente um
jardim muito delicioso, que encheu de todas as espécies de plantas e,
dentre outras, de duas árvores, uma das quais era a Árvore da Vida e a
outra, a da Ciência que ensinava a discernir o bem do mal. Colocou Adão e
Eva nesse jardim e mandou que cultivassem as plantas. Ele era regado por
grande rio que o rodeava completamente e que se dividia em quatro outros
rios. O primeiro, chamado Fison, que significa plenitude e os gregos
chamam de Ganges, corre para a Índia e desemboca no mar. O segundo, que
se chama Eufrates e Fora, em nossa língua, significa dispersão ou flor e
o terceiro, a que chamam de Tigre ou Diglath, que significa estreito e
rápido, ambos desembocam no mar Vermelho. O quarto, de nome Geon,
significa quem vem do Oriente, e os gregos o chamam de Nilo, atravessa
todo o Egito. (JOSEFO, 1990, pp. 48-49).
Sem termos um mapa para visualizar a descrição de Josefo fica
difícil perceber as aberrações contidas nesse trecho onde explica o
capítulo 2 de Gênesis. Assim, vejamos:
Como rios distantes um do outro podem formar um rio caudaloso que
circulava o jardim em Éden? Seus nomes estão destacados, em vermelho, no
mapa. Um no Egito, cuja nascente é na república de Burundi, (África),
outro na Índia, que nasce no Himalaia, os dois restantes nascem na
Turquia, evidenciando a impossibilidade total do relato. Por outro lado,
o Eufrates e o Tigre, que formam a Mesopotâmia, em grego “entre rios”,
deságuam no Golfo Pérsico e não no Mar Vermelho como dito por Josefo, sem
dúvida refletindo a crença de sua época.
Certamente não podemos considerar o relato bíblico como fato real,
mas apenas uma lenda inventada para dar aos homens uma explicação sobre
suas origens.
Para corroborar o nosso pensamento, trazemos:
Em Hesíodo, fala-se do homem formado do limo da terra, do caos
primitivo e da luz que sucede às trevas. A Pérsia, por sua vez, conserva
a mesma lenda, aquela de um só homem e de uma só mulher colocados em um
jardim de delícias e expulsos dele por se terem deixado seduzir por
Arhiman, o mistificador e mentiroso. (MELO, 1954, p. 16).
A lenda do Éden, continua Will Durant(1), aparece em quase todos os
folclores, na Índia, no Egito, no Tibet, na Babilônia, na Pérsia, na
Grécia, na Polinésia, no México, etc. Muitos jardins do Éden possuem
árvores e serpentes ou dragões que roubam a imortalidade do homem, ou
envenenam o Paraíso.
(1) Melo cita de Will Durant o livro História da Civilização.
(MELO, 1954, p. 239).
Outra citação que nos serve de apoio, é a seguinte:
A Perda do Paraíso – A Pérsia considerava a lenda só de um homem e
uma mulher, colocados em um jardim de delícias, expulsos por terem-se
deixado seduzir por Arihman, o mistificador e mentiroso (158/24). P. Góes
comenta que foi por intermédio de Zoroastro “que se popularizou, entre as
nações civilizadas, a crença no paraíso”. Charles Potter, em “História
das Religiões”, afirma que “paraíso” é uma palavra persa; e paraíso é a
morada zoroastrina dos bem-aventurados. Zoroastro foi conduzido à
presença de Deus, a fim de receber dele os princípios da verdadeira
religião. Há uma perfeita semelhança com Hamurábi, recebendo as tábuas da
lei, das mãos de Deus (166/89).
(158) Mário Cavalcanti de Melo, “Da Bíblia aos nossos dias”, s/nome da
Editora, Curitiba, PR, 1972.
(166) Charles Francis Potter, “História das Religiões”, traduziu J.
Sampaio Ferraz, Editora Universitária, SP, 1ª ed.
(ARAÚJO, 2000, p. 119). (grifo do original).
Nosso sonho é que um dia se mude a forma de ver a Bíblia, pois, a
manter as interpretações vigentes, num futuro não muito distante, as
novas gerações irão desprezá-la completamente. Por isso, julgamos
necessário separar nela o joio do trigo, para que, quando se for jogar a
água da bacia fora, não se jogue também a criança que está dentro dela.
Para finalizar, passemos a palavra a Mário Cavalcanti:
A verdade não conhece mistérios, nem dogmas, nem milagres. A
necessidade de enganar, de iludir faz parte sempre dos mesmos mistérios,
dogmas e milagres. (MELO, 1954, p. 91).
Essas obscuridades existem em cada página da Bíblia e não podem ser
clareadas senão por uma fé cega e incondicional que mate no homem todo o
poder de raciocínio. (MELO, 1954, p. 145).
A serpente é satanás?
Primeiramente, devemos encontrar a definição para a palavra
serpente citada em Gênesis. Kardec, em esclarecendo sobre o seu
significado, disse:
A palavra nâhâsch existia antes na língua egípcia, com o
significado de negro, provavelmente porque os negros tinham o dom do
encantamento e da adivinhação. Foi talvez por isso também que as
esfinges, de origem assíria, eram representadas com a figura de um negro.
Não foi senão na versão dos Setenta – que, segundo Hutcheson,
corromperam o texto hebreu em muitos lugares, - escrita em grego no
segundo século antes da era cristã, que a palavra nâhâsch foi traduzida
para serpente. As inexatidões dessa versão, sem dúvida, prendem-se às
modificações que a língua hebraica sofrera no intervalo; porque o hebreu
do tempo de Moisés era então uma língua morta, que diferia do hebreu
vulgar, tanto quanto o grego antigo e o árabe literário diferem do grego
e do árabe modernos. (KARDEC, A Gênese, 1993, p. 219).
Até hoje não conseguimos entender o porquê dos teólogos estarem
sempre relacionando, no episódio da tentação de Eva, a serpente a
satanás. Isso para nós é muito estranho, pois, sabendo que Jesus nos
recomenda sermos “prudentes como as serpentes” (Mt 10,16), fato que torna
sem sentido algum essa correspondência. Quem admitir a correlação entre a
serpente e satanás fatalmente estará colocando Jesus numa situação
insustentável, já que Ele, ao nos recomendar ter essa qualidade da
serpente, estaria admitindo que satanás também possui a qualidade da
prudência. E, além disso, não sabemos por que cargas-d’água, de contínuo,
colocam essa palavra (serpente) com a inicial maiúscula, o que
veementemente repudiamos; por isso nós sempre a escrevemos com letra
minúscula mesmo, deixando para usar maiúscula apenas quando estamos
nomeando a divindade.
Ao se referir à serpente como o mais astuto de todos os animais
(Gn 3,1), é porque ela agiu de moto próprio; portanto, não foi usada por
ninguém para dizer o que disse, abstraindo-se da questão de que esse
animal não fala. “É, pois, provável que Moisés entendesse, por sedutor da
mulher, o desejo indiscreto de conhecer as coisas ocultas suscitadas pelo
Espírito de adivinhação...” (KARDEC, A Gênese, 1993, p. 220).
Mas Kardec, ao fazer suas considerações sobre esse versículo,
disse:
A serpente está longe de passar hoje pelo tipo da astúcia; está,
pois, aqui, com relação à sua forma antes que pelo seu caráter, uma
alusão à perfídia dos maus conselhos que deslizam como a serpente, e nos
quais, freqüentemente, por essa razão, não se confia mais. Aliás, se a
serpente, por ter enganado a mulher, foi condenada a rastejar sobre o
ventre, isso queria dizer que ela antes tinha pernas, e, então, não era
mais uma serpente. Por que, pois, impor à fé ingênua e crédula das
crianças, como verdades, alegorias tão evidentes, e que, em fazendo seu
julgamento, se faz com que, mais tarde, olhem a Bíblia como um enredo de
fábulas absurdas? (KARDEC, A Gênese, 1993, p. 219).
Aliás, estamos cansados de ouvir pessoas dizerem que satanás é o
pai da mentira; entretanto, contrariamente, tudo quanto a serpente disse
foi verdade. Vejamos que ao dizer que “É certo que não morrereis” (Gn
3,4) a serpente falou absolutamente a verdade, pois o casal continuou
vivo; inclusive, relata-se que Adão viveu até completar 930 anos (Gn
5,5).
Observemos que “Adão (haadam) é a personificação da Humanidade,
sua falta individualiza a fraqueza do homem, em que predominam os
instintos materiais, aos quais não sabe resistir” (KARDEC, A Gênese,
1993, p. 218).
Ao explicar o porquê de Deus proibir que comessem do fruto da árvore,
ela, a serpente, disse a Eva: “Porque Deus sabe que no dia em que dele
comerdes se vos abrirão os olhos e, como Deus, sereis conhecedores do bem
e do mal” (Gn 3,5), exatamente como acontecido, pois os olhos de ambos se
abriram (Gn 3,7) e passaram a ser conhecedores do bem e do mal como Deus,
uma vez que se afirma “Eis que o homem se tornou como um de nós,
conhecedor do bem e do mal” (Gn 3,22).
Lembrando, também, que “a árvore, como árvore da vida, é o emblema
da vida espiritual; como árvore da Ciência, é o da consciência do homem
que adquire do bem e do mal para o desenvolvimento de sua
inteligência,...” (KARDEC, A Gênese, 1993, p. 218).
Como conseqüência, Deus, temendo que o casal comesse do fruto da
árvore da vida, e em virtude disso se tornasse igualmente imortal,
expulsa-o do jardim do Éden (Gn 3,23). Para nós a falta de Adão significa
a infração da lei de Deus, e a vergonha de Adão e Eva, ante o olhar
divino, é a confusão do culpado na presença do ofendido, e o suor no
rosto, para conseguir sua alimentação, representa o trabalho, neste
mundo, que se deve ter para atingir o progresso.
Quanto à questão do “tu és pó e ao pó tornarás” (Gn 3,19), na
verdade, era algo que Adão já devia saber, uma vez que, pela narrativa,
trata-se apenas de uma explicação e não um castigo como muitos pensam;
senão, vejamos o versículo na íntegra: “No suor do rosto comerás o teu
pão, até que tornes à terra, pois dela foste formado: porque tu és pó e
ao pó tornarás”. O “castigo” aqui é comer com o suor do rosto, pois se a
morte fosse realmente um castigo, estaríamos em sérios apuros para
explicar porque os animais e as plantas, que não pecaram, também morrem.
Não podemos também nos esquecer de que, se supondo um castigo, ele
foi aplicado somente a Adão e considerando que Eva já tinha recebido o
seu (as dores do parto), por questão de justiça, não poderia ainda
receber o de Adão, já que Adão não recebeu o dela. Não vimos nenhum homem
“parir com dor” (graças a Deus!). Por outro lado, se Deus falou mesmo
pelos profetas, Jeremias afirmou que “cada um, porém, será morto pela sua
iniqüidade” (Jr 31,30) o que Ezequiel reafirmou quando disse “a alma que
pecar, essa morrerá” (Ez 18,20) e, mais importante ainda, foi confirmado
por Jesus “a cada um segundo suas obras” (Mt 16,27).
Muitos estudiosos dizem, com razão, que a maioria das correntes
religiosas ditas cristãs é, na verdade, puro “paulinismo” e não
“cristianismo”, pois, para elas, a opinião de Paulo prevalece sob a de
Jesus. A esses pegaremos uma de suas opiniões, sobre o assunto de que
estamos tratando; leiamo-la: “... a serpente enganou a Eva com a sua
astúcia,...” (2Cor 11,3), que, conforme podemos concluir, atribui à
própria serpente, e não a satanás, a culpa de ter enganado a Eva.
Não há como aludir a serpente com satanás, pois:
Satã - significa "o adversário", "o acusador". O termo "acusador”
existia no Império Persa, cuja função era a de percorrer secretamente o
reino Persa e fiscalizar tudo o que estava sendo feito de mal no sentido
de apresentar denúncias diante do imperador, que mandava chamar os
funcionários faltosos e os castigava. Com a evolução da doutrina
religiosa judaica, satã acabou se transformando, de um acusador dos
pecados dos homens, num deus secundário, oposto a Javé. (GREGÓRIO, S. B.
Anjos e Demônios, na Internet. [1])
Satã não é Lúcifer mencionado em Is 14,12, pois Isaías se referia
ao Rei da Babilônia, já que a narrativa da passagem inicia-se no capítulo
treze, que assim diz: “Sentença que, numa visão, recebeu Isaías, filho de
Amós, contra a Babilônia”. (Is 13,1). Sentença que se proferia contra a
Babilônia e não a um anjo que, inclusive, já houvera caído, segundo os
que se apegam à letra que mata. Ele, satã, não é um anjo que se revoltou
contra o Senhor. Ele é apenas um acusador, ou seja, um dos “olhos” do
Senhor, que anda pela Terra e comparece perante o Senhor para acusar os
faltosos e não para se opor contra Javé.
Não poderemos deixar de citar uma outra interessante passagem
onde, segundo o relato bíblico, o próprio Deus recomenda que se coloque
num poste a imagem de uma serpente. Quem quiser comprovar é só ler Nm
21,8-9. Naquela ocasião, ainda no deserto, os hebreus chegaram a uma
região infestada de serpentes venenosas, que, ingenuamente, atribuíram a
um castigo de Deus. A serpente de bronze feita por Moisés, seguindo
recomendação divina, serviu como meio de cura das pessoas que foram
mordidas, que, após olharem para ela, ficavam curadas. Essa imagem foi
objeto de adoração pelo período de cerca de 700 anos. Esta mesma
serpente, levantada no deserto por Moisés, veio a ser mencionada por
Jesus, quando este esteve com o fariseu Nicodemos “... E do modo por que
Moisés levantou a serpente no deserto, assim importa que o Filho do Homem
seja levantado,” (Jo 3,14), fazendo a alusão de que Ele, Jesus, viria a
ser elevado no madeiro, predizendo a sua crucificação.
Curiosamente ela é o símbolo da medicina, que é representado por
duas serpentes enroladas num poste, e o da farmácia que é uma serpente
enrolada numa taça; em ambos representa o poder da cura.
A Arca de Noé
Iremos estudar, numa análise crítica, longe do fanatismo
religioso, alguns textos bíblicos para que tenhamos uma visão sobre este
assunto: ficção ou realidade, o que será?
Para isto tomaremos alguns versículos dos capítulos 6 a 9 da
Gênesis.
Gn 6,6: “O Senhor arrependeu-se de ter criado o homem na terra, e teve o
coração ferido de íntima dor”.
Que Deus é este que chega ao absurdo de arrepender-se de ter
criado o homem? Onde estava a sua onisciência? Talvez seja um Deus de
carne e osso, ou seja, como um ser humano, pois até coração Ele tinha.
Gn 6,7: “E disse: ‘Exterminarei da superfície da terra o homem que criei,
e com ele os animais, os répteis as aves dos céus, porque me arrependo de
os haver criado’”.
Se Deus, após ver a maldade dos homens (“O Senhor viu que a
maldade dos homens era grande na terra, e que todos os pensamentos do seu
coração estavam continuamente voltados para o mal”, conforme se lê em Gn
6,5), arrepende-se e resolve eliminar os homens da face da terra, até que
poderia ter lá suas razões; mas, quanto aos animais, aos répteis e às
aves dos céus não tinha nenhum motivo para exterminá-los, a não ser por
pura “maldade”, coisa que foi o motivo da condenação dos homens. E os
animais que vivem nas águas, eram inocentes ou não?
Gn 6,9: “Noé era um homem justo e perfeito no meio dos homens de sua
geração. Ele andava com Deus”.
Vejamos se ele comportava-se como um homem justo e perfeito:
Gn 9,20-22: “Noé, que era agricultor, plantou uma vinha. Tendo bebido
vinho, embriagou-se, e apareceu nu no meio de sua tenda. Cam, o pai de
Canaã, vendo a nudez do seu pai, saiu e foi contá-lo aos seus dois
irmãos”.
Na seqüência:
Gn 9,24-25: “Quando Noé despertou de sua embriaguez, soube o que tinha
feito o seu filho mais novo. 'Maldito seja Canaã, disse ele; que ele seja
o último dos escravos de seus irmãos'”.
Embebedar-se e sair nu pelo acampamento é um comportamento
exemplar para um homem perfeito? Ao castigar a Canaã, seu neto, ao invés
de a seu filho Cam, que não parece ser o filho mais novo e sim o do meio
(“Noé teve três filhos: Sem, Cam e Jafet”, em Gn 6,10), por ter visto a
sua nudez, quando a culpa era dele mesmo, o próprio Noé, por ter saído nu
como se estivesse desfilando no Sambódromo em pleno Carnaval, teria agido
com justiça?
Gn 6,14-16: “Faze para ti uma arca de madeira resinosa, dividi-la-ás em
compartimentos e a untarás de betume por dentro e por fora. E eis como o
farás: seu comprimento será de trezentos côvados, sua largura de
cinqüenta côvados, e sua altura de trinta. Farás no cimo da arca uma
abertura com dimensão dum côvado. Porás a porta da arca a um lado, e
construirás três andares de compartimentos”.
No livro A História da Bíblia, de Hendrik Willem Van Loon,
tradução de Monteiro Lobato, podemos ler o seguinte: “Noé e os filhos
puseram-se ao trabalho, sob a chacota dos vizinhos. Que estranha idéia
construir um navio num lugar onde não havia água - rio nenhum, e o mar a
mil milhas distante!” (p. 8). Ora, se uma milha equivale a 1.609 metros,
temos, então, que estavam a 1.609 km do oceano. Pela distância que
moravam deste é bem provável que não tinham a menor experiência sobre
construção naval, não é mesmo? Assim, como conseguiram construí-la?
Conforme pudemos apurar, o côvado equivale a 45 cm. Então temos:
comprimento 135m, largura 22,5m e altura 13,5m; com isso cada um dos três
andares mediria 3.037,5 m² e a área total da arca seria de 9.112,5m².
Inegavelmente área muito pequena para caber tudo o que Deus ordenara a
Noé colocar lá dentro, como veremos na passagem seguinte:
Gn 6,19-22: “De tudo o que vive, de cada espécie de animais, farás entrar
na arca dois, macho e fêmea, para que vivam contigo. De cada espécie de
aves, e de cada espécie de animais que se arrastam sobre a terra, entrará
um casal contigo, para que lhes possa conservar a vida. Tomarás também
contigo de todas as coisas para comer, e armazena-los-ás para que te
sirvam de alimento, a ti e aos animais. Noé obedeceu, e fez tudo o que o
Senhor lhe tinha ordenado”.
Imaginemos: Noé com sua família eram 8 pessoas; soma-se a isso um
casal de todos os animais vivos e mais alimentação para todas essas
criaturas que deveria durar por um ano - quando desembarcou Noé já tinha
um neto, Canaã -, qual seria o peso e o volume disso tudo? Caberia nestes
poucos mais de 9.000m²? Além de que a diversidade da alimentação dos
bichos, como colocar isto dentro da arca? Mais ainda: como não foi
ordenado a Noé pôr água dentro da arca, como os seres viveram, por pouco
mais de um ano, sem esse precioso líquido para beber? E o que se come não
é eliminado pelo organismo? Aonde foram jogados os dejetos do tudo quanto
ali vivia, pois a embarcação que Noé construíra estava quase que
totalmente fechada? E o ar lá dentro, como deveria estar? Haveria ainda
oxigênio para se respirar nesta? Será que, com somente 8 pessoas, eles
conseguiriam alimentar toda a bicharada diariamente, sem um único dia
para o descanso, durante o período de um ano e pouco? Como os carnívoros
foram alimentados? São inúmeras as interrogações.
Gn 7,1-3: “O Senhor disse a Noé: 'Entre na arca, tu e toda a tua casa,
porque te reconheci justo diante dos meus olhos, entre os de tua geração.
De todos os animais puros tomarás sete casais, macho e fêmea, e de todos
os animais impuros tomarás um casal, macho e fêmea, das aves dos céus
igualmente sete casais, machos e fêmeas, para que se conserve viva a raça
sobre a terra'”.
Aqui se fala em sete casais de animais puros e também de sete
casais das aves; mas, anteriormente, já não havia dito ser apenas um
casal dessas espécies? (Gn 6,19-20) Não estaria em contradição um texto
com o outro?
Gn 7,17-20: “O dilúvio caiu sobre a terra durante quarenta dias. As águas
incharam e levantaram a arca, que foi elevada acima da terra. As águas
inundaram tudo com violência, e cobriram toda a terra, e a arca flutuava
na superfície das águas. As águas engrossaram prodigiosamente sobre a
terra, e cobriram todos os altos montes que existem debaixo dos céus; e
elevaram-se quinze côvados acima dos montes que cobriam”.
Na terra encontramos a água nos rios e mares, na atmosfera, nas
nuvens, nos lençóis subterrâneos e, em forma de gelo, nas altas montanhas
e nos pólos. Aquelas que nascem ou caem na superfície, fatalmente,
escorrem para as partes mais baixas do planeta, formando os mares. E,
segundo a ciência, 2/3 do nosso planeta é composto de água, com cerca de
97,5% dela compondo os oceanos. Para se ter tanta água, a ponto de cobrir
todos os montes da terra, temos duas hipóteses:
1ª - afundamento de toda a superfície de terra; ou...
2ª - as águas da chuva vieram de outro lugar que não a Terra, pois a água
do nosso planeta é pouca para cobrir todos os montes altos (Monte Everest
8.848 metros de altura).
Se considerarmos um dilúvio localizado, em determinada região da
Terra, e não nela toda, é bem possível a 1ª hipótese, fora disto só em
filmes de Steven Spielberg: ficção pura!
Interessante a nota de rodapé, desta passagem, constante na Bíblia
Sagrada, Editora Vozes: “O dilúvio não foi universal mas uma grande
inundação que cobriu o horizonte geográfico de Noé. A existência de
histórias do dilúvio em outros povos primitivos mostra que há uma
consciência geral sobre uma catástrofe que ameaçou a humanidade dos
primórdios” (p. 35). Ótimo, confirma a possibilidade de ter sido
localizado; entretanto, o que não compreendemos é que, apesar disso,
ainda teimam em dizer que ele foi universal...
Gn 7,11: “No ano seiscentos da vida de Noé, no segundo mês, no décimo
sétimo dia do mês, romperam-se naquele dia todas as fontes do grande
abismo e abriram-se as barreiras dos céus".
Gn 8,13-14: “No ano seiscentos e um, no primeiro mês, no primeiro dia do
mês, as águas tinham secado sobre a terra. Noé descobriu o teto da arca,
olhou e viu que a superfície do solo estava seca. No segundo mês, no
vigésimo sétimo dia do mês, a terra estava seca".
Do início do dilúvio, até o dia em que a terra ficou totalmente
seca, passaram-se, aproximadamente, 1 ano e 10 dias (considerando-se o
mês de 30 dias). Período confirmado pelo nascimento de Canaã, neto de
Noé, filho de Cam. Certamente, que com um período tão longo desses, toda
a vegetação que cobria a terra deve ter apodrecido, assim como se
alimentaram os animais herbívoros depois do dilúvio, porquanto,
demandaria tempo para tudo se recompor novamente e haver alimentação para
esses animais? Quanto aos animais carnívoros, com um só casal de cada
espécie, não teriam extinto vários deles, visto uns se alimentarem dos
outros?
Observe, caro leitor, que Noé descobriu o teto da arca, o que leva
a crer que, neste período todo, ela estava completamente fechada, numa
escuridão total. Como viveram os que lá estavam, neste período todo, sem
a luz do sol?
Gn 8,1: “Ora, Deus lembrou-se de Noé, e de todos os animais e de todos os
animais domésticos que estavam com ele na arca”.
Ainda bem que Deus se lembrou, pois se isto não tivesse acontecido
estaria chovendo até hoje, o que faria que as águas transbordassem do
planeta.
Gn 8,20: “E Noé levantou um altar ao Senhor: tomou de todos os animais
puros e de todas as aves puras, e ofereceu-os em holocausto ao Senhor
sobre o altar”.
É incrível que depois de todo sacrifício para salvar os animais,
queima alguns ao mesmo Deus que ordenara a Noé que os conservasse,
guardando-os e mantendo-os vivos.
Gn 8,21: “O Senhor respirou um agradável odor, e disse em seu coração:
‘Doravante, não mais amaldiçoarei a terra por causa do homem – porque os
pensamentos do seu coração são maus desde a sua juventude -, e não
ferirei mais todos os seres vivos, como o fiz’”.
Os animais sendo oferecidos em sacrifício, queimando no altar, e
Deus respirando o cheiro “agradável” de carne queimada. Aqui, novamente,
Deus é de carne e osso, pois até respira e sente cheiro. Na fala
entendemos que Deus, finalmente, por compreender que o homem tinha os
pensamentos maus desde a juventude, coisa que parecia não saber quando o
criou, se arrepende de o ter eliminado, então promete não mais ferir os
seres vivos.
Gn 9,2: “Vós sereis objeto de terror e espanto para todo o animal da
terra, toda a ave do céu, tudo que se arrasta sobre o solo e todos os
peixes do mar: eles vos são entregues nas mãos”.
Bom, deve ter havido algum engano, pois se um leão faminto estiver
em nossa frente ele não vai tremer por estarmos diante dele; com certeza,
depois de comer-nos, vai deitar e roncar feliz da vida.
Gn 9,12-15.17: “Deus disse:" Eis o sinal da aliança que eu faço convosco
e com todos os seres vivos que vos cercam, por todas as gerações futuras.
Ponho o meu arco nas nuvens, para que ele seja o sinal da aliança entre
mim e a terra. Quando eu tiver coberto o céu de nuvens por cima da terra,
o meu arco aparecerá nas nuvens, e me lembrarei da aliança que fiz
convosco e com todo ser vivo de toda a espécie e as águas não causarão
mais dilúvio que extermine toda criatura. Dirigindo a Noé, Deus
acrescentou: “Este é o sinal da aliança que faço entre mim e todas as
criaturas que estão na terra”.
Como quase esqueceu que Noé estava na arca durante o dilúvio, e
para não correr o risco de esquecer-se da aliança que agora fazia com
Noé, Deus resolve colocar um arco nas nuvens, assim como pessoas que
amarram fitinhas nos dedos para não se esquecerem de algo que não podem
deixar de fazer.
Afinal, sabem que arco é esse? Não? Então vamos ver o que é na
Bíblia Sagrada, Editora Vozes, em Gênesis:
Gn 9,14.16: “Quando cobrir de nuvens a terra, aparecerá o arco-íris.
Quando o arco-íris estiver nas nuvens eu o olharei como recordação da
aliança eterna entre Deus e todos os seres vivos, com todas as criaturas
que existem sobre a terra”.
É isto mesmo, o famoso arco-íris que aparece no céu após uma chuva
como fenômeno natural; os raios do sol refletindo nas águas das nuvens se
decompõem em sete cores principais. Processo também obtido com um prisma
de cristal; mas Deus ainda não tinha conhecimento disto, não é mesmo?
Gn 9,28-29: “Noé viveu ainda depois do dilúvio trezentos e cinqüenta
anos; a duração total da vida de Noé foi de novecentos e cinqüenta anos,
e morreu”.
Entre outros de “longa vida”, temos Noé com 950 anos, frontalmente
contra os argumentos dos cientistas que colocam a vida humana bem abaixo
disto, com um tempo próximo ao que se diz nesta narrativa:
Gn 6,3: “O Senhor então disse: ‘Meu espírito não permanecerá para sempre
no homem, porque todo ele é carne, e a duração de sua vida será só de
cento e vinte anos’”.
É de se perguntar: será que Deus não se lembrou de Noé e ele
conseguiu ultrapassar a duração da vida que Ele tinha fixado em 120 anos?
Como conclusão, podemos verificar que existem fatos na Bíblia que
fogem ao censo lógico e científico. Não deixando de citar as adulterações
efetuadas, como no caso do arco-íris, que não consta da Bíblia editada
pela Editora Ave Maria, sabe-se lá porque motivos. Assim, podemos aceitar
que a história de Noé, como relatada, é fantasiosa. Entretanto, como a
questão do dilúvio parece constar da cultura de outros povos, poderemos
até aceitar; mas somente se ele tiver sido algo localizado e não sobre a
terra toda.
E para confirmar que a história de Noé não passa de uma lenda,
vamos ver o que consta de um artigo na Revista Galileu nº. 115:
As raízes de Noé
Lendas sobre grandes dilúvios estão espalhadas entre diferentes
culturas. Estima-se que cerca de 300 histórias desse tipo já tenham sido
registradas. A de Noé, no entanto, é a mais famosa na civilização
ocidental.
Estudiosos apontam que o Dilúvio, parte do livro do Gênesis, tenha
sido escrito entre 550 a.C. e 450 a.C., período em que os judeus mais
influentes de Jerusalém foram aprisionados na Babilônia. “O Gênesis
cumpria o papel de reforçar a identidade desse povo”, explica Fernando
Altemeyer, professor de teologia da PUC. Inspirado na literatura
babilônica, o livro mostrava que os judeus tinham uma história e um
passado respeitável e deveriam buscar seu futuro a partir daqueles
ensinamentos de seus antepassados.
A história de Noé tem muito em comum com um poema babilônico
escrito por volta de 1600 a.C., que faz parte do Épico de Gilgamesh. O
poema trata de um rei mítico chamado Atrahasis, que é avisado a tempo
pelos deuses de que um dilúvio está prestes a destruir a humanidade.
Atrahasis constrói então uma enorme embarcação, e nela coloca sua
família, seus pertences e alguns animais. As semelhanças entre o Gênesis
e Gilgamesh são muitas. A lenda babilônica, por sua vez, também não é
original, mas baseada em uma história suméria cerca de mil anos mais
antiga, provavelmente assimilada pelos babilônicos durante a conquista da
região.
A versão babilônica não influenciou somente o Antigo Testamento.
Entre os gregos, a lenda era muito popular, pois eles mesmos já tinham
presenciado a fúria das águas devido à erupção de um vulcão no século 15
a.C. Dos gregos, a história passou aos romanos, e dessa vez, quem assume
a autoria do dilúvio é o deus Júpiter, enfurecido com a má conduta
humana. (FERRONI, 2001, p. 55-61).
Já tínhamos dado por terminado esse texto, mas encontramos fatos
novos que merecem ser incluídos neste estudo, pois, ao consultar a
palavra dilúvio no Dicionário Bíblico Universal (p. 197), confirmamos
muito do que já dissemos; veja:
Os “dilúvios” extrabíblicos
As mitologias populares, constatando inundações catastróficas das
quais escaparam alguns raros preferidos dos deuses, são inúmeras. A
literatura babilônica, que oferece um conjunto de textos referindo-se a
um “dilúvio” ao qual teria escapado uma família, graças a uma “arca”, é
apenas um exemplo.
Este poema é chamado “epopéia de Gilgamesh”: uma versão sumérica e
duas recensões acádicas chegaram até nós. As semelhanças entre as
aventuras de Gilgamesh e as de Noé são impressionantes: a decisão de
destruir a humanidade, o aviso feito a um homem para construir uma barca
e embarcar nela animais, soltar aves quando as águas abaixassem, oferecer
um sacrifício depois de passada a catástrofe e a bênção divina, tudo é
idêntico.
Mas existem diferenças significativas; segundo o relato bíblico,
Javé é um deus único, enquanto que todos os deuses babilônicos se agitam
no texto paralelo; e, mais ainda, o dilúvio não se deve à malvadez ou à
inveja de Javé, mas é um castigo da humanidade pecadora, querido por
Deus.
É importante ressaltar um trecho dos comentários colocados, neste
Dicionário, após a explicação sobre o dilúvio; vejamo-lo:
“O texto bíblico do dilúvio é a versão israelita do mito
babilônico. O original foi expurgado do politeísmo que o impregnava e
utilizado por uma fé monoteísta e um sentido bem aperfeiçoado da
divindade”.
“A bênção que Deus Enlil concedeu a Ut-napishtim foi transposta
para uma bênção de Javé a Noé; a promessa de não mais destruir a
humanidade também foi conservada. Mas o relato bíblico exprime duas teses
que são pontos essenciais da fé javista: a eleição e a aliança”. (p.
197). (grifo nosso).
Assim, se confirma, mais uma vez, que os mais sérios estudiosos
estão conscientes que o dilúvio não passa de uma versão israelita do mito
babilônico.
Torre de Babel: o carro na frente dos bois
Em nossos estudos, sobre os mais variados temas bíblicos, sempre
encontramos alguns que nos chamam mais a atenção, quer por se classificar
entre os mais falados quer por ser inusitado. Alguns ficam
insistentemente como que martelando em nosso pensamento, que só saem
quando resolvemos fazer um estudo sobre eles. Se isso é inspiração não
sabemos, mas que sentimos como algo fora de nós, isso sim.
O nosso tema de agora é sobre a tão famosa Torre de Babel, que,
segundo a Bíblia, deu o início à multiplicidade de línguas faladas na
terra, como resultado do castigo Divino a seus construtores. Analisemos,
então o texto bíblico.
Iremos colocar o trecho um pouco mais longo do que poderia parecer
necessário, pois há algo importante nele que iremos comentar
oportunamente. Vamos empregar reticências naquilo que não julgamos, no
momento, ser útil em relação ao nosso propósito.
Leiamos os capítulos 10 e 11 do Gênese, cujo objetivo é relacionar
toda a descendência de Noé a Abraão, os quais dividiremos em três partes.
1ª Parte - Gênesis 10,1-32:
“Esta é a descendência dos filhos de Noé: Sem, Cam e Jafé, que tiveram
filhos depois do dilúvio. Filhos de Jafé: Gomer, Magog, Madai, Javã,
Tubal, Mosoc e Tiras... Foi destes que se separaram as populações das
ilhas, cada qual segundo o seu país, língua, família e nação. Filhos de
Cam: Cuch, Mesraim, Fut e Canaã... Cuch gerou Nemrod, que foi o primeiro
valente na terra... As capitais do seu reino foram Babel, Arac e Acad,
cidades que estão todas na terra de Senaar. Dessa terra saiu Assur, que
construiu Nínive, Reobot-Ir, Cale e Resen, entre Nínive e Cale. Esta
última é a maior... Esses foram os filhos de Cam, segundo suas famílias e
línguas, terras e nações... Filhos de Sem: Elam, Assur, Arfaxad, Lud e
Aram... Jectã gerou Elmodad, Salef, Asarmot, Jaré, Aduram, Uzal, Decla,
Ebal, Abimael, Sabá, Ofir, Hévila e Jobab; todos esses são filhos de
Jectã. Eles habitavam desde Mesa até Sefar, a montanha do oriente. Foram
esses os filhos de Sem, conforme suas famílias e línguas, suas terras e
nações...”.
2ª Parte Gênesis 11,1-9:
“O mundo inteiro falava a mesma língua, com as mesmas palavras. Ao
emigrar do oriente, os homens encontraram uma planície no país de Senaar,
e aí se estabeleceram. E disseram uns aos outros: 'Vamos fazer tijolos e
cozê-los no fogo!' Utilizaram tijolos em vez de pedras, e piche no lugar
de argamassa. Disseram: 'Vamos construir uma cidade e uma torre que
chegue até o céu, para ficarmos famosos e não nos dispersarmos pela
superfície da terra'. Então Javé desceu para ver a cidade e a torre que
os homens estavam construindo. E Javé disse: 'Eles são um povo só e falam
uma só língua. Isso é apenas o começo de seus empreendimentos. Agora,
nenhum projeto será irrealizável para eles. Vamos descer e confundir a
língua deles, para que um não entenda a língua do outro'. Javé os
espalhou daí por toda a superfície da terra, e eles pararam de construir
a cidade. Por isso, a cidade recebeu o nome de Babel, pois foi aí que
Javé confundiu a língua de todos os habitantes da terra, e foi daí que
ele os espalhou por toda a superfície da terra”.
3ª Parte Gênesis 11,10-32:
“Esta é a descendência de Sem: Quando Sem completou cem anos, gerou
Arfaxad, dois anos depois do dilúvio. Depois do nascimento de Arfaxad,
Sem viveu quinhentos anos, e gerou filhos e filhas... Quando Taré
completou setenta anos, gerou Abrão, Nacor e Arã... Abrão e Nacor se
casaram: a mulher de Abrão chamava-se Sarai; a mulher de Nacor era Melca,
filha de Arã, que era o pai de Melca e Jesca. Sarai era estéril e não
tinha filhos. Taré tomou seu filho Abrão, seu neto Ló, filho de Arã, e
sua nora Sarai, mulher de Abrão. Ele os fez sair de Ur dos caldeus para
que fossem à terra de Canaã; mas, quando chegaram a Harã, aí se
estabeleceram...”.
Essa divisão foi necessária, pois por ela dá para se desconfiar
que o texto correspondente à segunda parte, exatamente o que fala da
Torre de Babel, é uma interpolação, uma vez que, ele corta a seqüência
natural do que vinha sendo narrado, que trata da descendência de Noé até
Abraão, inclusive, pela Bíblia de Jerusalém ela recebe o título de: DO
DILÚVIO A ABRAÃO. Isso é uma ocorrência que já tínhamos visto em outras
oportunidades (ver vv de 3 a 10 em Mt 27,1-26 e vv de 12 a 16 em Jo 11,144), fazendo-se, portanto, lugar comum na Bíblia. Não nos pergunte com
qual intenção, pois não saberemos responder exatamente o porquê disso.
Entretanto, nos parece que o objetivo é que com esses enxertos nos textos
bíblicos, formam base de apoio para neles sustentar crenças, em alguns
casos, e dogmas em outros.
Cumpre-nos esclarecer que, segundo o texto, foi a descendência de
Cam que se instalou na região de Senaar (Gn 10,10). Para a qual
encontramos a seguinte explicação: “Região de Senaar é a antiga
Mesopotâmia Inferior, hoje Iraq, onde os dois rios, Tigre e Eufrates, se
aproximam até uns 40 km entre si antes de lançar suas águas no golfo
Pérsico”. (Edições Paulinas, p. 35).
Vejamos o que encontramos como explicação dessa passagem:
* Babel. Nome hebraico de Babilônia. Só em Gn 11,2 aparece como “terra de
Senaar”, onde os descendentes de Sem começaram a construir a torre que
faria seus nomes famosos. Por causa de seu orgulho Deus os confundiu e os
espalhou pela terra. Seguindo a etimologia popular, os hebreus associaram
a palavra Babel à palavra hebraica correspondente a “confusão”; mas sabese, hoje, que o verdadeiro significado de Bab-el é “porta do deus”.
(Dicionário Prático Barsa, p. 29).
* A tradição se interessou pelas ruínas de uma dessas altas torres em
andares, de um zigurate que se construía na Mesopotâmia como símbolo da
montanha sagrada e repositório da divindade. Os construtores teriam desse
modo procurado um meio de encontrar seu deus. Mas o autor do relato
bíblico vê nisso iniciativa de orgulho insensato. Este tema da torre
combina com o da cidade: é condenação da civilização urbana (cf. 4,17+).
(Bíblia de Jerusalém, p. 48).
* Vários temas se mesclam neste breve e famoso relato. Um eco da rebelião
dos titãs que tentaram escalar o céu; uma etiologia sobre a
multiplicidade atual das línguas; uma crítica política. As línguas se
multiplicaram como castigo de Deus, para que os homens não se entendam em
seus planos soberbos – paranomásia popular com o nome de Babel. A cultura
urbana, que poderia ser centro de convivência pacífica, desperta o desejo
de domínio imperialista – crítica a Babilônia. A pirâmide sagrada ou
zigurate, vista como a torre do assalto humano ao céu; mas que não chega,
de modo que Deus deve descer para vê-la. A subida acaba em caída, a
concentração em dispersão, o nome famoso em nome infamante. A maldição
será anulada no dia de Pentecostes (At 2). (Biblia do Peregrino, p. 29).
* Babel (Torre de) - Etim. Acádica: porta de Deus.
Narrada no mesmo tom poético dos relatos que precedem, a anedota da Torre
de Babel (Gn 11, 1-9) quer traduzir em imagens uma profunda verdade, útil
a toda a humanidade.
O relato tem origem popular: a aproximação etimológica de Babel e o
hebraico babal, “confundir, misturar” é fictícia. O relato é composto de
elementos arcaicos: Deus fica com receio dos projetos humanos e tem ciúme
de suas façanhas (v. 6-7). O ponto de partida são as torres grandiosas,
em forma de pirâmide, que os habitantes da Mesopotâmia erguiam ao lado de
seus templos, as ziggurat. A da Babilônia deveria ter, na base, mais de
90m de lado, e uma altura equivalente. Escadas ou rampas a contornavam,
levando a terraços de dimensões progressivamente menores. No vértice se
achava um santuário. A Ziggurat da Babilônia se chamava Etemenanki, “casa
em cima da qual são construídos o céu e a terra”; e se relacionava com a
Esagil, “casa daquele que ergue a cabeça”, templo do deus Marduc.
Essas torres representam, de forma convencional, as montanhas onde as
civilizações primitivas situavam seus santuários e que consideram como o
local da morada divina (cf. o v. 4). Assim a torre se tornava a escada
que permitia aos homens subir até Deus (cf. Gn 28,11-19).
Como talvez tivessem visto uma ou outra ziggurat inacabada ou já
danificada pelas intempéries, os autores bíblicos viram nela o símbolo da
vã pretensão dos homens a rivalizar com Deus (comparar Gn 3,3-5; Is
14,12-15; Ez 28,2-10.14-19), obstinados a organizar a sociedade
independentemente do verdadeiro Deus, tendo como referência só esses
ídolos que são afinal de contas apenas os espelhos onde o homem fita a
própria imagem.
(...) (Dicionário Bíblico Universal, pp 78).
Como citado acima, não só os babilônicos, mas também os hebreus
adoravam a Deus nos montes. Ver, por exemplo: Abraão constrói um altar e
invoca no nome de Javé numa montanha (Gn 12,8); ao ordenar a Abraão para
sacrificar seu filho Isaac, Deus o recomenda subir à montanha (Gn 22,14);
Moisés chega ao Horeb (Sinai), a montanha de Deus (Ex 3,1), onde
aconteceu o fenômeno da sarça é nesse local que Deus manda o povo O
servir (Ex 3,12), é lá que se edifica um altar e onde também se recebe os
Dez Mandamentos (Ex 24,12), fato acontecido com Jesus que procurava os
montes para orar e onde fazia suas pregações. Conhecemos o famoso Sermão
do Monte dito, obviamente num monte, (Mt 5,1), são nominalmente citados o
da Oliveira e o Tabor.
Aqui também percebemos que os teólogos tentam, de todas as
maneiras, manter seus dogmas, já que têm conhecimento dos fatos, mas
fingem não conhecê-los e pior é que mantêm o povo na ignorância, uma vez
que não falam a verdade.
No Jornal Infinito, na Internet(2), encontramos informações que
confirmam isso, leiamos:
INFERÊNCIAS
O "Gênesis e o Antigo Testamento Bíblico" são comuns a todas as
religiões judaico- cristãs. É o que se encontra impresso na "A BÍBLIA" das edições Paulinas: - recomendação - assinada por D. Luciano Mendes de
Almeida, Presidente da CNBB - Arcebispo de Mariana. E pelo Bispo Primaz
da Igreja Episcopal Anglicana do Brasil e Presidente do Conselho Nacional
de Igrejas Cristãs - Glauco S. de Lima (Lima em assinatura pouco
compreensível).
Na "Introdução" ao GÊNESIS encontra-se:
As Fontes: Ao contarem as origens do mundo e da humanidade, os
autores bíblicos não hesitaram em haurir, direta ou indiretamente, das
tradições do Antigo Oriente Próximo. As descobertas arqueológicas de
aproximadamente um século para cá, mostram que existem muitos pontos
comuns entre as primeiras páginas do GÊNESIS e determinados textos
líricos, sapienciais ou litúrgicos da Suméria, da Babilônia, de Tebas ou
Ugarit. Este fato nada tem de estranho quando se sabe que a terra em que
Israel se instalou era aberta às influências estrangeiras e que o povo de
Deus manteve relações com seus vizinhos. Mas os progressos da arqueologia
revelam igualmente que os escritores bíblicos, responsáveis pelos
primeiros capítulos do GÊNESIS, não foram imitadores servis. Souberam
trabalhar as suas fontes, repensá-las em função das tradições específicas
do seu povo, enfatizando a originalidade da fé javista.
Está aí a confirmação de que sabem que muitas coisas da Bíblia são
produto de tradições de outros povos.
O que diz a arqueologia? Vejamos o que encontramos a esse
respeito:
Os pesquisadores alemães tiveram de retirar trinta mil metros
cúbicos de entulho para descobrir uma parte do templo de Marduck, no
Eufrates, o qual foi reconstruído sob Nabucodonosor. A obra, juntamente
com os anexos, ocupava uma superfície de quatrocentos e cinqüenta por
quinhentos e cinqüenta metros! Em frente ao templo erguia-se a Zigurate,
a torre do santuário de Marduck.
“Vinde, façamos tijolos e cozamo-los no fogo. E Serviram-se de
tijolos em vez de pedras, e de betume em vez de cal traçada; e disseram:
vinde, façamos para nós uma cidade e uma torre, cujo cimo chegue até o
céu; e tornemos célebre o nosso nome” (Gênese 11.3,4).
Até a técnica de construção da torre de Babel descrita na Bíblia
corresponde aos resultados das pesquisas. Na construção, revelaram as
pesquisas, foram, com efeito, empregados somente tijolos betumados,
sobretudo nos alicerces. Isso se fez evidentemente por motivos de
segurança do edifício. Pois nas construções perto do rio era preciso
levar em conta as enchentes regulares e a permanente umidade. Com
“betume”, isto é, asfalto, os muros se tornavam impermeáveis e
resistentes.
O início da construção é referido no Gênese, tendo lugar, portanto,
antes do tempo dos patriarcas. Abraão viveu por volta do século XIX a.C.,
segundo se conclui dos achados feitos em Mari. Uma contradição? A
história da torre “cuja ponta chegava até o céu” remonta a um passado
obscuro. Mais de uma vez ela foi destruída e reconstruída. Depois da
morte de Hamurabi, os hititas tentaram arrasar a imensa construção.
Nabucodonosor renovou-a apenas.
Quatro escalões, “quatro blocos quadrados”, se elevavam uns sobre
os outros. A tabuinha de um “arquiteto” encontrada no templo estabelece
que o comprimento, a largura e a altura deviam ser absolutamente iguais e
que só os terraços deviam ter dimensões diferentes. As medidas da
tabuinha dão para os lados da base um pouco mais de oitenta e nove
metros. Os arqueólogos mediram noventa e um metros e meio. A torre devia
ter, portanto, uns noventa metros de altura.
A torre de Babel servia também a um culto sinistro. Heródoto
informa a esse respeito: “Sobre a última torre (refere-se ao escalão
superior) há um espaçoso templo, e dentro dele um sofá de tamanho
incomum, ricamente adornado, com uma mesa de outro ao lado. Não há
estátua de qualquer espécie no lugar, nem a câmara è ocupada à noite
senão por uma única mulher babilônia, escolhida para si pela divindade
entre todas as mulheres do país. Declaram eles também – mas eu por mim
não lhes dou crédito – que o próprio deus desce em pessoa a essa câmara e
dorme no sofá. Essa história é como a que me contaram os egípcios sobre o
que acontece na sua cidade de Tebas, onde uma mulher também passa a noite
no templo do Zeus tebano...” (KELLER, 2000, pp. 314-315).
A versão da história é completamente diferente da dos teólogos.
Aqui nada mais é que um templo religioso dos babilônios. A essa complexa
construção que os autores bíblicos viriam como sendo uma ousadia dos
homens em querer chegar ao céu, lugar onde presumiam ser a morada de
Deus.
Levantamos uma informação interessante na Internet, leiamos:
A TORRE DE BABEL
Etemananki, ou Torre de Babel, era o principal zigurate da
Babilônia e o ponto mais importante da cidade. Cidades dos tempos
sumérios, babilônicos e assírios possuíam zigurates, ou torres
construídas em andares, de vários tamanhos. Erguendo-se a cerca de 91
metros de altura, o Etemananki foi o maior e mais imponente zigurate já
construído. Ele dominava o céus da cidade e era o centro da vida
religiosa na Babilônia. Etemananki significa "apedra de fundação do céu e
da terra".
O Etemananki começou a ser construído pelo rei Nabopolassar e foi
completado por seu filho Nabucodonossor.
Vista esquemática do zigurate de Marduk na Babilônia, o Etemananki
FINALIDADE
Em primeiro lugar, um zigurate não é uma pirâmide: a) zigurates têm
andares, e são construídos em estágios, enquanto que uma pirâmide é
triangular e de quatro lados; b) um zigurate tem função religiosa,
enquanto que a pirâmide é um túmulo para um rei ou pessoa de importância;
c) pirâmides são do Egito, enquanto que zigurates são encontrados na
Mesopotâmia, América do Sul (incas) e Ásia.
O Etemananki era um prédio religioso, com um templo dedicado a
Marduk, o Deus principal da Babilônia, representando o poder deste Deus.
No topo estava localizado este templo, onde o rei Nabucodonossor
principalmente, tomou parte em muitos rituais.
O templo tinha outros usos, como uma plataforma de observação para
os astrônomos fazerem suas medições e observações. Também era usado como
ponto de observação para proteção da cidade e arredores.
Etemananki consistia de sete estágios e um templo, algumas vezes
chamado de oitavo estágio.
Planta dos andares (vistos a partir do lado Sul)
(Fonte:
http://www.angelfire.com/me/babiloniabrasil/torredebabel.html, consulta
em 27.01.2006, às 21:00 hs.)
Não eram só os babilônicos que construíram torres, leiamos:
“Existem muitíssimos mitos das origens; não da origem da língua,
mas da construção de uma torre que chegue a tocar o céu – os Nyambos têm
uma no México, em Cholula, e, ainda no México os Toltecas têm uma também,
também se apresenta entre os Cuki em Assam e entre os Karen na Birmânia:
se trata sempre de manifestações de hybris, de soberba, de arrogância, da
tentativa de escalar e de agredir a potência de Deus... (James Hillman,
“Em louvor de Babel”, site http://www.rubedo.psc.br/artigosb/babel.htm,
consulta em 16.09.2006, às 22:00 hs.).
Pelo que observamos na Bíblia, a origem da grande diversidade de
línguas do mundo foi proveniente de um castigo de Deus, cujos textos,
entretanto nos apontam para a unicidade da língua nos tempos remotos.
Situação que só mudou quando os homens se atreveram em construir uma
torre que pudesse chegar ao céu. Isso foi o bastante para atiçar a ira
divina e o castigo não tardou a chegar: confundiu-lhes a língua. Como
ninguém mais entendia ninguém, tiveram que parar a construção desse
ambicioso projeto.
Interessante é que nessa anedota, repetindo o que disseram antes,
Deus parece estar com medo do homem conseguir tal feito. Mas como? Se a
uma altura de, aproximadamente, 10.000 metros o homem não consegue
sobreviver, por falta de oxigênio, será que Deus não sabia disso? Como se
não bastasse, a altura dessas torres era de cerca de 90 metros, então,
como justificar que iriam alcançar o céu?
Se uma torre de 90 metros de altura poderia chegar ao céu, imagine
nos tempos de hoje que existe um prédio com 508 metros de altura. Veja:
Taiwan inaugura prédio mais alto do mundo, com 508m de altura
TAIPEI – Uma multidão compareceu à inauguração do edifício Taipei
101, uma construção de 508 metros de altura e 101 andares, que abrigam
escritórios, um shopping e um observatório.
A construção custou US$ 1,7 bilhão e os administradores do Taipei
101 pretendem alugar metade das salas de escritório do edifício até o fim
do ano.
O Taipei 101 supera as Torre Petrona, de Kuala
Lumpur, na Malásia. As torres, que têm 452 metros de altura, eram
tidas como o edifício mais alto do mundo.
No entanto, há controvérsias quanto ao fato do Taipei 101 ser de
fato a construção mais alta do mundo.
No mês passado, o Conselho de Edifícios Altos e Habitats Urbanos
disse que a construção de Taiwan não havia atendido a todos os prérequisitos para ser considerado o mais alto prédio do mundo.
Ron Klemencic, o presidente da organização, diz que, para que um
edifício pleiteie essa posição, é preciso que primeiro seja ocupado e
esteja em uso.
Fonte:
http://www.nihonline.com.br/news/news_mundo/novembro/md151103.asp,
consulta em 27.02.2007, às 16:30 hs.
http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/story/2003/11/031114_edificiobg.
shtml, consulta em 27.02.2007 às 16:30 hs.
E, ao que parece, a corrida pelo prédio mais alto do mundo não
acabou, pois em Xangai, na China, o prédio do Centro Financeiro Mundial,
está em construção, e, segundo seus construtores, irá ocupar o primeiro
lugar.
Já sabemos que, você leitor, deve estar intrigado com relação ao
título desse estudo. Correto, deixamos de propósito para o final.
Gostaríamos que voltasse lá no início, quando colocamos os textos
bíblicos; observe bem o que fizemos de destaque neles. Notou que há
versículos falando da descendência dos filhos de Noé onde está dito que,
em cada uma delas, já se falava segundo suas línguas (Gn 10,4.20.31)?
Então, como explicar que depois disso, no episódio da torre de Babel, se
fala que a partir dele é que os homens passaram a ter várias línguas? A
descendência de Cam (Gn 10,10) é que foi habitar essa região, mas também
ela está entre os que anteriormente já falavam várias línguas (Gn 10,20).
Como ficamos diante disso? Esperamos que com isso tenhamos lhe respondido
a questão do “carro na frente dos bois”.
Sodoma e Gomorra
Quem lê o Antigo Testamento, sem a viseira imposta pela teologia
tradicional, certamente verá que foram atribuídos a Deus comportamentos
típicos de nós, os seres humanos, como ira, raiva e vingança. Somente uma
pessoa completamente bitolada, ou bem encabrestada por sua liderança
religiosa, poderá admitir que tais sentimentos inferiores, próprios de
seres atrasados, possam igualmente possuí-los a divindade. Curioso é que
sempre nos afirmam que “Deus é amor”, inclusive, é uma expressão bíblica
(1Jo 4,8.16); então como lhe atribuir coisas desse nível?
Queremos que nosso leitor veja isso, por si mesmo, no assunto que
iremos abordar agora.
Embora, provavelmente, todos nós conheçamos a história onde,
segundo os autores bíblicos, Deus, por castigo, destrói as cidades de
Sodoma e Gomorra, vale a pena acompanhar a narração bíblica. Para isso
iremos transcrever alguns trechos bíblicos, em relação aos quais
teceremos os nossos comentários, esperando que você, caro leitor, possa
também ver quanta coisa absurda há neles.
Gn 13,13: “Ora, os homens de Sodoma eram maus e grandes pecadores contra
o Senhor”.
Em outras versões bíblicas ao invés de “homens” encontramos que
foram os “habitantes”, o que amplia sobremaneira os “culpados”, pois
assim estariam incluídas as mulheres e, obviamente, também as crianças e,
como não há nenhuma exclusão, pasmem, até mesmo os bebês de colo. Ao que
nos parece, os tradutores deveriam definir quem eram, na verdade, os
criminosos e pecadores, para que se estabeleça a justiça. Como tal
castigo atingiu gente inocente, então o que foi dito sobre Deus está
furado? Veja: “Tu, porém, és justo, e governas todas as coisas com
justiça. Consideras incompatível com o teu poder condenar alguém que não
mereça castigo” (Sb 12,15).
Chamamos sua especial atenção quanto ao nome da cidade, uma vez
que aqui se atribuem tais coisas apenas aos que moravam em Sodoma, mas,
como veremos mais adiante, os habitantes de outras cidades também foram
castigados. A pergunta é: foram castigados mesmo não sendo criminosos e
pecadores? É desnecessário repetir o que, por último, dissemos no
parágrafo anterior.
Sobre essa cidade nos informam: “Sodoma – a principal das cinco
cidades da planície, cuja fertilidade rivalizava com a do Egito, situada
perto do Jordão e do Mar Morto (Gn 13,10), e tristemente célebre por suas
iniqüidades (Gn 13,13; 18,20; Is 3,9; Lm 4,6)”. (Dicionário Prático,
Barsa, p. 257).
Gn 14,10: “Ora, o vale de Sidim estava cheio de poços de betume;...”.
Betume, segundo o dicionário Houaiss é: “mistura, escura e
viscosa, de hidrocarbonetos pesados com outros compostos oxigenados,
nitrogenados e sulfurados; usado como impermeabilizante, na pavimentação
de estradas, na fabricação de borrachas, tintas etc.; asfalto, pez
mineral”. Acreditamos que esse material é inflamável, o que poderia
ocasionar um grande incêndio nessa região, desde que se manifestassem as
condições necessárias para que ele pudesse ocorrer.
Gn 18,20-21: “Disse mais o Senhor: Porquanto o clamor de Sodoma e Gomorra
se tem multiplicado, e porquanto o seu pecado se tem agravado muito,
descerei agora, e verei se em tudo têm praticado segundo o seu clamor,
que a mim tem chegado; e se não, sabê-lo-ei”.
Os tradutores da Bíblia de Jerusalém, afirmam que “O Javista
recolheu e transformou uma velha lenda sobre a destruição de Sodoma, na
qual intervêm três personagens divinas”. (p. 56). Então, por que ainda se
faz de tudo para que os fiéis acreditem que tudo isso foi fato
verdadeiro?
Aqui já nos aparece a cidade de Gomorra, sem que se tivesse
afirmado nada sobre ela. É muito interessante que Deus, apesar de ser
onisciente, não tivesse conhecimento daquilo que ocorria nessas duas
cidades, precisando “descer” para ver pessoalmente. Mas e como fica a
passagem que afirma que Deus contempla e vê todos os homens e discerne
todos os seus atos (Sl 33,13-15)? Não bastasse essa, ainda temos uma
outra afirmando categoricamente que “o espírito do Senhor enche o
universo, dá consistência a todas as coisas e tem conhecimento de tudo o
que se diz” (Sb 1,7), demonstrando que nada acontece sem que Deus o
saiba.
Por outro lado, se entendermos clamor como reclamação ou queixa,
fica-nos a interrogação: quem o estaria fazendo? Seriam os justos que
viviam naquelas cidades? Foram as mulheres? Quem, afinal, não estava
concordando com os crimes e pecados cometidos pelos que nelas moravam?
Certamente quem fez isso tinha comportamento exemplar; mas, mesmo assim,
mereciam ser mortos junto com eles?
Gn 18,26-32: “Então disse o Senhor: Se eu achar em Sodoma cinqüenta
justos dentro da cidade, pouparei o lugar todo por causa deles. ... Disse
ainda Abraão: Ora, não se ire o Senhor, pois só mais esta vez falarei. Se
porventura se acharem ali dez? Ainda assentiu o Senhor: Por causa dos dez
não a destruirei”.
Depois de Deus ter baixado à Terra e ver o que estava acontecendo,
decidiu, literalmente, riscar do mapa a cidade de Sodoma. Uai, cadê
Gomorra! Deus, apesar da dúvida, se devia ou não contar a Abraão, resolve
expor-lhe o Seu “plano maligno”. Ao saber do plano, imediatamente o
patriarca toma a defesa da cidade, e, de certa forma, repreende a Deus ao
dizer: “Longe de fazeres tal coisa: fazer morrer o justo com o pecador,
de modo que o justo seja tratado como o pecador”! Longe de ti! Não fará
justiça o juiz de toda a terra? (Gn 18,25). O fato é tão absurdo que até
mesmo foi reconhecido pelos tradutores da Bíblia de Jerusalém, que
explicam: “Há mais injustiça em condenar alguns inocentes do que em
poupar uma multidão de culpados”. (p. 57).
A passagem citada é o momento em que Abraão defende os justos da
cidade, conseguindo de Deus uma promessa que se nela fosse achado
cinqüenta justos Ele não a destruiria. Abraão pechinchando, consegue que
Deus abaixe a dez o número dos justos, a fim de poupar todos os
habitantes de Sodoma do “riscamento” do mapa. Foi um cara ousado, não é
mesmo? Mas ficamos a pensar... e se Abraão resolvesse perguntar a Deus,
deixando-O numa situação difícil: destruirá mais três cidades – Zeboim,
Adma e Gomorra - por conta do pecado de Sodoma?
Gn 19,1-13: “À tarde chegaram os dois anjos a Sodoma. Ló estava sentado à
porta de Sodoma e, vendo-os, levantou-se para os receber; prostrou-se com
o rosto em terra, e disse: Eis agora, meus senhores, entrai, peço-vos, em
casa de vosso servo, e passai nela a noite, e lavai os pés; de madrugada
vos levantareis e ireis vosso caminho. Responderam eles: Não; antes na
praça passaremos a noite. Entretanto, Ló insistiu muito com eles, pelo
que foram com ele e entraram em sua casa; e ele lhes deu um banquete,
assando-lhes pães ázimos, e eles comeram. Mas antes que se deitassem,
cercaram a casa os homens da cidade, isto é, os homens de Sodoma, tanto
os moços como os velhos, sim, todo o povo de todos os lados; e, chamando
a Ló, perguntaram-lhe: Onde estão os homens que entraram esta noite em
tua casa? Traze-os cá fora a nós, para que os conheçamos. Então Ló saiulhes à porta, fechando-a atrás de si, e disse: Meus irmãos, rogo-vos que
não procedais tão perversamente; eis aqui, tenho duas filhas que ainda
não conheceram varão; eu vo-las trarei para fora, e lhes fareis como bem
vos parecer: somente nada façais a estes homens, porquanto entraram
debaixo da sombra do meu telhado. Eles, porém, disseram: Sai daí.
Disseram mais: Esse indivíduo, como estrangeiro veio aqui habitar, e quer
se arvorar em juiz! Agora te faremos mais mal a ti do que a eles. E
arremessaram-se sobre o homem, isto é, sobre Ló, e aproximavam-se para
arrombar a porta. Aqueles homens, porém, estendendo as mãos, fizeram Ló
entrar para dentro da casa, e fecharam a porta; e feriram de cegueira os
que estavam do lado de fora, tanto pequenos como grandes, de maneira que
cansaram de procurar a porta. Então disseram os homens a Ló: Tens mais
alguém aqui? Teu genro, e teus filhos, e tuas filhas, e todos quantos
tens na cidade, tira-os para fora deste lugar; porque nós vamos destruir
este lugar, porquanto o seu clamor se tem avolumado diante do Senhor, e o
Senhor nos enviou a destruí-lo”.
Muito estranha essa história de dois anjos, que acompanharam Deus
em sua descida do céu, serem recebidos por Ló, que, após insistir, os
convence a pernoitar em sua casa. Só que os homens de Sodoma vão à casa
de Ló exigir que os entregue para que eles os “conhecessem”. Conhecer
aqui é um eufemismo empregado para esconder que os homens de Sodoma
queriam, suas intenções eram ter relações sexuais com esses dois anjos.
Mas será que seres carnais conseguiriam praticar um ato sexual com os
anjos, que são seres espirituais? Meu Deus!
Diante dessa situação, qual foi a atitude de Ló? Bom, para evitar
tal perversidade para com os anjos, esse “bondoso” pai oferece suas duas
filhas, ainda virgens, aos “sedentos” homens, para que fizessem com elas
o que quisessem. Será que algum pai faria isso para com suas filhas?
Entretanto, como esses anjos sabem se defender, o fazem ferindo de
cegueira todos aqueles homens, e, ainda não satisfeitos, dizem a Ló, que
irão destruir toda a cidade, como se não tivessem ido para lá, justamente
para fazer isso. Coitados dos que não estavam nessa torpe empreitada...
Seriam mortos por algo que não fizeram. Que justiça!... E olhem a
incoerência: a vingança tinha o objetivo de destruir “este lugar”, ou
seja, Sodoma e não toda a região como relatam ter acontecido.
Gn 19,18-25: “Respondeu-lhe Ló: Ah, assim não, meu Senhor! Eis que agora
o teu servo tem achado graça aos teus olhos, e tens engrandecido a tua
misericórdia que a mim me fizeste, salvando-me a vida; mas eu não posso
escapar-me para o monte; não seja caso me apanhe antes este mal, e eu
morra. Eis ali perto aquela cidade, para a qual eu posso fugir, e é
pequena. Permite que eu me escape para lá (porventura não é pequena?), e
viverá a minha alma. Disse-lhe: Quanto a isso também te hei atendido,
para não subverter a cidade de que acabas de falar. Apressa-te, escapa-te
para lá; porque nada poderei fazer enquanto não tiveres ali chegado. Por
isso se chamou o nome da cidade Zoar. Tinha saído o sol sobre a terra,
quando Ló entrou em Zoar. Então o Senhor, da sua parte, fez chover do céu
enxofre e fogo sobre Sodoma e Gomorra. E subverteu aquelas cidades e toda
a planície, e todos os moradores das cidades, e o que nascia da terra”.
Curioso é que o anjo poupou da destruição a cidade de Zoar,
porquanto Ló foi para lá, então por que não fez o mesmo com Sodoma porque
ele morava lá, não é estranho isso? “Fez chover do céu enxofre e fogo”
coisas que nos lembram algum fenômeno de ordem natural.
E, pior ainda do que pensávamos, não só Gomorra, mas também outras
cidades foram destruídas, sem que fossem citadas como pervertidas, coisa
que, pelas narrativas, só se atribui a Sodoma; que injustiça!
Encontramos a seguinte explicação para o versículo 24:
É provável que Deus se tenha servido de algum cataclisma natural
para castigar a cidade pecadora. São freqüentes nessas zonas, isto é, na
região meridional do mar Morto. As cidades teriam sido submergidas no
mar, ao sul do mesmo, de acordo com os últimos dados dos trabalhos
arqueológicos, em execução ainda atualmente no fundo marítimo. (Bíblia
Paulinas, p. 42).
O que não entendemos é que, apesar de admitirem que tal fato foi
um cataclisma natural, mesmo assim pregam que a destruição daquela região
aconteceu por um “milagre” divino. E em relação ao enxofre e fogo,
esclarecem-nos: “Depósitos de enxofre e asfalto (ou betume, cf. 14,10)
têm sido encontrados naquela região. Possivelmente ocorreu um terremoto e
relâmpagos provocaram a ignição dos gases liberados, provocando uma chuva
de fogo e fumaça”. (Bíblia Anotada, p. 31). Nessa explicação também
admitem a possibilidade de ter ocorrido algum fenômeno de ordem natural.
Gn 19,26: “Mas a mulher de Ló olhou para trás e ficou convertida em uma
estátua de sal”.
Quando lemos esse versículo, instintivamente, lembramo-nos de um
mágico, num palco de circo, fazendo suas mágicas para divertir o povo.
Como é possível acreditar numa história dessas? Daí é que percebemos
quanto é o atraso do ser humano na questão de compreender a divindade.
Esclarecem-nos os tradutores bíblicos, sobre esse passo:
Explicação popular de uma rocha de forma caprichosa ou de um bloco
salino. (Bíblia de Jerusalém, p. 58).
Explicação popular sobre a origem de alguma rocha com forma humana,
coberta de sal, fato comum na região. É a punição pela desobediência e
indecisão da mulher (19,17). (Bíblia Vozes, p. 46).
Saga etiológica: havia na região uma formação salina que, vista de
determinado ponto, se assemelhava a uma mulher. O povo a chamava ‘mulher
de Ló’ e contava sua história temerosa. Olhou para trás com nostalgia ou
curiosidade: sua figura petrificada passou à nossa cultura como símbolo
de nostalgia covarde do passado, uma nostalgia que paralisa. Sb 10,7.
(Bíblia do Peregrino, p. 42).
O interessante é que, apesar de não concordarem com a “mágica”
divina, ao transformar a mulher de Ló numa estátua de sal, mesmo assim,
usam argumentos teológicos retrógrados, afirmando que é um fato real,
resultado do castigo divino a uma mulher que poderia ter olhado para trás
apenas por sentimento de compaixão com aqueles que estavam, literalmente,
virando cinzas.
Sobre esse assunto, vejamos o que Keller, tem a nos dizer:
Quanto mais nos aproximamos da extremidade sul do mar Morto, mais
deserta e selvagem se torna a região e mais sinistro e impressionante é o
cenário das montanhas. Um eterno silêncio paira nos montes, cujas
vertentes escalavradas pendem a prumo sobre o mar, onde se reflete sua
brancura cristalina. A inaudita catástrofe deixou seu selo indelével de
tristeza e desolação naquelas paragens. Raramente passa por algum
daqueles vales fundos e escarpados um grupo de nômades a caminho do
interior.
Onde terminam as águas pesadas e oleosas, ao sul, termina também,
bruscamente, o impressionante cenário de rochedos, dando lugar a uma
região pantanosa de água salgada. O solo avermelhado é riscado por
inúmeros ribeiros, perigosos para o viajante incauto. Essa baixada
estende-se a grande distância para o sul até o deserto vale de Araba, que
chega até o mar Vermelho.
A oeste da costa sul, na direção do país do meio-dia bíblico, o
Neguev, estende-se um espinhaço de quarenta e cinco metros de altura e
quinze quilômetros de comprimento na direção norte-sul. O sol, batendo
nas suas encostas, produz reflexos de diamante. É um estranho fenômeno da
natureza. A maior parte dessa pequena serra é constituída de puros
cristais de sal. Os árabes chamam-lhe Djebel Usdum, nome antiqüíssimo em
que está contida a palavra "Sodoma". A chuva desloca numerosos blocos de
sal que rolam até a base. Esses blocos têm formas caprichosas e alguns
deles são eretos como estátuas. Às vezes em seus contornos a gente pensa
distinguir, de repente, formas humanas.
As estranhas estátuas de sal trazem logo à lembrança a história da
Bíblia sobre a mulher de Lot, que foi transformada em estátua de sal. E
tudo o que está próximo ao mar salgado ainda hoje se cobre em pouco tempo
com uma crosta de sal. (KELLER, 2000, p. 92).
Então, Keller confirma ser uma questão não real, ligada à
superstição ou crendice popular que fez de blocos de sal, com forma
semelhante a um ser humano, uma mulher verdadeira. Nada como a ciência
para derrubar mitos!
Gn 19,27-28: “E Abraão levantou-se de madrugada, e foi ao lugar onde
estivera em pé do Senhor; e, contemplando Sodoma e Gomorra e toda a terra
da planície, viu que subia da terra fumaça como a de uma fornalha”.
Algum fenômeno natural produziu a fumaça que subia como a de uma
fornalha. Essa comparação lembra-nos um vulcão em erupção, ou coisa bem
próxima disso. E aqui temos a comprovação de que toda região foi
destruída, tudo por conta da prevaricação de uma só cidade. Pela Bíblia
de Jerusalém, tivemos conhecimento de que “A história de Sodoma,
destruída pelos pecados de seus habitantes, pode ter sido primitivamente
um paralelo transjordânico da narrativa do dilúvio” (p. 59). Essa
hipótese compromete a realidade da narrativa, não é mesmo?
Antes de terminar essa história, vamos seguir um pouco mais
adiante para vermos como procederam as filhas de Ló que foram salvas,
porquanto não eram criminosas nem pecadoras como os outros habitantes de
Sodoma.
Gn 19,30-38: “E subiu Ló de Zoar, e habitou no monte, e as suas duas
filhas com ele; porque temia habitar em Zoar; e habitou numa caverna, ele
e as suas duas filhas. Então a primogênita disse à menor: Nosso pai é já
velho, e não há varão na terra que entre a nós, segundo o costume de toda
a terra; vem, demos a nosso pai vinho a beber, e deitemo-nos com ele,
para que conservemos a descendência de nosso pai. Deram, pois, a seu pai
vinho a beber naquela noite; e, entrando a primogênita, deitou-se com seu
pai; e não percebeu ele quando ela se deitou, nem quando se levantou. No
dia seguinte disse a primogênita à menor: Eis que eu ontem à noite me
deitei com meu pai; demos-lhe vinho a beber também esta noite; e então,
entrando tu, deita-te com ele, para que conservemos a descendência de
nosso pai. Tornaram, pois, a dar a seu pai vinho a beber também naquela
noite; e, levantando-se a menor, deitou-se com ele; e não percebeu ele
quando ela se deitou, nem quando se levantou. Assim as duas filhas de Ló
conceberam de seu pai. A primogênita deu a luz a um filho, e chamou-lhe
Moabe; este é o pai dos moabitas de hoje. A menor também deu à luz um
filho, e chamou-lhe Ben-Ami; este é o pai dos amonitas de hoje”.
As duas filhas de Ló o embebedam para ter relações sexuais com
ele, cujo resultado foi o de terem ficado grávidas; em virtude disso, ele
tornou tudo confuso, pois ele se tornou em pai e avô ao mesmo tempo dos
filhos nascidos de suas filhas. Mas isso não é proibido por Deus? Ou
seja, o pai ter relações sexuais com as filhas? O pior que não. Não???
Exato! Não é proibido; há várias outras uniões sexuais com parentes que
não são permitidas, menos essa;
vejamos as que estão proibidas:
Lv 18,7-18: “Ninguém tenha relações sexuais com sua mãe. Ela é de seu
pai, e é sua mãe;... ...com a concubina de seu pai;... ...com sua irmã,
seja por parte de pai, seja de mãe, nascida em casa ou fora dela...
...com suas netas,... ...com a filha da concubina de seu pai,... ...com
sua tia paterna,... ...com sua tia materna,... ...com a mulher dele [seu
tio],... ...com sua nora,... ...com sua cunhada,... ...com uma mulher e
com a filha dela,... ...com uma mulher e com a irmã dela,...”.
Destacamos dessa passagem aqueles parentes que não podiam ter
relações sexuais com os demais. É brincadeira, pois não se pode ter
relação sexual com nenhum parente; entretanto, quanto ao próprio pai não
foi proibido. Falha da lei? Mas, sendo ela de origem divina, não pode
haver nenhuma falha... Então, como é que ficamos nessa? Sim, já sabemos,
pois alguém poderá dizer que, em sua Bíblia, o versículo 7 proíbe
relações sexuais com o pai. Sem dúvida que fatalmente se encontrará isso
em algumas traduções; mas corresponderá à realidade do texto? Vejamos as
narrativas, conforme as Bíblias:
Bíblia de Jerusalém: “Não descobrirás a nudez do teu pai, nem a nudez da
tua mãe. É tua mãe, e tu não descobrirás a sua nudez”.
Bíblia Pastoral: “Não tenha relações sexuais com sua mãe. Ela é de seu
pai, e é sua mãe; não tenha relações sexuais com ela”.
Bíblia Vozes: “Não desonrarás teu pai, tendo relações sexuais com tua
mãe. É tua mãe: não terás relações com ela”.
Bíblia do Peregrino: “Não terás relações com tua mãe. Ela é de teu pai e
é tua mãe; não terás relações com ela”.
Bíblia Anotada: “Não descobrirás a nudez de teu pai e de tua mãe: ela é
tua mãe; não lhe descobrirás a nudez”.
Não precisa ser muito inteligente para perceber que o segundo
período é fatal para aqueles que quiseram mudar (ou seria adulterar?) o
sentido do texto. Ainda que considerado, por alguns, como se fosse para
os dois, ou seja, seu pai e sua mãe, vê-se que o texto se refere apenas a
mãe, porquanto, caso fosse em relação aos dois, haveria de ser: São teus
pais (ou é teu pai e é tua mãe) não terá relações sexuais com eles (ou
com seu pai e com sua mãe).
Aqui terminamos de transcrever as passagens bíblicas relacionadas
com o nosso assunto; mas seria interessante, antes de continuar, ver o
que o escritor e historiador hebreu Flávio Josefo (37-103), relata no
livro História dos Hebreus sobre o episódio. Vejamos:
[...] Os assírios para se vingar, voltaram segunda vez sob o
comando de Marfede, de Arioque, de Codologomo e de Tidal, devastaram toda
a Síria, submeteram os descendentes dos gigantes e encontraram nas terras
de Sodoma, onde acamparam no vale que tinha o nome de poços de betume,
por causa dos poços de betume que ali existiam então, mais que depois da
destruição de Sodoma foi mudado num lago que se chama Asfaltite, porque o
betume dele sai continuamente aos borbotões. [...] (JOSEFO, 1990 ,p. 56).
Os povos de Sodoma, cheios de orgulho, por sua abundância e grandes
riquezas, esqueceram-se dos benefícios que tinham recebido de Deus e não
foram menos ímpios para com Ele do que ultrajosos para com os homens.
Odiavam os estrangeiros e chafurdaram-se em prazeres inomináveis. Deus,
irritado por seus crimes, resolveu castigá-los, destruir sua cidade de
tal modo que não restasse o menor vestígio dela, tornando o país tão
estéril que jamais pudesse produzir fruto ou planta alguma. (JOSEFO, 1990
, p. 57)
[...] Deus então lançou do céu, os raios de sua cólera e de sua
vingança contra essa cidade criminosa. Ela foi imediatamente reduzida a
cinzas, com todos os seus habitantes; aquele mesmo fogo destruiu toda a
região vizinha, como que já disse na minha história da guerra dos judeus.
(JOSEFO, 1990 , p. 58).
Eu penso ter mostrado bastante com quantos favores a natureza
embelezou e enriqueceu as cercanias de Jericó; e eu creio dever falar
agora do lago Asfaltite. Sua água é salgada, imprópria para os peixes; é
tão leve que as coisas, mesmo as mais pesadas, não vão ao fundo.
Vespasiano teve a vontade de lá ir e atirou à água, alguns homens que não
sabiam nadar com as mãos atadas às costas. Todos voltaram à tona, como se
alguma força estranha os impelisse de baixo para cima. Não se poderia
assaz admirar de que esse lago mude de cor três vezes por dia, segundo os
diversos aspectos do sol. Ele impele para vários lugares, massas de
betume, negras, que parecem touros sem cabeça e que nadam nas águas. Os
do país, que navegam no lago, vão com barcas recolher esse betume e como
ele é tão extremamente pegajoso, gruda de tal modo que só pode ser
desligado com urina de mulher e com aquele mau sangue de que elas se
desfazem de tempos em tempos. Esse betume não somente serve para
calafetar os navios, mas entra também em vários remédios, próprios para
muitas doenças. O cumprimento desse lago é de quinhentos e oitenta
estádios e ele se estende até Zoara, que está na Arábia. Sua largura é de
cinqüenta estádios.
As terras de Sodoma, vizinhas deste lago e que outrora eram
abundantes não somente em toda espécie de frutos, mas também muito
célebres por suas riquezas e pela beleza e suas cidades, agora só
conserva a imagem espantosa daquele incêndio que a detestável impiedade
de seus habitantes atraiu sobre ela, quando Deus, para castigar seus
crimes, lançou do céu seus raios vingadores, que a reduziram a cinzas.
Ali vemos ainda alguns restos das cinco cidades abomináveis e suas cinzas
malditas produzem frutos por que parecem bons para se comer, mas apenas
nós os apanhamos, reduzem-se logo a pó. Assim, não é somente pela fé que
nos persuadimos desse horrível acontecimento; mas pode-se ainda constatálo com os próprios olhos. (JOSEFO, 1990, p. 629). (grifo nosso).
O que podemos perceber desses relatos de Josefo é que inicialmente
ele dá a entender que a destruição foi somente da cidade de Sodoma, mas
ao final acaba por estender às outras cinco cidades, nisso não está
concorde com a Bíblia que cita apenas duas delas - Sodoma e Gomorra – e
que a cidade de Zoar teria sido poupada. Veja no mapa que colocamos logo
no início a localização delas.
O que de fato aconteceu? A essa altura do campeonato é difícil
saber exatamente o que aconteceu; entretanto, algumas hipóteses são
levantadas. A questão fica apenas em distinguir a que mais se aproxima da
realidade e que seja isenta de fenômenos sobrenaturais como explicação.
Vamos agora, portanto, ver algumas opiniões sobre o episódio.
Sabemos que a sua equipe de tradutores da Bíblia de Jerusalém foi
composta de católicos e protestantes. Ela é, segundo os mais entendidos,
uma das melhores traduções bíblicas, embora isso não implique que ela não
tenha os seus problemas. Vejamos o que dizem sobre Gn 19,25: “O texto
permite situar o cataclismo na região meridional no mar Morto. De fato, o
abaixamento da parte sul do mar Morto é geologicamente recente, e a
região permaneceu instável até a época moderna...” (Bíblia de Jerusalém,
p. 58).
Pelo que entendemos a ocorrência é atribuída a um fenômeno de
ordem natural, sem apelação para algum tipo de “milagre” que veio para
castigar os que habitavam a região.
No Dicionário Bíblico Universal a palavra Sodoma é explicada da
seguinte forma:
Primeira cidade da Pentápole do sul do mar Morto no limite de Canaã
(Gn 10,19)....
Podemos aproximar este relato de uma descoberta arqueológica
recente. Entre 1975 e 1980 foram estudados quatro sítios arqueológicos da
margem sudeste do mar Morto: todos foram destruídos pelo incêndio por
volta da metade do Antigo Bronze, isto é, cerca de 2500 a.C. Não é
impossível que uma lembrança local, ou uma reflexão sobre as ruínas ainda
visíveis, tenha sido incorporada à tradição dos patriarcas que chegaram
mais tarde.
Devido ao fato de Ló ter morado nela, e também por sua proximidade
de Jerusalém, Sodoma é mais freqüentemente mencionada na Bíblia do que as
três outras cidades destruídas (Is 3,9; Ez 16,46; Lm 4,6).
O nome de Sodoma foi transferido para o sudoeste do mar Morto,
designando a montanha de sal do Djebel Usdum, ou Har Sedom, onde os
visitantes reconheciam a estátua de sal da mulher de Ló (Gn 18,26).
(Dicionário Bíblico Universal, p. 763).
Se o local foi destruído em cerca de 2500 a.C., então essa
catástrofe nada tem a ver com a história de Ló, uma vez que o seu tio
Abraão, que o levou junto para Canaã, viveu por volta de 1850 a.C.
(Superinteressante, julho 2002, p. 43). Assim, pode-se perceber que é
realmente uma tradição incorporada à história dos hebreus; por isso, não
corresponde aos fatos que estamos estudando. Pena que não deram alguma
explicação para a ocorrência.
Pela Revista Mistério o assunto é levado à conta de “mistério”,
visto não se saber exatamente o que aconteceu. Mas leiamos o que dizem:
Destruição de Sodoma e Gomorra
Disse, pois, o Senhor: "O clamor de Sodoma e Gomorra aumentou, e o
seu pecado agravou-se extraordinariamente". Fez, pois, o Senhor chover
sobre Sodoma e Gomorra enxofre e fogo do céu; e destruiu essas cidades, e
todo o país em roda, todos os habitantes da cidade, e toda a verdura da
terra. E a mulher de Ló, tendo olhado para trás, ficou convertida numa
estátua de sal. E viu que se elevavam da terra cinzas inflamadas, como o
fumo de uma fornalha (Gn 18.20; 19.24,26,28).
A sinistra força dessa narrativa bíblica tem impressionado
profundamente os ânimos dos homens em todos os tempos. Sodoma e Gomorra
transformaram-se símbolos de vício e iniqüidade, e também sinônimos de
aniquilação completa. Assim, a destruição das cidades de Sodoma e Gomorra
tornou-se uma das mais emblemáticas passagens da Bíblia e um dos mais
conhecidos desastres da história da humanidade. Embora ela seja encarada
por diversos exegetas (intérpretes dos textos bíblicos) como apenas uma
passagem simbólica, há décadas arqueólogos e pesquisadores buscam
indícios ou mesmo provas concretas da existência das cidades gêmeas e,
principalmente, dos motivos que as levaram elas a desaparecer. De acordo
com o livro do Gênesis, ambas foram destruídas por enxofre e fogo. Os
cientistas trabalham com conjeturas. As cidades realmente existiram? Qual
fenômeno seria capaz de varrer as duas do mapa?
O QUE DIZ A CIÊNCIA?
Algumas pistas já foram levantadas na tentativa de esclarecer as
perguntas. No "Quarterly Journal of Engineering Geology", os geólogos
britânicos Graham Harris e Anthony Beardow apresentaram algumas
evidências e teorias a cerca da localização e do trágico destino das
cidades. De acordo com a dupla de pesquisadores, o legendário Vale de
Siddim, berço de Sodoma e Gomorra, situava-se a nordeste da Península de
Lisan, que divide o Mar Morto em duas bacias. Com base em análises do
solo da região, Harris e Beardow chegaram à conclusão de que o Vale de
Siddim foi assolado por um terremoto de grandes proporções. Além de pôr
abaixo as edificações (o abalo teria feito aflorar grandes quantidades de
betume, que incendiou-se, agravando a destruição), liquefez o solo e as
rochas abaixo das cinco cidades que comporiam o Vale. Como conseqüência,
Sodoma e Gomorra perderam-se nas águas da bacia norte do Mar Morto.
O fenômeno apontado pelos geólogos já foi registrado em épocas e
regiões bem distintas. Em 37 a.C, a antiga cidade grega de Helice
desapareceu devido à liquefação, assim como uma extensa área da China,
que desapareceu devido a sismos em 1921. Nos idos de 1950, uma parte de
Valdez, no Alasca, também sucumbiu liquefeita. (Revista Mistério, s/d, p.
18).
Vejamos agora o que o Werner Keller, em E a Bíblia tinha razão...,
disse sobre essa questão:
Só no começo deste século, com as escavações realizadas no resto da
Palestina, foi despertado também o interesse por Sodoma e Gomorra. Os
exploradores dedicaram-se à procura das cidades desaparecidas que nos
tempos bíblicos estariam situados no vale de Sidim.
Na extremidade a sudeste do mar Morto, encontram-se os restos de
uma grande povoação. Esse sítio ainda hoje é chamado Segor. Os
pesquisadores se regozijaram, pois Segor era uma das cinco cidades ricas
do vale de Sidim que se recusaram a pagar tributo aos quatro reis
estrangeiros. Mas as escavações experimentais realizadas trouxeram apenas
decepção. Assim, há dúvidas ainda se Segor é o mesmo sítio citado na
Bíblia.
A verificação das ruínas descobertas revelou tratar-se de restos de
uma cidade que floresceu no princípio da Idade Média. Da antiga Segor do
rei de Bala (Gênese 14.2) e das capitais vizinhas não se encontrou
vestígio. Entretanto, diversos indícios encontrados nos arredores da
Segor medieval sugerem a existência de uma povoação muito densa naquele
país em época muito anterior.
Na costa oriental do mar Morto, estende-se mar adentro, como uma
língua de terra, a península de El-Lisan. Em árabe, "el-Lisan" significa
"a língua". A Bíblia menciona-a expressamente quando se refere à partilha
do país depois da conquista. As fronteiras da tribo de Judá são traçadas
com precisão. Para isso Josué dá uma estranha característica a fim de
indicar os limites do sul: "O seu princípio é desde a ponta do mar
salgado, e desde a língua que ele forma, olhando para o meio-dia" (Josué
15.2).
Uma narrativa romana refere-se a essa língua de terra numa história
que sempre foi injustamente considerada com grande ceticismo. Dois
desertores fugiram para essa península. Os legionários que os perseguiram
procuraram-nos em vão por toda parte. Quando finalmente os avistaram, era
tarde demais. Os desertores já escalavam os altos rochedos da outra
margem... Tinham atravessado o mar a vau!
Evidentemente o mar naquela época era mais raso que hoje.
Invisível, o fundo ali forma uma dobra gigantesca que divide o mar em
duas partes. À direita da península, desce a prumo até quase quatrocentos
metros de profundidade. À esquerda da península, o fundo é
extraordinariamente raso. Medições feitas nos últimos anos acusaram
profundidades de quinze a vinte metros apenas.
Os geólogos tiraram dessas descobertas e observações outra
interpretação, que poderia explicar a causa e fundamento da narrativa
bíblica da aniquilação de Sodoma e Gomorra.
A expedição americana dirigida por Lynch foi a primeira que, em
1848, deu a notícia da grande descida do Jordão em seu breve curso pela
Palestina. O fato de, em sua queda, o leito do rio descer muito abaixo do
nível do mar é, como só pesquisas posteriores comprovaram, um fenômeno
geológico singular. "É possível que haja em algum outro planeta coisa
semelhante ao que ocorre no vale do Jordão; no nosso não existe", escreve
o geólogo George Adam Smith em sua obra A geografia histórica da Terra
Santa. "Nenhuma outra parte não submersa da nossa Terra fica mais de cem
metros abaixo do nível do mar."
O vale do Jordão é apenas parte de uma fenda imensa na crosta da
nossa Terra. Hoje já se conhece sua extensão exata. Começa muitas
centenas de quilômetros ao norte da fronteira da Palestina, nas faldas da
montanha do Tauro, na Ásia Menor. Ao sul, vai desde a costa sul do mar
Morto, atravessa o deserto de Araba até o golfo de Ácaba e só vai
terminar do outro lado do mar Vermelho, na África. Em muitos lugares
dessa imensa depressão há vestígios de antiga atividade vulcânica. Nos
montes da Galiléia, nos planaltos da Jordânia oriental, nas margens do
afluente Jabbok, no golfo de Ácaba, há basalto negro e lava.
Será que Sodoma e Gomorra afundaram quando - acompanhado por
terremotos e erupções vulcânicas - um pedaço do chão do vale ruiu um
pouco mais? E o mar Morto se alongou naquela época em direção ao sul,
como é mostrado (figura 12) no esboço?
A ruptura da terra liberou as forças vulcânicas contidas há muito
tempo nas profundezas da greta. Na parte superior do vale do Jordão,
junto a Basan, erguem-se ainda hoje as crateras de vulcões extintos, e
sobre o terreno calcário há grandes campos de lava e enormes camadas de
basalto. Desde tempos imemoriais, os territórios ao redor dessa depressão
são sujeitos a terremotos. Repetidamente temos notícia deles, e a própria
Bíblia fala a respeito. Como para confirmar a teoria geológica do
desaparecimento de Sodoma e Gomorra, escreve textualmente o sacerdote
fenício Sanchuniathon em sua História antiga redescoberta: "O vale de
Sidimus (1) afundou e se transformou em mar, sempre fumegante e sem
peixe, exemplo de vingança e morte para os ímpios".
[...]
Da mesma forma, a tradição de Sodoma e Gomorra parece ser ainda
mais problemática do que a referente aos camelos de Abraão. Antes de mais
nada, convém frisar que está fora de qualquer cogitação a hipótese
segundo a qual a depressão do rio Jordão teria se originado somente há
uns quatro milênios, pois, conforme as pesquisas mais recentes, a origem
dessa depressão remontaria ao Oligoceno (Terciário, entre o Eoceno e o
Mioceno). Portanto, neste caso é preciso calcular não em milhares, mas
sim milhões de anos. Embora, em tempos posteriores, fosse comprovada uma
atividade vulcânica mais intensa, relacionada com a abertura da depressão
do rio Jordão, mesmo assim chegamos a parar no Plistoceno, encerrado há
uns dez mil anos, e ficamos longe do chamado "período dos patriarcas",
convencionalmente datado no terceiro ou até segundo milênio antes de
Cristo. Ademais, justamente ao sul da península de Lisan, onde
supostamente teria acontecido o ocaso de Sodoma e Gomorra, perdem-se
todos os vestígios de erupções vulcânicas. Em outras palavras, naquela
área as condições geológicas não permitem comprovar uma catástrofe
ocorrida em época geológica bem recente que destruiu cidades e foi
acompanhada por violentas erupções vulcânicas.
Por outro lado, o que se achou a respeito da entrada do mar Morto
na bacia do sul, mais rasa? No decorrer de sua história bastante
movimentada, o mar Morto (e seus antecessores no Plistoceno) estendeu-se,
freqüentemente, além da atual bacia meridional, invadindo o Uadi e 'Arab.
Por vezes, seu nível ficou até cento e noventa metros mais alto do que
hoje. Naqueles tempos, o lago imenso ali represado encheu toda a
depressão do Jordão, desde o Uadi e 'Arab, e subiu até o lago de
Genesaré. Em seguida, esse lago diminuiu, como o atestam nada menos que
vinte e oito antigos terraços nas suas margens, ou, possivelmente, até
secou, e somente depois (presumivelmente, acompanhado por fortes tremores
de terra) houve a formação do mar Morto. Mas igualmente esse
acontecimento ocorreu ainda em fins do Plistoceno, quando, embora o homem
já existisse, ainda não havia cidades. Todavia, há uma vaga possibilidade
de que se teria tratado de experiências vividas naquela região pelo homem
da Idade da Pedra, que, transmitidas de boca em boca, geração após
geração, criaram as tradições das "cidades devastadas" e vieram a dar
origem à tradição em apreço, pois essa tradição parece ser muito antiga,
bem mais antiga do que se supôs até agora. Logo mais, voltaremos ao
assunto. Decerto, houve terremotos no mar Morto em tempos posteriores,
como, por exemplo, o ocorrido em 31 a.C., cujos horrores foram relatados
por Flávio Josefo, bem como o registrado em Qirbet Qumran (local do
achado dos famosos "rolos manuscritos do mar Morto"), onde persistem os
vestígios da destruição então causada. Contudo, em parte alguma há
indícios de uma catástrofe que, no início do segundo milênio antes da
nossa era, teria aniquilado cidades inteiras. Aliás, nomes de locais
geográficos, como Bahr el Lat ("mar de Lot"), termo árabe para o mar
Morto, Djebel Usdum ("monte de Sodoma") e Zoar, não precisam
necessariamente ser oriundos de uma tradição autêntica, independente,
imediata, primária e paralela à Bíblia. É bem possível que,
posteriormente e em aditamento aos relatos bíblicos, esses locais
recebessem seus nomes (no caso, poderia tratar-se de uma mera "tradição
secundária"). Situação análoga apresenta-se com referência ao "canal de
José" (em árabe: Bahr Yusuf), em Fayum, no Egito, a ser mencionado no
próximo capítulo. Aliás, o "José egípcio" da Bíblia existe também na
tradição islâmica, e provavelmente o nome do respectivo curso de água
poderia (ou deveria) estar relacionado com ele.
Foi apenas recentemente que a escavação do Tell el-Mardikh, na
Síria setentrional (ao sul de Alepo), conduzida pelo cientista italiano
Giovanni Pettinato, causou sensação. Ali, Pettinato achou Ebla, uma
cidade do terceiro milênio antes da era cristã, e a esse respeito foram
três os fatos que causaram espécie. Primeiro, em tempos pré-históricos,
existia ali uma civilização avançada, com uma estrutura social altamente
diferenciada para a época; segundo, Ebla possuía um rico arquivo de
tabuinhas de barro. Como costuma acontecer com todos esses arquivos, sua
descoberta promete uma série de conhecimentos novos, quando, por outro
lado, tais noções recém-adquiridas bem poderiam abalar algumas das
doutrinas até então consideradas certas e garantidas. Recentemente, um
colega alemão do Prof. Pettinato comentou: "Depois de estudados e
explorados os textos, provavelmente poderemos esquecer os resultados
obtidos em todo um século de pesquisas do antigo Oriente". Contudo, a
terceira e, no caso, a mais importante sensação causada pela descoberta
do Prof. Pettinato prende-se ao fato de os textos de Ebla conterem nomes
que nos são familiares pela leitura da Bíblia e, assim, aparecem no
terceiro milênio antes de Cristo! Ali são mencionados tanto o nome de
Abraão quanto os nomes das cidades pecadoras de Sodoma e Gomorra,
aniquiladas pelo fogo, de Adma e Zeboim, no mar Morto. Aliás, quanto a
isso, há um certo ceticismo entre alguns colegas do Prof. Pettinato. Será
que ele interpretou corretamente aqueles textos? Sem dúvida, pois como já
mencionamos em outro trecho, os nomes dos patriarcas foram encontrados
também em outros locais. Mas o que se deve pensar do fato de os nomes
Sodoma e Gomorra constarem de um arquivo encontrado na Síria, terceiro
milênio antes de Cristo? Assim, será que essas cidades existiram de fato?
Ou será que sua tradição remonta a tempos remotos, a ponto de antecederem
o início convencionado para o "tempo dos patriarcas"? Decerto, ainda
levará muito tempo para se encontrar respostas a todas essas perguntas.
Em geral, o cientista não costuma ir à cata de sensações, e falta muito
para reunirmos as condições necessárias para avaliar, sem sombra de
dúvida, quanto de realmente sensacional há na arqueologia bíblica do Tell
el-Mardikh, descontado todo sensacionalismo.
___________
(1) Isto é, Sidim.
(KELLER, 2000, pp. 83-95).
Richard Henning, autor do livro Os grandes Enigmas do Universo,
também não deixou de falar sobre esse assunto. Leiamo-lo:
SODOMA E GOMORRA
“ENTÃO, o Eterno fez cair do céu fogo e enxofre sobre Sodoma e
Gomorra. Destruiu estas cidades, a planície e aniquilou todos os
habitantes, bem como as plantas... E eis que da terra se elevou uma
coluna de fumo, como duma fornalha”.
Os investigadores já procuraram muitas vezes desvendar o mistério
desta catástrofe, que teve por teatro a primitiva Palestina. Com efeito,
os tremores de terra ou as erupções vulcânicas nunca são acompanhadas por
chuvas de fogo ou de enxofre. No entanto, trata-se dum acontecimento
histórico, pois até os próprios historiadores pagãos o mencionam. Assim,
Estrabão escreveu no ano 20 d.C.: “São dignas de crédito as tradições
chegadas até nós através dos habitantes, as quais asseguram ter havido
outrora treze prósperas cidades nesta região; afirma-se até que as
muralhas de Sodoma, a cidade principal, ainda existem e que medem
sessenta estádios de perímetro. O lago saiu do leito em virtude dum
grande tremor de terra, tendo vomitado betume em ebulição misturado com
água sulfurosa, ao mesmo tempo que as rochas eram calcinadas pelas chamas
que brotaram do solo. As cidades afundaram-se parcialmente nas entranhas
da Terra ou foram abandonadas pelos habitantes em pânico”. A descrição de
Estrabão está, de fato, muito mais próxima da realidade do que a contida
no Gênese, como veremos dentro em pouco. Todavia, Estrabão não foi o
único escritor grego a conhecer a catástrofe, porquanto Ptolomeu não a
ignorava, pois chama ao mar Morto Sodomorum Lacus, nem Fílon, que também
se refere ao assunto.
Entre os Romanos, Tácito evoca igualmente nas suas Histórias a
destruição de Sodoma: «Não longe do mar Morto estendiam-se planícies que
foram outrora muito férteis e onde se erguiam grandes cidades. Contudo,
diz-se que estas foram destruídas pelo raio... Quanto a mim, admito
perfeitamente que algumas cidades célebres tenham sido devoradas pelo
fogo do céu.» O historiador Flávio José menciona por sua vez a
catástrofe.
Finalmente, o próprio Alcorão alude ao acontecimento no seguinte
versículo: «Revolveu as cidades destruídas e o que elas recobriam
recobriu-as por sua vez.»
Não se trata, pois, duma lenda inventada duma ponta à outra.
A natureza exata desta catástrofe e a região da Palestina em que ocorreu
é que nos ocuparão a seguir na seqüência deste capítulo.
Uma passagem da Bíblia relativa a uma época anterior à destruição
das cidades assinala que os cinco «reis» de Sodoma, Gomorra, Hadama,
Seboim e Zoer se tinham reunido no «vale de Siddim, que é atualmente o
mar Salgado», para ali conduzirem em comum uma guerra. Muito
provavelmente, este «mar Salgado» é o mar Morto, cujo teor em sal é
extremamente elevado. Além disso, os apócrifos precisam que «caiu fogo»
sobre as cinco cidades referidas e que o local onde cada uma delas se
erguia ficou totalmente devastado «e ainda fumega em sinal de opróbrio».
Sodoma, Gomorra, Seboim e Hadama foram destruídas e só a «pequena» cidade
de Zoer, onde Loth se teria refugiado, foi poupada.
Pode, pois, perguntar-se se realmente houve quatro cidades que
foram riscadas do mapa. Sodoma era sem dúvida a mais importante. Aliás, é
só dela que trataremos neste capítulo. Com efeito, não é certo que
Gomorra, citada sempre ao mesmo tempo que Sodoma, fosse o nome duma
cidade, mas tão-somente o duma planície vizinha, igualmente submersa,
tanto mais que o significado etimológico da palavra é o de «planície que
as águas tornaram a cobrir”.
Desde já se pode admitir que a causa imediata da catástrofe foi um
tremor de terra. Mas que pensar a respeito da chuva de fogo e de enxofre?
A primeira idéia que vem à cabeça é que tal chuva se deveria a um
vulcão que teria entrado em erupção. Com efeito, as regiões vizinhas do
vale do Jordão e do mar Morto abundam em vulcões extintos, um dos quais,
e não dos menos célebres, é o monte Tabor. No entanto, a verdade é que
todos esses vulcões se encontram extintos há dezenas e dezenas de
milhares de anos. Que um deles tenha acordado bruscamente no início dos
tempos históricos é teoricamente possível. No entanto, um acontecimento
geológico tão recente devia ter deixado vestígios fáceis de serem
detectados pelos geólogos. Com efeito, tanto a lava como os produtos da
erupção deveriam subsistir se o fenômeno tivesse ocorrido no início do
segundo milênio antes de Jesus Cristo. Ora, a verdade é que em toda a
região não aparece o menor vestígio, pelo que se pode afirmar com
probabilidade mínima de erro que nenhum fenômeno vulcânico se verificou
na Palestina nos últimos quatro mil anos.
A fim de resolver esta contradição entre os textos e os dados
fornecidos pela geologia, Gunkel e Edouard Meyer admitiram que a «lenda»
da destruição das duas cidades teria provindo da Arábia, donde teria
passado para a Palestina. Mas esta hipótese não conduz a coisa alguma. A
tradição bíblica menciona com demasiada precisão a “mar Salgado”, de que
faz ponto de referência da sua narrativa. Além disso, não existe na
Arábia nenhum vulcão em atividade. Se é fato que, em 1256 e em 1276, se
verificaram erupções isoladas perto de Medina, em 1824 na ilha Saddle, em
1834 no dejbel Tair, etc., a sua amplitude foi sempre limitada, não
havendo prova alguma de que, desde as tempos históricos, se tivesse
produzido na Arábia uma catástrofe vulcânica importante.
Blackenhorn é que resolveu o enigma graças às pesquisas que
excetuou no local: o mar Morto ter-se-ia formado parcialmente no Período
Terciário, a seguir ao afundamento da «fosso leste africano». A crosta
terrestre aluiu então desde o lago Niassa até à Síria, dando origem a
numerosos vulcões, aos grandes lagos africanos, ao mar Vermelho, ao mar
Morto e ao lago Tiberíades. A princípio, este constituía um todo com o
mar Morto, mas naquele clima desértico e devido à evaporação constante
das águas, a lago e o mar acabaram por se separar, enquanto ia aumentando
o seu teor em sal.
O mar Morto é, com o mar Cáspio e o lago Baikal, a mais profunda
depressão continental da crosta terrestre. Com efeito, a fundo do mar
Morto encontra-se a setecentos e noventa e três metros abaixo do nível do
mar Mediterrâneo e a sua superfície está ainda a trezentos e noventa e
quatro metros abaixo do nível mediterrânico devido à fortíssima
evaporação das suas águas. Atualmente, o mar Morto mede setenta e oito
quilômetros de comprimento, dezessete de largura e trezentos e noventa e
nove metros de profundidade. Como nenhum grande rio, à exceção do Jordão,
se lança nas suas águas, o seu teor em sal é seis vezes mais forte da que
o dos oceanos. Por conseqüência, nenhum peixe ali pode viver ou, o que é
o mesmo, não se encontram pescadores ao longo das suas margens. Nenhum
barco o percorre, podendo pois dizer-se que o seu nome de mar Morto está
plenamente justificado.
Mas o mar Morto, que nasceu do afundamento do solo durante o
Período Terciário, era então menos extenso do que nos nossos dias. Nessa
época, terminava por alturas da actual península de El-Lisan, situada no
seu litoral sudeste. Este primitivo mar Morto atingia cinco sextos
daquele que hoje conhecemos, sendo aquela a parte mais profunda da
depressão. Quanta à parte meridional, situada abaixa da península de ElLisan, é de formação muito mais recente, variando a sua profundidade
entre um e seis metros. Por conseqüência, esta região só ficou submersa
muito mais tarde. No início dos tempos históricos ainda era habitada e
nela existiam várias povoações.
Este afundamento foi obviamente um fenômeno de origem sísmica e foi
ele que deve ter destruído Sodoma e Gomorra.
A este respeito, Blanckenhorn escreveu o seguinte: «O solo da parte
meridional do atual mar Morto aluiu bruscamente. Abriram-se fendas que
engoliram cidades inteiras ou que as fizeram positivamente dar voltas nas
profundezas da Terra, de tal maneira que o mar Morto acabou por cobrir
toda a região... Não se pode considerar como hipótese séria a erupção dum
vulcão situado debaixo dos pés dos Sodomitas, nem a de uma inundação de
lava incandescente.»
Todavia, um simples sismo, por mais violento que fosse, ao provocar
o aluimento de uma região inteira, logo a seguir coberta pelas águas, não
explica a narração bíblica no que ela tem de mais notável - a chuva de
fogo e de enxofre. Mas a verdade é que este problema está hoje igualmente
explicado.
Com efeito, a região do mar Morto é rica em fontes termais, tanto
sulfurosas como carbónicas, bem como em poços de betume e de asfalto, que
são outros tantos testemunhos da intensa atividade vulcânica do subsolo
da região. Assim, na margem meridional do mar Morto existe uma nascente
freqüentemente visitada pelos turistas em virtude da intensidade do seu
cheiro a enxofre, afirmando uma antiga tradição popular, aliás pouco
digna de crédito, que, em virtude do odor fétido da referida nascente, as
aves evitam sobrevoar o mar Morto.
Estas verificações levam-nos a dar mais atenção à descrição de
Estrabão do que à narração bíblica. A verdade é que não caiu sobre Sodoma
qualquer «chuva» de fogo e de enxofre. As fendas do solo é que deixaram
escapar toda a espécie de gases, os quais não tardaram a inflamar-se,
provocando as chamas e o fumo que envolveram toda a região. «E eis que da
terra se elevou fumo como duma fornalha», reconhece a Bíblia, o que é sem
dúvida exato.
Em Julho de 1927, esta interpretação recebeu uma brilhante
confirmação. Ao norte do mar Morto, perto de Zerka, sentiu-se de repente
um forte abalo, e uma nuvem de fumo, semelhante àquela a que a Bíblia se
refere, elevou-se na atmosfera. Os gases brotaram do solo exatamente como
o deviam ter feito há uns quatro mil anos, isto é, inflamaram-se quase a
seguir, ao mesmo tempo que por toda a atmosfera se espalhava um forte
cheiro a enxofre.
Em 1929, o padre Mallon e o arqueólogo René Neuville, ao efetuarem
pesquisas por conta do Instituto Bíblico do Vaticano, puseram a
descoberto, a seis quilômetros da margem nordeste do mar Morto, uma
cidade antiga datando da Idade do Bronze e que parecia ter sido teatro
duma alta civilização. Entre as descobertas feitas pelos dois
pesquisadores contavam-se casas, vastos depósitos de trigo, jóias
artisticamente trabalhadas e incrustadas de pérolas, nácar e pedras
preciosas, bem como fragmentos duma escrita até hoje desconhecida. Esta
cidade devia ter sido destruída por um gigantesco incêndio por alturas do
ano 2000 a.C. Como se ignorava tudo a respeito de qualquer cidade situada
naquele lugar da antiga Palestina, veio imediatamente à idéia de que se
trataria das ruínas de Sodoma. No entanto, a hipótese não podia ser
mantida, pois, se atendermos à cronologia, a destruição de Sodoma devia
ter sido mais recente do que a da cidade descoberta em Tel Gessul, como
os próprios católicos admitiram pouco depois. Com efeito, a Bíblia chama
expressamente a atenção para o fato de que o local onde outrora se
encontrava Sodoma e Gomorra passou a estar ocupado pelo mar Salgado.
Portanto, na margem nordeste do mar Morto esteve localizada uma cidade
cujo nome não chegou até nós, embora se tenha de reconhecer, por outro
lado, que Sodoma e Gomorra só podiam situar-se na região atualmente
coberta pela zona meridional daquele mar. Com efeito, está hoje provado
que Zoer, onde Loth se refugiou, se erguia a sudeste do mar Morto, num
local que Flávio José ainda conheceu. Necessariamente, Zoer localizar-seia na vizinhança imediata de Sodoma, que, por conseqüência, só poderá ser
procurada na zona sul do referido mar.
A tradição bíblica fornece ainda outro argumento em apoio desta
teoria: ao fugir da catástrofe, a mulher de Loth voltou-se, desobedecendo
à proibição de Deus, tendo sido punida, e por isso ficou transformada
numa estátua de sal. A explicação deste episódio parece fácil. Com
efeito, a margem meridional do mar Morto está cheia de rochas de sal com
as formas mais bizarras e variáveis, devido à influência do vento e dos
fenômenos atmosféricos. Com um pouco de imaginação, muitos desses blocos
podem assemelhar-se a silhuetas humanas ou a animais, e por isso um
deles, que sem dúvida se parecia com uma estátua de formas femininas,
serviu de base para a história da mulher de Loth. Ainda hoje os Árabes, a
quem nunca faltou imaginação, designam determinado rochedo de sal por
djebel Usdum - Usdum em árabe significa Sodoma - e consideram-no como
sendo «a mulher de Loth». Seja qual for a verdadeira explicação, a
verdade é que este pormenor da tradição bíblica mostra que só está em
causa a margem meridional do mar Morto e não a região nordeste. Neste
caso, a ciência e a história estão de acordo, pelo que o problema de
Sodoma e Gomorra pode considerar-se solucionado.
Para terminar este assunto, assinale-se ainda com as devidas
reservas uma outra hipótese, aliás inverificável. Se realmente o
desaparecimento de Sodoma e Gomorra foi conseqüência dum aluimento da
crosta terrestre, existe a possibilidade de esta catástrofe se ter
verificado ao mesmo tempo que a grande convulsão vulcânica que afetou o
arquipélago de Santorin, da qual falaremos no capítulo seguinte. Com
efeito, os dois acontecimentos datam aproximadamente da mesma época, ou
seja, primeira metade do segundo milênio antes de Jesus Cristo. Com
efeito, muitos abalos telúricos ou vulcânicos em determinado ponto do
Globo provocam muitas vezes outros abalos em regiões diferentes. Ora a
distância que separa o arquipélago de Santorin do mar Morto não é tão
grande que se possa excluir a impossibilidade duma relação entre os dois
fenômenos. No 'entanto, não se pode apresentar qualquer prova desta
hipótese; quando muito, há uma possibilidade, aliás frágil, de que as
coisas se tenham passado assim. (HENNING, 1950, pp. 55-62). (grifo
nosso).
Em o livro Da Bíblia aos nossos dias, o escritor Mário Cavalcanti
de Melo, também fala sobre esse assunto; vejamos o que coloca citando Léo
Taxil e Strabão:
O mais interessante em tudo isso, é que os israelitas, segundo
Strabão, não atribuem a destruição de Sodoma e Gomorra a castigos dos
Céus, mas, apenas, a fenômenos naturais e erupções vulcânicas”. (80).
Vejamos, agora, o que nos diz o grande geógrafo grego:
“A região de Sodoma e Gomorra tem sido muito trabalhada pelo fogo,
o que disso há muitas provas: rochedos queimados, numerosas crateras, uma
terra de cinzas, rios que espalham de longe um odor infecto, e aqui e
ali, habitações em ruínas. Tudo isto faz crer que outrora havia treze
cidades e que Sodoma era a metrópole; mas que, por tremores de terra,
erupções de fogo subterrâneo e as águas betuminosas e sulfurosas
incendiadas, o fogo invadiu a terra e os rochedos guardam a marca do
cataclismo. Entre estas cidades, umas foram tragadas, as outras
abandonadas pelos habitantes que puderam salvar-se”. (81).
___________
(80) – Léo Taxil – La Biblie Amusante – pgs. 147 a 152;
(81) – Strabão – Livro XVI c. II.
(MELO, 1954, p. 163).
Ao terminar esperamos ter oferecido dados para que você, leitor,
possa tirar suas próprias conclusões a respeito do assunto. Uma coisa é
certa: que tudo não passou de um fenômeno natural, tomado à conta do
humor de Deus, é um fato. Naquela época, por exemplo, o trovão era voz de
Deus (Ex 19,19) e os raios eram setas com as quais enchia as mãos para
atirá-las num alvo certo (Jó 36,32); isso somente para corroborar quanto
era ingênuo o pensamento de outrora sobre a divindade.
Se Deus destruiu mesmo Sodoma, então ele não cumpriu o “a cada um
conforme as suas obras” (Jó 34,11; Sl 62,13 e Mt 16,27), pois pessoas
inocentes foram castigadas. Mas aí como fica o: “Tu, porém, és justo, e
governas todas as coisas com justiça. Consideras incompatível com o teu
poder condenar alguém que não mereça castigo” (Sb 12,15)? Fato que também
é contrário a outra coisa que Deus “detesta”: condenar o inocente (Pr
17,15). Por outro lado, parece-nos que, se agiu desse modo, Deus não
corrigiu como um pai corrige ao filho (Pr 3,11-12), nem mesmo teria tido
compaixão de todos, não levando em conta os pecados dos homens (Sb 11,2223), contrariando esses passos. Castigar com fogo não é uma ação que
possa ser enquadrada como algo feito com brandura (Sb 12,2), para que
viesse a ser recuperado o pecador. Tão-pouco seria um castigo tipo “pouco
a pouco”, de forma a dar oportunidade de arrependimento (Sb 12,10).
Assim, podemos ver que várias passagens bíblicas são contrariadas
a ser verdadeiro o castigo imposto a Sodoma. Mas não somos fanáticos a
tal ponto de aceitar tal aberração; por isso, preferimos acreditar que
tudo não passou mesmo de fenômeno de ordem natural, ao qual estamos
sujeitos todos nós que estamos encarnados na Terra, que é um planeta de
provas e expiações.
Matança dos varões nascidos de hebreus
Segundo S. Jerônimo “A verdade não pode existir em coisas que
divergem”, ora, se isso de fato acontece, então estamos diante de uma
situação constrangedora aos que acreditam piamente que os relatos
bíblicos se pautam na mais pura verdade. Iremos ver mais um caso em que a
“inerrância” bíblica fica arranhada pelos fatos históricos desvendados
pela ciência humana. Quando os arqueólogos revolveram a poeira que
escondia o passado, através de suas escavações, foram revelados fatos
desconhecidos, mas também jogou baldes de água fria nos que eram tidos
como verdades intocáveis.
Leiamos a narrativa bíblica sobre o caso em estudo:
Ex 1,6-22: “Depois José morreu, bem como todos os seus irmãos e toda
aquela geração. Os israelitas foram fecundos e se multiplicaram;
tornaram-se cada vez mais numerosos e poderosos, a tal ponto que o país
ficou repleto deles. Chegou ao poder sobre o Egito um novo rei, que não
conhecia José. Ele disse à sua gente: “Eis que o povo dos israelitas
tornou-se mais numeroso e mais poderoso do que nós. Vinde, tomemos sábias
medidas para impedir que ele cresça; pois do contrário, em caso de
guerra, aumentará o número dos nossos adversários e combaterá contra nós,
para depois sair do país”. Portanto impuseram a Israel inspetores de
obras para tornar-lhe dura a vida com os trabalhos que lhe exigiam. Foi
assim que ele construiu para Faraó as cidades-armazéns de Pitom e de
Ramsés. Mas, quanto mais oprimiam, tanto mais se multiplicavam e
cresciam, o que fez temer os israelitas. Os egípcios obrigavam os
israelitas ao trabalho, e tornavam-lhes amarga a vida com duros
trabalhos: a preparação da argila, a fabricação de tijolos, vários
trabalhos nos campos, e toda espécie de trabalhos aos quais os obrigavam.
O Rei do Egito disse às parteiras dos hebreus, das quais uma se chamava
Sefra e a outra Fuá: “Quando ajudardes as hebréias a darem à luz,
observai as duas pedras. Se for menino, matai-o. Se for menina, deixai-a
viver”. As parteiras, porém, temeram a Deus e não fizeram o que o rei do
Egito lhes havia ordenado, e deixaram os meninos viverem. Assim, pois, o
rei do Egito chamou as parteiras e lhes disse: “Por que agistes desse
modo, e deixastes os meninos viverem?” Elas responderam a Faraó: As
mulheres dos hebreus não são como as egípcias. São cheias de vida e,
antes que as parteiras cheguem, já deram à luz. Por isso Deus favoreceu
essas parteiras; e o povo tornou-se muito numeroso e muito poderoso. E
porque as parteiras temeram a Deus, ele lhes deu uma posteridade. Então,
Faraó ordenou a todo o seu povo: “Jogai no Rio todo menino que nascer.
Mas, deixai viver as meninas”.
Explicam-nos, os tradutores da Bíblia de Jerusalém, que a cidadearmazém de Ramsés é o nome da residência do Faraó Ramsés II no Delta,
identificada como Tânis ou Qantir. Essa menção aponta Ramsés II (12901224) como o Faraó opressor e fornece aproximadamente a data do Êxodo.
(p. 103).
Vamos, na seqüência, ver esse relato pela ótica do historiador
hebreu Flávio Josefo. São essas as suas palavras sobre o acontecimento:
85. Êxodo 1. Como os egípcios são naturalmente preguiçosos e
voluptuosos e só pensam no que lhes pode proporcionar prazer e proveito,
eles olhavam com inveja a prosperidade dos hebreus e as riquezas que
conquistavam com seu trabalho; conceberam mesmo certo temor pelo grande
aumento de seu número. Tendo o tempo apagado a memória das obrigações que
todo o Egito devia a José e tendo o reino passado a outra família, eles
começaram a maltratar os israelitas e a oprimi-los com trabalhos.
Empregaram-nos em cavar vários diques para deter as águas do Nilo e
diversos canais para levá-las. Faziam-nos trabalhar na construção de
muralhas para cercar as cidades, levantar pirâmides de altura prodigiosa
e mesmo os obrigavam a aprender com dificuldade artes e diversos ofícios.
Quatrocentos anos assim se passaram; os egípcios procurando sempre
destruir nossa nação e os hebreus, ao contrário, esforçando-se por vencer
todos esses obstáculos.
86. Este mal foi seguido por um outro, que aumentou ainda mais o
desejo que os egípcios tinham de nos perder. Um dos doutores da sua lei,
ao qual eles dão o nome de escribas das coisas santas e que passam entre
eles por grandes profetas, disse ao rei, que naquele mesmo tempo deveria
nascer um menino entre os hebreus, cuja virtude seria admirada por todo o
mundo, o qual elevaria a glória de sua nação, humilharia o Egito e cuja
reputação seria imortal. O rei, assustado com essa predição, publicou um
edito, segundo o conselho daquele que lhe fazia essa advertência, pelo
qual ordenava que se deveriam afogar todos os filhos dos hebreus do sexo
masculino e ordenou às parteiras do Egito que observassem exatamente,
quando as mulheres deveriam dar à luz, porque ele não confiava nas
parteiras da sua nação. Esse edito ordenava também que aqueles que se
atrevessem a salvar ou criar alguma dessas crianças seriam castigados com
a pena de morte juntamente com toda a família. (JOSEFO, 1990, p. 79).
A história aqui é outra, pois, pela pena de Josefo, o faraó Ramsés
II, mandou matar as crianças por pura superstição, já que acreditou num
presságio de que um menino hebreu seria a glória de sua nação e
humilharia o Egito. A narrativa bíblica conta que isso ocorreu para
limitar o nascimento dos hebreus, já que o faraó temia que eles viessem a
sobrepujar o seu povo.
Há uma outra versão sobre o episódio, que vem apoiar o que disse
Josefo, é a que agora veremos num romance do antigo Egito.
Certamente, alguém poderá objetar que o que estamos trazendo aqui,
nesse ponto, não serve como prova. Concordamos plenamente, enquanto coisa
isolada, entretanto, como isso vem corroborar uma das versões anteriores,
achamos por bem colocá-la mesmo diante disso, já que ela se reveste de
uma provável veracidade. Leiamos:
Devo mencionar aqui um fato, que só vim a saber mais tarde, mas
aqui o consigno por parecer-me conveniente: trata-se de uma profecia
terrível, feita nessa ocasião por velho sacerdote de Heliópolis, célebre
pelas suas revelações:
- “Dentro em breve – teria dito o profeta – nascerá de pai hebreu
uma criança do sexo masculino, que, ao atingir a maioridade, cobrirá o
país de desgraças; por sua culpa, o Nilo sagrado será emprestado; as
cidades e campos cobertos de cadáveres, a nação arruinada, todos os
primogênitos do Egito feridos de morte e o sarcófago do Faraó que suceder
a Ramsés, ostentando a coroa do Alto e Baixo Egito, permanecerá vazio
para sempre, pois só haverá peixes no lugar em que o corpo do rei vai ser
sepultado”.
Ramsés, sobremaneira impressionado, convocou um conselho secreto e
discutiu os meios de conjurar tão horrorosas desgraças. Deliberaram
ocultar ao povo a predição, porque, tímido e supersticioso, poderia
entregar-se a sanguinolentos excessos contra os semitas em geral. Por
outro lado, porém, pretextando que os hebreus eram muitos prolíferos,
resolveram eliminar, durante doze luas, todos os varões que lhes
nascessem. (KRIJANOWSKY, 1999, pp. 23-24).
A título de informação, já que ninguém é obrigado a saber disso, o
espírito que se apresenta como Conde J. W. Rochester, afirma que foi,
naquela época passada, o próprio Faraó Mernephtah.
Pena que as coisas não ficaram somente nisso, pois há, ainda, uma
outra versão diferente das anteriores. Vamos vê-la no livro A História da
Bíblia, do qual transcrevemos:
No século 14 a.C., quando Ramesés, o Grande governava o Egito, as
relações entre os nativos e os judeus chegaram a ponto de explosão. Ia
rebentar a luta. Os bem-vindos hóspedes de algumas centenas de anos antes
haviam-se degradado de todas as maneiras. Os reis do Egito eram grandes
construtores de obras públicas. As pirâmides já não estavam em moda, mas
havia acampamentos, quartéis e diques a serem construídos, o que
determinava uma constante procura de trabalhadores. Não era trabalho bem
pago; os nativos evitavam-no; tinha, pois, de ser feito pelos judeus.
Mesmo assim grande número de judeus comerciantes conseguiam manterse nas cidades, provocando a inveja dos egípcios que não podiam superálos em matéria comercial. Os prejudicados foram então pedir ao Faraó o
extermínio dos judeus. O soberano, entretanto, pensou em outra solução.
Deu ordem para que todas as crianças judias do sexo masculino fossem
mortas – um remédio simples, embora cruel. Extinguiria a raça, sem perda
dos atuais operários. (VAN LOON, 1981, p. 32).
Agora a coisa se complicou ainda mais, porquanto, permanece a
dúvida de qual das versões podemos tirar a realidade desses
acontecimentos. Muitos tentam explicar isso. Mas, além dessa divergência
em relação ao motivo, algo mais grave acontece em relação a tudo isso. É
que iremos ver agora.
Será que Ramsés II foi mesmo o Faraó daquela época? Trazemos a
explicação dos autores dum livro que busca exatamente explicar as
contradições bíblicas:
ÊXODO 5:2 - Quem foi o Faraó de Êxodo?
PROBLEMA: A posição predominante dos eruditos nos dias de hoje é que o
Faraó de Êxodo era Ramsés II. Se assim for, isso significa que o êxodo
ocorreu aproximadamente entre 1270 e 1260 a.C. Entretanto, de várias
referências da Bíblia (Jz 11:26; 1 Rs 6:1; At 13:19-20), a data do êxodo
é inferida como sendo 1447 a.C. Assim, de acordo com o sistema de datas
normalmente aceito, o Faraó de Êxodo seria Amenotep II. Quem foi de fato
o Faraó mencionado no livro de Êxodo, e quando foi que o êxodo ocorreu?
SOLUÇÃO: Conquanto muitos eruditos da atualidade tenham proposto uma data
posterior para o evento do êxodo, de 1270 a 1260 a.C., há evidências
suficientes para se dizer que não é necessário aceitar essa data. Uma
explicação alternativa nos fornece um melhor relato de todos os dados
históricos, e coloca o êxodo por volta de 1447 a.C.
Primeiro, as datas bíblicas para o êxodo o colocam nos anos em
torno de 1400 a.C., já que 1 Reis 6:1 declara que ele ocorreu 480 anos
antes do quarto ano do reinado de Salomão (o que foi por volta de 967
a.C.). Isso colocaria o êxodo por volta de 1447 a.C., de acordo com
Juízes 11:26, que afirma que Israel passou 300 anos na terra, até o tempo
de Jefté (o que foi cerca de 1000 a.C.).
De igual modo, Atos 13:20 diz ter havido 450 anos de juízes, de
Moisés a Samuel, sendo que este último viveu por volta de 1000 a.C. O
mesmo ocorre com respeito aos 430 anos mencionados em Gálatas 3:17 (veja
os comentários deste versículo), abrangendo o período de 1800 a 1450 a.C.
(de Jacó a Moisés). O mesmo número é usado em Êxodo 12:40. Todas essas
passagens indicam uma data em torno de 1400 a.C., não em torno de 1200
a.C., como os críticos afirmam.
Segundo, John Bimson e David Livingston propuseram uma revisão da
data tradicionalmente atribuída ao fim da Idade do Bronze Média e início
da Idade do Bronze Avançada, de 1550 para um pouco antes de 1400 a.C. A
Idade do Bronze Média caracterizava-se por cidades grandemente
fortificadas, cuja descrição se enquadra muito bem com o relato que os
espias trouxeram a Moisés (Dt 1:28). Isso significa que a conquista de
Canaã se deu por volta de 1400 a.C. Como as Escrituras afirmam que Israel
vagueou pelo deserto por cerca de 40 anos, isso dataria o êxodo por volta
de 1440 a.C., totalmente de acordo com a cronologia bíblica. Se
aceitarmos os registros tradicionais dos reinos dos Faraós, isso
significaria que o Faraó do livro de Êxodo foi Amenotep II, que reinou de
cerca de 1450 a 1425 a.C.
Terceiro, outra possível solução, conhecida como a revisão de
Velikovsky-Courville, propõe uma revisão na cronologia tradicional dos
reinados dos Faraós. Velikovsky e Courville afirmam que há 600 anos a
mais na cronologia dos reis do Egito. Evidências arqueológicas podem ser
juntadas para substanciar esta proposta que de novo data o êxodo em 1440
a.C. De acordo com este ponto de vista, o Faraó nesse tempo era o rei
Tom. Isto se harmoniza com a afirmação de Êxodo 1:11, de que os
israelitas foram escravizados para construírem a cidade chamada Pitom
(residência de Tom). Quando a cronologia bíblica é tomada como padrão,
todas as evidências arqueológicas e históricas se encaixam direitinho.
(Veja Geisler e Brooks, When Skeptics Ask [Quando os Cépticos
Questionam], Victor Books, 1990, cap. 9). (GEISLER e HOWE, 1999, pp. 7374).
Então temos duas datas aproximadas para o Êxodo, uma em 1440 a.C.
e outra 1.270 a.C. Uma referência importante é encontrada na passagem
bíblica transcrita, no início, onde, no versículo 11, lemos: “Foi assim
que ele construiu para Faraó as cidades-armazéns de Pitom e de Ramsés”.
Para definir qual é a data dos acontecimentos temos que saber quem foi
que construiu esses armazéns. É unânime entre os historiadores que foi
Ramsés II, o que evidencia uma contradição na Bíblia, quando, por suas
narrativas, pode-se inferir também que a época seja 1440 a.C.
Werner Keller, informa-nos:
O quadro do túmulo aberto na rocha mostra uma cena da construção do
templo de Amon na cidade de Tebas. As “clássicas” cidades da escravidão
os filhos de Israel eram, entretanto, Pitom e Ramsés. Ambos esses nome
aparecem sob forma um tanto modificada em inscrições egípcias. “Per-Itm”,
“Casa do deus Atum”, é uma cidade que não existia antes da época de
Ramsés II. E a já citada Per-Ramsés-Meri-Imen é a bíblica Ramsés. Uma
inscrição do tempo de Ramsés II fala de “pr” “que arrastam pedras para a
grande fortaleza da cidade de Per-Ramés-Meri-Imen”. A língua egípcia
designa como “pr” os semitas. (KELLER, 2000, p. 126).
Isso resolve em parte o nosso problema, entretanto, acaba criandonos um outro, senão vejamos.
[...] as fontes egípcias relatam que a cidade de Pi-Ramsés (‘A Casa
de Ramsés’) foi construída no delta na época do grande rei egípcio Ramsés
II, que governou de 1279 a 1213 a.C, e que aparentemente semitas foram
aproveitados na sua construção. ...a menção mais antiga de Israel num
texto extrabíblico foi encontrada no Egito, na estela que descreve a
campanha do faraó Meneptah3 – o filho de Ramsés II – em Canaã, no exato
final do século XIII a.C. A inscrição relata uma destrutiva campanha
militar egípcia naquela região, durante a qual um povo chamado Israel foi
dizimado ao ponto de o faraó ter-se vangloriado de que “a semente de
Israel não mais existe!” (FINKELSTEIN e SILBERMAN4, 2003, p.
Se Israel é vencido pelo faraó Merneptah, como explicar o Êxodo
conforme a narrativa bíblica que o coloca no reinado de Ramsés II? Se o
povo hebreu saiu do Egito por volta de 1270 e tendo ficado 40 anos no
deserto, isso nos remete ao ano de 1230 a.C. para a ocupação de Canaã.
Mas nesse período o Egito era regido pelo faraó Ramsés II e não por
Merneptah. Sabemos que Ramsés II morreu em agosto de 1213 a.C., com cerca
de 90 anos (Nacional Geographic, p. 60), só então assumiu o trono
Merneptah. Veja, caro leitor, que as coisas estão se complicando cada vez
mais, tornando difícil saber o que de fato aconteceu neste período
histórico.
Ainda mais coisas colocam esses dois arqueólogos, que acabamos de
citar:
[...] nas abundantes fontes egípcias que descrevem a época do Novo
Império em geral, e o século XIII em particular, não há referência aos
israelitas, nem mesmo uma única pista. Sabemos sobre grupos nômades de
Edom que entraram no Egito pelo deserto. A estela de Merneptah se refere
a Israel como um grupo de pessoas que viviam em Canaã. Mas não há pistas,
nem mesmo uma única palavra, sobre antigos israelitas no Egito: nem nas
inscrições monumentais nas paredes dos templos, nem nas inscrições em
túmulos, nem em papiros. Israel inexiste como possível inimigo do Egito,
como amigo ou como nação escravizada. E simplesmente não existem achados
arqueológicos no Egito que possam estar associados de forma direta com a
noção de um grupo étnico distinto (em oposição a uma concentração de
trabalhadores migrantes de muitos lugares), vivendo numa área específica
a leste do delta, como subentendido no relato bíblico sobre os filhos de
Israel vivendo juntos na terra de Gessen (Gênesis 46,27).
Há algo mais: parece altamente improvável, como também é a
travessia do deserto e o ingresso em Canaã, que um grupo, mesmo que
pequeno, pudesse fugir do controle egípcio na época de Ramsés II. No
século XIII a.C., o Egito estava no auge de seu poder e autoridade, o
poder dominante do mundo. O controle sobre Canaã era firme; fortalezas
foram construídas em diversas partes do país, e funcionários egípcios
administraram os assuntos na região. Nas cartas de el-Amarna, datadas de
um século antes, há a informação de que uma unidade de cinqüenta soldados
egípcios era grande o bastante para apaziguar qualquer agitação em Canaã.
E ao longo do período do Novo Império os extensos exércitos marcharam
através de Canaã para o norte, até o rio Eufrates, na Síria. (FINKELSTEIN
e SILBERMAN, 2003, p. 90).
Apenas para ilustrar e mostrar que nem mesmo as datas que os
faraós reinaram são unânimes, por isso poder-se-á encontrar datas
discrepantes nesse estudo. Vejamos:
19ª DINASTIA
Ramsés I
1292-1290
Seti I
1290-1279
Ramsés II
1279-1213
Merneptah
1213-1204
(National Geographic, p. 49, Baseado em pesquisas de Rolf Krauss, do
Museu Egípcio de Berlim).
Pelo que conseguimos juntar nas pesquisas para esse nosso estudo,
e apresentadas neste texto, a conclusão que se pode chegar não é outra
senão que a narrativa bíblica não representa a verdade dos fatos. Não
passa de uma ficção literária inventada pelos autores. Entretanto, quanto
especificamente à questão do povo hebreu no Egito, há uma possibilidade
que sejam os hicsos que foram expulsos por lá por volta de 1570 a.C
(FINKELSTEIN e SILBERMAN, 2003, p. 75), mas isso colocaria o Êxodo por
volta de 1440 a.C, período em que reinava Tutmés III.
Isso tudo nos leva a também desacreditar na história sobre a
suposta ordem do Faraó de matar crianças dos hebreus.
Moisés, o Libertador
Antigamente, em quase todas as pequenas cidades do interior,
invariavelmente, existia um cinema, por pequeno que fosse, pois era o
único meio de diversão do povo. Hoje, o cinema foi substituído pela TV.
Antes, saíamos sempre para ir ao cinema; atualmente, ficamos em casa
defronte à “máquina de fazer doido”, horas e horas a fio.
Foi nesse tempo que tivemos a oportunidade de assistir a um filme
que contava a história de Moisés. Ficamos deveras impressionados com este
personagem, pois, ao que tudo parecia, tinha mesmo parte com Deus, tantos
os prodígios que fazia em nome Dele. Filme épico, que mostrava a história
do povo hebreu, escravo no Egito, sendo libertado por esse nosso
personagem.
Criado no palácio real, teve uma formação cultural comum somente à
nobreza. Devia ter conhecimento de todos os segredos que eram reservados
somente aos iniciados.
Mas, sempre ficamos a questionar se foi realmente verdadeira a
história, que assistíramos boquiabertos. Hoje, querendo descobrir algo
sobre este nosso herói, fomos pesquisar na Bíblia, a sua vida, para
responder alguns questionamentos que nos saltaram à mente.
Em Ex 2,1-4, lemos:
“Um homem da família de Levi casou-se com uma mulher de seu clã. A mulher
concebeu e deu à luz um filho. Vendo que era um lindo bebê, guardou-o
escondido durante três meses. Não podendo escondê-lo por mais tempo,
pegou uma cestinha de papiro, calafetou com betume e piche, pôs nela a
criança e deixou-a entre os juncos na margem do rio. A irmã do menino
postou-se a pouca distância para ver o que lhe aconteceria”.
Encontramos a seguinte explicação para esta passagem:
O relato do nascimento e salvamento de Moisés se assemelha à lenda
contada a respeito de Sargão, o conquistador da Mesopotâmia (3º milênio
AC). Nascido de pai desconhecido e de uma mãe que o abandonou nas águas
do Eufrates numa cesta de vime calafetada com betume, foi salvo e criado
por um jardineiro real. Depois, amado pela deusa Istar, se tornou rei
durante 56 anos. Lendas semelhantes contam-se sobre a origem de Ciro, rei
da Pérsia, e de Rômulo e Remo, fundadores de Roma. Com recurso a um tal
clichê literário Moisés é colocado entre os grandes personagens da
história. ( Bíblia Vozes, p. 97 ) (grifo nosso).
Veja bem: se o relato do nascimento e salvamento de Moisés se
assemelha a uma lenda e que lendas semelhantes contam-se a respeito de
outras pessoas, podemos concluir que, por esse pensamento, a história de
Moisés é também uma lenda.
E quem lhe apareceu na sarça? Para responder esta questão teremos
que recorrer ao que consta narrado em Ex 3,1-6:
“Moisés... chegou ao monte de Deus, o Horeb. Apareceu-lhe o anjo do
Senhor numa chama de fogo no meio de uma sarça. ...Moisés se aproximava
para observar e Deus o chamou do meio da sarça: ...Moisés cobriu o rosto,
pois temia olhar para Deus”.
Ora, as passagens abaixo não dizem a mesma coisa:
At 7,30: “Passados quarenta anos, um anjo apareceu a Moisés no deserto do
Monte Sinai, entre as chamas da sarça ardente”.
At 7,35-36: “... Moisés... Mas Deus é que o enviou como guia e
libertador, por meio do anjo que lhe apareceu na sarça. Então, o anjo
conduziu o povo para fora, realizando milagres e prodígios no Egito, no
Mar Vermelho e no deserto, durante quarenta anos’”.
At 7,38: “Foi ele quem... foi mediador entre o anjo que lhe falava no
Monte Sinai...”.
Afinal, quem apareceu a Moisés, foi o próprio Deus ou foi um dos
seus anjos? Mais ainda, será que Moisés falava face a face com Deus,
conforme narrado?
Ex 33,11: “O Senhor se entretinha com Moisés face a face, como um homem
fala com o seu amigo”.
Ora, em outra passagem se diz que ninguém poderá ver a face de
Deus e continuar vivo, conforme consta em:
Ex 33,20: “Mas, ajuntou o Senhor, não poderás ver a minha face: pois o
homem não me poderia ver e continuar a viver”.
E, mais importante ainda, o próprio Jesus afirma que “ninguém
jamais viu a Deus” (Jo 1,18).
Então, o que será que realmente aconteceu? Porventura Moisés foi
um mago ou um profeta? Os prodígios que ele fez, nos colocaram essa
dúvida; vejamos as narrativas:
Ex 7,10-12: “... Moisés e Arão ...fizeram assim como o SENHOR ordenara; e
lançou Arão a sua vara diante de Faraó, e diante dos seus servos, e
tornou-se em serpente. E Faraó também chamou os sábios e encantadores; e
os magos do Egito fizeram também o mesmo com os seus encantamentos. ...”.
Ex 7,19-22: “Disse mais o SENHOR a Moisés: Dize a Arão: Toma tua vara, e
estende a tua mão sobre as águas do Egito,... E Moisés e Arão fizeram
assim como o SENHOR tinha mandado; e Arão levantou a vara, e feriu as
águas ...e todas as águas do rio se tornaram em sangue, ...Porém os magos
do Egito também fizeram o mesmo com os seus encantamentos;...”.
Ex 8,1-3: Disse mais o SENHOR a Moisés: Dize a Arão:... E Arão estendeu a
sua mão sobre as águas do Egito, e subiram rãs, e cobriram a terra do
Egito. Então os magos fizeram o mesmo com os seus encantamentos, e
fizeram subir rãs sobre a terra do Egito.
Se Moisés já havia transformado as águas do rio em sangue, como é
que os magos do faraó fizeram o mesmo? É o que queremos saber e ainda não
encontramos uma resposta lógica para isso.
Estas passagens descrevem o cumprimento da determinação de Deus
por Moisés e seu irmão Arão, para convencerem o Faraó a deixar o povo
hebreu partir, liberto da escravidão, em busca da Terra Prometida.
Ao analisá-las, ficamos numa dúvida cruel. Ora, se os magos do
Faraó também conseguiram fazer essas proezas que Moisés e Arão fizeram,
de duas uma: ou teremos que admitir que o deus do Faraó era tão
prodigioso, que conseguia fazer tudo quanto o Deus de Moisés fez, ou
deveremos entender que Moisés e Arão eram, na verdade, magos, iguais aos
que acompanhavam o Faraó, já que eles conseguiram produzir esses mesmos
fenômenos.
A primeira hipótese é absurda, pois há um só Deus. Assim, teremos
que, inevitavelmente, ficar com a segunda, ou seja, somos constrangidos a
admitir que Moisés e Arão eram magos; isso se não formos daqueles que o
fanatismo cega. Se bem que pelos textos, quem produziu os fenômenos foi
somente Arão; Moisés era apenas um espectador. Admitindo isso, estas
passagens se conflitam com a determinação contida em Dt 18,9-12, que,
entre várias coisas, Deus proibia a magia. E aí, quem consegue sair desse
dilema, sem usar qualquer tipo de apelação?
Você, caro leitor, poderá até ponderar que essa determinação é
posterior aos acontecimentos narrados. É um fato, e não temos como
contestar; entretanto, também não temos como admitir Deus mudando de
opinião, pois, para nós, Ele é imutável, e todas as Suas determinações
são para todos os tempos e povos, a exemplo de: “Não matarás”, “Honrar
pai e mãe”, “não furtarás”, ou o “não adulterarás”!
Mas, e os tais milagres realizados por Moisés, de que tanto se
fala, ocorreram ou não? Para buscar a resposta, vamos ver as narrativas:
Ex 14,21-22: “Moisés estendeu a mão sobre o mar, e durante a noite
inteira o Senhor fez soprar sobre o mar um vento oriental muito forte,
fazendo recuar o mar e transformando-o em terra seca. As águas se
dividiram, e os israelitas entraram pelo meio do mar em seco, enquanto as
águas formavam uma muralha à direita e outra à esquerda”.
A explicação para essa passagem está da seguinte forma:
A descrição da passagem pelo mar Vermelho corresponde a um fenômeno
de ordem natural, como o sugere a menção do ‘vento forte’ que põe o mar,
isto é, uma região pantanosa, em seco. Tal fenômeno foi providencial para
salvar os israelitas e fazer perecer os egípcios: de madrugada as
condições climáticas foram favoráveis à passagem segura dos israelitas;
de manhã mudaram bruscamente e os egípcios pereceram. Nisto Israel viu a
mão providencial de Deus, expressa pela nuvem e pelo fogo, pelas águas
que formaram alas para os israelitas passarem e pela vara milagrosa de
Moisés. (Bíblia Vozes, p. 99).
Assim, podemos concluir, que, na realidade, a passagem do Mar
Vermelho, quando o mar abriu-se em duas muralhas, é, nada mais nada
menos, que um fenômeno de ordem natural. Mas, por que ainda continuam a
afirmar que se trata de um milagre? Vejamos agora essa outra narrativa:
Ex 16,13: “De tarde, realmente veio um bando de codornizes e cobriu o
acampamento;...”.
A explicação dada a essa passagem foi: “As codornizes são aves
migratórias que, duas vezes por ano, aparecem em abundância na península
do Sinai, tanto no Golfo arábico como na costa mediterrânea. Exaustas do
longo vôo, podem ser facilmente apanhadas”. (Bíblia Vozes, p. 99). Nós
aqui em Minas Gerais, diríamos: Uai! Então não foi milagre? Não
entendemos porque ainda continuam dizendo que foi.
Uma outra passagem para análise é a seguinte:
Ex 16,14-15: “Quando o orvalho evaporou, na superfície do deserto
apareceram pequenos flocos, como cristais de gelo sobre a terra. Ao
verem, os israelitas perguntavam-se uns aos outros: ‘Que é isto?’, pois
não sabiam o que era”.
Explicam-nos que:
Da pergunta ‘que é isto?’, em hebraico man hú, a etimologia popular fez
derivar o nome de maná. O maná é o produto da secreção de certos insetos
que se alimentam da seiva de uma variedade de tamareira do deserto. Em
forma de gotas de orvalho, o maná cai no chão donde é ajuntado, peneirado
e guardado para servir de alimento. Os árabes ainda hoje chamam a essa
substância açucarada, man. (Bíblia Sagrada Vozes, p. 99). (Grifo nosso)
Noooossa! Então o maná também não foi um milagre.
Essa ocorrência, como as anteriores, são simples fenômenos de
ordem natural. Como explicar que os teólogos sempre disseram que todas
elas são milagres?
Ficamos a pensar quantas outras coisas que estão na Bíblia podem
ser apenas fenômenos naturais, vistos, pelos conhecimentos da época, como
milagres.
Desculpe-nos, caro leitor, se transferimos a você as nossas
dúvidas.
Mar Vermelho: a travessia que não existiu
Relatam-nos os textos sagrados, que o povo hebreu, ao sair do
Egito, defrontou-se com o Mar Vermelho, que se dividiu em duas muralhas
após Moisés estender a mão sobre ele, de modo que todo o povo o
atravessou a pé enxuto. Os egípcios, que o perseguiam, foram tomados
pelas águas quando elas se juntaram novamente, perecendo todo o exército
do Faraó.
Apesar desse “milagre” nos impressionar, nunca deixamos de
questionar se realmente isso aconteceu, tal como se encontra relatado na
Bíblia. Pelo que vimos nos filmes épicos, é muita água! Veremos, neste
estudo, se conseguiremos desvendar esse mistério.
Das várias Bíblias, fonte de nossa pesquisa, somente a intitulada
Bíblia de Jerusalém traz a verdadeira denominação do local da passagem.
Optamos por colocar todas as narrativas que iremos mencionar dela, uma
vez que a equipe formada para sua tradução foi composta por tradutores
católicos e protestantes; portanto, uma versão de consenso que, segundo
pensamos, evita, muito mais que qualquer outra, textos adaptados à
conveniência religiosa de um segmento específico.
Ex 13,17-18: “Ora, quando o Faraó deixou o povo partir, Deus não o fez ir
pelo caminho no país dos filisteus, apesar de ser o mais perto, porque
Deus achara que diante dos combates o povo poderia se arrepender e voltar
para o Egito. Deus, então, fez o povo dar a volta pelo caminho do deserto
do mar dos Juncos, e os israelitas saíram bem armados do Egito”.
Em nota de rodapé explicam os tradutores:
A designação “o mar dos Juncos”, em hebraico yam sûf, é acréscimo.
O texto primitivo dava apenas uma indicação geral: os israelitas tomaram
o caminho do deserto para o leste ou o sudeste. – o sentido desta
designação e a localização do “mar de Suf” são incertos. Ele não é
mencionado na narrativa de Ex 14, que fala apenas do “mar”. O único texto
que menciona o “mar de Suf” ou “mar dos Juncos” (segundo o egípcio) como
cenário do milagre é Ex 15,4, que é poético. (Bíblia de Jerusalém, p.
121). (grifo nosso).
Veremos, mais à frente, que Keller, autor do livro E a Bíblia
tinha razão..., reforça essa afirmativa sobre a designação desse local.
Ex 14,21-28: “Então Moisés estendeu a mão sobre o mar. E Iahweh, por um
forte vento oriental que soprou toda aquela noite, fez o mar se retirar.
Este se tornou terra seca, e as águas foram divididas. Os israelitas
entraram pelo meio do mar em seco; e as águas formaram como um muro à sua
direita e à sua esquerda. Os egípcios que os perseguiam entraram atrás
deles, todos os cavalos de Faraó, os seus carros e os seus cavaleiros,
até o meio do mar... Moisés estendeu a mão sobre o mar e este, ao romper
da manhã, voltou para o seu leito. Os egípcios, ao fugir, foram de
encontro a ele. E Iahweh derribou os egípcios no meio do mar. As águas
voltaram e cobriram os carros e cavaleiros de todo o exército de Faraó,
que os haviam seguido no mar; e não escapou um só deles”.
Transcrevemos da nota de rodapé a seguinte explicação:
Esta narrativa apresenta-nos o milagre de duas maneiras: 1º) Moisés
levanta a sua vara sobre o mar, que se fende, formando duas muralhas de
água entre as quais os israelitas passam a pé enxuto. Depois, quando os
egípcios vão atrás deles, as águas se fecham e os engolem. Esta narrativa
é atribuída à tradição sacerdotal ou eloísta. 2º) Moisés encoraja os
israelitas fugitivos, assegurando-lhes que nada têm que fazer. Então,
Iahweh faz soprar um vento que seca o “mar”, os egípcios ali penetram e
são engolidos pelo seu refluxo. Nesta narrativa, atribuída à tradição
javista, somente Iahweh é que intervém; não se fala de uma passagem do
mar pelos israelitas, mas apenas da miraculosa destruição dos egípcios.
Esta narrativa representa a tradição mais antiga. É somente a destruição
dos egípcios que afirma o canto muito antigo de Ex 15,21, desenvolvido no
poema de 15,1-18. Não é possível determinar o lugar e o modo deste
acontecimento; mas aos olhos das testemunhas apareceu como uma
intervenção espetacular de “Iahweh guerreiro” (Ex 15,3) e tornou-se um
artigo fundamental da fé javista (Dt 11,4; Js 24,7 e cf. Dt 1,30; 6,2122; 26,7-8). Este milagre do mar foi posto em paralelo com outro milagre
da água, a passagem do Jordão (Js 3-4); a saída do Egito foi concebida de
maneira secundária à imagem da entrada em Canaã, e as duas apresentações
misturam-se no cap. 14. A tradição cristã considerou este milagre como
uma figura da salvação, e mais especialmente do batismo (1Cor 10,1).
(Bíblia de Jerusalém, pp. 121-122).
Muitas vezes explicam certas passagens bíblicas de um jeito, mas
não levam em consideração as suas próprias explicações para análise de
outros textos. Por isso, insistem que tal ocorrência se trata de
“milagre”; mas, como já deixamos transparecer, logo de início, só se por
delírio poético do autor bíblico.
Ficamos em dúvida de como as coisas realmente aconteceram, já que,
pelo relato, Moisés estendeu a mão sobre o mar, enquanto que o
historiador Josefo, dizendo sobre o que se encontra nos Livros Santos,
narra da seguinte forma:
Este admirável guia do povo de Deus, depois de ter acabado a sua
oração, tocou o mar com sua vara maravilhosa e no mesmo instante ele se
dividiu, para deixar os hebreus passar livremente, atravessando-o a pé
enxuto, como se estivessem andando em terra firme. (JOSEFO, 1990, p. 87).
(grifo nosso).
Assim, temos duas versões para o mesmo fato. Por outro lado,
Josefo registra de forma espetacular o retorno das águas ao leito do mar,
com o perecimento dos egípcios, o que não encontramos na Bíblia da mesma
forma. Vejamos:
O vento juntara-se às vagas para aumentar a tempestade: grande
chuva caiu dos céus; os relâmpagos misturaram-se com o ribombo do trovão,
os raios seguiram-se aos trovões e para que não faltasse nenhum sinal dos
mais severos castigos de Deus, na sua justa cólera, punindo os homens,
uma noite sombria e tenebrosa cobriu a superfície do mar; do modo que, de
todo esse exército, tão temível, não restou um único homem que pudesse
levar ao Egito a notícia da horrível catástrofe. (JOSEFO, 1990, p. 87).
(grifo nosso).
A rota do êxodo está toda traça nas narrativas. Inicialmente
partiram de Ramsés para Sucot, daí seguiram a Etam, de onde foram até
Piairot, ponto em que partiram e atravessaram o mar, acampando em Mara,
no Deserto de Etam. (Ex 13,20; 14,2.9.15; 15,22; Nm 33,5-8). Ver no mapa
2 abaixo, essa rota traçada em linha vermelha:
Mapa 1: Ampliação do local da passagemMapa 2: Visão global da rota do
êxodo
Observe no Mapa 1 (destaque da área realçada no retângulo
azul no Mapa 2) que, na região da passagem pelo “Mar Vermelho”, existe
até uma rota comercial (linha pontilhada), demonstrando que não se
necessitava de nenhum milagre para passar pelo local. Keller, num mapa
colocado em seu livro E a Bíblia tinha razão..., informa que essa área é
denominada de “mar dos Juncos”, o que de fato pode-se confirmar no mapa
acima que foi retirado da Bíblia Anotada, Mundo Cristão.
Bem abaixo, ainda no Mapa 1, na região indicada como de
ajuntamento de água, se refere ao Golfo de Suez. Não se trata
especificamente do Mar Vermelho, que fica bem mais abaixo, conforme se
pode ver mais claramente no Mapa 2, que, segundo nossos cálculos, dista
cerca de 360 km do local da passagem.
Temos, então, pela geografia da região, que o Mar Vermelho é,
vamos assim dizer, dividido pela Península do Sinai em dois golfos, o
Golfo de Suez e Golfo de Acaba. Como se diz popularmente “cada um é cada
um”, ou melhor, geograficamente falando, golfo é golfo, não é o mar
propriamente dito.
O historiógrafo Laurence Gardner, deu a seguinte opinião sobre
isso:
Ao estudar o relato do Êxodo no Antigo Testamento e a travessia do
Mar Vermelho, cujas águas se partiram, tornando-se “qual muro à sua
direita e à sua esquerda (Êxodo 14:22), descobrimos que, na verdade, não
havia mar para que os israelitas cruzassem. Contam-nos que Moisés levou o
povo de Avaris (pi-Ramsés) na planície de Goshen, no Delta do Nilo, de
onde viajaram ao Sinai (Êxodo 16:1) por um caminho para Midiã (Êxodo
18:1). Mas essa rota atravessa o deserto a norte do Mar Vermelho, onde o
Canal artificial de Suez, de 165 km, aberto em 1869, está atualmente.
Logicamente, isso coloca a história da divisão das águas por Moisés no
mesmo reino mítico do conto do cesto de juncos. (GARDENER, 2004, p. 61)
Fora as que já fornecemos, logo após as passagens anteriormente
transcritas, seria ainda interessante lermos outras explicações que se
nos apresentam os tradutores:
O local da travessia do Mar Vermelho foi provavelmente a extensão
norte do Golfo de Suez, ao sul do atual porto de Suez. Embora a expressão
literal seja “mar dos Juncos”, a referência é ao mar Vermelho, não
simplesmente a alguma região alagadiça. (Bíblia Anotada, em relação à Ex
13,18, p. 98). (grifo nosso).
Mar Vermelho: lit. “mar dos Juncos”. A expressão designa tanto o
atual mar Vermelho como também a região pantanosa e de lagunas,
atravessada hoje pelo canal de Suez. É o cenário da passagem dos
israelitas pelo “mar Vermelho” (Bíblia Sagrada Vozes, em relação à Ex
10,19, p. 91). (grifo nosso).
A descrição da passagem pelo mar Vermelho corresponde a um fenômeno
de ordem natural, como o sugere a menção do “vento forte” (v.21) que põe
o mar, isto é, uma região pantanosa, em seco. Tal fenômeno foi
providencial para salvar os israelitas (v.24) e fazer perecer os egípcios
(v.27): de madrugada as condições climáticas foram favoráveis à passagem
segura dos israelitas; de manhã mudaram bruscamente e os egípcios
pereceram. Nisto Israel viu a mão providencial de Deus (v.31), expressa
pela nuvem e pelo fogo (13,21), pelas águas que formam alas para os
israelitas passarem (14,22) e pela vara milagrosa de Moisés (v.16.21.26).
(Bíblia Sagrada Vozes, em relação à Ex 14,21-31, p. 97). (grifo nosso).
Em toda essa narração da passagem do mar Vermelho é difícil
estabelecer o que haja de verdadeiramente histórico e o que haja de fruto
de reelaborações épicas. Tampouco é possível indicar o ponto exato em que
se deu a travessia. Por certo, há uma intervenção milagrosa de Deus que,
embora servindo-se de fenômenos naturais, pode ordená-los no tempo e
lugar para que facilitassem a fuga dos hebreus e o castigo dos egípcios.
Em todo o A.T. a passagem do mar Vermelho foi sempre considerada como o
exemplo mais esplêndido do socorro providencial de Deus, e em o N.T. é
ainda considerada como a figura da salvação, mediante a ablução batismal.
(Bíblia Sagrada Vozes, em relação à Ex. 14,15-31, p. 97). (grifo nosso).
Mesmo que em algumas delas se reconheça que não é realmente o mar
Vermelho, mas o mar dos Juncos, ou que o que aconteceu foi um fenômeno de
ordem natural, cujo efeito foi colocar a região pantanosa em seco, não
deixam de envidar esforços, em seus argumentos, para levá-lo à conta de
milagre, contrariando o bom senso, base da fé racional, em detrimento da
fé cega.
Ficamos curiosos em saber o que a arqueologia diz a respeito
disso. Agora, sim, é que iremos ver o que Keller tem mesmo a nos dizer
sobre esse assunto. Vejamos:
Esse “milagre do mar” tem ocupado incessantemente a atenção dos
homens. O que até agora nem a ciência nem a pesquisa conseguiram
esclarecer não é de modo algum a fuga, para a qual existem várias
possibilidades reais. A controvérsia que persiste é sobre o cenário do
acontecimento, que ainda não foi possível fixar com certeza.
A primeira dificuldade está na tradução. A palavra hebraica “Yam
suph” é traduzida ora por “mar Vermelho”, ora por “mar dos Juncos”.
Repetidamente se fala do “mar dos Juncos”: “Ouvimos que o Senhor secou as
águas do mar dos Juncos[1] à vossa entrada, quando saístes do Egito...”
(Josué 2.10). No Velho Testamento, até o profeta Jeremias, fala-se em
“mar dos Juncos”. O Novo Testamento diz sempre “mar Vermelho” (Atos 7.36;
Hebreus 10.29).
Às margens do mar Vermelho não crescem juncos. O mar dos juncos
propriamente ficava mais ao norte. Dificilmente se poderia fazer uma
reconstituição fidedigna do local – e essa é a segunda dificuldade. A
construção do Canal de Suez no século passado modificou
extraordinariamente o aspecto da paisagem da região. Segundo os cálculos
mais prováveis, o chamado “milagre do mar” deve ter acontecido nesse
território. Assim, por exemplo, o antigo lago de Ballah, que ficava ao
sul da estrada dos filisteus, desapareceu com a construção do canal,
transformando-se em pântano. Nos tempos de Ramsés II, existia ao sul uma
ligação do golfo de Suez com os lagos amargos. Provavelmente chegava
mesmo até mais adiante, até o lago Timsah, o lago dos Crocodilos. Nessa
região existia outrora um mar de juncos. O braço de água que se
comunicava com os lagos amargos era vadeável em diversos lugares. A
verdade é que foram encontrados alguns vestígios de passagens. A fuga do
Egito pelo mar dos Juncos é, pois, perfeitamente verossímil.
[1] As traduções em português consultadas citam sempre “mar
Vermelho”. (N. do T.)
(KELLER, 2000, p. 146). (grifo nosso).
As observações de Keller, perfeitamente, se encaixam algumas das
explicações dadas pelos tradutores, ficando, desta forma, sem propósito
qualquer argumento contrário, a não ser que algum dia a ciência venha em
socorro dos que querem enxergar as coisas sob um ponto de vista
religioso, sustentando os fatos como milagres.
É bom deixar registrado que, enquanto em outras bíblias a palavra
Mar Vermelho aparece vinte e nove vezes, na Bíblia de Jerusalém[5],
encontramos: dezessete vezes usando Mar dos Juncos, apenas sete vezes
como Mar Vermelho, três vezes lê-se Mar de Suf e uma vez é citado Mar dos
Caniços.
A respeito da passagem do Mar Vermelho, Josefo nos relata outro
acontecimento idêntico:
(...) ninguém deve considerar como coisa impossível, que homens,
que viviam na inocência e na simplicidade desses primeiros tempos,
tivessem encontrado, para se salvar, uma passagem no mar, que se tenha
ela aberto por si mesma, quer isso tenha acontecido por vontade de Deus,
pois a mesma coisa aconteceu algum tempo depois aos macedônios, quando
passaram o mar da Panfília, sob o comando de Alexandre, quando Deus se
quis servir dessa nação para destruir o império dos persas, como o narram
os historiadores que escreveram a vida desse príncipe. Deixo, no entanto,
a cada qual que julgue como quiser. (JOSEFO, 1990, p. 87).
Observe que nesta fala de Josefo é dito dum fato semelhante
acontecido com os macedônios, que também a pé enxuto passaram o mar da
Panfília.
No livro de Josué (3,14-17) o povo de Israel atravessou o rio
Jordão, após as suas águas terem se dividido, fato semelhante à narrativa
da passagem do Mar Vermelho. Muitos também têm esse episódio como um
milagre. Entretanto, vejamos as seguintes notas explicativas dos
tradutores:
Sabemos que as águas do Jordão, no seu leito estreito e profundo,
vão minando as margens, provocando de vez em quando grandes desabamentos
de terras que podem obstruir por completo, a torrente. A partir desse
lugar, o leito permanece seco até que as águas rompem uma passagem e
encontram de novo o seu caminho. A história conta-nos que isso aconteceu
em 1267, 1914 e 1927. Em nada diminuiria a ação de Deus se se tivesse
servido miraculosamente, nesse momento exato, destes elementos locais.
(Bíblia Sagrada, Ed. Santuário, em relação à Js 3, 16, p. 286).
Relaciona-se esse fato com o ocorrido em 1267, segundo o cronista
árabe [de nome Huwairi, conforme Ed. Paulinas, pág. 222] o Jordão cessou
de correr durante dez horas, porque desmoronamentos do terreno haviam
obstruído o vale, precisamente na região de Adamá-Damieh. (Bíblia de
Jerusalém, em relação à Js 3, 16, p. 317).
... O Jordão, de fato, é um pequeno rio que, em alguns lugares,
permite a travessia a pé enxuto, principalmente graças à abundância de
pedras em seu leito. (Bíblia Sagrada, Ed. Vozes, em relação à Js 4, 3, p.
238).
Sempre que estivermos pesquisando algo para saber o que de fato
aconteceu, é recomendável vermos outras fontes. Vejamos uma outra versão
da saída dos hebreus do Egito:
“Estas são as etapas que os israelitas percorreram, desde que saíram da
terra do Egito, segundo os esquadrões, sob a direção de Moisés e Aarão.
Moisés registrou os seus pontos de partida, quando saíram sob as ordens
de Iahweh. Estas são as etapas, segundo os seus pontos de partida.
Partiram de Ramsés no primeiro mês. No décimo quinto dia do primeiro mês,
no dia seguinte à Páscoa, partiram de mão erguida, aos olhos de todo o
Egito... Os israelitas partiram de Ramsés e acamparam em Sucot. Em
seguida partiram de Sucot e acamparam em Etam, que está nos limites do
deserto. Partiram de Etam e voltaram em direção de Piairot, que está
diante de Baal-Sefon, e acamparam diante de Magdol. Partiram de Piairot e
alcançaram o deserto, depois de terem atravessado o mar, e depois de três
dias de marcha no deserto de Etam acamparam em Mara. Partiram de Mara e
chegaram a Elim. Em Elim havia doze fontes de água e setenta palmeiras;
ali acamparam. Partiram de Elim e acamparam junto ao mar dos Juncos. Em
seguida partiram do mar dos Juncos e acamparam no deserto de Sin.
Partiram do deserto de Sin e acamparam em Dafca. Partiram de Dafca e
acamparam em Alus. Partiram de Alus e acamparam em Rafidim; o povo não
encontrou ali água para beber. Partiram de Rafidim e acamparam no deserto
do Sinai...”.
Nessa versão, que reduzimos até a chegada ao Sinai, não há a menor
menção à abertura do mar Vermelho, não é interessante? Mas poderia alguém
nos perguntar, de onde você a retirou? Responderemos serenamente: da
Bíblia! Como! da Bíblia? Sim, é isso mesmo, essa passagem foi transcrita
dela, quem o quiser comprovar que então leia Nm 33,1-49. Com qual das
versões ficaremos como sendo a verdadeira? Por ela a passagem pelo mar
dos Juncos foi coisa normal, e não poderia ser de outra forma, já que até
mesmo uma rota comercial existia naquele local, conforme poder-se-á
comprovar pela linha pontilhada no mapa 1.
Para nós existem conflitos inexplicáveis. Primeiramente, ficamos
sem saber por qual motivo os hebreus saíram do Egito. O Faraó os deixou
sair (Ex 13,17)? Ou será que, ao invés disso, foram expulsos (Ex 12,39)?
Quem sabe, se não fugiram (Ex 14,5)? Ou, talvez, teria sido o próprio
Deus quem os tirou da servidão, conforme Ele afirma (Ex 20,2)? O mais
provável que tenha acontecido é que houve uma fuga, razão pela qual não
seguiram o caminho mais indicado, o que ligava o Egito à Ásia, pois nele
havia uma fortaleza egípcia (Muralha dos Príncipes). Isso é levantado por
Keller:
A primeira parte do caminho seguido pelos fugitivos é fácil de
acompanhar no mapa. Ele não conduzia – convém notá-lo – em direção ao que
se chamou mais tarde “caminho dos filisteus” (Êxodo 12.17), a grande
estrada que se estendia do Egito à Ásia, passando pela Palestina. Essa
grande estrada para caravanas e colunas militares seguia quase paralela à
costa do mar Mediterrâneo e era o caminho mais curto e melhor, mas também
o mais bem vigiado. Um exército de soldados e funcionários, estabelecido
no forte da fronteira, exercia rigoroso controle de todas as entradas e
saídas.
Esse caminho, portanto, oferecia grande perigo. Por esse motivo, o
povo de Israel seguia para o sul. [...]. (KELLER, 2000, p. 145).
Para quem estava fugindo, o melhor caminho era aquele onde não
havia nenhuma tropa do exército do Faraó para guarnecê-lo, razão pela
qual essa hipótese torna-se a mais provável. Poderemos ainda corroborá-la
com a perseguição levada a efeito pelo Faraó (Ex 14,6-9), isso não
aconteceria se ele tivesse deixado os hebreus saírem, mas plenamente
justificável se houvesse uma fuga, fato que tornaria o passo Ex 14,5 como
sendo o ocorrido. Com isso também não ficaria fora de propósito no caso
de os hebreus terem saído sem levar nenhuma provisão de alimentos para a
jornada, conforme narrado em Ex 12,39, embora, nessa passagem, se afirme
que eles foram expulsos.
Continuando, leiamos as seguintes passagens:
Ex 14,6-9: “O Faraó mandou aprontar o seu carro e tomou consigo o seu
povo; tomou seiscentos carros escolhidos e todos os carros do Egito, com
oficiais sobre todos eles. E Iahweh endureceu o coração de Faraó, rei do
Egito, e este perseguiu os israelitas, enquanto saíam de braço erguido.
Os egípcios perseguiram-nos, com todos os cavalos e carros de Faraó, e os
cavaleiros e o seu exército, e os alcançaram acampados junto ao mar,
perto de Piairot, diante de Baal Sefo”’.
Ex 14,23: “Os egípcios que os perseguiam entraram atrás deles, todos os
cavalos de Faraó, os seus carros e os seus cavaleiros, até o meio do
mar”.
Ex 14,28: “As águas voltaram e cobriram os carros e cavaleiros de todo o
exército de Faraó, que os haviam seguido no mar; e não escapou um só
deles”.
O primeiro conflito é: como os egípcios poderiam estar ainda
usando os cavalos, uma vez que, quando a peste maligna, uma das pragas
divinas, os atingiu fazendo morrer todos os seus animais (Ex 9,6)?
O segundo é em relação ao Faraó. Conforme os estudiosos, é
provável que o Faraó daquela época tenha sido Ramsés II. O relato diz que
todos morreram, exército e Faraó, não escapando um só. Mas será que um
evento desse, envolvendo o próprio Faraó, não teria sido registrado pelos
egípcios? Será que houve uma lamentável falha entre os historiadores
daquela época? Apesar de nossos esforços em procurar saber como Ramsés II
morreu, só encontramos essas referências: “Ramsés morreu com
aproximadamente 90 anos e gerou pelo menos 90 filhos. Quando estudaram a
múmia de Ramsés, viram grandes problemas com seus dentes. Pode ser que
tenha morrido por infecção. Sabe-se que nos seus últimos dias sofreu
bastante”. (6); Rich Gore, no texto Ramsés, o Grande, afirmou que “Como o
grande Ramsés? Provavelmente de velhice. (National Geographic Ed. 26 A,
p. 35) e em outro artigo nessa mesma revista R. Weeks, no texto Vale dos
Reis, diz que: “Ramsés II morreu em agosto de 1213 a.C., com cerca de 90
anos. (p. 60).
Entretanto, fosse sua morte provocada pela maneira descrita na
Bíblia, fatalmente haveria registro disso em outras fontes. Por
conseguinte, caso o Faraó não tenha morrido afogado, o que é o mais
provável, então o relato bíblico é fictício; eis o dilema.
De nada adianta usar as interpretações piedosas de muitas das
religiões tradicionais para sustentar esses fatos, pois, ao homem
inquiridor dos dias atuais, alegações desse tipo não convencem, já que
ele prefere que se busque a verdade dos fatos. Devemos, mesmo à custa de
muita indignação por parte de algumas pessoas, apontar os equívocos de
interpretação, as interpolações, bem como as deliberadas adulterações,
para mostrar a verdade limpa e pura, que muito mais agrada que uma
mentira evidenciada pelos fatos.
Devem, pois, os teólogos rever seus conceitos que, diga-se de
passagem, em sua maioria são dum passado remoto e que, por força dos
conhecimentos atuais, tornaram-se obsoletos. “A verdade ainda que
tardia”, diria Tiradentes numa situação dessa.
Finalizando, veremos a opinião de Espinosa a respeito de milagres
desse tipo:
O homem comum chama, portanto, milagres ou obras de Deus aos fatos
insólitos da natureza e, em parte por devoção, em parte pelo desejo de
contrariar os que cultivam as ciências da natureza, prefere ignorar as
causas naturais das coisas e só anseia por ouvir falar do que mais ignora
e que, por isso mesmo, mais admira. Isso, porque o vulgo é incapaz de
adorar a Deus e atribuir tudo ao seu poder e à sua vontade, sem elidir as
causas naturais ou imaginar coisas estranhas ao curso da natureza. Se
alguma vez ele admira a potência de Deus, é quando imagina como que a
subjugar a potência da natureza. (ESPINOSA, 2003, p. 96).
O que temos dito é que o maior milagre, no caso da travessia do
Mar Vermelho, não é propriamente abrir as águas em duas muralhas, mas o
seu deslocamento, por cerca de 360 km, para atribuir a essa travessia o
caráter de milagre. Então para nós é válida essa fala de Paulo: “... se
recusarão a dar ouvidos à verdade, entregando-se às fábulas” (2Tm 4,4).
E aconteceu no Sinai
Há tempos que estamos pensando em fazer um estudo específico sobre
os acontecimentos no Monte Sinai, mas acabávamos sendo envolvidos por
outros assuntos; por isso, este foi sendo postergado. Entretanto, essa
idéia ainda nos persegue. Vejamos, então, o que poderemos fazer.
Primeiramente, devemos dizer porque tal idéia surgiu. Como sempre
estamos lendo textos da Bíblia, em certa oportunidade, deparamos com um
que afirmava que as “Leis do Sinai” haviam sido promulgadas pelos anjos.
Isso nos despertou a curiosidade, pois, até então, sabíamos que Deus
pessoalmente teria passado essas leis a Moisés.
Mas, antes de entrar no assunto, vejamos o seguinte relato a
respeito dos fenômenos ocorridos naquela ocasião:
Ex 19,16-20: “Três dias depois, pela manhã, houve trovões e relâmpagos e
uma nuvem espessa desceu sobre a montanha, enquanto o toque da trombeta
soava fortemente. O povo que estava no acampamento começou a tremer.
Então Moisés tirou o povo do acampamento para receber Deus. E eles se
colocaram ao pé da montanha. Toda a montanha do Sinai fumegava, porque
Javé tinha descido sobre ela no fogo; a fumaça subia, como fumaça de
fornalha. E a montanha toda estremecia. O som da trombeta aumentava cada
vez mais, enquanto Moisés falava e Deus lhe respondia com o trovão. Javé
desceu no topo da montanha do Sinai e chamou Moisés lá para o alto”.
Chamamos sua atenção, caro leitor, para “trovões, relâmpagos,
nuvem espessa, o Sinai fumegava, o fogo, a montanha toda estremecia”
coisas que, presumimos, estariam bem próximas de uma ocorrência natural,
tipo vulcânica. Essa região, que faz parte da placa tectônica Africana,
fica bem próxima dos limites das placas da Grécia e da Arábica e, como
sabemos, é no encontro delas que ocorrem as manifestações vulcânicas. Se
nessa região esses fenômenos não acontecem nos dias de hoje poderia muito
bem ter acontecido naquela ocasião, uma vez que a mesma possui as
condições geológicas para tal e, por outro lado, a própria narrativa nos
leva a isso.
Destaquemos as seguintes passagens:
Nm 16,32: “Logo que Moisés acabou de falar, o chão rachou debaixo dos
pés, a terra abriu a boca e os engoliu com suas famílias, junto com os
homens de Coré e todos os seus bens”.
Nm 16,35: “Saiu um fogo da parte de Javé e devorou os duzentos e
cinqüenta homens”.
Observe que os fatos como “o chão rachou debaixo dos pés” e “um
fogo devorou”, que nos levam a ter que esses acontecimentos estão
próximos de ocorrências naturais em regiões vulcânicas? Não é esse o caso
daquela região? Esses dois acontecimentos se deram em Cades, local
situado cerca de 230 km a nordeste do Monte Sinai; portanto, dentro do
que se poderia esperar para uma região deste tipo.
Podemos, ainda, para corroborar essas ocorrências na região,
apresentar fatos históricos narrados por Flávio Josefo. Esse historiador
hebreu relata, em Antiguidades Judaicas (capítulo 7 do Décimo Quinto
Livro), um abalo sísmico ocorrido acerca de 380 km do Sinai, mais
precisamente na cidade de Jerusalém, acontecido, segundo pudemos
levantar, no ano 31 a.C. (AGOLLO, 1994):
No sétimo ano do reinado de Herodes, que era o mesmo em que dera a
batalha de Ácio, entre Augusto e Antônio, aconteceu na Judéia o maior
terremoto de que jamais ali se soube; a maior parte do gado morreu e
perto de dez mil homens ficaram esmagados sob as ruínas das casas.
(JOSEFO, 1990, p. 355)
Ressaltamos que, sendo esse “o maior terremoto que jamais ali se
soube”, pode-se perfeitamente disso concluir que:
a) terremotos eram fatos comuns àquela região;
b) entre vários outros, esse especificamente foi o maior.
Tendo em vista essa catástrofe, Herodes faz um discurso para
levantar o ânimo dos soldados, apesar de que nada sofreram de mal nessa
ocorrência. Vejamos a narrativa de Josefo, da qual transcrevemos o
trecho:
Nossos males não foram, sem dúvida tão grandes como eles e outros
os apregoam, pois esse terremoto não foi causado pela cólera de Deus,
contra nós; mas por um daqueles acidentes que as causas naturais
produzem. E mesmo que tivesse acontecido pela vontade de Deus, poderíamos
nós duvidar de que sua cólera não se tenha satisfeito com esse castigo,
pois de outro modo, Ele não o teria feito cessar, nem manifestado, como
fez, com sinais evidentes, que Ele aprova a justa guerra que
empreendemos? (JOSEFO, 1990, p. 356).
E, como naquela época o nível de conhecimento desses fenômenos da
natureza era completamente nulo, deviam ficar mesmo apavorados com essas
ocorrências. Alguns deles julgavam ser a manifestação da ira de Deus,
conforme podemos claramente ver pelo discurso de Herodes. Muitos desses
fenômenos aconteciam no céu, local onde acreditavam ser a morada de Deus,
assim, pressupunham que tudo que vinha de lá era proveniente do Criador;
como exemplo, citamos: “... enquanto Moisés falava e Deus lhe respondia
com o trovão” (Ex 19,19); fica aí a comprovação da ignorância desses
fenômenos, como neste exemplo de considerar o trovão como a voz divina,
que são de ordem natural; mas naquele tempo eram considerados como
sobrenaturais, representando, para eles, o estado de humor do Pai
Supremo.
Na seqüência da narrativa, que estamos analisando, é que Moisés
recebe em duas tábuas os Dez Mandamentos: “Quando Javé terminou de falar
com Moisés no monte Sinai, entregou-lhe as duas tábuas da aliança; eram
tábuas de pedra, escritas pelo dedo de Deus”. (Ex 31,18).
Até aqui as coisas não estavam tão complicadas, a não ser pelos
fenômenos ocorridos no monte Sinai e, por isso, em tudo acreditávamos sem
qualquer conflito. Entretanto, inesperadamente, as coisas “estremeceram”,
depois de lermos no livro Atos dos Apóstolos:
At 7,38: “Foi ele [Moisés], na assembléia do deserto, quem serviu de
intermediário entre o anjo que lhe falava no monte Sinai e os nossos
pais. Ele recebeu as palavras de vida, para transmiti-las a nós”.
A narrativa diz “o anjo” e, pela concepção da época, isso
significava que o próprio Deus teria se manifestado; entretanto, nessa
passagem, segundo o que pensamos, não seria essa a idéia a prevalecer. Um
pouco antes, está narrado: “Quarenta anos depois, apareceu-lhe no deserto
do monte Sinai um anjo na chama de uma sarça que ardia” (At 7,30) e,
posteriormente, no versículo 53 se dirá anjos, fugindo, portanto, do
conceito tradicional. E, se não estivermos enganados, em At 7,38 deveria
estar “um anjo”, ao invés de “o anjo”, já que, no primeiro caso, seria o
artigo indefinido ficando, portanto, condizente com At 7,30.
Em outras oportunidades encontramos a confirmação de que as leis
foram passadas pelos anjos, no plural mesmo, indicando terem sido mais de
um. Concluímos que, é bem provável, seja essa a realidade, pois não
concebemos o próprio Deus, criador do Universo infinito, vir pessoalmente
entrar em contato com os seres humanos, uma vez que usaria para isso os
seus mensageiros ou anjos, pois “não são todos eles espíritos
encarregados para um serviço, enviados para servir àqueles que deverão
herdar a salvação?” (Hb 1,14). Vejamos, então, as seguintes passagens:
At 7,53: “Vocês receberam a Lei, promulgada através dos anjos, e não a
observaram!”
Gl 3,19: “... A Lei foi promulgada pelos anjos e um homem serviu de
intermediário”.
Hb 2,2: “De fato, se a palavra transmitida por meio dos anjos se mostrou
válida, e toda transgressão e desobediência recebeu um justo
castigo,...”.
Assim, na própria Bíblia, encontramos elementos que nos levam à
conclusão de que não foi realmente Deus quem esteve no monte Sinai. Pelo
próprio conteúdo dessas leis já questionávamos sobre isso. Nos é passado
o nono mandamento como “não cobiçar a mulher do próximo”; mas duas coisas
nós podemos colocar sobre ele. Primeiro, Deus jamais diria um absurdo
desse, pois, se trata, com certeza, de uma determinação altamente
machista, atitude incompatível com a criação do ser humano por Deus, já
que, quando Ele o criou os fez macho e fêmea. Além disso, partindo do
pressuposto de que o que não é proibido é permitido, diríamos que a
mulher poderá cobiçar o marido da outra sem nenhum problema, o que
demonstra um “furo” nessa Sua determinação. O segundo, é que, apesar de
sempre o colocarem dessa forma, na verdade, esse mandamento é mais
abrangente:
Ex 20,17: “Não cobice a casa do seu próximo, nem a mulher do próximo, nem
o escravo, nem a escrava, nem o boi, nem o jumento, nem coisa alguma que
pertença ao seu próximo”.
Isto posto, iremos concordar com o pensamento do escritor Hélio
Pinto que diz que os Dez Mandamentos na realidade são nove. No texto
bíblico a mulher é colocada como propriedade do homem, coisa que naquela
época era normal; não nos dias de hoje. E, além desse novo absurdo,
podemos ainda dizer que uma Lei, para ser de origem divina, deve ser,
acima de tudo “atemporal”, ou seja, serve para todos os tempos; também
deve servir para todos os povos, o que não ocorre como se encontra
escrita na passagem em relação a escravo, boi ou jumento, pois eram
coisas de muito valor na época, já que, por exemplo, o jumento era
instrumento de transporte (hoje temos os automóveis), ter bois
significava ser alguém de posses; e quanto aos escravos, nos tempos
atuais, dá até cadeia para quem escravizar alguém.
Nossa surpresa maior foi quando nos deparamos com a seguinte
afirmativa: “Os babilônios desenvolveram as leis morais mais tarde
incorporadas por Moisés nos Dez Mandamentos e que ainda hoje constituem
os alicerces do cristianismo”. (VAN LOON, 1981, p. 103).
Mas será que é isso mesmo? Entretanto, pesquisas posteriores
acabaram por nos revelar a verdade. Kersten, por exemplo, nos passa a
seguinte informação:
Moisés continua a ser considerado um grande legislador, porém, é
fato sabido que os Dez Mandamentos nada mais eram que o resumo de leis
que vigoraram entre povos do Oriente Próximo e da Índia, muito antes do
nascimento de Moisés e que eram comuns também na Babilônia, já há 700
anos. A famosa lei do rei babilônico de Hamurabi (1728-1686 a.C.),
inspirada no Rig-Veda dos hindus, já continha todos os dez mandamentos.
(KERSTEN, 1988, p. 56).
Vejamos a correlação de algumas leis:
Leis MosaicasCódigo de HamurabiNão tenha relações sexuais com sua mãe.
Ela é de seu pai, e é sua mãe; não tenha relações sexuais com ela. (Lv
18,7).Se alguém for culpado de incesto com sua mãe depois de seu pai,
ambos deverão ser queimados.
Se alguém ferir o seu próximo, deverá ser feito para ele aquilo que ele
fez para o outro:
fratura por fratura,
olho por olho,
dente por dente.
A pessoa sofrerá o mesmo dano que tiver causado a outro: (Lv 24,29-30).Se
um homem quebrar o osso de outro homem, o primeiro terá também o seu osso
quebrado.
Se homem arrancar o olho de outro homem, o olho do primeiro deverá ser
arrancado (olho por olho).
Se um homem quebrar o dente de um seu igual, o dente deste homem também
deverá ser quebrado (dente por dente).Os juízes deverão fazer cuidadosa
investigação. Se a testemunha for falsa e tiver caluniado o seu irmão,
então vocês a tratarão do mesmo modo como ela própria maquinava tratar o
seu próximo. Desse modo, você eliminará o mal do seu meio. (Dt 19,1820).Se alguém “apontar o dedo” (enganar) a irmã de um deus ou a esposa de
outro alguém e não puder provar o que disse, esta pessoa deve ser levada
frente aos juízes e sua sobrancelha deverá ser marcada.
Se um homem for pego em flagrante tendo relações sexuais com uma mulher
casada, ambos serão mortos, tanto o homem como a mulher. Desse modo, você
eliminará o mal de Israel. (Dt 22,22).Se a esposa de alguém for
surpreendida em flagrante com outro homem, ambos devem ser amarrados e
jogados dentro d’água, mas o marido pode perdoar a sua esposa, assim como
o rei perdoa a seus escravos.
Isso já tinha desestruturado todas as
nossas convicções a respeito do assunto, não precisava de mais nada;
entretanto, mais uma informação chega às nossas mãos. Foi a gota d’água
que veio, por definitivo, mudar conceitos antigos, que aprendemos como se
fossem verdades absolutas.
Desta vez o autor foi Werner Keller, que, no seu livro e a Bíblia
tinha razão... demonstrou, de forma categórica, tudo quanto já tínhamos
visto anteriormente. Vejamos suas colocações:
Era perfeitamente possível concluir pela singularidade das leis
morais, dadas por Deus ao povo de Israel, sem modelo nem paralelo no
antigo Oriente, antes da descoberta dos elementos, indicando clara e
inequivocamente que, precisamente em um dos seus trechos de maior relevo,
ou seja, os Dez Mandamentos e demais leis promulgadas para Israel, a
Bíblia não está sozinha, pois sobretudo ali ela se revela como imbuída do
espírito do antigo Oriente. Assim, os Dez Mandamentos representam uma
espécie de ‘documento de aliança’, ou a ‘lei básica’ da aliança entre
Israel e seu Deus. Em absoluto, não surpreende o fato de corresponder,
perfeitamente, aos acordos de vassalagem, celebrados no antigo Oriente,
para regulamentar os vínculos entre um soberano e os reis vassalos, por
ele instituídos para governar os povos subjugados. Os textos desses
contratos de vassalagem sempre começavam citando o nome, título e os
méritos do respectivo ‘grão-rei’. Correspondentemente, a Bíblia reza: ‘Eu
sou o Senhor teu Deus, que te tirei do Egito, da casa da servidão’ (Êxodo
20.2). Logo, também, ali cita-se primeiro o nome (a palavra ‘Senhor”,
segundo a praxe bíblica, substituindo o nome verdadeiro de Jeová, cujo
pronunciar era proibido), o título (‘Deus”) e o mérito decisivo (‘que te
tirei da terra do Egito’) do grão-rei; só que, neste caso específico,
tratava-se do divino ‘grão-rei’ de Israel, do Deus da aliança. Ademais,
os vassalos eram proibidos de estabelecer relações com soberanos
estrangeiros. A isso corresponde o mandamento ‘Não terás outros deuses
diante de Mim’ (êxodo 20.3). A forma imperativa de ‘tu deves’, ‘tu não
deves’ está sempre presente nos acordos entre um grão-rei e seus
vassalos; portanto, ao contrário do que supõem alguns cientistas, ela
absolutamente não se restringe aos Dez Mandamentos bíblicos. Por exemplo,
um daqueles tratados de vassalagem reza: ‘Não cobiçarás nenhuma região do
país de Hatti’, conquanto a Bíblia diga: ‘Não cobiçarás a casa do teu
próximo...’ (Êxodo 20.17). Foram apuradas ainda outras concordâncias,
como as referentes à guarda das tábuas como os mandamentos na arca da
aliança (as cópias dos contratos de vassalagem também eram guardadas no
interior do santuário), bem como à selagem dos contratos,
respectivamente, dos mandamentos, com bênção e maldições, pois também
Moisés falou (Deuteronômio 11.26 a 28): ‘Eis que eu ponho hoje diante dos
vossos olhos a benção e a maldição; a benção, se observardes aos
mandamentos do Senhor vosso Deus, que eu hoje vos prescrevo; a maldição,
se não obedecerdes aos mandamentos do Senhor vosso Deus, mas vos
apartardes do caminho que eu hoje vos mostro...’ Aliás, o renomado
cientista católico, pesquisador de Bíblia, Roland de Vaux, já mencionado
por várias vezes, encontrou em diversos acordos de vassalagem hititas a
disposição de ler, em intervalos regulares, o texto do acordo, as leis
bíblicas deveriam ser lidas em público, pois ‘todos os sete anos, no ano
da remissão, na solenidade dos tabernáculos, quando todos os filhos de
Israel se juntarem para aparecer diante do Senhor teu Deus... lerás as
palavras desta lei diante de todo o Israel, o qual ouvirá... para que,
ouvindo, aprendam e temam o Senhor vosso Deus, e guardem e cumpram todas
as palavras desta lei’ (Deuteronômio 31.1,10 a 12).
Tudo isso refere-se somente à forma externa dos Dez Mandamentos. No
entanto, o que há em relação ao seu conteúdo espiritual? Tampouco, quanto
a isso, faltam paralelos. Assim, na Assíria, um sacerdote, ao exorcizar
os ‘demônios’ de um doente, teve de perguntar: ‘Será que ele (o doente)
ofendeu um deus? Menosprezou uma deusa?... Menosprezou seu pai e sua mãe?
Menosprezou a irmã mais velha?... Teria ele falado ‘não é assim, ao invés
de ‘é assim’ (ou vice-versa)? ... Teria ele feito pesagem falsa? Invadido
a casa do seu próximo? Ter-se-ia aproximado demasiadamente da mulher do
seu próximo? Teria vertido o sangue do seu próximo?....
Por fim, seguem-se ainda alguns exemplos, tirados do chamado
‘ensinamento de Amenemope’, em uso no antigo Egito:
‘Não retirarás a pedra demarcando os limites do campo e não
alterarás a linha, seguida pela fita do metro; não cobiçarás nem um
côvado de terra e não derrubarás a demarcação das terras de uma viúva’.
‘Não cobiçarás a propriedade de um homem de posses modestas e não
terás fome do seu pão’.
‘Não regularás a balança de maneira errada, não adulterarás os
pesos e não diminuirás as peças da medida dos cereais’.
‘Não farás a desgraça de ninguém perante o tribunal e não
corromperás a justiça’.
‘Não darás risada de um cego, não farás troça de um anão e não
desfarás os planos de um paralítico’.
Da mesma forma, o ‘exemplo clássico’ que hoje em dia costuma ser
citado pelos pesquisadores da Bíblia é a chamada ‘confissão negativa’,
mencionada na introdução ao centésimo vigésimo quinto capítulo do Livro
dos Mortos. No antigo Egito era crença que o defunto ingressaria em uma
‘sala de justiça’, onde, perante quarenta e dois juízes dos mortos,
deveria fazer as seguintes declarações:
‘Não fiz adoecer ninguém.
Não fiz chorar ninguém.
Não matei ninguém.
Não fiz mal a ninguém.
Não diminuí os alimentos nos templos.
Não maculei os pães oferecidos aos deuses.
Não roubei os pães destinados aos mortos, como oferendas fúnebres.
Não tive relações sexuais (proibidas).
Não tive relações sexuais contrárias à natureza’.
E assim por diante.
Em outra parte veremos ainda que, graças às pesquisas mais
recentes, hoje em dia já se tornou bem menos acentuada a diferença,
outrora gritante, entre conceitos: ‘Aqui, a sublime fé monoteísta – ali,
a multidade bizarra de deidades’. Em certa época, pelo menos nos tempos
primitivos, aquela multidade de deidades existiu, inclusive em Israel,
conquanto a idéia da grandiosidade de figuras divinas, reais, fosse
divulgada igualmente nas crenças religiosas de outros povos, habitando as
imediações da Terra Santa. Da mesma forma, cumpre fazer constar que
também alhures houve moralidade; além das fronteiras de Israel, o povo
era igualmente responsável, tinha modos, observava os preceitos da lei,
ordem, ética e moral, e também ali as normas regendo o comportamento
humano encontravam uma expressão que, tanto no espírito quanto na letra,
correspondia perfeitamente aos regulamentos sagrados vigentes em Israel.
E, mais uma vez, a Bíblia tem razão, no sentido de que, nos seus textos
jurídicos, cuja peça principal são os Dez Mandamentos, ela nos transmite
um trecho pertinente, comprovado por respectivos paralelos na história
cultural e moral do antigo Oriente. O quadro assim constituído, e de modo
a dificultar que fosse mantida a outrora levantada pretensão da
singularidade das leis bíblicas, talvez confunda e intrigue a mente de
algumas pessoas. Lamentavelmente, não há condições de eliminar tal
confusão e insegurança. No entanto, hoje em dia, a confirmação
extrabíblica dos respectivos textos bíblicos revela o relacionamento de
Israel com seu ambiente cultural e histórico, bem como suas máximas, de
uma maneira bastante mais clara e precisa do que antes.... (KELLER, 2000,
pp. 157-160).
Foi aqui, finalmente, que jogamos, de vez, “a toalha no chão”,
vamos assim dizer, não resistindo aos inapeláveis argumentos históricos
desenvolvidos por Keller.
Não bastasse isso, ainda nos pipocava na mente, mais um fato
acontecido naquela ocasião. Leiamos:
Ex 32,1-6: “Quando o povo notou que Moisés estava demorando para descer
da montanha, reuniu-se em torno de Aarão, e lhe disse: 'Vamos! Faça para
nós um deus que caminhe à nossa frente, porque não sabemos o que
aconteceu com esse Moisés que nos tirou do Egito'. Aarão respondeu-lhes:
'Tirem os brincos de ouro de suas mulheres, filhos e filhas, e tragam
aqui'. Então todo o povo tirou os brincos e os levou para Aarão. Este
recebeu o ouro, fundiu-o num molde e fez a estátua de um bezerro. Então
eles disseram: 'Israel, este é o seu deus, que tirou você do Egito'.
Quando Aarão viu isso, construiu um altar diante da estátua, e proclamou:
'Amanhã será festa em honra de Javé'. No dia seguinte, levantaram-se bem
cedo, ofereceram holocaustos e levaram sacrifícios de comunhão. O povo
sentou-se para comer e beber, e depois se levantou para se divertir”.
Para um povo que sempre se dizia ser adorador de um Deus único,
bastou um mês e pouco a fim de que O trocasse por um bezerro de ouro.
Explicam-nos:
O “bezerro” de ouro, assim chamado por ironia, é de fato imagem de
novilho, um dos símbolos divinos do antigo Oriente. Um grupo concorrente
com o grupo de Moisés, ou fracção dissidente desse grupo, quis ou
pretendeu ter como símbolo da presença do seu Deus uma figura de touro em
vez da arca da Aliança. [...] (Bíblia de Jerusalém, p. 148).
Percebe-se claramente, nessa explicação, a intenção de amenizar o
fato, querendo atribuir a imagem do bezerro de ouro, a uma condição de
objeto substituto para a arca da Aliança, quando é provável que tal coisa
aconteceu tendo em vista a possibilidade deles não terem, como sempre se
diz, Javé como sendo o seu Deus. Observemos que, pelo texto, Aarão, irmão
de Moisés, atende ao pedido do povo para fazer uma imagem, sem qualquer
tipo de contestação; inclusive, é ele quem sugere o ouro para a
confeccionar, fato que sugere que isso era coisa comum entre eles. Apenas
para que o leitor não se perca, é bom lembrar que entre os deuses
egípcios havia um de nome Ápis que era nada mais nada menos que um touro.
Também “em Canaã e na Síria, o touro servia para representar a divindade”
(Bíblia Sagrada Vozes, p. 115). Assim, “este tipo particular de idolatria
foi um retrocesso à sua vida no Egito” (Bíblia Anotada, p. 125).
O pior é que isso não é um fato isolado, pois Jeroboão I (933-911
a.C.), rei de Israel, também mandou fundir dois bezerros deste nobre
metal, conforme se pode comprovar em 1Rs 12,28.
Diante disso não nos resta alternativa senão a de ver como
contraditória a atitude de Moisés, pois, por conta dessa idolatria, Deus
queria exterminar o povo deixando apenas ele para fazer uma grande nação,
só não o fazendo porque ele suplicou não o fizesse. Entretanto, parece
que Moisés “incorporou” a indignação divina e mandou matar, a fio de
espada, “parentes, amigos ou vizinhos” (Ex 32,27), de sorte que, “naquele
dia tombaram cerca de três mil homens do povo” (Ex 32,28). Esse é o preço
para incutir naquele povo que o seu Deus é que deveria ser adorado.
Pode ser que eventualmente isso venha a chocar a muitos;
entretanto, muitas vezes acontece isso mesmo, quando ficamos sabendo da
verdade. Alguns, com certeza nos chamarão de heréticos, como se isso
fosse mudar os fatos. Além de que, se o somos, estaríamos muito bem
acompanhados, pois Jesus foi também herético no seu tempo. Outros,
talvez, dirão que estamos possuídos por satanás, aos quais pedimos
estudar mais a história, pois irão ver que esse ser foi incorporado, na
Bíblia, por influência da cultura persa, pela doutrina de Zoroastro.
Deveríamos fazer um estudo mais aprofundado desses assuntos
bíblicos, demonstrando, por separação, a realidade da fantasia, sob pena
de, no futuro, ninguém mais dar valor algum a ela. Pelos estudos que
temos feito da Bíblia, a conclusão que inevitavelmente estamos chegando é
que, apesar dela ter sido imposta como sendo “a palavra de Deus”, ela é
sim um livro histórico, em que também se encontram registrados os
conceitos religiosos do povo hebreu, muitas vezes, cheios de
superstições, misturadas com mitologia, lendas e conceitos pagãos; daí a
necessidade de seu estudo sem preconceitos. Ressalva faremos apenas ao
Evangelho de Jesus.
Mas, apesar disso tudo, ainda poderemos aceitar que os Dez
Mandamentos são realmente de inspiração divina. Entretanto, teremos que
identificar quem foi o “Moisés” que antes os recebeu, já que, de certa
forma, eles constam de culturas religiosas bem anteriores à do líder
hebreu, conforme evidenciado no decorrer desse estudo.
Deuteronômio – lei divina ou mosaica?
Como sempre, usam desse livro bíblico para condenar o Espiritismo,
afirmando que a evocação dos mortos é proibida por Deus. Assim,
resolvemos, por agora, desenvolver uma análise para saber até onde
assiste razão aos que assim pensam.
Pouco tempo atrás (abril 2006), um bispo católico apresentou aos
fiéis o nosso livro A Bíblia à Moda da Casa, isso durante uma missa em
que era o celebrante, dizendo ao público: “A pessoa que o escreveu é
muito inteligente, mas esse livro só podia ser de um espírita”. Não
poucas vezes ouvimos essa mesma cantilena. Entretanto, não ficamos
chateados com isso, pois estamos certos de que realmente só poderia mesmo
vir de um espírita, pois ao espírita é dito para não aceitar as coisas
passivamente, que deve questionar tudo, uma vez que os que não agem assim
são encabrestados pelos que se julgam donos de um determinado
conhecimento.
O Sr. bispo recomendou às suas ovelhas que não lessem o tal livro.
Engraçado, como são as coisas, pois, para nós, quando nos proíbem de ler
algo é porque não estão tão certos da verdade que acreditam proteger,
porquanto, quem tem certeza de estar com ela, não teme absolutamente
nada, nem mesmo pensamentos contrários. Há, ainda, aqueles que buscam
mesmo é escondê-la, sem nenhum rubor no rosto.
Como nós estamos constantemente a procurá-la, como jóia rara, não
tememos ler nenhum livro ou artigo que seja contrário ao que achamos por
certo, pois se os argumentos colocados nos convencerem de que a verdade
está ali, abandonamos nosso pensamento anterior sem qualquer tipo de
constrangimento: “conhecereis a verdade e a verdade vos libertará” (Jo
8,32).
É no livro Deuteronômio que buscam a base para a condenação do
Espiritismo, resta-nos saber se ele é uma lei divina ou uma lei de
Moisés. Nós procuraremos demonstrar que são completamente incoerentes
nessa assertiva, uma vez que, além de confundirem o objeto da proibição,
nem eles mesmos fazem questão de cumpri-lo, usando, portanto, de dois
pesos e duas medidas.
Primeiramente é importante saber o que significa Deuteronômio:
O título grego do livro significa segunda lei ou cópia da lei: lei,
porque o livro tem muito de código legal; segunda, porque outra a
precedeu. Os judeus o chamavam debarim, ou seja, palavras: porque o
livro, até o final do capítulo 33, é um longo discurso de Moisés. Um
discurso no qual cabem muitas coisas. Se nos limitarmos a indicações
programáticas, apontaríamos: começa o retrospectivo (1,1); começa a
legislação (4,44); começa a aliança (28,69); começam as bênçãos (33,1).
(Bíblia do Peregrino, p. 292).
O que contém:
O Código deuteronômico contém também prescrições alheias ao Código
da Aliança e por vezes arcaicas, que provêm de fontes desconhecidas.
(Bíblia de Jerusalém, p. 30).
Antes de morrer, Moisés dá início ao assentamento das tribos.
Promulga um código que prevê e decide as situações mais importantes da
comunidade: monarquia, sacerdócio, profetismo, culto, justiça social,
guerra e paz, família, escravidão e sociedade, direito civil, processual
e penal. (Bíblia do Peregrino, p. 292).
12,1-26,19. A Lei deuteronômica contém leis que se referem aos
vários aspectos da vida nacional, como leis sociais, cultuais e
criminais. (Bíblia Sagrada Vozes, p. 211).
O livro não é uma simples repetição da legislação contida nos
livros precedentes, mas além de leis novas, oferece complementos,
esclarecimentos e modificações às primeiras. É, de certo modo, uma
segunda lei, promulgada no fim da longa peregrinação dos israelitas,
paralela à lei dada no Sinai e destinada a regular mais de perto a vida
do povo escolhido, no solo da Terra Prometida à qual eles estavam para
chegar e dela tomar posse definitiva. (Bíblia Sagrada Paulinas, p. 183).
Qual é a sua verdadeira origem? Resposta: “O Decálogo, dentro da
Aliança, é a única Lei que provém diretamente de Deus; tudo o mais vem de
Moisés” (Bíblia Sagrada Santuário, p. 242). (grifo nosso).
Quem quiser pode confirmar, que várias prescrições contidas nele
podem ser encontradas, conforme já o demonstramos, no Código de Hamurabi,
escrito cerca de 1780 antes de nossa era:
“A lei sobre os escravos já aparece no Código da Aliança (Ex 21,15), como aparece também no Código de Hamurabi (art. 117), mas é fácil
ver-se a grande diferença com a escravatura greco-romana”. (Bíblia
Sagrada Santuário, p. 255).
“A lei de talião assenta-se em instituições sedentárias (Ex 21,24;
Lv 24,19), contra os costumes nômades baseados nas represálias (Gn 4,15-
24). O equilíbrio dos clãs exigia a lei de talião, em que o culpado é
posto no lugar de sua vítima, existente no Código de Hamurabi (195, 197,
200, 210, 230)”. (Bíblia Sagrada Santuário, p. 260).
“O código de Hamurabi (par. 129) é mais benigno para estes casos
que a lei de Israel”. (Bíblia Sagrada Santuário, p. 264).
Entendemos que, se esse livro, o Deuteronômio, fosse mesmo todo de
origem divina, os que têm a Bíblia como fundamento de sua religião, não
deveriam deixar de segui-lo. Entretanto, não é o que observamos, já que,
entre várias outras coisas, não cumprem:
Dt 21,15-16: “Se um homem tiver duas mulheres, uma a quem ama e outra a
quem aborrece, e uma e outra lhe derem filhos, e o primogênito for da
aborrecida, no dia em que fizer herdar a seus filhos aquilo que possuir,
não poderá dar a primogenitura ao filho da amada, preferindo-o ao filho
da aborrecida, que é o primogênito”.
Dt 21,18-21: “Se alguém tiver um filho contumaz e rebelde, que não
obedece à voz de seu pai e à de sua mãe, e, ainda castigado, não lhes dá
ouvidos, pegarão nele seu pai e sua mãe e o levarão aos anciãos da
cidade, à sua porta, e lhes dirão: Este nosso filho é rebelde e contumaz,
não dá ouvidos à nossa voz: é dissoluto e beberrão. Então todos os homens
da sua cidade o apedrejarão, até que morra; assim eliminarás o mal do
meio de ti: todo o Israel ouvirá e temerá”.
Dt 22,10: “Não lavrarás com junta de boi e jumento”.
Dt 22,23-24: “Se houver moça virgem, desposada, e um homem a achar na
cidade e se deitar com ela, então trareis ambos à porta daquela cidade, e
os apedrejareis, até que morram; a moça, porquanto não gritou na cidade,
e o homem, porque humilhou a mulher do seu próximo; assim eliminarás o
mal do meio de ti”.
Dt 23,2: “Aquele a quem forem trilhados os testículos, ou cortado o
membro viril, não entrará na assembléia do Senhor”.
Dt 23,3: “Nenhum bastardo entrará na assembléia do Senhor; nem ainda a
sua décima geração entrará nela”.
Dt 23,14: “Dentre as tuas armas terás um pau; e quando te abaixares fora,
cavarás com ele, e, volvendo-te, cobrirás o que defecaste”.
Dt 25,5: “Se irmãos morarem juntos, e um deles morrer, sem filhos, então
a mulher do que morreu não se casará com outro estranho, fora da família;
seu cunhado a tomará e a receberá por mulher, e exercerá para com ela a
obrigação de cunhado”.
Dt 25,11-12: “Quando brigarem dois homens, um contra o outro, e a mulher
de um chegar para livrar o marido da mão do que o fere, e ela estender a
mão, e o pegar pelas suas vergonhas, cortar-lhe-ás a mão: não a olharás
com piedade”.
Diante do exposto, só mesmo por um fundamentalismo exacerbado
pode-se atribuir tais passagens como fruto de inspiração divina.
Jesus disse, por várias vezes, “aprendeste o que foi dito” (leiase: com Moisés), eu porém vos digo, conforme narra Mateus
(5,21.27.31.33.38.43); sendo que algumas delas foram radicalmente contra
o que se constava na legislação anterior, lei mosaica, como a questão do
olho por olho, a do adultério e sobre o divórcio (Dt 19,21; 22,22; 24,1).
Ele recomendou-nos amar até os inimigos, enquanto Moisés permitia odiálos (Lv 19,18 e Mt 5,43).
Entretanto quanto aos Dez Mandamentos, Jesus não os altera ou
modifica, apenas os vincula, como dependentes destes dois princípios:
“amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a ti mesmo” (Mt
22,37-40). E quando lhe perguntam o que fazer para herdar a vida eterna,
ele, primeiramente, cita que se deve cumprir os Dez Mandamentos, para
depois também ressaltar a caridade em favor do próximo (Lc 18,18-22).
Há uma passagem muito clara quanto ao tempo em que vigoraram a lei
e os profetas; leiamos: “A lei e os profetas vigoraram até João; desde
então é anunciado o evangelho do reino de Deus, e todo homem forceja por
entrar nele”. (Lc 16,16) logo, podemos concluir que a partir dele, Jesus,
o que prevalece é o Evangelho.
Mas, apesar de tudo isso, uma passagem é sempre citada como sendo
a corroboração de Jesus em relação a se seguir o Antigo Testamento: “Não
penseis que vim destruir a lei ou os profetas; não vim destruir, mas
cumprir” (Mt 5,17). Entretanto, falta aos que assim pensam um maior
conhecimento bíblico, pois Jesus com o “a lei ou os profetas”, se é que
disse isso, estava se referindo às profecias, que acreditavam existir a
seu respeito, como podemos comprovar em:
Lc 24,44-48: “Depois lhe disse: São estas as palavras que vos falei,
estando ainda convosco, que importava que se cumprisse tudo o que de mim
estava escrito na Lei de Moisés, nos Profetas e nos Salmos. Então lhes
abriu o entendimento para compreenderem as Escrituras; e disse-lhes:
“Assim está escrito que o Cristo padecesse, e ao terceiro dia ressurgisse
dentre os mortos; e que em seu nome se pregasse o arrependimento para
remissão dos pecados, a todas as nações, começando por Jerusalém. Vós
sois testemunhas destas coisas'”.
E para que não paire nenhuma dúvida que Moisés implantou diversas
leis que, para dar sustentação à sua liderança frente ao povo judeu,
disse terem vindo de Deus; vemos que, quando guarda as leis divinas
dentro da Arca da Aliança (Dt 10,5), ele só coloca os Dez Mandamentos,
gravados nas duas tábuas; as outras, as que ele mesmo instituiu,
nitidamente reguladoras das relações sociais, foram deixadas do lado de
fora da Arca (Dt 31,26), numa evidente demonstração da superioridade das
primeiras em relação às segundas, já que ele nem ousou guardá-las dentro
da Arca, consciente de que não provinham mesmo de Deus. As seguintes
passagens confirmam o que estamos falando:
Dt 4,1-2.5-6: “Agora, pois ó Israel, ouve os estatutos e as normas que eu
hoje vos ensino a praticar, a fim de que vivais e entreis para possuir a
terra que vos dará Iahweh, o Deus de vossos pais. Nada acrescentareis ao
que eu vos ordeno, e nada tirareis também: observareis os mandamentos de
Iahweh vosso Deus tais como vo-los prescrevo. Eis que vos ensinei
estatutos e normas, conforme Iahweh meu Deus me ordenara, para que os
ponhais em prática na terra em que estais entrando, a fim de tomardes
posse dela. Portanto, cuidai de pô-los em prática, pois isto vos tornará
sábios e inteligentes aos olhos dos povos”.
Dt 4,13-14: “Ele vos revelou então a Aliança que vos ordenara cumprir: as
Dez Palavras, escrevendo-as em duas tábuas de pedra. Nessa ocasião Iahweh
ordenou-me ensinar-vos estatutos e normas, para que os cumprais na terra
para a qual passais, a fim de tornardes posse dela”.
Jr 7,21-22: "Assim diz o SENHOR dos Exércitos, o Deus de Israel: Ajuntai
os vossos holocaustos aos vossos sacrifícios, e comei carne. Porque nunca
falei a vossos pais, no dia em que os tirei da terra do Egito, nem lhes
ordenei coisa alguma acerca de holocaustos ou sacrifícios."
Observe que é clara a separação entre os Dez Mandamentos e os
estatutos e normas, obviamente porque são frutos do pensamento de Moisés,
não sendo, portanto, de inspiração divina. Quanto aos holocaustos ou
sacrifícios em Êxodo e Levítico há inúmeras determinações sobre esse
ritual, certamente instituído por Moisés, uma vez que, em Jr 7,21-22,
Deus nega ser o autor disso. Em algumas Bíblias percebemos que os
tradutores sabem muito bem dessa separação, veja:
O autor distingue as “Dez Palavras” (cf. 5,4s), escritas pelo
próprio Deus sobre as tábuas de pedras (Ex 34,18; Dt 5,22), e os
“estatutos e normas”, isto é, o Código Deuteronômico (cf. 12,1; 26,16).
(Bíblia de Jerusalém, p. 263).
Conforme a concepção do Dt, Moisés recebeu no Horeb só as “dez
palavras” (5,22). Recebeu também a ordem genérica de dar mais tarde aos
israelitas uma série articulada de “mandatos e decretos”. No deserto, os
israelitas se atêm aos dez mandamentos; em Moab, Moisés promulga novos
decretos, que de algum modo especificam e comentam o Decálogo (como
veremos). (Bíblia do Peregrino, p. 301).
Continuando com as passagens:
Dt 4,44: “Esta é a Lei que Moisés promulgou para os israelitas. São estes
os testemunhos, os estatutos e as normas que Moisés comunicou aos
israelitas, quando saíram do Egito”.
Dt 5,22: “Tais foram as palavras que, em voz alta, Iahweh dirigiu a toda
a vossa assembléia no monte, do meio do fogo, em meio a trevas, nuvens e
escuridão. Sem nada acrescentar, escreveu-as sobre duas tábuas e as
entregou a mim”.
Dt 10,1-5: “Iahweh disse-me então: ‘corta duas tábuas de pedra como as
primeiras e sobe até mim, na montanha. Faze também uma arca de madeira.
Escreverei sobre as tábuas as palavras que estavam sobre as primeiras
tábuas que quebraste, e tu as colocarás na arca’”. ... Ele, então,
escreveu sobre as tábuas o mesmo texto que havia escrito antes, as Dez
Palavras que Iahweh vos tinha falado na montanha, do meio do fogo, no dia
da assembléia. A seguir Iahweh entregou-as a mim. Depois voltei-me, desci
da montanha e coloquei as duas tábuas na arca que eu havia feito. E elas
permaneceram lá, conforme Iahweh me ordenara”.
Dt 10,12-13: “E agora, Israel, o que é que Iahweh teu Deus te pede?
Apenas que temas a Iahweh teu Deus, andando em seus caminhos, e o ames,
servindo a Iahweh teu Deus com todo o teu coração e com toda a tua alma,
e que observes os mandamentos de Iahweh e os estatutos que eu te ordeno
hoje, para o teu bem”.
Dt 31,24-26: “Quando acabou de escrever num livro esta Lei até o fim.
Moisés ordenou aos levitas que carregavam a Arca da Aliança de Iahweh:
“Tomai este livro da Lei e colocai-o ao lado da Arca da Aliança de Iahweh
vosso Deus. Ele estará ali como um testemunho contra ti”.
Passagens que não deixam dúvidas quanto à questão de existir a Lei
de Deus, de caráter moral e permanente, consubstanciada nos Dez
Mandamentos, e as leis mosaicas de cunho cerimonial e transitório.
Quando do término do templo construído por Salomão, introduzem a
Arca da Aliança para seu interior; aí é confirmado o que contém a Arca;
leiamos: “Nada havia na arca, senão as duas tábuas de pedra, que Moisés
ali pusera, junto a Horebe, quando o Senhor, fez um pacto com os filhos
de Israel, ao saírem eles da terra do Egito” (1Rs 8,9).
Então o que continha a Arca eram exatamente as duas tábuas com os
Dez Mandamentos, que ninguém duvida que sejam mesmo provenientes da
vontade de Deus, já que esse objeto era sagrado e por esse motivo nele se
guardava o que reputavam como sendo da divindade.
O que aqui colocamos são elementos suficientes para convencer aos
de mente aberta, os que não estão presos a dogmas ou “verdades”
estabelecidos pela liderança religiosa, que nada mais refletem senão os
seus interesses financeiros, já que a esmagadora maioria dela vive de sua
religião, quando deveriam viver para a mesma.
E reafirmando ainda mais o que já dissemos, diremos que realmente
não é a palavra de Deus, já que não fazem também questão de manter a
fidelidade ao texto original, o que seria improvável de se fazer, caso
pensassem mesmo serem tais determinações provindas do Criador. Se “A
verdade não pode existir em coisas que divergem” (S. Jerônimo), então
estaremos aguardando alguém nos apontar qual delas é a mais verdadeira
que as outras, aquela em que poderemos confiar ser fielmente tal e qual
aos originais. Vejamos o seguinte quadro:
Deuteronômio 18,10-11: a respeito da proibição de consultar os mortos
Análise das três últimas recomendações citadas nessa passagem:Bíblias
Católicasde Jerusaléminterrogue espíritosadivinhosinvoque os
mortosBarsaconsulte Pítonadivinhosindague dos mortos a verdadeAve
Mariaespiritismoà adivinhaçãoà evocação dos mortosPaulinasquem consulte
aos nigromantesadivinhosindague dos mortos a
verdadeSantuárioespiritismoaos sortilégiosà evocação dos mortosdo
Peregrinoespiritistasadivinhosnem necromantesVozesconsulte
médiunsinterrogue espíritosevoque os mortosPastoralconsulte
espíritosadivinhosinvoque os mortosBíblias ProtestantesSBBquem consulte
um espírito adivinhantemágicoconsulte os mortosNovo Mundoalguém que vá
consultar um médium espíritaum prognosticador profissional de
eventosconsulte os mortosMundo Cristãonecromantemágicoconsulte os mortos
O que vemos aqui é uma pequena amostra das modificações e adulterações
grosseiras dos textos sagrados, para se ajustarem às suas conveniências
doutrinárias ou objetivando perseguir a uma determinada corrente
religiosa, no caso, o Espiritismo. Para os que não sabem os termos
Espiritismo, Espiritista e médium foram criados por Kardec, trazidos a
público em 18 de abril de 1857, quando da primeira publicação de O Livro
dos Espíritos; inclusive tais termos não existem na língua hebraica,
grega e latina, conforme nos informa Severino Celestino, em Analisando as
Traduções Bíblicas.
Se fosse mesmo proibida por Deus a comunicação com os mortos,
então Jesus teria infringido uma lei divina, quando, no monte Tabor,
estabelece contato com os espíritos Moisés e Elias; e não nos venham com
a falácia de que Jesus pode! Como Jesus não infringiu nós, os espíritas,
também não estamos infringindo, pois não disse ele que “tudo o que eu fiz
vós podeis fazer e até coisas inda maiores” (Jo 14,12), nos colocando no
mesmo plano dele? Paulo disse: "Sede meus imitadores, como também eu sou
de Cristo" (1Cor 11,1). Então, se houve mesmo uma proibição à evocação de
mortos, esse episódio é a revogação plena dessa determinação.
Fica-nos a dúvida se os que se apegam à proibição de necromancia
acreditam que os mortos possam se comunicar, pois nos parece incoerente
proibir-se algo que não possa acontecer. No entanto, o episódio da
Transfiguração revela ser possível essa comunicação, enquanto o episódio
de Saul com a necromante nos mostra que o objeto da proibição
(necromancia) se deve, ao que nos parece, à finalidade e à forma de
evocação e não ao fato em si. E se os mortos não se comunicam, quem se
apresentou se fazendo passar por Jesus, três dias após sua morte? O
demônio disfarçado? Ilusão dos discípulos? Ficção dos “inspirados”
autores bíblicos? Deixamos essas perguntas para reflexão do leitor.
Raciocinemos: se nós, simples mortais, não criamos algo que só
venha, o tempo todo, a nos causar aborrecimento, por ser absolutamente
ilógico, por que, então, alguns de nós admitimos a possibilidade de ser
abominável para Deus a comunicação com os mortos? Ora, se os mortos se
comunicam conosco, foi porque Ele criou uma lei para o intercâmbio entre
os dois mundos. Além disso, é forçoso admitir a realidade do fato,
porquanto também seria ilógico proibir algo que não pudesse acontecer.
Milagres de ordem cósmica
Os que estudam a Bíblia, sem se utilizarem das conveniências
dogmáticas, devem estranhar certos acontecimentos, cujos relatos fogem ao
mais elementar senso de lógica. É assim que ficamos quando nos deparamos
com as narrativas de dois fenômenos de ordem cosmológica, os quais se
acredita serem “milagres” divinos.
Vejamos, então, duas extraordinárias ocorrências com o Sol. A
primeira, quando o Sol parou; a segunda, quando a sombra voltou a um
ponto anterior.
Diante dos amorreus Deus realiza um “milagre” fenomenal, fazendo
com que o Sol ficasse parado, de tal sorte que a claridade do dia
aumentou consideravelmente. Vejamos a narrativa:
Js 10,12-14: “Josué falou ao Senhor no dia em que ele entregou os
amorreus nas mãos dos filhos de Israel, e disse em presença dos
israelitas: 'Sol, detém-te sobre Gabaon. E tu ó lua, sobre o vale de
Ajalon'. E o Sol parou e a lua não se moveu até que o povo se vingou de
seus inimigos. Isto acha-se escrito no Livro do Justo. O Sol parou no
meio do céu, e não se apressou a pôr-se pelo espaço de quase um dia
inteiro. Não houve, nem antes nem depois, um dia como aquele, em que o
Senhor tenha obedecido à voz de um homem, porque o Senhor combatia por
Israel”.
Supomos que quem fez todas as leis naturais, deve ter pleno
conhecimento do funcionamento delas; mas, nesse caso, será que isso
acontece? Bom; é interessante como os dogmáticos não fazem a mínima
questão de analisar os textos; apenas interpretam da maneira como
aprenderam, de tal forma que erros teológicos do passado vão se
perpetuando. Haverá de aparecer um “herético” para mudar esse estado de
coisas. Nos candidatamos a essa função, já que não correremos mais o
risco de alguém nos fazer abjurar isso publicamente sob pena de nos
colocar numa fogueira ou “por piedade” nos dê a opção de tomar alguma
bebida letal.
Quem redigiu o texto bíblico demonstra não possuir o mínimo de
conhecimento da realidade cósmica. Observe-se que aqui fazemos questão de
tirá-lo à conta de inspiração divina, pois se isso tivesse mesmo
acontecido, o Sol poderia ficar parado para todo o sempre, que o dia não
aumentaria sua claridade em um minuto sequer. Sabe por que? É bem
simples; porque a lei natural que nos dá o ciclo dia e noite é o
movimento de rotação da terra sobre o seu próprio eixo. Assim, para essa
ocorrência, pouco importa a questão do Sol estar parado ou não.
E por mais que esse fato inverossímil pudesse mesmo ocorrer, ele
fatalmente iria refletir em todo o globo terrestre, o que deixaria
perplexos todos os povos do outro lado do hemisfério, aquele em que a
noite, conseqüentemente, ficaria aumentada em sua duração. Será que um
fenômeno tão extraordinário desse com repercussão em todo o planeta, não
tenha sido registrado por mais ninguém, a não ser pelos hebreus?
Pasme: “O dia em que Deus obedeceu a um homem”; o que nos obriga a
afirmar: “Não houve, nem antes nem depois, nem nunca haverá, um dia como
aquele”.
Vejamos a outra narrativa desses fenômenos que estamos analisando:
Is 38,1-8: “Naquele tempo, Ezequias esteve doente, quase à morte. O
profeta Isaías, filho de Amós, veio ter com ele e lhe disse: 'Eis o que
disse o Senhor: Põe em ordem a tua casa porque vais morrer, não te
restabelecerás'. Então Ezequias voltou-se para a parede e se pôs a orar
ao Senhor; 'Senhor, disse ele, lembrai-vos de que tenho andado diante de
vós com lealdade, de todo o coração segundo a vossa vontade'. E chorava
abundantemente. Depois a palavra do Senhor foi dirigida a Isaías nestes
termos: 'Vai dizer a Ezequias; Eis o que diz o Senhor, o Deus de Davi,
teu pai: Ouvi tua oração e vi tuas lágrimas, prolongarei tua vida por
quinze anos, livrar-te-ei, a ti e a esta cidade, das mãos do rei da
Assíria. Protegerei esta cidade. E eis o sinal, da parte do Senhor, para
convencer-te de que cumprirá a promessa: Farei a sombra recuar os dez
graus que o Sol já lhe fez descer no relógio solar de Acaz'. E o sol
voltou dez graus para trás”. (ver tb 2Rs 20,1-11).
Ficamos estarrecidos diante de tanta injustiça, quantas pessoas,
talvez até mais fiéis a Deus que Ezequias, não foram livradas da morte,
apesar de terem implorado a Deus para que não morressem... Quantas mães
virtuosas choraram a morte de seus filhos, porque Deus ficou insensível
às suas orações?... Será que o “Deus não faz acepção de pessoas” (At
10,34) foi deixado de lado?
Analisando o fenômeno, podemos supor, já que é a única coisa que
nos resta fazer, que o escritor bíblico acreditava que o Sol voltando um
pouco faria com que a sombra também voltasse, o que justificaria o
“milagre”, cujo objetivo era um sinal para provar a Ezequias que Deus
faria o que tinha prometido. Entretanto, conforme explicação anterior,
isso nada adiantaria, pois a sombra continuaria avançando sempre pra
frente obedecendo a lei cósmica irrevogável de rotação da Terra.
Resta-nos, na tentativa de salvar a narrativa, supor que, então,
talvez a Terra é que tenha voltado, já que é o único fato que faria a
sombra retroceder. Mas o que aconteceria se isso viesse ocorrer? É fácil
analisar as conseqüências. Vamos dar um exemplo. Suponhamos que tenhamos
em nossas mãos uma bacia cheia de água e que, inicialmente, comecemos a
caminhar, para ir, gradativamente, apertando o passo até que, em
determinado momento, estivéssemos a correr. Imagine a cena. Agora,
imaginemos que fizéssemos uma parada brusca e, imediatamente, voltássemos
a um ponto qualquer lá atrás. O que aconteceria com a água dentro da
bacia? Faça uma comparação em relação à água do mar e tire as suas
conclusões sobre o que sucederia com ela. E ainda mais, o que ocorreria
conosco; seríamos lançados para o espaço sideral?
O que será que acontece com as pessoas? O que as fazem abdicar do
sagrado dever de usar a inteligência que Deus deu a cada um de nós? Digo
sagrado dever, pois é ela que nos difere dos animais. Por que agimos com
preguiça mental de estudar, analisar e de pesquisar, simplesmente
aceitando tudo quanto nos passam como verdade sem o mínimo
questionamento? Até quando iremos agir dessa forma? Não já é hora de
acordarmos e caminharmos por nossas próprias pernas, em busca dos
conhecimentos necessários para a nossa libertação definitiva do jugo
dessa liderança religiosa, que só se preocupa com o seu “ganha-pão”
(dízimo)? Já não passou do momento de entender Jesus na recomendação:
“Conhecereis a verdade e a verdade vos libertará”? Não estaria Ele
falando justamente disso que ocorre conosco, quando nos submetemos ao que
nos dizem os outros?
A verdade, caro leitor, nós só a encontraremos, quando
questionarmos tudo, mas absolutamente tudo. “Examinai tudo, retende o que
é bom” (1Ts 5,21). Os que ficam nos proibindo de ler isso ou aquilo,
podemos ter certeza, não estão com a verdade, já que a proibição é fruto
do medo de que alguém descubra que ele não está com a verdade, que mais
cedo ou mais tarde, inevitavelmente, ela aparecerá por uma pessoa que irá
iluminar-lhes as consciências.
A morte de Saul
Pouco depois que os hebreus saíram do Egito, onde ficaram 430 anos
em escravidão, já no deserto, dois meses e pouco após iniciar o êxodo
(aproximadamente 1.250 a.C.), os amalecitas os atacam, tentando, com
isso, impedi-los de passar pelo seu território. Sob o comando de Josué, o
povo israelita, derrota Amalec (neto de Esaú), e passa a fio de espada
toda a tropa do inimigo.
Neste dia, Javé faz um juramento: “Escreva isso num livro como
memória e diga a Josué que eu vou apagar a memória de Amalec debaixo do
céu” (Ex 17,14), porque ficou completamente indignado com a ação dos
amalecitas de fazerem guerra ao “povo escolhido”, vindo a prejudicar a
chegada dos hebreus à Terra prometida.
Entre os anos de 1.030 a 1.010 a.C., no reinado de Saul (primeiro
rei de Israel), é que Javé resolve levar adiante seu plano de vingança,
contra Amalec, e determina a Saul a sua execução:
1Sm 15,2-3: “Assim diz Javé dos exércitos: Vou pedir contas a Amalec pelo
que ele fez contra Israel, cortando-lhe o caminho, quando Israel subia do
Egito. Agora, vá, ataque, e condene ao extermínio tudo o que pertence a
Amalec. Não tenha piedade: mate homens e mulheres, crianças e recémnascidos, bois e ovelhas, camelos e jumentos”.
Saul atende à determinação de Javé e ataca os amalecitas, matando
todo o povo; entretanto, ao invés de exterminar, captura a Agag, rei dos
amalecitas. E, além disso, poupa o gado gordo e os cordeiros, só abatendo
os que não tinham valor.
Javé, pela boca do profeta Samuel, alega não ter gostado da
atitude de Saul, e diz: “Estou arrependido de ter feito Saul rei, porque
ele se afastou de mim e não executou as minhas ordens” (1Sm 15,11). E,
apesar de Saul ter-se justificado que o gado e os cordeiros que não tinha
matado eram para serem oferecidos em sacrifício a Javé, e que o rei dos
amalecitas fora capturado, não aceita a justificativa, e diz: “Javé
arranca hoje de você o reinado sobre Israel e o entrega a outro mais
digno do que você” (1Sm 15,28).
Algum tempo depois, os filisteus reuniram-se para atacar Israel.
Diante disso, Saul ficou desesperado, fez de tudo para saber o que lhe
aconteceria diante da iminente guerra. Consultou a Javé, e não obteve
nenhuma resposta; aí então resolve procurar uma necromante, indo até
Endor. Chegando à casa da mulher, Saul pede para ela adivinhar o futuro,
evocando o espírito de Samuel, que morrera, havia algum tempo. E Samuelespírito se manifesta, por intermédio da necromante, e repete o que já
lhe havia dito quando vivo, ou seja, que Javé iria entregá-lo, juntamente
com seus filhos e seu povo, ao inimigo.
Mesmo depois disto, Saul entra em guerra com os filisteus. Foi uma
fulminante derrota, pois os filisteus ganharam a batalha, matando muita
gente, entre eles os filhos de Saul. Os arqueiros atingiram a Saul, e
ele, não querendo cair vivo nas mãos dos inimigos, pede a seu escudeiro
que o mate com uma espada. Como não foi atendido, pois o escudeiro se
recusou a matar o seu rei, não lhe restou outra alternativa, senão pegar
a sua própria espada e lançar-se sobre ela, morrendo em seguida (1Sm
31,4). Assim, a morte de Saul foi por suicídio.
A segunda versão diferente da morte de Saul, nós vamos encontrá-la
em 2Sm 1, quando um homem dizendo-se amalecita relata a Davi a morte de
Saul e seus filhos, da seguinte forma:
2Sm 1,6-10: “... Eu estava casualmente no monte Gelboé e vi Saul apoiado
em sua própria lança, enquanto os carros e cavaleiros se aproximavam.
Saul virou-se, me viu, e me chamou. ...Então Saul me disse: ‘Aproxime-se
e mata-me, pois estou agonizando e não acabo de morrer’. Então eu me
aproximei dele e o matei, porque eu sabia que ele não iria mesmo
sobreviver depois de caído”.
A terceira versão, da morte de Saul está narrada em 2Sm 21,12:
“Então Davi foi pedir os ossos de Saul e de seu filho Jônatas aos
cidadãos de Jabes de Galaad, que os tinham levado da praça de Betsã, onde
os filisteus os haviam enforcado, quando venceram Saul em Gelboé”.
Até aqui ficamos sem saber como realmente Saul morreu: suicidouse? Teria pedido a um amalecita que o matasse? Ou será que foi enforcado?
Três versões diferentes para um só fato. Por isso, se dissermos que toda
a Bíblia é de inspiração divina, teremos que admitir que o próprio Deus
tenha ditado as três versões; não há como sair deste absurdo.
No primeiro livro de Crônicas (10,1-12), é relatada a morte de
Saul, exatamente como está narrada em 1 Samuel, capítulo 31, primeira
versão. Entretanto, nos versículos 13 e 14, foi colocada como causa da
morte de Saul, o seguinte:
1Cr 10,13-14: “Saul morreu por ter sido infiel a Javé: não seguiu a ordem
de Javé e foi consultar uma mulher que invocava os mortos, em vez de
consultar a Javé. Então Javé o entregou à morte e passou o reinado para
Davi, filho de Jessé”.
Nessa última narrativa, apesar dela vir a coincidir com uma
anterior, a causa da morte de Saul não corresponde ao fato ali narrado. E
veja a que conclusão nos leva essa narrativa. Por ela nós temos a
impressão de que Saul morreu porque não cumpriu a determinação divina de
não evocar os mortos, fato completamente contrário ao acontecido, pois
acreditamos que a questão da infidelidade de Saul que o cronista queria
passar seria a de que Saul não tinha exterminado os amalecitas exatamente
como Javé tinha ordenado. Quanto à questão de não ter consultado a Javé,
está narrado que ele O consultou. Nesse caso, deve ter havido uma
interpolação, para associar a morte de Saul ao fato de que ele teria ido
consultar a necromante, cujo objetivo seria fazer da morte de Saul um
castigo de Javé, por ele, Saul, ter-se comunicado com Samuel-espírito.
Quem quer que busque a verdade, encontrará essas e muitas outras
incoerências na Bíblia. Mas, ainda existem muitos que querem, a ferro e
fogo, manter a Bíblia como sendo, toda ela, de total inspiração divina.
Não se apercebem de que, com esse exagero, o número dos incrédulos
aumenta cada vez mais. E esse número só não é maior, porque ainda existem
muitas pessoas que preferem ser encabrestadas por líderes religiosos, os
quais insistem, a todo custo, em fazer com que, por medo de Deus, não se
ponham a questionar alguns pontos da Bíblia, sob o argumento de ser ela
de “inspiração divina”, esquecendo-se de que foram os homens que a
escreveram e nela colocaram seus pensamentos conforme o seu conhecimento
da época, incluindo nela lendas, coisas da mitologia antiga, misturadas,
é óbvio, às muitas revelações provindas de Deus. E é pelo “temor” de
desagradarem a Deus, que, quando buscam a verdade que possa estar contida
na Bíblia, não enxergam essas falhas dos seus autores. E isso, com a
complacência de muitos de seus dirigentes que, muitas vezes, apercebem-se
dessas falhas, mas preferem o silêncio – para manterem na ignorância
interessada, os seus fiéis – ao esclarecimento deles, pois esclarecê-los
poderá causar prejuízos aos interesses particulares desses dirigentes.
Entretanto, temos por nós, que, se Deus dotou o homem de
inteligência, é para que ele a use em plenitude; não devemos, pois, agir
como se fôssemos “avestruzes”, escondendo a “cabeça” diante da verdade
pura e cristalina!
Os mortos estariam dormindo?
Se não fosse trágico, seria até hilariante, pois os que tomam tudo
ao pé da letra não se dão conta de que, muitas vezes, caem no ridículo. É
o caso daqueles que acreditam que os mortos estão dormindo. Bibliólatras
desse tipo não abrem mão da literalidade bíblica e, se lhes pedirmos,
apontarão inúmeras passagens para corroborar a sua forma de
interpretação. Via de regra, são pessoas que só lêem livros que tenham o
referendo de sua liderança religiosa, não sabem que: “quem ouve um sino
só escuta um som, não podendo, portanto, saber se ele está afinado”
(LETERRE, 2004) Cabe-nos, por compromisso com a verdade, demonstrar que
pensam erradamente; entretanto, nosso objetivo não é convertê-los, já que
dificilmente abrirão mão daquilo que pensam, mas explicar aos de mente
aberta como deveriam ser interpretadas as passagens que falam sobre isso,
isto sim, sentimo-nos no dever de fazê-lo.
No sentido que estamos a questionar, a palavra “dormiu” aparece,
na Bíblia, dependendo da tradução, por 36 vezes [7]; concentrando sua
maioria no livro de Reis (I e II) e no de Crônicas (II). Para evitar a
repetição, citaremos apenas os seguintes exemplos:
1Rs 2,10: “Depois Davi dormiu com seus pais, e foi sepultado na cidade de
Davi”.
1Rs 11,43: “E Salomão dormiu com seus pais, e foi sepultado na cidade de
Davi,...”.
1Rs 14,20: “...Jeroboão reinou foi vinte e dois anos. E dormiu com seus
pais;...”.
1Rs 14,31: “E Roboão dormiu com seus pais, e foi sepultado com eles....”.
1Rs 15,8: “Abião dormiu com seus pais, e o sepultaram na cidade de
Davi...”.
Se falássemos de alguém usando uma destas expressões: abotoou o
paletó, apagou, bateu as botas, bateu a caçoleta, comeu capim pela raiz,
desceu ao túmulo, desocupou o beco, disse adeus ao mundo, empacotou,
entregou a alma ao Diabo, espichou a canela, esticou o cambito, fechou os
olhos, foi para a cidade dos pés juntos, foi para o beleléu, passou desta
para melhor, pifou, vestiu o pijama de madeira, virou presunto, foi pro
andar de cima, etc.; o que se entenderia? Iríamos tomá-las ao pé da letra
ou entendê-las no sentido figurado? Sabemos que certas palavras quer pelo
uso comum, quer por ter se tornado uma gíria, assumem significado
diferente do sentido normal, para adquirir um outro; por isso, devemos
ter o cuidado de verificar qual é o seu verdadeiro sentido no texto. De
igual modo, vemos nessas passagens, em relação à palavra dormir, que não
há outra maneira senão de interpretá-la como morrer; portanto, não quer
dizer que alguém literalmente esteja dormindo.
Pesquisando essas passagens em outras Bíblias encontramos em lugar
de dormiu o seguinte: repousou, morreu, adormeceu, desceu ao sepulcro,
descansou, deitou-se e foi reunir-se, deixando claro que se trata apenas
de expressões para designar mesmo a morte. Vejamos uma passagem:
At 7,57-60: “Então eles deram fortes gritos, taparam os ouvidos e
avançaram todos juntos contra Estêvão. Arrastaram-no para fora da cidade
e começaram a apedrejá-lo. As testemunhas deixaram seus mantos aos pés de
um jovem chamado Saulo. Atiravam pedras em Estêvão, que repetia esta
invocação: ‘Senhor Jesus, recebe o meu espírito’. Depois dobrou os
joelhos e gritou forte: ‘Senhor, não os condenes por este pecado’. E, ao
dizer isso, adormeceu”.
Não há dúvida alguma que o significado de “adormeceu” é realmente
morreu, entendimento que vale para todas as outras palavra usadas,
incluindo, obviamente, “dormiu”.
Por outro lado, se matematicamente, na multiplicação, a ordem dos
fatores não altera o produto, aqui não vale essa proposição. Isso porque
a morte, por ser uma ocorrência natural, obedece a Razão Maior, chamada
Deus; e esse fenômeno é o último a que o homem é submetido no plano
físico. Assim, se alguma analogia houver a ser feita com uma operação
matemática, a morte corresponderá ao sinal de igualdade (=), após o que
vem o resultado: ser enterrado, cremado, etc. A ordem, no sentido de
seqüência, é: primeiro dormiu, depois foi enterrado, onde, forçosamente,
o significado de dormir é morrer, e não foi enterrado e dormiu, que muito
bem poderia ser entendida como os bibliólatras entendem em relação à
outra forma.
Quem examina a Bíblia, e não apenas lê, percebe que a idéia que os
judeus faziam da vida após a morte era imprecisa. Pensavam que todos os
mortos, bons e maus, iriam para o sheol (= hades ou inferno), lugar onde
não teriam mais consciência; daí autores bíblicos dizerem:
Sl 88,11-13: “Farás maravilhas pelos mortos? As sombras se levantarão
para te louvar? Falarão do teu amor nas sepulturas, e da tua felicidade
no reino da morte? Conhecem tuas maravilhas na treva, e a tua justiça na
terra do esquecimento?”
Sl 115,17: “Os mortos já não louvam a Javé, nem os que descem ao lugar do
silêncio”.
Ecl 9,5-6.10: “Os vivos estão sabendo que devem morrer, mas os mortos não
sabem nada, nem terão recompensa, porque a lembrança deles cairá no
esquecimento. Seu amor, ódio e ciúme se acabam, e eles nunca mais
participarão de nada que se faz debaixo do Sol. Tudo o que você puder
fazer, faça-o enquanto tem forças, porque no mundo dos mortos, para onde
você vai, não existe ação, nem pensamento, nem ciência, nem sabedoria”.
Entretanto, essa idéia vai sendo discutida nos textos, e se
modificando aos poucos, até que em Jesus ela é elucidada definitivamente,
já que, em se referindo a Abraão, Isaac e Jacó, ele afirma que Deus não é
Deus de mortos, mas de vivos (Mt 22,31-32). E quem está vivo tem
consciência, pensamento, sabedoria e existe ação; não é mesmo?
Um parêntese. Já em Eclesiástico, nós encontramos essas duas
interessantes passagens:
Eclo 18,7-14: “O que é o homem, e para que serve? Qual é o seu bem e qual
é o seu mal? A duração de sua vida é de cem anos no máximo. Como gota no
mar e grão na areia, tais são os seus poucos anos frente a um dia da
eternidade. É por isso que o Senhor tem paciência com os homens, e
derrama sobre eles a sua misericórdia. Ele vê e reconhece que o fim deles
é miserável, e por isso multiplica para eles o seu perdão. A misericórdia
do homem é para o seu próximo, porém a misericórdia do Senhor é para
todos os seres vivos. Ele repreende, corrige, ensina e dirige, como o
pastor conduz o seu rebanho. Ele tem compaixão dos que aceitam a
correção, e dos que se esforçam para lhe cumprir os mandamentos”.
Eclo 30,17: “É melhor a morte do que viver com amargura, e o descanso
eterno vale mais do que doença crônica”.
Como conciliar a idéia do inferno eterno com a primeira passagem?
Pela segunda, poderemos concluir que o autor faz apologia ao suicídio
para as pessoas amarguradas ou as com doença crônica. Assim, fica claro
que não podemos pegar tudo ao pé da letra e, muito menos, aceitar como
revelação divina, já que é flagrante que muita coisa se trata de opinião
do autor bíblico; certo?
Continuando, vamos agora analisar algumas passagens bíblicas que
demonstram que os mortos não estão dormindo. Vejamos:
Em 1Sm 28,3-21 é narrado o episódio em que Saul vai a Endor e,
através da pitonisa, põe-se a conversar com o espírito Samuel, que lhe
prediz o fim como resultado da guerra com os filisteus, fato confirmado
no livro Eclesiástico, onde é afirmado que Samuel, mesmo depois de morto,
profetizou (Eclo 46,13-20). Até onde sabemos, isso não poderia acontecer
se o espírito Samuel estivesse mesmo dormindo e não fosse consciente, no
sentido que querem dar ao vocábulo. A não ser que se pretenda usar esse
entendimento para justificar que não foi Samuel que se apresentou a Saul
através da médium de Endor.
Não podemos deixar de citar o célebre momento da transfiguração de
Jesus no monte Tabor, em que conversa com os espíritos Moisés e Elias, na
presença de Pedro, Tiago e João (Mt 17,1-9), numa evidente prova de
consciência e atividade após a morte.
Segundo dizem alguns teólogos, quem se manifesta são os demônios,
e não os espíritos das pessoas que aqui viveram. Se assim for, Jesus foi
enganado pelo “demo”? Por outro lado, onde estaria, na própria Bíblia, a
regra, clara e incontestável, em que se diz que os homens, depois de
mortos, estão sempre dormindo; e os demônios, sempre acordados? Será que
Deus permite aos demônios ficarem acordados influenciando o homem terreno
ao mal, enquanto os espíritos daqueles que sempre praticaram o bem são
obrigados a ficarem dormindo? Não existe algo de estranho nisso?
Há uma passagem interessante onde Jesus narra a situação depois da
morte de um pobre e de um rico. Embora seja conhecida, vamos transcrevêla:
Lc 16,19-31: “Havia um homem rico que se vestia de púrpura e linho fino,
e dava banquete todos os dias. E um pobre, chamado Lázaro, cheio de
feridas, que estava caído à porta do rico. Ele queria matar a fome com as
sobras que caíam da mesa do rico. E ainda vinham os cachorros lamber-lhe
as feridas. Aconteceu que o pobre morreu, e os anjos o levaram para junto
de Abraão. Morreu também o rico, e foi enterrado. No inferno, em meio aos
tormentos, o rico levantou os olhos, e viu de longe Abraão, com Lázaro a
seu lado. Então o rico gritou: 'Pai Abraão, tem piedade de mim! Manda
Lázaro molhar a ponta do dedo para me refrescar a língua, porque este
fogo me atormenta'. Mas Abraão respondeu: 'Lembre-se, filho: você recebeu
seus bens durante a vida, enquanto Lázaro recebeu males. Agora, porém,
ele encontra consolo aqui, e você é atormentado. Além disso, há um grande
abismo entre nós: por mais que alguém desejasse, nunca poderia passar
daqui para junto de vocês, nem os daí poderiam atravessar até nós'. O
rico insistiu: 'Pai, eu te suplico, manda Lázaro à casa de meu pai,
porque eu tenho cinco irmãos. Manda preveni-los, para que não acabem
também eles vindo para este lugar de tormento'. Mas Abraão respondeu:
'Eles têm Moisés e os profetas: que os escutem!' O rico insistiu: 'Não,
pai Abraão! Se um dos mortos for até eles, eles vão se converter'. Mas
Abraão lhe disse: 'Se eles não escutam a Moisés e aos profetas, mesmo que
um dos mortos ressuscite, eles não ficarão convencidos'”.
Apesar de ser uma parábola, podemos perceber que o texto não diz
que Abraão e Lázaro estavam inconscientes e dormindo; ao contrário, dá-se
para concluir que estavam bem ativos, já que é narrado o diálogo que
Abraão teve com o rico, que, por sua vez, também não estava dormindo. Aos
que tomam tudo ao pé da letra, perguntaremos: Se o juízo final não
aconteceu, como podemos explicar que Abraão esteja no céu? A passagem
coloca que, imediatamente após a morte tanto o rico como Lázaro tiveram
seu destino, fatalmente delineado por um julgamento. Mas, qual
julgamento, se o dia do juízo final não havia chegado?
Em Jo 11,1-44, conta-se sobre a morte e ressurreição de Lázaro,
irmão de Marta e Maria (não confundi-lo com o da passagem anterior).
Supondo-se que Lázaro tenha verdadeiramente morrido, Jesus ao chamá-lo de
volta não disse: “Lázaro, acorde e saia para fora”? Assim, a conclusão é
que o amigo de Jesus não estava dormindo e nem inconsciente. Vale lembrar
que, se Lázaro estava realmente morto, conforme crença geral, então
Jesus, ao mandá-lo sair do sepulcro, nada mais fez que conversar com os
mortos. Esta foi a conclusão a que chegou o Pastor Neemias Marien, bispo
da Igreja Presbiteriana Bethesda, sabidamente o brasileiro com maior
conhecimento de Bíblia nos tempos atuais.
É aceito por todos nós que Jesus morreu e após sua morte apareceu
aos discípulos, fato que vem comprovar que os mortos não ficam dormindo
coisa nenhuma; e muito menos permanecem na inconsciência; inclusive,
sabemos que Jesus foi pregar o Evangelho “até aos mortos” (1Pe 4,6). Ora,
isso só poderia acontecer se esses mortos, para os quais Jesus pregou,
estivessem conscientes. Por outro lado, é evidente que há possibilidade
de conversão ao Evangelho após a morte; senão Jesus teria pregado em
vão...
Esperamos, caro leitor, que nosso estudo tenha possibilitado uma
melhor compreensão de qual é a realidade após a morte. Obviamente, não
estamos impondo nosso ponto de vista a ninguém; somente apresentamos as
nossas conclusões, tiradas do estudo da Bíblia. Gostaríamos de ressaltar,
ainda, que para nós é importante não ficarmos presos às interpretações
dogmáticas ou as equivocadas, que mais demonstram a precariedade de suas
análises dos textos, sem a mais leve crítica, que sempre produzem
interpretações completamente fora do contexto da narrativa.
O caso do arrebatamento de Elias
O episódio do arrebatamento de Elias, sempre é utilizado,
especialmente pelos dogmáticos, para negar que João Batista seja Elias
reencarnado. Em verdade, negam a Jesus, pois foi ele quem disse: “E se
quiserdes aceitá-lo, ele (João Batista) é o Elias, que há de vir”. Como
sabia que a incredulidade ainda viria a vigorar por muito tempo,
completa: “Quem tem ouvidos ouça”. (Mt 11,14-15).
Por outro lado, é difícil para nós aceitarmos esse arrebatamento,
porquanto, além das razões que iremos mostrar logo abaixo, uma outra
afirmativa de Jesus não deixa nenhuma dúvida: “Ninguém subiu ao céu,
senão o que desceu do céu: o Filho do homem” (Jo 3,13).
Quando se diz que Elias foi arrebatado, o que querem dizer?
Baseados numa passagem bíblica, que veremos um pouco mais à frente, dizem
que Elias foi levado por Deus ao Céu, de corpo e alma, ou seja, pensam
que na verdade Elias não morreu (???). Se Elias não morreu, ficamos em
dúvida por não saber o porquê desse privilégio, pois até mesmo Jesus, o
Cristo, que lhe era muito superior, morreu, e ainda, pregado numa cruz.
Por outro lado, ficamos, também, sem entender o que Elias faria
com o corpo físico no mundo espiritual. Seria o mesmo que mandarmos
alguém viver debaixo d’água do jeito que ele vive aqui na superfície, sem
lhe dar nenhum equipamento apropriado àquele lugar. A coisa não lhe
parece absurda? Entretanto é o que esperam em relação a Elias, ou seja,
que ele vá viver numa outra dimensão, totalmente diferente daquela que é
adequada à matéria, como se nessa dimensão fosse necessário o corpo
físico para se viver a vida do espírito.
Também não encontramos nenhum respaldo para esse absurdo no que
Jesus deixou como legado à humanidade através das narrativas dos
evangelistas. Muito ao contrário, entendemos que Ele afirma justamente o
oposto. Vejamos que, conforme consta no evangelho, Jesus afirmou: “O
espírito é o que dá a vida, a carne não serve para nada”. (Jo 6,63).
Perguntamos: se a carne não serve para nada, ainda assim ela serviria
para alguma coisa depois da morte? Pelas palavras de Jesus, “Deus é
Espírito” (Jo 4,24); então, ficaremos novamente diante de um outro
absurdo, qual seja: na dimensão espiritual nós seremos ainda matéria,
enquanto que o próprio Criador é um ser espiritual. Acrescentamos mais
ainda: Jesus, pouco antes de expirar, disse: “Pai, em tuas mãos entrego o
meu espírito” (Lc 23,46). Por que será que ele não entregou o corpo? É
por pura coerência, já que antes havia dito que a carne de nada serve;
não é mesmo?
Não se pode alegar ignorância dessa realidade, pois até mesmo no
Antigo Testamento encontramos a indiscutível separação entre o corpo e
espírito; vejamos: “O pó volte à terra, onde estava, e o espírito volte
para Deus, seu autor” (Ecl 12,7).
E Paulo de Tarso, se dirigindo aos coríntios, arremata categórico:
“Mas isto vos digo, irmãos: a carne e o sangue não podem possuir o Reino
de Deus, nem a corrupção herdará a incorrupção” (1Cor 15,50). Não está
afirmando, em outras palavras, que é o espírito que vai herdar o reino de
Deus? Pouco antes havia dito: “Pois, se há um corpo animal, há também um
corpo espiritual” (v. 44), quando explicava a eles qual era o corpo da
ressurreição.
Vamos, agora, ver a passagem em que é citado o tal do
arrebatamento de Elias, que está narrado em 2Rs 2,11: “Ora, enquanto
seguiam pela estrada conversando, de repente apareceu um carro de fogo
com cavalos também de fogo, separando-os um do outro, e Elias subiu para
o céu no turbilhão”. Depois disso, procuraram Elias por todos os lugares
e não o encontraram. Interessante colocarmos as explicações dos
tradutores da Bíblia de Jerusalém acerca disso: “A busca infrutífera
certifica apenas que Elias não é mais deste mundo; seu destino é mistério
que Eliseu não quer desvendar. O texto não diz que Elias não morreu, mas
facilmente se pôde chegar a essa conclusão” (Bíblia de Jerusalém, pp.
508-509) (grifo nosso). Só que esse facilmente parece não ser tão fácil
assim, pois ainda existem muitas pessoas que acreditam que Elias não
morreu; foi de corpo e alma para o céu. Verdade que esses fanáticos
religiosos aceitam-na, com base numa fé cega, apesar de absurda.
Pelos acontecimentos anteriores a esse arrebatamento, narrados em
2Rs 2, lemos que Eliseu, discípulo de Elias, pressentindo o final do seu
mestre, lhe faz um pedido: “Eu gostaria de receber uma porção dupla de
teu espírito” (v. 9). Ao que lhe respondeu Elias: “Fizeste um pedido
difícil. Mas se me vires ao ser arrebatado do teu lado, terás o que
pediste; se não me vires, não o terás” (v 10). O que será que aconteceu?
Não deixaremos para o próximo capítulo, caro leitor, pois não o queremos
ver “morrendo” de curiosidade. Bom; a única coisa que sobrou de Elias,
após o tal arrebatamento, foi o seu manto. Eliseu pega esse manto e bate
com ele na água do rio Jordão, que fez com que suas águas se dividissem
em duas partes, fato que os outros profetas da comunidade viram. Diante
desse fenômeno incomum, e como Elias já tinha também feito isso,
disseram: “O espírito de Elias repousou sobre Eliseu” (v.15). O que numa
linguagem popular ficaria assim: “O espírito de Elias baixou em Eliseu”.
Por isso, nós diremos que de fato Elias morreu, pois fica comprovado que,
do plano espiritual, influencia Eliseu.
Na narrativa bíblica sobre o arrebatamento, se afirma que Elias
foi levado num turbilhão (ou redemoinho, segundo algumas traduções). Será
que o acontecido não teria sido um fenômeno produzido pela natureza como
um tufão, um ciclone ou um tornado? Não sabemos que nesses fenômenos são
tragados até mesmo objetos de peso considerável? Seria este o caso de
Elias? Sinceramente, ficamos inclinados a aceitar essa hipótese, pois se
não foi assim, teremos que aceitar que Elias foi levado pelo demônio!
Como? Veja que a narrativa diz que apareceu um carro de fogo com cavalos
de fogo. Ora, não se afirma que todas as coisas do demônio são de fogo?
Assim, podemos pressupor que ele, em pessoa, veio, em seu exuberante
veículo de transporte, buscar Elias, deu uma voltinha com ele no céu (o
azul) e o levou diretamente para “a fornalha ardente do inferno.
(Cruz!!!).
Será que alguém conseguirá provar o contrário? Provar não, mas
acreditar numa outra hipótese, sim. Os aficionados em disco voador, por
exemplo, poderão dizer que Elias foi abduzido por um OVNI; também aqui
ninguém poderá provar o contrário.
Por outro lado, considerando que no mesmo capítulo 2, no versículo
16 consta: “... Talvez o espírito do Senhor o tenha levado e jogado num
desses montes ou vales”, fica evidente, que, naquela época, ainda não se
entendia que o corpo de Elias tenha ido para os céus. Mas há um outro
fato que será uma ducha de água fria nessa crença. É o que veremos na
seqüência.
O escritor Paulo Finotti, autor do livro intitulado Ressurreição”,
dá-nos uma informação interessantíssima. Diz ele:
[...] Posteriormente, a Bíblia informa que Jeorão recebeu uma carda
de Elias (II Crônicas, 21:12/15).
Assim, quando Jeorão, rei de Judá, começou a reinar, já havia
ocorrido o que está escrito em II Reis 2:11,12, e se Elias ainda podia
enviar uma carta ao rei Jeorão é porque, após a sua “ascensão”,
continuava aqui na terra profetizando para o reino de Judá. (FINOTTI,
1971, pp. 26-27).
Engraçado como muitas vezes não enxergamos o óbvio, pois,
realmente, segundo a narrativa bíblica citada, Elias, depois de ter sido
supostamente arrebatado, enviou mesmo uma carta a Jeorão8, filho e
sucessor de Josafá, de Judá. Confirmam isso os tradutores da Bíblia de
Jerusalém, quando nos oferecem a seguinte explicação para essa passagem:
“De acordo com a cronologia de 2Rs, Elias tinha desaparecido antes do
reinado de Jorão de Israel (2Rs 2; 3,1) e, portanto, antes de Jorão de
Judá (2Rs 8,16; cf. no entanto 2Rs 1,17). O cronista deve utilizar uma
tradição apócrifa.” (p. 607).
Mas o que há de extraordinário nisso? Bom; se a passagem
mencionada for verdadeira, e aqui os defensores da inerrância bíblica,
por coerência, não podem aceitá-la de outro modo, estaremos diante de
duas alternativas:
1ª) que Elias não foi arrebatado, aos céus, mas, sim, na forma entendida
pelos servos de Eliseu, isto é, que Elias tenha sido levado para algum
monte ou algum vale, já que envia uma carta. Isso, para nós, é o mais
provável que tenha de fato ocorrido, uma vez que é difícil sustentar que
alguém tenha sido arrebatado de corpo e alma, levando-se em conta que, se
“Deus é espírito” (Jo 4,24), nós também somos seres espirituais, já que
fomos criados à Sua imagem e semelhança. Por outro lado, se “o espírito é
que dá vida, a carne não serve para nada” (Jo 6,63) e que “a carne e o
sangue não podem herdar o reino dos céus” (1Cor 15,50), não há como
compatibilizar corpo físico na dimensão espiritual.
2ª) por certo essa poderá deixar alguns fanáticos perplexos; é que, se
aceitarmos que não há exceção nas Leis Divinas, Elias morreu, fato que
acontece com todo ser humano; daí, por força das circunstâncias, teremos
que admitir que, do plano espiritual, ele envia uma carta ao rei.
Portanto, uma ocorrência mediúnica, com alguém servindo de médium para
receber essa carta e enviá-la ao destinatário, significando isso uma
autêntica psicografia.
A título de curiosidade, observamos que os termos usados nessa
narrativa aparecem, nas diversas traduções bíblicas, ora como “uma
carta”, ora como “uma mensagem” e ora como “um escrito”; mas, no fundo,
tudo isso é a mesma coisa. Lembramo-nos aqui do saudoso Chico Xavier que
recebia, com facilidade, uma imensidão de cartas dos “mortos”.
Na primeira hipótese acima citada, não há nenhum fato bíblico
entre “os arrebatados” que venha a sustentar a possibilidade de que, em
algum momento, um deles tenha se comunicado, por qualquer meio, com os
encarnados. Entretanto, quanto à segunda hipótese, ou seja, a de que
Elias tenha morrido, podemos comprovar biblicamente, por dois
acontecimentos, os quais vêm apoiar uma ocorrência dessa ordem.
O primeiro é um fenômeno mediúnico de psicofonia, que se encontra
narrado em 1Sm 28,1-25, onde se relata a ocasião em que o rei Saul vai a
Endor, para que, através de uma pitonisa (médium), que residia nessa
localidade, pudesse aconselhar-se com o profeta Samuel, já desencarnado.
Como estava numa situação angustiante, pois se encontrava cercado pelo
exército dos filisteus, queria saber do espírito Samuel, que, quando
encarnado, fora profeta em seu próprio reinado, sobre o seu futuro em
relação a essa iminente guerra.
O segundo, sempre “esquecido” dos contraditores da comunicação com
os “mortos”, é quando os espíritos de Moisés e Elias apareceram a Jesus,
Pedro, Tiago e João, e conversaram com o Mestre (Mt 17,1-9; Mc 9,2-10; Lc
9,28-36). Classificamos esse fenômeno mediúnico como de “materialização”,
pois esses dois espíritos também foram vistos pelos três discípulos que
testemunharam o fato, os quais, ao que tudo indica, deviam ser os médiuns
doadores da energia necessária para a produção do fenômeno, a qual
chamamos de ectoplasma. Inclusive, podemos observar que, nos principais
fenômenos mediúnicos produzidos por Jesus, vistos por alguns como
milagres, os três apóstolos citados eram convidados por Ele, para deles
participarem, certamente porque Jesus sabia que, só os três, entre os que
O seguiam, possuíam essa energia de forma mais acentuada.
Há ainda um outro evento, que nunca é falado, pois não teria como
ser negado: trata-se do acontecido com o próprio Jesus, que depois de
morto comunicou-se com inúmeras pessoas. E, plagiando o que o apóstolo
dos gentios disse aos coríntios, diríamos: “Pois se os mortos não se
comunicam, também Cristo não se comunicou. Se Cristo não se comunicou,
ilusória é a nossa fé”.
Assim, com essa carta de Elias, acreditamos estar diante de mais
uma ocorrência bíblica, que vem provar a comunicação entre os dois planos
da vida, embora negada sistematicamente por alguns, mas que pode ser
considerada como corroborada pela própria Bíblia, quando Moisés proíbe a
comunicação com os mortos (Dt 18,9-14), já que Moisés não era tão louco
assim para proibir algo que não exista. Está, portanto, comprovada
biblicamente, a realidade da comunicação entre os habitantes do mundo
físico com os do mundo espiritual. E como diria Jesus: “Quem tem ouvidos,
ouça” (Mt 11,15).
De nossa parte ficamos convictos de que Elias não foi arrebatado
coisíssima nenhuma. Mas sabemos que isso ainda não será uma realidade
para os dogmáticos.
A Lenda Bíblica de Jó
Em busca da solução para a dor e o sofrimento, os povos primitivos
inventaram uma lenda com a qual pensavam justificá-los. Daí, surgiu a
lenda de Jó. Não, caro leitor, nós ainda não estamos necessitando ser
dominados com uma camisa de força; mas usaremos a força dos argumentos
para provar o que estamos falando com essa análise que faremos deste
livro bíblico.
Alguns tradutores afirmam:
A literatura sapiencial floresceu em todo o Antigo Oriente. Ao
longo de sua história, o Egito produziu escritos de sabedoria. Na
Mesopotâmia, desde a época sumérica, foram compostos provérbios, fábulas
e poemas sobre o sofrimento que se assemelham ao livro de Jó.
(...)
Não é de admirar que as primeiras obras sapienciais de Israel se
pareçam muito com a de seus vizinhos: todas elas provêm do mesmo
ambiente. (Bíblia de Jerusalém, p. 797).
(...) o autor usa uma antiga lenda sobre a retribuição (1,1-2,13;
42,7-17), omitindo o final (42,7-17) e substituindo-o por uma série de
debates que mostram o absurdo da teologia em voga, incapaz de atender à
nova situação (3,1-42,6). (Bíblia Sagrada – Edição Pastoral, p. 639).
O autor toma como ponto de partida uma lenda comum na época e, com
leves retoques, a relata em 1,1-2,13. O final primitivo dessa lenda se
encontra em 42,7-17. A intenção é substituir o final da lenda pelo debate
que se encontra em 3,1-42,6. (Bíblia Sagrada – Edição Pastoral, p. 640).
Da natureza poética do livro se segue que não se deve insistir na
veracidade histórica de cada passo da discussão. Além disso, a própria
índole do diálogo supõe que o autor não tenha querido aprovar todas as
idéias expressas pelos interlocutores. A chave da composição conexa está
em 42,1-8: Jó, embora tendo um conceito elevado de Deus, pecou por
presunção e violência; aos seus amigos, pelo contrário, faltou o conceito
adequado de Deus e de sua Providência.
O prólogo e o epílogo são ficções literárias. Discute-se a
historicidade da pessoa de Jó; a opinião mais plausível é a de que também
seja uma personagem fictícia, pois o objetivo da obra não é contar a
história de um sofredor, e sim, oferecer uma solução e um consolo a todos
os que sofrem... (Bíblia Sagrada – Edições Paulinas, p. 579).
Como se vê, desde tempos imemoriais, os “donos” das religiões
sempre fizeram suas interpolações (usando até lendas, como aqui) e que,
para fortalecerem-nas, atribuíam-nas à divindade a que eles prestavam
culto.
Lembramo-nos muito bem, quando, nos primeiros contatos com as
letras, nossa professora primária, para entreter a turma e desenvolverlhes a imaginação, contava as famosas histórias infantis. Invariavelmente
iniciava assim: “Era uma vez...” buscando atrair a atenção dos alunos e
criando, desde o início, um clima de expectativa. Bom, poderá nos
perguntar: mas o que tem isso a ver com o assunto que você se propõe a
falar? O que estamos propondo, caro leitor, é uma relação direta entre
essas histórias e a história de Jó; veja como se inicia o relato bíblico:
Jó 1,1: “Era uma vez um homem chamado Jó, que vivia no país de Hus. Era
um homem íntegro e reto, que temia a Deus e evitava o mal”.
É estonteante a correlação entre as histórias infantis e essa que
estamos citando. Aliás, sobre esse país de Hus instala-se cizânia geral
sobre onde se localiza:
Hus, não identificada, mas por certo, situada ao oriente da Palestina. Há
quem a coloque no Hauran, sul de Damasco (cf. Gen. 36,28; Lam 4,21),...
(Bíblia Sagrada – Edições Paulinas, p. 580)
Embora não saibamos com certeza onde se encontra Hus, sabemos que não é
território israelita. (Bíblia do Peregrino, p. 1062).
Terra de Hus é o território de Edom, fora de Israel... (Bíblia Sagrada –
Vozes, p. 634).
... Jó, que viveu em Hus, provavelmente a sudoeste do Mar Morto,...
(Bíblia Sagrada - Santuário, p. 733).
Ficava a sudeste da Palestina, na Iduméia ou Edom (cf. Lm, 4,21). (Bíblia
Barsa, p. 389).
Certamente ao sul de Edom (cf. Gn 36,28; Lm 4,21). (Bíblia de Jerusalém,
p. 803).
No fundo, ninguém tem certeza de onde é, mas, para escapar dessa
dúvida, alguns querem situá-la num lugar conhecido, esperando que os
néscios acreditem neles. Consultamos vários mapas bíblicos e em nenhum
deles encontramos a localização de Hus, obviamente por não saberem mesmo
onde era ou, conforme acreditamos, não passa de uma ficção literária.
Mas, continuando:
Jó 1,2-5: “Tinha sete filhos e três filhas. Possuía também sete mil
ovelhas, três mil camelos, quinhentas juntas de bois, quinhentas mulas e
grande número de empregados. Jó era o mais rico dos homens do Oriente. Os
filhos de Jó costumavam fazer banquetes, um dia na casa de cada um, e
convidavam as três irmãs para comer e beber com eles. Quando terminavam
esses dias de festa, Jó os mandava chamar, para purificá-los. Ele
madrugava e oferecia um holocausto para cada um deles, pensando: ‘Talvez
meus filhos tenham pecado, ofendendo Deus em seu coração’. E Jó fazia
assim todas as vezes”.
Tal qual as estórias infantis, aqui também é realçada a riqueza de
Jó e um pouco de sua vivência diária. Interessante, nesse relato, é que
não são citados os nomes de seus filhos, como seria de se esperar, caso o
relato fosse verdadeiro; nem mesmo o de sua mulher. Observe as
quantidades citadas nos vv. 2 e 3, pois na análise da última passagem (Jó
42,12-15) desse livro, nós a citaremos numa comparação.
Embora não seja o que pretendemos abordar, vale uma digressão para
um outro assunto, não menos curioso. É a questão de satanás, como sendo o
deus do mal; leiamos:
Jó 1,6-12: “Certa vez, foram os filhos de Deus apresentar-se ao Senhor;
entre eles veio também Satanás. O Senhor, então, disse a Satanás: 'Donde
vens?' - 'Dei uma voltas pela terra, andando a esmo', respondeu ele. O
Senhor lhe disse: 'Reparaste no meu servo Jó? Na terra não há outro
igual: é um homem íntegro e reto, teme a Deus e se afasta do mal'.
Satanás respondeu ao Senhor: 'Mas será por nada que Jó teme a Deus?
Porventura não levantaste um muro de proteção ao redor dele, de sua casa
e de todos os seus bens? Abençoaste seus empreendimentos e seus rebanhos
cobrem toda a região. Mas estende a mão e toca em todos os seus bens; eu
te garanto que te lançará maldições em rosto!' Então o Senhor disse a
Satanás: 'Pois bem, tudo o que ele possui, eu o deixo em teu poder, mas
não estendas a mão contra ele!' E Satanás saiu da presença do Senhor”.
A expressão satanás (ou satã, segundo algumas traduções), conforme
nos informam vários tradutores bíblicos, quer dizer “acusador”, não
sendo, portanto, um ser, mas apenas uma função. Imaginemos num Tribunal
de Júri, o promotor de justiça que age na linha de acusação do réu,
exatamente o que, no texto, se atribui a esse anjo. Confirmamos o que
dizemos pela nota a seguir, relativa a essa passagem: “A corte celeste,
que decide os rumos da história, se reúne no estilo de uma corte
oriental. Satã, que significa adversário no tribunal, não é aqui a
personificação do mal, e sim uma espécie de investigador...” (Bíblia
Sagrada – Edição Pastoral, p. 640).
Observemos que, se na narrativa está se afirmando que entre os
anjos, que se apresentaram a Javé, estava também satanás, é porque ele,
evidentemente, era um deles. E se estava junto com os outros não era anjo
mau coisíssima nenhuma. Seria o mesmo que se dizer que o Promotor
Público, que é o outro pólo de que necessita a sociedade para o
equilíbrio da Justiça, é um advogado mau, pelo simples fato de exercer a
função de acusador.
Entretanto, não sabemos de onde a teologia retira que ele,
satanás, é um anjo mau. Só por pura extrapolação, pois, pelo que se vê do
relato bíblico, a única coisa que fez foi ferir um pouco o orgulho de
Javé. Isso porque, quando Javé disse que Jó era um homem íntegro, o anjo
respondeu que ele era assim só porque “os braços” de Javé se estendiam
sobre ele, protegendo-o e proporcionando-lhe as regalias terrenas, mas
que, se não tivesse isso, talvez Jó não se comportasse daquele modo. Aí
Javé deixa que o anjo retire de Jó tudo quanto tinha para ver se assim
ele ainda se manteria firme na sua integralidade, como se em algum
momento Deus pudesse ter dúvida sobre qualquer coisa ou sentisse a
necessidade de alguém lhe provar algo que pensava ser verdadeiro.
Muitos têm a Jó como o “paciente sofredor”; mas será mesmo? Veja:
Jó 3,1-4: “Então Jó abriu a boca e amaldiçoou o dia do seu nascimento,
dizendo: ‘Morra o dia em que nasci e a noite em que se disse: 'Um menino
foi concebido'. Que esse dia se transforme em trevas; que Deus, do alto,
não cuide dele e sobre ele não brilhe a luz”.
A pergunta é: uma pessoa paciente amaldiçoa o dia em que nasceu?
Ou isso é típico dos impacientes? Como se diz; perguntar não ofende...
Mas, não bastasse isso, continua o impaciente e já revoltado Jó:
Jó 3,11-16: “Por que não morri ao sair do ventre de minha mãe, ou não
pereci ao sair de suas entranhas? Por que dois joelhos me receberam, e
dois peitos me amamentaram? Agora eu repousaria tranqüilo e dormiria em
paz, junto com os reis e governantes da terra, que construíram túmulos
suntuosos para si, ou com os nobres que possuíram ouro e encheram de
prata seus mausoléus. Agora eu seria um aborto enterrado, uma criatura
que não chegou a ver a luz”.
O nosso amigo apelou feio, pois disse ter sido preferível que
tivesse sido abortado. Atitude compreensível para os que, advogando a
vida única, não encontra explicação para a dor e o sofrimento, cujo
entendimento só poderá ser justificado se aceitarmos a reencarnação como
única situação em que a justiça de Deus se manifesta em plenitude. Mas,
apesar disso tudo, encontramos em Jó verdades que bem se aplicam aos que
acreditam na reencarnação:
Jó 4,8: “Pelo que eu sei, os que cultivam injustiça e semeiam miséria,
são esses que as colhem”.
Jó 5,7: “E o homem gera seu próprio sofrimento, como as faíscas
voam para cima”.
Dessa fala de Jó retiramos a Lei de Causa e Efeito, comumente
denominada de carma, cuja relação com a reencarnação é direta; quem
acredita em uma delas acredita também na outra.
Há em Jó uma afirmação que os teólogos fazem de tudo para mudarlhe o sentido. Leiamo-la:
Jó 4,15-16: “Então um espírito passou por diante de mim; fez-me arrepiar
os cabelos do meu corpo; parou ele, mas não lhe discerni a aparência; um
vulto estava diante de meus olhos; houve silêncio, e ouvi uma voz:...”.
Aqui fica evidente, por demais, o fato de Jó ter percebido um
espírito; entretanto, os não comprometidos com a verdade, mas com seus
próprios dogmas, mudam a palavra “um espírito” por “um sopro” (Bíblias:
Vozes, Ave Maria, Paulus) ou por “um vento” (Bíblia Pastoral).
Lamentável!
Um conselho de Jó:
Jó 8,8-10: “Consulte as gerações passadas e observe a experiência de
nossos antepassados. Nós nascemos ontem e não sabemos nada. Nossos dias
são como sombra no chão. Os nossos antepassados, no entanto, vão instruílo e falar a você com palavras tiradas da experiência deles”.
Mesmo não sendo o sentido que iremos dar, é, por sinal, um sábio
conselho, pois os nossos antepassados podem nos orientar com suas
experiências pessoais, de modo que não venhamos a errar em coisas que
poderemos ter conhecimento para fazer da forma certa. Considerando que
àquela época havia muito pouca coisa escrita, como consultar as gerações
passadas se seus componentes já morreram e levaram para o sepulcro seus
conhecimentos? Simples: Evocando-os para lhes consultar o espírito, e,
evidentemente, estamos falando aos que acreditam na possibilidade da
comunicação com os mortos. Aos que não acreditam, perguntaremos: Teria
algum sentido Moisés proibir de se comunicar com os mortos se isso não
existisse ou não fosse possível?
Muitos acreditam que o homem ainda vem pagando pelo pecado de Adão
e Eva; e disso tiram que os filhos pagam pelos erros dos pais; mas Jó
parece não concordar com isso:
Jó 21,19-21: “Dizem que Deus castiga os filhos do injusto! Ora, faça que
o injusto mesmo pague e aprenda: que veja com seus próprios olhos a
desgraça, e beba a ira do Todo-poderoso. Pois, o que lhe importa a sua
família depois de morto, quando o tempo de sua vida tiver chegado ao
fim?”
Pena que, em sua justificativa, Jó demonstra não acreditar na vida
após a morte, evidenciando uma posição incontestavelmente materialista:
“morreu acabou”.
Um ponto fundamental levantado por Jó, mas, infelizmente, ainda
não assimilado pela grande maioria das pessoas:
Jó 34,11-12: “Deus paga ao homem conforme as suas obras e retribui a cada
um conforme a sua conduta. Deus, na verdade, não age de modo injusto. O
Todo-poderoso nunca viola o direito”.
E mesmo assim, alguns ainda acham que, por pertencerem a
determinada corrente religiosa ou por aceitarem Jesus como seu Senhor e
salvador, já estejam salvos. Doce ilusão! A justiça é clara: “a cada um
segundo suas obras” (Mt 16,27).
Diante da afirmação acima de que Deus “retribui a cada um conforme
sua conduta”, como explicar que alguém tenha nascido aleijado se “Deus
corrige o homem também com o sofrimento na cama” (Jó 33,19)? Explicação
lógica somente se acreditarmos na pré-existência do espírito e na
reencarnação; aliás, para nós, é o grande problema insolúvel de Jó: mesmo
justo ainda sofre. Como não podiam atribuir esse sofrimento a Deus, por
ser injusto, inventaram esse “teste de paciência”.
A falta de conhecimento das leis da natureza fazia com que o povo
hebreu atribuísse a uma atitude de Deus determinados fenômenos naturais
como, por exemplo:
Jó 36,32-33: “Enche as mãos com raios e atira-os no alvo certo. O trovão
anuncia a chegada dele, e a sua ira se acende com a injustiça”.
E ainda há quem diga que a Bíblia é totalmente de inspiração
divina. Ô, coitado! Mas a coisa fica bem pior, quando atribuem solidez ao
céu (firmamento):
Jó 37,18: “Por acaso você já estendeu com ele o firmamento, sólido como
espelho de metal fundido?”
A palavra firmamento vem de firme, já que acreditavam que o céu,
esse azul que vemos acima de nossas cabeças, era totalmente sólido. Para
o povo hebreu havia de ser assim, pois era a única maneira de explicar a
existência das águas que caíam por ocasião das chuvas, já que não
conheciam o fenômeno da evaporação da água. É interessante observarmos
que em Gêneses já encontramos essa idéia:
Gn 1,6-8: “Deus disse: ‘Que exista um firmamento no meio das águas para
separar águas de águas!’ Deus fez o firmamento para separar as águas que
estão acima do firmamento das águas que estão abaixo do firmamento. E
assim se fez. E Deus chamou ao firmamento ‘céu’...".
Essa é também mais uma das inúmeras passagens que não podemos
atribuir como sendo de inspiração divina, já que são evidentemente frutos
da cultura daquela época.
Muito curioso é que algumas passagens sugerem a idéia da préexistência da alma, bem como, a reencarnação, como essa, por exemplo:
Jó 38,21: “Certamente você sabe disso tudo, pois já então havia nascido e
já viveu muitíssimos anos”.
Como alguém poderia ter vivido muitíssimos anos senão reencarnando
várias vezes?
Se alguém nos descrevesse um animal dessa forma:
Suas costas são fileiras de escudos, ligados com lacre de pedra;
são tão unidos uns com os outros, que nem ar passa entre eles; cada um é
tão ligado com o outro, que ficam travados e não se podem separar. Seus
espirros lançam faíscas, e seus olhos são como a cor rosa da aurora. De
sua boca irrompem tochas acesas e saltam centelhas de fogo. De suas
narinas jorra fumaça, como de caldeira acesa e fervente. Seu bafo queima
como brasa, e sua boca lança chamas. Em seu pescoço reside a força, e
diante dele dança o terror.
Que idéia nós iríamos ter desse animal? Exato: um dragão! Pois é,
caro leitor, na Bíblia há a descrição de um animal assim... Veja:
Jó 40,25-41,26: “Por acaso você é capaz de pescar o Leviatã com anzol e
amarrar-lhe a língua com uma corda? Você é capaz de furar as narinas dele
com junco e perfurar sua mandíbula com gancho? Será que ele viria até
você com muitas súplicas ou lhe falaria com ternura? Será que faria uma
aliança com você, para você fazer dele o seu criado perpétuo? Você
brincará com ele como se fosse um pássaro, ou você o amarrará para suas
filhas? Será que os pescadores o negociarão, ou os negociantes o
dividirão entre si? Poderá você crivar a pele dele com dardos ou a cabeça
com arpão de pesca? Experimente colocar a mão em cima dele: você se
lembrará da luta, e nunca mais repetirá isso! Veja! Diante dele, toda
segurança é apenas ilusão, pois basta alguém vê-lo para ficar com medo.
Ninguém é tão corajoso para provocá-lo. Quem poderia enfrentá-lo cara a
cara? Quem jamais se atreveu a desafiá-lo, e saiu ileso? Ninguém debaixo
de todo o céu. Não deixarei de descrever os membros dele, nem sua força
incomparável. Quem abriu sua couraça e penetrou por sua dupla armadura?
Quem abriu as duas portas de sua boca, rodeadas de dentes terríveis? Suas
costas são fileiras de escudos, ligados com lacre de pedra; são tão
unidos uns com os outros, que nem ar passa entre eles; cada um é tão
ligado com o outro, que ficam travados e não se podem separar. Seus
espirros lançam faíscas, e seus olhos são como a cor rosa da aurora. De
sua boca irrompem tochas acesas e saltam centelhas de fogo. De suas
narinas jorra fumaça, como de caldeira acesa e fervente. Seu bafo queima
como brasa, e sua boca lança chamas. Em seu pescoço reside a força, e
diante dele dança o terror. Os músculos do seu corpo são compactos, são
sólidos e imóveis. Seu coração é duro como rocha e sólido como pedra de
moinho. Quando ele se ergue, os heróis tremem e fogem apavorados. A
espada que o atinge não penetra, nem a lança, nem o dardo, nem o arpão.
Para ele o ferro é como palha, e o bronze como madeira podre. A flecha
não o afugenta, e as pedras da funda se transformam em palha para ele. A
maça é para ele como estopa, e ele zomba dos dardos que assobiam. Seu
ventre, coberto de escamas pontudas, é uma grade de ferro que se arrasta
sobre o lodo. Ele faz ferver o fundo do mar como caldeira, e a água
fumegar como vasilha quente cheia de ungüentos. Atrás de si deixa uma
esteira brilhante, e a água parece cabeleira branca. Na terra ninguém se
iguala a ele, pois foi criado para não ter medo. Ele se confronta com os
seres mais altivos, e é o rei das feras soberbas".
Vejamos como nos explicam a palavra Leviatã:
Leviatã (ou também o Dragão, a Serpente Fugitiva – cf. 26,13;
40,25+; Is 27,1; 51,9; Am 9,3; Sl 74,14; 104,26) era, na mitologia
fenícia, monstro do caos primitivo (cf. 7,12+); a imaginação popular
podia sempre recear que despertasse, atraído por uma eficaz maldição
contra a ordem existente... (Bíblia de Jerusalém, p. 805).
Assim, vemos aqui que a cultura de outros povos está influenciando
um autor bíblico. Daí concluirmos que realmente não dá para aceitar que a
inspiração divina seja responsável por isso.
Vamos agora analisar a última passagem do livro de Jó:
Jó 42,12-15: “E Javé abençoou a Jó, mais ainda do que antes. Ele possuía
agora catorze mil ovelhas, seis mil camelos, mil juntas de bois e mil
jumentas. Teve sete filhos e três filhas: a primeira chamava-se Rola, a
segunda Cássia e a terceira Azeviche. Em toda a terra não havia mulheres
mais belas do que as filhas de Jó. E o seu pai repartiu a herança entre
elas e os irmãos delas”.
Esse final glorioso do livro de Jó é deveras muito intrigante,
pois, enquanto os seus filhos continuaram na mesma quantidade, os seus
bens duplicaram em relação à sua situação anterior, veremos isso
comparando Jó 1,2 com 42,13 e Jó 1,3 com 42,12, respectivamente. Será que
ter bens terrenos é mais importante que ter filhos, uma vez que a
quantidade de filhos permaneceu a mesma, enquanto que seus bens –
ovelhas, camelos, bois e jumentas -, foram duplicados? Essa é a
comparação que falamos, quando analisamos a passagem Jó 1,2-5.
Outra coisa: para o povo judeu a mulher não tinha nenhum valor;
por isso é estranha a citação dos nomes das filhas de Jó, quando o
esperado, se fosse para citar algum nome, seriam os dos seus filhos. Por
outro lado, elas só receberiam a herança na falta daqueles, conforme está
determinado em Nm 27,8.
Por essa passagem fica confirmado que a idéia de uma vida após a
morte ainda não era pensamento comum; daí suporem que as bênçãos de Deus
deveriam ser dadas em bens terrenos e não em bens espirituais, ou seja,
para uma vida no plano espiritual.
De certa forma a nossa opinião já foi dada no desenrolar deste
estudo; por isso, vamos, por termos achado fantástica, transcrever a
opinião de Ivo Storniolo e Euclides Martins Balancin, tradutores da
Bíblia Sagrada – Edição Pastoral, publicação da Paulus:
(...) percebemos que o livro de Jó é uma crítica de toda teologia
que se pretenda definitiva e universal. Essa teologia pode se tornar um
verdadeiro obstáculo para a própria experiência de Deus. E aqui o autor
dá o seu recado: É preciso pensar a religião a partir da experiência de
Deus e não de uma teoria a respeito dele.
(...)
O livro é um convite para nos libertar da prisão das idéias feitas
e continuadamente repetidas, a fim de entrar na trama da vida e da
história, onde Deus se manifesta ao pobre e se dispõe a caminhar com ele
para construir um mundo novo. Tal solidariedade de Deus se transforma em
desafio: Estamos dispostos a abandonar nossas tradições teológicas para
nos solidarizar com o pobre e fazer com ele a experiência de Deus? (p.
639).
Como se diz popularmente: falou pouco e disse tudo.
Satanás – ser ou não ser, eis a questão.
Tentaremos fazer uma pesquisa sobre esse tema, para ver se
realmente tal ser existe ou não. Primeiramente, devemos buscar conhecer
sua origem.
No livro A História da Bíblia, Hendrik Willem Van Loon, com
tradução de Monteiro Lobato, Ed. Cultrix, Cap. XVIII - Judéia, Província
Grega, encontramos:
Durante a longa residência na Pérsia, os judeus travaram
conhecimento com um novo sistema religioso. Os persas seguiam um grande
mestre de nome Zaratustra, ou Zoroastro.
Zaratustra considerava a vida como uma eterna luta entre o Bem e o
Mal. O deus do Bem, Ormuzd, estava sempre em guerra com o deus do Mal e
da ignorância - Ariman. Ora, isto era uma idéia nova para a maior parte
dos judeus.
Até então haviam eles reconhecido a um senhor único, ao qual deram
o nome de Jeová. Quando as coisas corriam mal, quando eles eram
derrotados nas batalhas ou assolados por moléstias, invariavelmente
atribuíam o desastre à falta de devoção do povo. A idéia de que o pecado
proviesse de interferência dum espírito do mal, nunca lhes ocorrera. A
própria serpente no Paraíso parecia-lhes menos culpada que Adão e Eva, os
quais conscientemente haviam desobedecido à vontade divina.
Sob a influência das doutrinas de Zaratustra, os judeus começaram a
crer na existência dum espírito que procurava desfazer a obra de Jeová. A
esse adversário deram o nome de Satã.
Passaram a odiá-lo e temê-lo, e no ano 331 convenceram-se de que
Satã andava pela terra. (VAN LOON, 1981, p. 122).
Informação importantíssima, traz-nos Hendrik, pois agora sabemos
que a cultura persa acabou por influenciar os nossos antepassados no
tocante à existência de satanás (letra minúscula é proposital).
A primeira vez que essa palavra aparece na Bíblia é em 1Cr 21,1.
Entretanto, a esse respeito podemos citar as observações do Dr. Severino
Celestino da Silva, autor do livro Analisando as Traduções Bíblicas, no
qual expõe o seguinte:
Uma outra observação interessante é que o livro de Samuel foi
escrito antes da influência persa no ano de 622 a.C. e, no II livro de
Samuel em seu capítulo 24:1, você lê com relação ao Recenseamento de
Israêl o seguinte: ‘A cólera de IAHVÉH se inflamou novamente contra
Israêl e excitou David contra eles, dizendo-lhe; Vai recensear Israêl e
Judá’.
Agora veja esta mesma passagem no I livro das Crônicas, que foi
escrito no começo do ano 300 a.C., portanto, já sob a influência do
Zoroastrismo persa, com o já conhecimento de ‘Ahriman’ – ‘Satanás’. No
capítulo 21:1 desse livro, está escrito: Recenseamento: ‘e levantou-se
Satã contra Israêl, e excitou David a fazer o recenseamento de Israêl’.
Portanto, o que era IAHVÉH no livro de Samuel aparece agora no livro das
Crônicas como SATANÁS. (Confira em sua Bíblia).
Assim, está evidenciado que Satanás não é um conceito original da
Bíblia, e sim, introduzido nela, a partir do Zoroastrismo Persa. (SILVA,
2001, pp. 278-279).
Desta forma, a prova da incorporação da cultura religiosa persa se
nos apresenta de maneira clara. E, a título de informação, o domínio
persa sobre os judeus se deu no período de 539 a 400 a.C.
Seguindo, vamos encontrá-lo novamente no livro de Jó, que narra:
Jó 1,6-12: “Certa vez, foram os filhos de Deus apresentar-se ao Senhor;
entre eles veio também Satanás. O Senhor, então, disse a Satanás: ‘Donde
vens?’ –‘Dei umas voltas pela terra, andando a esmo’, respondeu ele. O
Senhor lhe disse: ‘Reparastes no meu servo Jó? Na terra não há outro
igual: é um homem íntegro e reto, teme a Deus e se agasta do mal’.
Satanás respondeu ao Senhor: ‘Mas será por nada que Jó teme a Deus?
Porventura não levantaste um muro de proteção ao redor dele, de sua casa
e de todos os seus bens? Abençoastes seus empreendimentos e seus rebanhos
cobrem toda a região. Mas estende a mão e toca em todos os seus bens: eu
te garanto que te lançará maldições em rosto!’ Então o Senhor disse a
Satanás: ‘Pois bem, tudo o que ele possui, eu o deixo em teu poder, mas
não estendas a mão contra ele!’ Mas Satanás saiu da presença do Senhor”.
Informam-nos os tradutores da Bíblia Sagrada Vozes, em nota de
rodapé, que “Satanás não é o demônio da concepção cristã, mas mero
personagem funcional da narrativa” (p. 634). Deduzimos, pela informação,
que não se trata, portanto, de um ser.
Por volta do ano 520 a.C., em pleno domínio persa, aparece no
cenário bíblico o profeta Zacarias. Em seu livro encontramos mais uma vez
referência a satanás; vejamos: “Ele me fez ver o sumo Sacerdote Josué,
que estava de pé diante do anjo do Senhor, e Satã, que estava de pé à sua
direita para acusá-lo” (Zc 3,1).
Os mesmos tradutores citados há pouco nos dão a seguinte
informação: “Satã não é ainda o Espírito do Mal ou o Demônio da concepção
cristã. Não é uma pessoa, mas antes alguém que exerce uma função, a de
contradizer a Deus; só aos poucos é visto como um ser pessoal” (p. 1161).
Confirmam o que disseram anteriormente, mas agora de uma maneira ainda
mais clara que não permite outro tipo de interpretação.
É muito comum citarem numa passagem de Isaías 14, como uma
referência a satanás. Vejamo-la:
Is 14,12-15: “Como caíste do céu, ó estrela d’alva, filho da aurora! Como
foste atirado à terra, vencedor das nações! E, no entanto, dizias no teu
coração: ‘Subirei até o céu, acima das estrelas de Deus colocarei o meu
trono, estabelecer-me-ei na montanha da Assembléia, nos confins do norte.
Subirei acima das nuvens, tornar-me-ei semelhante ao Altíssimo’. E,
contudo, foste precipitado ao Xeol, nas profundezas do abismo”.
Na publicação “Mundo Novo”, Bíblia usada pelos protestantes, nós
encontramos, em nota de rodapé dos tradutores (p. 866), que seria uma
referência a satanás. Já na Bíblia Sagrada Vozes, de orientação católica,
a nota diz que essa passagem é “provavelmente uma alusão a um mito
cananeu. Há diversos paralelismos com textos da literatura ugarítica,
descobertos em Rãs-Shamra” (p. 903). Esse trecho pode estar relacionado
ao mito cananeu; entretanto, importante dizer que ele, na verdade, é uma
sátira que Deus manda Isaías fazer ao rei da Babilônia, conforme podemos
verificar no início do texto (13,1 e 14,4). Assim, o contexto não
autoriza ninguém a atribuir tal referência a alguém a não ser ao rei da
Babilônia.
Igual procedimento fizeram em relação a Ezequiel 28,11-15, que,
também, não se refere a satanás, mas a uma lamentação (canto de tristeza)
que Deus ordena que se faça sobre o rei de Tiro (v. 12).
O sentido correto de que satanás quer dizer adversário, podemos
confirmar em Mateus:
Mt 16,21-23: "E Jesus começou a mostrar aos seus discípulos que devia ir
a Jerusalém, e sofrer muito da parte dos anciãos, dos chefes dos
sacerdotes e dos doutores da Lei, e que devia ser morto e ressuscitar ao
terceiro dia. Então Pedro levou Jesus para um lado, e o repreendeu,
dizendo: ‘Deus não permita tal coisa, Senhor! Que isso nunca te
aconteça!’ Jesus, porém, voltou-se para Pedro, e disse: ‘Fique longe de
mim, Satanás! Você é uma pedra de tropeço para mim, porque não pensa as
coisas de Deus, mas as coisas dos homens!’".
Por essa passagem podemos ver que Cristo não estava dizendo que
Pedro estava com satanás, mas que ele estava exercendo a função de
adversário, que expressa o verdadeiro conteúdo semântico dessa palavra.
Podemos até ressaltar que em momento algum Jesus expulsou satanás de
alguém, mas somente "demônios", ou seja, espíritos maus, provando desta
forma que ele não é um ser como querem os teólogos.
Vejamos, agora, a análise mais completa que o Dr. Severino
Celestino faz em seu livro Analisando as Traduções Bíblicas:
Satanás
Satanás é uma figura muito controvertida na Bíblia. A palavra
‘Satã’ significa acusador.
Aparece, pela primeira vez no livro de Jó, sendo como um promotor
celestial. A sua intimidade com Deus e o direito de entrar no ‘Céu’, de
ir e vir livremente e dialogar com Ele, torna-o uma figura de muito
destaque. Veja o livro de Jó 1:6 ‘Um dia em que os filhos de Deus se
apresentaram diante do Senhor, veio também Satanás entre eles’.
O livro de Jó foi escrito depois do Exílio Babilônico. Sabemos que
o povo judeu, tendo retornado a Israel com a permissão de Ciro, rei
persa, no ano de 538 a.C., assimilou muitos costumes dos persas. Isso
ocorreu devido à simpatia e apoio que receberam do rei, que inclusive
permitiu a construção do Segundo Templo judaico e ainda devolveu muitos
de seus tesouros, que haviam sido roubados.
A religião dos persas, o Zoroastrismo, influenciou sobremaneira o
judaísmo.
No Zoroastrismo, existe o Deus supremo ‘Ahura-Mazda’ que sofre a
oposição de uma outra força poderosa, conhecida como ‘Angra Mainyu, ou
Ahriman’, ‘o espírito mau’. Desde o começo da existência, esses dois
espíritos antagônicos têm-se combatido mutuamente.
O Zoroastrismo foi uma das mais antigas religiões a ensinar o
triunfo final do bem sobre o mal. No fim, haverá punição para os maus, e
recompensa para os bons.
E foi do Zoroastrismo que os judeus aprenderam a crença em um
‘Ahriman’, um diabo pessoal, que, em hebraico, eles chamaram de
‘Satanás’. Por isso, o seu aparecimento na Bíblia só ocorre no livro de
Jó e nos outros livros escritos após o exílio Babilônico, do ano de 538
a.C. para cá. Nestes livros, já aparece a influência do Zoroastrismo
persa. Observe ainda que a tentação de Adão e Eva é feita pela serpente e
não por Satanás, demonstrando assim, que o escritor do Gênesis não
conhecia Satanás. Os sábios judaicos interpretando o Eclesiastes 10:11,
afirmam (Pirkei de Rabi Eliezer 13), que na verdade, a cobra que seduziu
Adão e Eva era o Anjo Samael que apareceu na terra sob forma de serpente.
E que Ele é conhecido como o ‘dono da língua’. O Anjo Samael, que
apareceu sob a forma de serpente, usou sua língua, e este poder pode ser
usado somente para dominar o sábio. Ele não pode prevalecer sobre um
ignorante.
Uma outra observação interessante é que o livro de Samuel foi
escrito antes da influência persa no ano de 622 a.C. e, no II livro de
Samuel em seu capítulo 24:1, você lê com relação ao Recenseamento de
Israêl o seguinte: ‘A cólera de IAHVÉH se inflamou novamente contra
Israêl e excitou David contra eles, dizendo-lhe; Vai recensear Israêl e
Judá’”
Agora veja esta mesma passagem no I livro das Crônicas, que foi
escrito no começo do ano 300 a.C., portanto, já sob a influência do
Zoroastrismo persa, com o já conhecimento de ‘Ahriman’ – ‘Satanás’. No
capítulo 21:1 desse livro, está escrito: Recenseamento: ‘e levantou-se
Satã contra Israêl, e excitou David a fazer o recenseamento de Israêl’.
Portanto, o que era IAHVÉH no livro de Samuel aparece agora no livro das
Crônicas como SATANÁS. (Confira em sua Bíblia).
Assim, está evidenciado que Satanás não é um conceito original da
Bíblia, e sim, introduzido nela, a partir do Zoroastrismo Persa.
Passa a existir a partir daí, ‘uma lenda’ entre o povo judeu de que
Satanás é considerado como o rei dos demônios, que se rebelara contra
Deus sendo expulso do céu. Ao exilar-se do céu, levou consigo uma hoste
de anjos caídos, e tornou-se seu líder. A rebelião começou quando ele,
Satanás, o maior dos anjos, com o dobro de asas, recusou prestar
homenagem a Adão. Afirmam ainda que esteve por trás do pecado de Adão e
Eva, no Jardim do Éden, mantendo relação sexual com Eva, sendo portanto,
pai de Caim. Ajudou Noé a embriagar-se com vinho e tentou persuadir
Abraão a não obedecer a deus no episódio do sacrifício do seu filho
Isaac.
Muitas pessoas acreditam no poder de Satanás e até o enaltecem em
suas igrejas, razão pela qual, acharmos que seriam fechadas muitas
igrejas se os seus dirigentes deixassem de acreditar em Satanás. (SILVA,
2001, pp. 277-283).
Endossamos essas últimas palavras do Dr. Severino.
Somente pessoas retrógradas ou de mente fechada é que podem
acreditar na existência de duas potências – a do bem e a do mal - a lutar
perpetuamente pela “posse” das almas. De duas uma: ou Deus é tudo ou não
é nada. Como não admitimos a segunda hipótese, temos convicção que Deus é
tudo. E tudo o que existe é criação sua, e como Deus não criaria o mal,
pressupomos que o mal é temporário. Por outro lado, não poderia criar um
ser perfeito que posteriormente viesse a decair, pois, assim, chegaríamos
à conclusão de que Deus não o teria criado sem defeito. Ora, sendo o
Criador a perfeição absoluta, tudo que faz é perfeito por natureza e
origem.
Mas o homem, ainda não compreendendo a grandeza de Deus, vem,
infelizmente, perpetuando esse dualismo entre o bem e o mal,
principalmente no meio das religiões cristãs tradicionais. Erro
teológico, que a nosso ver é grave, pois é com esse pensamento, que
sustentam uma pedagogia negativa, querendo que seus fiéis façam o bem
somente por medo do “tridente de satanás”, ao invés, do que seria óbvio e
lógico, fazer o bem por amor ao Pai Celestial.
Jonas e a baleia
Quanto mais estudamos a Bíblia, mais nos convencemos que ela não é
mesmo a palavra de Deus, muito embora possa ter uma coisa ou outra que
realmente seja. Partimos do pressuposto de que para um ensinamento ter
como origem a divindade ele não poderá ser ambíguo de forma a levar as
pessoas a não se entenderem sobre o seu sentido. Espinosa, célebre
filósofo do século XVII, muito lucidamente, disse que se a Bíblia fosse
um livro de grandes mistérios ela só seria entendida pelos eruditos,
ficando sem entendê-la a massa de fiéis; assim, precisaríamos de uma
academia de sábios para decifrá-la para nós outros.
É muito interessante, conforme iremos ver mais à frente, como se
instala uma verdadeira balbúrdia, quando buscamos a opinião de vários
autores sobre determinada passagem bíblica, inclusive, umas contradizendo
as outras; é um verdadeiro caos.
Veremos, neste estudo, a história de uma pessoa que foi engolida
por uma baleia (ou peixe grande?) que, depois de três dias, foi
regurgitada na praia. Isso nos parece ser ocorrência única, pois não nos
lembramos de ter ouvido falar de outro caso igual. Vejamos o relato
bíblico:
Jn 1,1-16: “A palavra de Iahweh foi dirigida a: Jonas, filho de Amati:
'Levanta-te, vai a Nínive, a grande cidade, e anuncia contra ela que a
sua maldade chegou até mim'. E Jonas levantou-se para fugir para Társis,
para longe da face de Iahweh. Ele desceu a Jope e encontrou um navio que
ia para Társis, pagou a passagem e embarcou para ir com eles para Társis,
para longe da face de Iahweh. Mas Iahweh lançou sobre o mar um vento
violento, e houve no mar uma grande tempestade, e o navio estava a ponto
de naufragar. Os marinheiros tiveram medo e começou a gritar cada qual
para o seu deus. Lançaram ao mar a carga para aliviar o navio. Jonas,
porém, havia descido para o fundo do navio, tinha-se deitado e dormia
profundamente. O comandante do navio aproximou-se dele e lhe disse: 'Como
podes dormir? Levanta-te, invoca o teu Deus! Talvez Deus se lembre de nós
e não pereceremos'. E eles diziam uns aos outros: 'Vinde, lancemos sortes
para saber por causa de quem nos acontece esta desgraça'. Eles lançaram
as sortes e a sorte caiu sobre Jonas. E lhe disseram então: 'Conta-nos
qual é a tua missão, donde vem, qual a tua terra, a que povo pertences'.
Ele lhes disse: 'Sou hebreu e venero a Iahweh, o Deus do céu, que fez o
mar e a terra'. Então os homens foram tomados por grande temor e lhe
disseram: 'Que é isto que fizeste?' Pois os homens sabiam que ele fugia
para longe da face de Iahweh, porque lhes tinha contado. Eles lhe
disseram: 'Que te faremos para que o mar se acalme em torno de nós?' Pois
o mar se tornava cada vez mais tempestuoso. Ele lhes disse: 'Tomai-me e
lançai-me ao mar e o mar se acalmará em torno de vós, porque eu sei que é
por minha causa que esta grande tempestade se levantou contra vós'. Então
os homens remaram para atingir a terra, mas não puderam, pois o mar se
tornava cada vez mais tempestuoso contra eles. Eles invocaram então a
Iahweh e disseram: 'Ah! Iahweh, não queremos perecer por causa da vida
deste homem! Mas não ponhas sobre nós o sangue inocente, pois tu agiste
como quiseste'. E tomaram Jonas e o lançaram ao mar e o mar cessou o seu
furor. Os homens foram então tomados por um grande temor para com Iahweh,
ofereceram um sacrifício a Iahweh e fizeram votos!”.
Jn 2,1-11: “E Iahweh determinou que surgisse um peixe grande para engolir
Jonas. Jonas permaneceu nas entranhas do peixe três dias e três noites.
Então orou Jonas a Iahweh, seu Deus, das entranhas do peixe. Ele disse:
'De minha angústia clamei a Iahweh, e ele me respondeu; do seio do Xeol
pedi ajuda, e tu ouviste a minha voz. Lançaste-me nas profundezas, no
seio dos mares, e a torrente me cercou, todas as tuas ondas e as tuas
vagas passaram sobre mim: E eu dizia: Fui expulso de diante de teus
olhos. Todavia, continuo a contemplar o teu santo Templo! As águas me
envolveram até o pescoço, o abismo cercou-me, e a alga enrolou-se em
volta de minha cabeça. Eu desci até às raízes das montanhas, à terra
cujos ferrolhos estavam atrás de mim para sempre. Mas tu fizeste subir da
fossa a minha vida, Iahweh, meu Deus. Quando minha alma desfalecia em
mim, eu me lembrei de Iahweh, e minha prece chegou a ti, até o teu santo
Templo. Aqueles que veneram vaidades mentirosas abandonam o seu amor'.
Quanto a mim, com cantos de ação de graças, oferecer-te-ei sacrifícios e
cumprirei os votos que tiver feito: a Iahweh pertence a salvação! Então
Iahweh falou ao peixe, e este vomitou Jonas sobre a terra firme”. (Bíblia
de Jerusalém).
Antes de mostrar as opiniões sobre se essa passagem é um fato real
ou ficção, vamos ver dois versículos especiais.
No capítulo 2, o versículo 3 é divergente nas várias bíblias
(Barsa, de Jerusalém, Vozes, Santuário, Paulinas, Ave Maria, do Peregrino
e a Anotada), nas quais encontramos os termos: ventre do inferno (uma
vez); do seio do xeol (duas vezes); do meio da morada dos mortos (duas
vezes); desde o ventre do sepulcro (uma vez) e do ventre do abismo (duas
vezes). O que nos leva a concluir que Jonas não dizia do ventre do peixe,
mas pensava estar no lugar para onde se acreditava iam todos os mortos.
Isso pode ser facilmente confirmado pelo versículo 6, quando o termo
usado foi abismo (seis vezes) e oceano (duas vezes), que não tem nada a
ver com estar no ventre de algum peixe.
Agora, vejamos algumas opiniões que a coloca como fato não
histórico:
Este livro não é uma profecia, mas a história de determinada missão
de Jonas a Nínive. Ainda se discute sobre seu gênero literário que parece
ser didático. O Espírito Santo, por meio do autor inspirado, narra uma
história fictícia para ensinar que Deus governa todas as criaturas
inclusive os homens, mesmo quando estes não querem obedecer, e que as
profecias de castigos futuros visam principalmente a conversão dos
interessados mesmo que estes sejam pagãos, além de outros muitos
ensinamentos que vão aparecendo no desenrolar da história. (Bíblia Barsa,
p. 748).
O livro de Jonas não contém oráculos proféticos, mas uma narração
envolvendo a pessoa de um tal de Jonas filho de Amati. O livro refere-se
provavelmente ao mesmo Jonas mencionado em 2Rs 14,25. Não se trata,
porém, de um relato histórico. O livro de Jonas pertence ao gênero
literário midráxico e é um ensinamento didático de caráter sapiencial.
(Bíblia Vozes, p. 1137).
O livro não é histórico. É evidente que há muitas coisas
improváveis. Tampouco é um livro profético. Somente o nome de seu herói,
tirado de 2Rs 14,25, e a missão a ele confiada o fizeram entrar no rol
dos profetas. O estilo, o vocabulário, os aramaísmos levam a pensar no
período pós-exílico. A maioria dos autores pensa no V Século. O Salmo
2,3-10 é um acréscimo.
O livro constitui uma sátira, impregnada de humor sorridente, mas
eficaz, do profetismo e de sua mensagem, bem como da consciência
israelita educada pelos profetas. [...] (Dicionário Bíblico Universal, p.
431).
Muitos perguntam a si mesmos se é preciso tomar à letra a narrativa
maravilhosa de Jonas. Com São Gregório Nazianzeno, cremos que é preciso
ver aí um ensinamento religioso velado sob as formas de uma parábola.
(Bíblia Ave Maria, p. 41).
A parábola de Jonas nos oferece um grande ensinamento, por meio de
uma ironia sustentada, que num ponto chega a sarcasmo, e conclui com uma
pergunta desafiadora. Jonas é o antiprofeta que não quer ir aonde o
Senhor o envia, nem dizer o que lhe ordena. Assim se torna o mau,
enquanto que os bons são primeiro os marinheiros pagãos, depois os
ninivitas agressores. Jonas tem de enfrentar os inimigos mitológicos, o
mar e o cetáceo, e aprender que o Senhor os controla e os submete a seu
serviço. (Bíblia do Peregrino, p. 2228).
Entretanto, contrariamente, outras opiniões nos dão conta que esse
relato é histórico; leiamos:
História ou Alegoria. Alguns consideram este livro uma alegoria,
escrito por volta de 430 a.C. para combater o exclusivismo de Esdras e
Neemias. Sob esta ótica, Jonas representa a nação israelita desobediente;
o mar representa os gentios; o grande peixe, Babilônia; os três dias no
ventre do peixe, o cativeiro dos judeus em Babilônia.
De acordo com 2Rs 14:25, entretanto, além de ser uma pessoa real,
Jonas foi também um profeta nacionalmente reconhecido e oriundo de GateHefer, próximo a Nazaré. Além disso, Jesus tratou Jonas e sua experiência
no ventre do peixe como fato histórico (Mt 12,39-41). E, naturalmente, o
livro apresenta um relato histórico direto e simples. Isso não exclui a
presença de lições, através de tipos, ilustrados pelos incidentes
históricos. (Bíblia Anotada, p. 1126).
Seria, portanto – pode-se perguntar – o livro de Jonas uma
parábola, e não o relato de fatos realmente ocorridos? É o que pensam
hoje muitos, fora da Igreja católica e também alguns de seus membros. Mas
não se apresentam razões decisivas para essa afirmação. Aquilo que a obra
nos conta de maravilhoso, não constitui dificuldade para quem admite,
como se deve admitir, a possibilidade do milagre. O fim didático funda a
possibilidade, não a necessidade de uma ficção literária. Os fatos reais
têm igualmente força para instruir a mente e maior eficácia para mover a
vontade. Estando assim neste ponto as conclusões, não é de prudência
cristã duvidar da realidade histórica dos fatos, levada em conta pelo
próprio Jesus. (Bíblia Paulinas, pp. 1000-1001).
Apesar de aqui se apelar para a veracidade, usando como argumento
o fato de Jesus ter citado essa passagem, encontramos, ainda sem sair do
âmbito dos tradutores, considerações contrárias a essa alternativa para
se afirmar sobre a realidade da narrativa:
O fato de ter N. Senhor se referido à pregação de Jonas e à sua
estadia no ventre de um peixe, como tipo ou prefiguração de sua própria
pregação (Mt 12,39-41; 16,4; Lc 11,29-32), não é argumento para provar
que esta história não seja uma simples parábola, pois para a existência
de um tipo bíblico (q.v) basta a realidade literária como se vê
claramente na Hebr 7,3, onde Melquisedec é apresentado como tipo do
Messias por não ter sido (apenas literariamente) princípio nem fim.
Aparece Jonas com freqüência pintado nas catacumbas como tipo de Jesus
Cristo. (Dicionário Prático da Bíblia Barsa, p. 149).
Em Mt 12,31 e Lc 11,29-42, Nosso Senhor apresentará como exemplo a
conversão dos ninivitas e Mt 12,30 verá em Jonas encerrado no ventre do
monstro uma figura da permanência de Cristo no sepulcro. Este uso da
história de Jonas não deve ser tomado como prova de sua historicidade:
Jesus utiliza este apólogo do Antigo Testamento como os pregadores
cristãos se servem das parábolas do Novo; em ambos os casos existe a
mesma preocupação de ensinar por meio de imagens familiares aos ouvintes,
sem emitir nenhum juízo sobre a realidade dos fatos. (Bíblia de
Jerusalém, pp. 1252-1253).
Como dissemos no princípio, ninguém se entende sobre o que
efetivamente é a passagem, uma vez que, preocupados em sustentar a
verdade da Bíblia, passam, a passos largos, sobre fatos que a razão e a
lógica não aceitam como reais. Vale aqui o que Paulo disse aos coríntios:
“Quando era criança, falava como criança, pensava como criança,
raciocinava como criança. Depois que me tornei homem, fiz desaparecer o
que era próprio de criança” (1Cor 13,11).
Sempre nos aparece um fundamentalista desesperado em querer provar
por “a” mais “b”, que os textos bíblicos são verdadeiros. Para isso,
pouco lhe importa a razão e a lógica, desde que seus argumentos, segundo
pensa, estejam denotando os daqueles que não acreditam na inerrância
bíblica. Vejamos, por exemplo, o que se encontra no Manual Popular de
Dúvidas, Enigmas e “Contradições” da Bíblia:
JONAS 1:1- O livro de Jonas é uma história real ou é ficção?
PROBLEMA: Os eruditos bíblicos tradicionais sustentaram que o livro de
Jonas registra acontecimentos que de fato ocorreram na história.
Entretanto, devido a seu estilo literário e à narração de surpreendentes
aventuras vividas pelo profeta Jonas, muitos eruditos da atualidade
propõem que não se trata de um livro que narra fatos reais, mas sim uma
história de ficção com o propósito de comunicar uma mensagem. Os fatos
narrados no livro de Jonas realmente aconteceram, ou não?
SOLUÇÃO: Há uma boa evidência de que os fatos registrados no livro de
Jonas são literais e que aconteceram na vida desse profeta.
Primeiro, a tendência de negar a historicidade do livro de Jonas provém
de um preconceito contra coisas sobrenaturais. Se é possível acontecer
milagres, não há razão alguma para se negar que o livro de Jonas seja
histórico.
Segundo, Jonas e seu ministério profético são mencionados no livro
histórico de 2 Reis (14:25). Se sua profecia sobrenatural é mencionada
num livro histórico, por que rejeitar então o aspecto histórico de seu
livro?
Terceiro, o argumento mais devastador contra a negação da precisão
histórica do livro de Jonas é encontrado em Mateus 12:40. Nessa passagem,
Jesus prevê a sua própria morte e ressurreição, e provê aos incrédulos
escribas e fariseus o sinal que eles lhe pediram. O sinal é a experiência
de Jonas. Jesus diz: "Porque assim como esteve Jonas três dias e três
noites no ventre do grande peixe, assim o Filho do Homem estará três dias
e três noites no coração da terra". Se a história da experiência de Jonas
no ventre do grande peixe fosse apenas uma ficção, isso não daria
respaldo profético algum ao que Jesus declarava.
O motivo de Jesus fazer referência a Jonas era que, se eles não
acreditavam na história de Jonas ter estado no ventre do peixe, também
não acreditariam na morte, no sepultamento e na ressurreição de Cristo.
Para Jesus, o fato histórico de sua própria morte, sepultamento e
ressurreição tinha a mesma base histórica de Jonas no ventre do peixe.
Rejeitar uma seria o mesmo que rejeitar a outra (cf. Jo 3:12). De igual
modo, se cressem numa dessas bases, teriam de crer na outra.
Quarto, Jesus prosseguiu mencionando detalhes históricos
significativos. A sua própria morte, sepultamento e ressurreição era o
sinal supremo que atestaria suas reivindicações. Quando Jonas pregou aos
gentios descrentes, eles se arrependeram. Mas achava-se Jesus na presença
de seu próprio povo, do povo de Deus, e assim mesmo eles recusavam-se a
crer. Portanto, os homens de Nínive se levantariam em juízo contra eles,
"porque [os de Nínive] se arrependeram com a pregação de Jonas" (Mt
12:41). Se os eventos do livro de Jonas fossem simplesmente parábolas ou
ficção, e não uma história real, então os homens de Nínive na realidade
nunca teriam se arrependido, e seu juízo sobre os fariseus impenitentes
seria injusto e indevido. Por causa do testemunho de Jesus, podemos ter
certeza de que Jonas registra uma história real.
Finalmente, há confirmação arqueológica da existência de um profeta
de nome Jonas, cujo túmulo encontra-se no Norte de Israel.
Adicionalmente, foram desenterradas algumas moedas antigas, com a
inscrição de um homem saindo da boca de um peixe. (GEISLER e HOWE, 1999,
pp. 315-316).
As evidências colocadas pelos autores são de uma inconsistência de
causar dó. Somente os fanáticos, que são cegos de entendimento, não
percebem isso.
O argumento da existência de milagres, reporta-nos à completa
falta de conhecimento das coisas que levava os hebreus a reputar como
“milagre” tudo quanto era fenômeno da natureza, admirados que ficavam
diante deles. O mais simples fenômeno natural que viesse a acontecer de
forma a favorecê-los colocava-o como ação divina a seu favor. A respeito
disso, interessante o que disse Espinosa (1632-1677):
O vulgo, com efeito, pensa que a providência e o poder de Deus
nunca se manifestam tão claramente como quando parece acontecer algo de
insólito e contrário à opinião que habitualmente faz da natureza, em
especial se resultar em seu proveito e vantagem. [...].
O homem comum chama, portanto, milagres ou obras de Deus aos fatos
insólitos da natureza e, em parte por devoção, em parte pelo desejo de
contrariar os que cultivam as ciências da natureza, prefere ignorar as
causas naturais das coisas e só anseia por ouvir falar do que mais ignora
e que, por isso mesmo, mais admira. Isso, porque o vulgo é incapaz de
adorar a Deus e atribuir tudo ao seu poder e à sua vontade, sem elidir as
causas naturais ou imaginar coisas estranhas ao curso da natureza. Se
alguma vez ele admira a potência de Deus, é quando a imagina como que a
subjugar a potência natureza. [...] E, de fato, isso agradou de tal
maneira aos homens que, até hoje, ainda não param de inventar milagres
para fazer crer que Deus os ama a eles mais do que aos outros e que são a
causa final que levou Deus a criar e a reger continuamente todas as
coisas. De quanta presunção se arroga a insensatez do vulgo, que não tem
de Deus nem da natureza um só conceito que seja correto, que confunde as
volições de Deus com as dos homens e que, ainda por cima, imagina a
natureza de tal modo limitada que acredita ser o homem a sua parte
principal!
[...] Se, por conseguinte, acontecesse na natureza algo que
repugnasse às suas leis universais, repugnaria, necessária e igualmente,
ao decreto, ao entendimento e à natureza de Deus; por outro lado, se
admitíssemos que Deus faz alguma coisa contrária às leis da natureza,
seríamos também obrigados a admitir que Deus age em contradição com a sua
própria natureza, o que é um absurdo. (ESPINOSA, 2003, pp. 95-97).
Os que, desapaixonadamente, estudam a Bíblia sabem perfeitamente
que os autores bíblicos nunca se preocuparam com os relatos históricos. A
eles mais interessava o engrandecimento do povo hebreu, tido como
“escolhido de Deus”, do que a narração dos fatos como realmente
acontecidos. E, como já o dissemos, a falta de conhecimento dos fenômenos
da natureza os levava a crer nos maiores absurdos, muitos dos quais são,
nos dias de hoje, explicados por argumentos científicos.
Por outro lado, conforme já dito por alguns tradutores bíblicos, o
fato de Jesus ter citado o prodígio de Jonas não o torna verdadeiro,
porquanto o fato de muitos acreditarem numa lenda isso não a torna real.
Aqui vale a frase que citamos no início: “Os erros não deixam de ser
erros só porque todos os cometem ao mesmo tempo”. (ROBIN LANE FOX).
O historiador hebreu Flávio Josefo (37 a 103), também conta esta
fábula; entretanto, quanto ao fato de Jonas no ventre do peixe, ele se
exime de dar a sua própria opinião, levando-nos a crer que não acreditava
nessa lenda. Senão vejamos:
Diz-se que uma baleia o engoliu: e depois de ter passado três dias
em seu ventre, ela o restituiu vivo e sem ferimento algum à praia do
Ponto Euxino onde, depois de ter pedido perdão a Deus, ele foi a Nínive,
e anunciou ao povo que ele perderia bem depressa o império da Ásia.
(JOSEFO, 1990, pp. 235-236).
Esse “diz-se” de Josefo é sintomático: não queria atestar a
veracidade do fato. Mas a possibilidade de uma pessoa cair no mar e, dias
depois, aparecer na praia não é um fato inacreditável; o que o torna
ficção é dizer que ela esteve viva durante três dias no ventre de uma
baleia.
Eurípedes Martins Araújo, citando Cousteau, diz: “[...] o Sr.
Jacques Cousteau, o maior oceanógrafo de nossos tempos, falecido em julho
de 1997, afirmou que nenhuma baleia possui a garganta tão grande, capaz
de engolir um ser humano; que somente uma garoupa gigante seria capaz
disso.” (ARAÚJO, 2000, p. 369).
E conclui:
Entretanto, será que poderíamos acreditar que um ser humano
sobrevivesse, 3 dias e 3 noites, no interior de um peixe? Um texto
evangélico afirma que Jesus falou sobre “o prodígio de Jonas”. É bem
provável que – se Jesus falou mesmo aquilo – foi valendo-se de uma crença
popular, para ensinar alguma coisa. Porém não temos elementos para
acreditar nos prodígios atribuídos a Jonas, e nem que realmente Jesus
acreditasse naquela história (ARAÚJO, 2000, p. 369).
Qual opinião deverá prevalecer? Para desempatar as opiniões
citadas, vamos buscar mais uma, mas baseada nos arquivos históricos,
fora, portanto, de qualquer dogmatismo religioso:
Mas os compiladores dessa grande história nacional não eram
historiadores como os entendemos. Muito desleixados quanto ao nome certo
de seus senhores de fora. Muito vagos em geografia. Constantemente se
referem a lugares que ninguém pode identificar com alguma precisão.
E muitas vezes deliberadamente ocultavam o real sentido de suas
palavras. Empregavam estranhos símbolos. Referiam-se a uma baleia que
engoliu um náufrago e dias depois vomitou em terra firme, querendo dizer
que o grande império da Babilônia conquistara a pequena Judá e depois de
meio século foi obrigado a libertá-la. Isto seria muito compreensível
para os homens de vinte e cinco séculos atrás, mas não é claro para os
que, como nós, só conhecem a Babilônia como um árido montão de pedras.
(VAN LOON, 1951, p. 103).
Ah!, agora, já no final, lembramos de uma ocorrência semelhante à
de Jonas; você também, caro leitor, deve conhecê-la pela história de
Pinóquio que salva seu “pai”, o carpinteiro Gepeto, de dentro de uma
baleia.
Nascido de uma virgem
Era costume muito comum de nossos antepassados colocar seus heróis
como provindos de nascimentos sobrenaturais, cujas mães eram
invariavelmente jovens virgens; ocorrência que também podemos verificar
na mitologia de muitos dos povos da antiguidade que falando de deuses que
em contato com jovens virgens, geravam semideuses que assumiam a condição
de ser humano e divino ao mesmo tempo.
Ora, é um fato perfeitamente aceitável, em virtude desses fatores
culturais, querer atribuir a Jesus essa condição de nascimento
sobrenatural e, como não poderia deixar de ser, nascido de uma virgem. O
que não é natural é querer manter, a todo custo, essa visão ingênua ainda
nos dias de hoje.
Por outro lado, os teólogos sempre quiseram colocar o sexo como
coisa impura, motivo pelo qual, Jesus não poderia ter vindo de “forma
impura”; não é mesmo? Justifica, de certa maneira, o celibato sacerdotal,
ou seja, os “santos” padres não poderiam praticar coisa considerada
impura; assim não poderiam se casar. Outro fator, que veio em apoio ao
celibato, foi a questão da herança dos padres, que, se casados, não seria
incorporada ao patrimônio da instituição religiosa da qual faziam parte,
já que teria que ficar com os familiares. Bom; mas isso é uma outra
questão; assim, voltemos ao assunto central do texto.
Sempre dissemos que, por ser Jesus o primogênito, evidentemente, e
pelo contexto cultural da época, já que viviam numa sociedade
extremamente machista, Maria, ao se casar com José era indubitavelmente
virgem; deste modo podemos considerar Jesus como realmente nascido de uma
virgem.
Não foi nossa surpresa que ao lermos, recentemente, o livro
Sabedoria do Evangelho, de Pastorino, em que esse erudito teólogo
desenvolve o mesmo argumento; senão vejamos:
A profecia de Isaías afirma que uma virgem conceberá e dará à luz
um filho. O termo virgem merece ser estudado.
Em hebraico há duas palavras: betulân, que especificava a
virgindade como certa; e almâh que exprimia uma oposição, sem garanti-la.
Ora, Isaías escreve exatamente almáh. E verificamos que, em Deut. 22:23,
a noiva, e mesmo a esposa recém-casada era chamada ne'arah betulâh.
Em grego a palavra ???????? exprime o mesmo: virgem, mas em sentido
genérico tanto que as moças noivas e também as recém-casadas eram assim
chamadas, e isso na própria Bíblia (cfe. Deut. 22:23; 1 Reis 1:2; Ester
2:3). Em todas essas passagens, a palavra virgem designa a moça que é
dada a alguém para deitar-se com ele, supondo-se que se trata de uma
virgem, isto é, de moça ainda não ligada pelo casamento a um homem.
A mesma designação é atribuída a Maria, demonstrando que, ao lhe
ser dada como noiva, era virgem, o que é natural e normal. No entanto, em
nenhum local dos Evangelhos se diz, nem se supõe, que Maria continuou
Virgem depois. Ela era virgem quando concebeu, o que de modo geral ocorre
com todas as moças.
Esses nossos esclarecimentos não visam a diminuir o respeito e a
veneração que todos temos pela Mãe Santíssima de Jesus, pois o fato da
virgindade nenhuma importância apresenta diante da espiritualidade.
(PASTORINO, 1964, p. 55).
Outra coisa que sempre falávamos é quanto à questão do sexo ser
impuro. Não admitimos essa hipótese de forma alguma, já que foi Deus que
fez o ser humano em duas polaridades; a masculina e a feminina, com
órgãos sexuais diferentes. Pensamos que, se o sexo for realmente
“pecado”, devemos convir que Deus não foi muito justo conosco, pois, além
de criá-lo, ainda por cima coloca prazer no ato sexual; mas de “espada em
punho” diz: Se fizer é pecado ou se fizer é coisa impura. Absurdo
teológico, que encontra campo fértil somente em cabeça de fanáticos, não
de pessoas dadas a utilizar a inteligência, de que Deus dotou a raça
humana.
Vejamos os argumentos de Pastorino:
A IMPOSIÇÃO DIVINA do uso do sexo para manutenção e multiplicação
de Sua criação, nos diversos estágios evolutivos (plantas, animais e
homens) vem provar que o sexo é SANTO. Não podemos admitir que Deus,
Sábio e Bom, tivesse imposto obrigatoriamente as Suas criaturas uma
condição que, ao cumpri-la, as tornasse imperfeitas. Se no ato sexual
houvesse uma leve imperfeição sequer, ou um sinal de atraso espiritual,
esse Deus seria monstruosamente mau, pois teria obrigado Sua criação a
ser imperfeita e atrasada, a fim de manter e multiplicar Suas obras.
Portanto, compreendendo o ato sexual em si e a maternidade como
perfeições altamente espiritualizantes (porque são o cumprimento de uma
Lei Divina), achamos que Maria se engrandece perante Deus com a
maternidade normal, porque assim dá demonstração de ser fiel e obediente
cumpridora da Vontade Divina. Compreendendo bem esse problema, o jesuíta
padre Teilhard de Chardin atribui à sexualidade um sentido cósmico e
afirma que o mundo não se diviniza por supressões, mas por sublimação, e
ainda: que o homem e a mulher tanto mais se unirão a Deus, quanto mais se
amarem, não vendo apenas o objetivo admirável mas transitório da
reprodução, mas o de dar plena expansão à quantidade do amor, liberado do
dever da reprodução. E diz claramente, sem subterfúgios: a mulher é, para
o homem, o termo susceptível de impulsionar esse progresso para a frente.
Pela mulher, e só pela mulher, pode o homem escapar ao isolamento, no
qual sua própria perfeição se arriscaria prendê-lo. (L'énergie humaine,
édition Seujl, pág. 93 a 96). Realmente a união sexual dentro do amor é a
imagem mais fiel da união do homem com a Divindade, e por isso os
místicos denominam essa unificação do homem com Deus de Esponsalício.
Na profecia de Isaías, o menino seria chamado ? ?? .Himmanu-El, que
significa Deus conosco, exprimindo a grande verdade de que Deus ESTA
REALMENTE DENTRO DE NÓS, está CONOSCO. (PASTORINO, 1964, p. 55).
A base teológica que usam para a defesa da virgindade de Maria é
uma profecia atribuída ao profeta Isaías (7,14) que diz: “Eis que uma
virgem conceberá, e dará à luz um filho, e lhe chamará Emanuel”. Essa
profecia é tida como se fosse em relação a Jesus; assim, sua mãe deveria
ser uma virgem.
Vamos fazer uma análise dessa passagem para saber se realmente ela
se refere a Jesus. Mas, antes, temos que colocar o início do versículo
para uma melhor compreensão da passagem, já que ele é sempre subtraído:
“Por isso, o Senhor mesmo vos dará um sinal”. Logo, temos que concluir
que Deus estava dando um sinal a alguém; mas quem e por que? Para saber,
vamos recorrer às informações constantes em nota de rodapé na Bíblia
sobre esse episódio. Diz lá:
O reino do Norte (Efraim), cujo rei era Faceia, se aliou a Rason,
rei de Aram, numa tentativa de se libertar do perigo assírio. Como o
reino do Sul (Judá) não participou da coalizão entre o reino do Norte e
Aram, estes dois temeram que Judá se tornasse aliado da Assíria;
resolveram então atacar o reino do Sul, para destronar o rei Acaz e
colocar no seu lugar o filho de Tabeel, rei de Tiro. Acaz teme o cerco e
verifica a reserva de água da cidade. Isaías vai ao seu encontro e o
tranqüiliza, mostrando que não haverá perigo, pois continua válida a
promessa de que a dinastia de Davi será perene, desde que se coloque
total confiança em Javé. O sinal prometido a Acaz é o seu próprio filho,
do qual a rainha (a jovem) está grávida. Esse menino que está para nascer
é o sinal de que Deus permanece no meio do seu povo (Emanuel = Deus
conosco). (Bíblia Pastoral, pp. 954-955).
Assim, pelo contexto bíblico e de fato confirmado por essa nota,
podemos observar que Deus promete um sinal ao rei Acaz e esse sinal é
justamente o seu filho que está para nascer. Fora disso é distorcer a
interpretação do texto. Além de que o fato é próximo, e não uma previsão
para um acontecimento num futuro longínquo – é bom esclarecer -, já que
querem atribuir essa profecia a Jesus. E mais: o nome Jesus (Deus é
salvação), diferente de Emanuel (Deus conosco) que é o nome previsto na
profecia, divergência que o fanatismo cego não deixa muitos perceberem.
Segundo a maioria dos estudiosos bíblicos, como um pouco antes,
para exemplo, citamos Tourinho, o termo empregado é almah que significa
jovem mulher, não se trata, portanto, de virgindade no sentido físico.
Entendemos que algumas pessoas devem reformular o conceito que têm
de moral, pois achar que a moral do homem está relacionada a seu órgão
sexual é desvirtuar totalmente o significado dessa palavra. Ainda vamos
mais longe: achamos que devemos passar por uma ampla revisão todos os
conceitos teológicos do passado, já que muitos deles estão impregnados de
um egoísmo eclesiástico incomum, onde verdades foram dobradas às
conveniências religiosas, visando a todo o custo, dominar a mente dos
fiéis; quiçá era desejo dominar toda a humanidade... Intolerância,
guerras, cruzadas, inquisição, etc. foram as armas utilizadas pelos
religiosos do passado, apoiados pelos teólogos, para impor, a ferro e
fogo, suas teorias completamente distorcidas dos ensinamentos de Cristo.
A Fuga para o Egito
De todos os quatro evangelistas, apenas Mateus fala sobre esse
episódio (2,13-23), que teria acontecido com a família de Jesus, cujo
teor transcrevemos:
“Depois de sua partida, um anjo do Senhor apareceu em sonhos a José e
disse: ‘Levanta-te, toma o menino e sua mãe e foge para o Egito e fica lá
até que eu te avise, porque Herodes vai procurar o menino para o matar’.
José levantou-se durante a noite, tomou o menino e sua mãe e partiu para
o Egito. Ali permaneceu até à morte de Herodes, para que se cumprisse o
que dissera o Senhor por meio do profeta: Eu chamei do Egito meu filho
(Os 11,1)”.
“Vendo, então, Herodes, que tinha sido enganado pelos magos, ficou muito
irado e mandou massacrar em Belém e nos seus arredores todos os meninos
de dois anos para baixo, conforme o tempo exato que havia indagado dos
magos. Cumpriu-se, então, o que fora dito pelo profeta Jeremias: Em Ramá
se ouviu uma voz, choro e grandes lamentos: é Raquel a chorar seus
filhos; não quer consolação, porque já não existem! (Jer 31,15)”.
“Com a morte de Herodes, o anjo do Senhor apareceu em sonhos a José, no
Egito, e disse: ‘Levanta-te, toma o menino e sua mãe e retorna à terra de
Israel, porque morreram os que atentavam contra a vida do menino’. José
levantou-se, tomou o menino e sua mãe e foi para a terra de Israel. Ao
ouvir, porém, que Arquelau reinava na Judéia, em lugar de seu pai
Herodes, não ousou ir para lá. Avisado divinamente em sonhos, retirou-se
para a província da Galiléia e veio habitar na cidade de Nazaré para que
se cumprisse o que foi dito pelos profetas: Será chamado Nazareno”.
(texto: Bíblia Sagrada, Ed. Ave Maria).
Por que será que somente Mateus cita tal acontecimento? Achamo-lo
por demais importante, para que fosse esquecido pelos outros três
evangelistas. Ou será que tal episódio de fato não teria ocorrido?
Questionamentos que saltam à nossa mente, que, por estar livre das
imposições dogmáticas das religiões tradicionais, nos leva a aplicar
integralmente o: “examinai tudo, retende o que é bom” (1Ts 5,21).
Segundo Werner Keller, em seu livro E a Bíblia tinha razão... (p.
366), “inexiste prova histórica ou arqueológica da ‘fuga para o Egito’”,
e para não ficar só nisso, acrescenta: “tampouco existe prova da estada
de Jesus em Nazaré”. Vê-se que por aí já nos deparamos com esses dois
espinhosos problemas.
Alguns tradutores explicam essa narrativa como “um paralelo
anterior na infância de Moisés, descrita pelas tradições rabínicas:
segundo estas, quando o nascimento da criança foi anunciado, por meio de
visões, ou por intermédio dos mágicos, o Faraó mandou chacinar as
crianças recém-nascidas” (Bíblia de Jerusalém, pp. 1705-1706).
Com respeito à morte das crianças, conta-nos Keller:
Assim, hoje em dia usa-se de um cuidado bem maior do que outrora na
apreciação da historicidade do infanticídio de Belém e, antes, tende-se a
considerar o relato em questão como uma tentativa, condicionada à
mentalidade contemporânea que visa realçar a importância de Jesus, pelos
meios usados na época (para tanto, existe ainda uma certa autenticidade
histórica, representada pelas atitudes efetivamente tomadas por Herodes
em sua contenda com os fariseus, por causa do Messias. No entanto, há
ainda mais. O relato do infanticídio de Belém estabeleceu um nexo entre
Jesus e Moisés, pois também desse último a Bíblia conta como escapou,
milagrosamente, de perseguições idênticas, sofridas por parte do faraó
egípcio (Êxodo 1.15, 2.10). (KELLER, 2000, p. 366)
Quando o anjo aparece a José, dizendo para ele e sua família
voltarem para Israel “porque morreram os que atentavam contra a vida do
menino”, notamos que isso não faz sentido, pois, no início, a referência
que se faz é a Herodes; o correto seria então dizer “morreu” e não
“morreram”.
O primeiro aviso em sonho, José o segue fielmente; quando do
segundo, demonstra receio de voltar para Judéia, lugar indicado pelo
anjo. Isso não condiz com seu comportamento anterior, pois, pensando em
deixar Maria, um anjo lhe aparece em sonho avisando que o filho que ela
levava na barriga é “obra do Espírito Santo”, já que ele ouve a voz do
anjo e não abandona Maria. Apesar de relatado, esse fato não se coaduna
com a cultura machista daquela época. E até a bem pouco tempo atrás se
isso acontecesse aqui em nossa sociedade mesmo a mulher seria, com
certeza, repudiada. E duvidamos que um homem, pela cultura daquela época,
ou mesmo dessa de pouco tempo atrás, descobrindo que sua futura mulher
estivesse grávida e esse filho não fosse dele, ainda ficaria com ela...
Se José teve receio de ir para a Judéia porque estava sendo
governada por um filho de Herodes, então, por que motivo foi para a
Galiléia que também estava sendo governada por outro filho dele, no caso,
Herodes Antipas? Não estaria correndo o mesmo risco?
Observamos que a primeira vez que Mateus cita o nome de alguma
cidade relacionada a Jesus, diz de Belém da Judéia, local onde nasceu.
Quando do retorno do Egito fala que José não quis voltar para a Judéia,
do que podemos concluir que deveria ser especificamente a cidade de
Belém. Cidade essa que, segundo se deduz das narrativas desse
evangelista, teria sido o local onde Jesus viveu até que fosse para o
Egito; só após a sua volta é que passou a morar em Nazaré. Entretanto,
Lucas deixa muito claro que Maria e José viviam em Nazaré (1,26; 2,4);
foram a Belém para se alistar no recenseamento; lá nasceu o menino e
terminado os dias de purificação, o levaram ao Templo, em Jerusalém, para
cumprirem as prescrições da Lei: “todo primogênito do sexo masculino será
consagrado ao Senhor” (Ex 13,2.15), após o que “voltaram à Galiléia, para
Nazaré, sua cidade” (Lc 2,39), afirmando, um pouco mais à frente, que
“foi a Nazaré, onde tinha crescido” (Lc 4,16).
É uma divergência para a qual não encontramos nenhuma explicação
plausível, a não ser de que a razão poderia estar mesmo com Lucas, já que
também Marcos dá a entender que Jesus, até o dia em que foi batizado por
João Batista, morava em Nazaré (Mc 1,9) e que Mateus, seguindo o que
acreditavam na época, procurou adaptar a pessoa de Jesus às profecias
sobre o Messias; por isso teria modificado a descrição dos
acontecimentos, para sustentar esse pensamento. Entretanto, conforme já
informamos anteriormente, não existe prova arqueológica da estada de
Jesus em Nazaré, permanecendo, portanto, essa dúvida.
Que os bibliólatras nos desculpem, mas, após esse estudo, a visão
que passamos a ter dessa passagem não é coisa de que irão gostar, com
certeza.
Primeiro, a “fuga” para o Egito é uma situação criada para tentar
aplicar o que dizem ser uma profecia de Oséias. Entretanto, ao
analisarmos a passagem citada (Os 11,1), percebemos claramente que ela
nem mesmo é uma profecia; trata-se, na verdade, de uma coisa já
acontecida. Observe que o verbo “chamar” está no pretérito; portanto,
fato do passado. E mais; a expressão “meu filho”, utilizada na passagem,
se refere ao povo de Israel e não a uma pessoa em particular.
Segundo, a matança das crianças justificaria uma outra profecia,
agora de Jeremias (31,15). Só que, como acontecido com a anterior, essa
passagem também não é uma profecia; está relacionada à tomada de
Jerusalém por Nabucodonosor, rei da Babilônia, que leva o povo de Israel,
que acabara de subjugar, cativo para o seu país; daí “o pranto de Raquel
(sepultada em Ramá, perto de Belém) pelos filhos massacrados ou
deportados pelos caldeus depois da destruição de Jerusalém em 596
a.C.,...”. (Bíblia Sagrada, Edições Paulinas, p. 1062).
Terceiro, a ida para Nazaré foi forjada para relacioná-la ao
cumprimento de mais uma outra profecia que teria sido dita por vários
profetas. Entretanto, a realidade é bem outra, pois não há nenhuma
profecia em que, pelo menos, um só profeta tenha dito: “Será chamado
Nazareno”; é pura invenção do autor bíblico.
Sabemos que, o que estamos dizendo poderá chocar alguns;
entretanto, aos que, acima de tudo, buscam a verdade, será ouvido de bom
grado. A verdade que entendemos, não necessita ser imposta a ferro e
fogo; ao contrário, quando alguém quer, por todos os meios, fazer com que
os outros aceitem a sua verdade, é porque, com certeza, não está com ela,
pois a verdade é algo tão cristalino que não necessita de nada mais, a
não ser que seja mostrada. Os sábios a sentirão, enquanto que os
ignorantes a contestarão.
O que nos conforta é que não estamos sozinhos nessa busca.
Recentemente, encontramos um artigo, onde parte do texto tem a ver com o
que estamos tratando aqui, do qual transcrevemos:
(...) E o segundo problema ainda mais grave, é que provavelmente
Jesus não nasceu em Belém. ‘Há quase um consenso entre os historiadores
de que Jesus nasceu em Nazaré’, diz o padre Jaldemir Vitório, do Centro
de Estudos Superiores da Companhia de Jesus, em Belo Horizonte... Assim
como o nascimento em Belém, a terrível execução de recém-nascidos
ordenada por Herodes e a fuga de Maria e José para o Egito também teriam
sido uma ‘licença poética do texto’, dessa vez para simbolizar que Jesus
é o novo Moisés – já que essa narrativa é bem semelhante ao que se
contava da vida do patriarca bíblico”. ‘Isso não foi uma criação
maquiavélica para glorificar Jesus, era apenas o estilo literário da
época’, diz Vitório. (CAVALCANTE, 2002, p. 43).
Nazareno: o significado
Se a Bíblia fosse mesmo a palavra de Deus, então ela não poderia
ter nada que uma pessoa comum ao lê-la não a entendesse, pois, se isso
ocorrer, como esse pobre coitado irá segui-la? É por esse caminho que os
líderes religiosos avançam, uma vez que, sendo eles os “doutos” em
interpretar a Bíblia, fica mantido in aeternum seu domínio sobre os
fiéis.
Espinosa, um filósofo do Século XVII, já dizia:
Admira-me bastante, pois, a engenhosidade de pessoas,... que
enxergam na Escritura mistérios tão profundos que se torna impossível
explicá-los em qualquer língua humana e que, além disso, introduzem na
religião tantas matérias de especulação filosófica que a Igreja até
parece uma academia e a religião uma ciência, ou melhor, uma
controvérsia. (ESPINOSA, 2003, p. 208).
O que vemos de mirabolantes tentativas para sair de alguma
contradição bíblica não está no gibi. Apelam feio, importam-lhes pouco as
questões do ponto de vista da razão e da lógica; da coerência, então, nem
se fala! Vamos ver a confusão que se fazem em torno da palavra Nazareno.
Mateus, no capítulo 2, narra que José, juntamente com Maria, fugiu
de Belém para o Egito, por conta de um aviso de um anjo sobre o desejo de
Herodes em matar Jesus, o recém-nascido, pois o rei temia que um dia essa
criança pudesse vir a tornar-se o rei dos judeus. Quanto ao retorno, se
fala que, em ao invés de voltar à cidade em que moravam, dirigiram-se
para a cidade de Nazaré: “Foi [José] morar na cidade de Nazaré, para que
se cumprisse deste modo o que tinha sido dito pelos profetas: Ele será
chamado Nazareno” (v. 23).
Pelo que se pode deduzir da narrativa de Mateus ele coloca a
cidade de Belém como o lugar onde moravam os pais de Jesus. Entretanto,
Lucas diz que o anjo Gabriel foi enviado a Nazaré para avisar Maria,
narração essa que nos leva a concluir que era esse o lugar onde ela
morava (Lc 1,26); assim, existe uma divergência em relação ao lugar onde
moravam os pais de Jesus.
E, obviamente, no passo citado (Mt 2,23) o vocábulo “Nazareno” é
relacionado a alguém que, se não é natural de Nazaré, pelo menos mora
nela, justificando o que Mateus relatou no início do versículo.
Vejamos as explicações dadas pelos tradutores e exegetas bíblicos:
1 - A palavra “Nazareno” pode ter um duplo sentido: habitante de
Nazaré e “Nazir”, isto é, consagrado a Deus por um voto (cf. Lv 21,12; Jz
23,57). Talvez Mt quisesse literariamente visar os dois sentidos: Jesus é
de Nazaré e é consagrado especialmente ao Senhor. (Bíblia Sagrada
Santuário, p. 1437).
2 – [Ele será chamado Nazareno] Esta frase não se encontra no
Antigo Testamento. Mas, Nazareno parece ser um qualificativo que
significa desdém. Os profetas, sobretudo Isaías, anunciavam um Servo de
Deus humilde e desprezado. O adjetivo provém, sem dúvida, do nome de
Nazaré. Serviu para designar os cristãos (Atos 24,5). (Bíblia Sagrada Ave
Maria, p. 1286)
3 - Na significação desse nome (em hebraico nezer: “rebento”,
“germe”) o evangelista vê, ou uma alusão ao nome messiânico, germe de
Davi (cf. Is 11,1; 53,2), ou à natureza de Jesus enquanto Santo de Deus
por excelência (cf. Jz 13,5; Mc 1,24). (Bíblia Sagrada Vozes, p. 1180).
4 - Pelos profetas: a expressão vaga indica que Mateus não pretende
citar nenhum profeta determinado, mas talvez o conjunto das profecias que
no Antigo Testamento se referem à vida humilde, oculta e desprezada aos
olhos dos homens, que o Messias viverá em Nazaré (cf. Jo 1,46),
cidadezinha desconhecida e desprezada pelos próprios judeus. (Bíblia
Sagrada Paulinas, p. 1062).
5 - “Nazareno”. (hebr.): Nots.rí. Gr.: Na.zo.raí.os; provavelmente
derivado do hebr. né.tser, significando “rebentão”, portanto,
figurativamente “prole”; descendente”. Veja Is 11,1 e n.: “rebentão”.
(Tradução Novo Mundo das Escrituras Sagradas, p. 1136).
6 - Ele será chamado Nazareno. Provavelmente “nazareno” é um
sinônimo para “desprezível” ou “desprezado”, já que Nazaré era o lugar
mais improvável para a residência do Messias (cf. Is 53,3; Sl 22,6).
(Bíblia Anotada, p. 1185).
7 - “Nazareu” (nazôraios forma usada por Mt, Jo e At) e o seu
sinônimo “nazareno” (nazarênos, forma usada por Mc; Lc tem as duas
formas) são duas transcrições correntes do mesmo adjetivo aramaico
(nasraya), derivado de nome da cidade de Nazaré (Nasrath). Aplicado
primeiro a Jesus – indicando sua origem (26,69.71) – e depois aos seus
sequazes (At 24,5), esse termo ficou como designativo dos discípulos de
Jesus no mundo semítico, enquanto no mundo greco-romano prevaleceu o nome
“cristão” (At 11,26). – Não se percebe claramente a que oráculos
proféticos Mt alude aqui; pode-se pensar em nazîr (Jz 13,5.7), ou em
neçer, i.é., “rebento” (Is 11,1), ou de preferências em naçar, “guardar”
(Is 42,6; 49,8), de onde naçur = o Resto. (Bíblia de Jerusalém, p. 1706).
8 - Nazaré, Nazareno: S. Mateus só citou esta cidade (o mesmo se
diga de Belém) por causa de sua relação com a palavra de algum profeta,
provavelmente Isaías (11,1). (Bíblia Sagrada Barsa, p. 3 do NT).
E num dicionário bíblico encontramos:
Nazareno – Tradução comum para duas palavras gregas: nazarenos e
nazoraios, usadas indistintamente nos escritos do Novo Testamento. É uma
espécie de termo de estado civil aplicado a Jesus, que não implica a fé
cristã mas é aceitável para ela (Mc 14,67; 16,6; Jo 18,5).
Sob a forma nazarenos é fácil de compreendê-lo como “habitante de
Nazaré”, daí as traduções usuais (Mc 1,24 etc.). Esta forma é a única
usada por Marcos, e às vezes por Lucas (Lc 4,34; 24,19); nunca pelos
outros livros. (Dicionário Bíblico Universal, p. 555).
No Dicionário Prático, constante da Bíblia Sagrada Edição Barsa,
se lê:
Nazareno. Aquele que é de Nazaré. Muitos assim chamaram a Jesus,
pois em Nazaré passou toda sua vida oculta, desde a volta do Egito até o
início do seu ministério (Mt 2,23). Os judeus davam também este nome aos
primeiros cristãos (At 24,5). (p. 189).
Verdadeira torre de Babel! Tudo fica no “pode ter”, “talvez”,
“provavelmente”, ou seja, ninguém tem certeza de nada; fica tudo por
conta da imaginação de cada tradutor, ou de quem lê a passagem.
Vejamos agora as “prováveis” profecias que se enquadrariam ao
passo.
Primeiramente, é bom ressaltar, que Mateus coloca a frase como uma
profecia dita por vários profetas, deduzindo-se que são inúmeros.
Os tradutores da Bíblia de Jerusalém, que sabemos ser uma equipe
formada por católicos e de protestantes, afirmam claramente que (p.
1706): “Não se percebe claramente a que oráculos proféticos Mt alude
aqui”; mas, como a maioria dos outros, assumem, na seqüência, a dúvida:
“pode-se pensar em nazîr (Jz 13,5.7), ou em neçer, i.é., “rebento” (Is
11,1), ou de preferências em naçar, “guardar” (Is 42,6; 49,8), de onde
naçur = o Resto.
Is 11,1: “Um ramo sairá do tronco de Jessé, um rebento brotará de
suas raízes”.
Explicando Is 11,1-9, informam-nos:
Isaías projeta para o reinado de Ezequias o ideal utópico de uma
sociedade que chegou à realização plena (cf. 6,14, 7,14 e nota em 8,23b9,6). Esse reinado se fundará no total espírito de javé (sete dons), que
fará surgir uma sociedade alicerçada na justiça, produzindo paz e
harmonia. O Novo Testamento vê o cumprimento do oráculo na pessoa de
Jesus (cf. Mt 3,16): é a partir da ação dele que se constrói o mundo
novo, onde todas as coisas se reconciliam (Ef 1,10; Cl 1,20) (Bíblia
Sagrada Pastoral, p. 959).
Se “Isaías projeta para o reinado de Ezequias” não há que se
estabelecer qualquer relação com Jesus, a não ser por contradição à
realidade da época, fugindo, sem razão, do contexto da passagem. Como na
nota acima é dito “onde todas as coisas se reconciliam”, vale uma
perguntinha: onde todas as coisas se reconciliam, se constantemente as
facções religiosas vivem se digladiando, visando impor seus pontos de
vista?
Is 42,6: “Eu, Iahweh, te chamei para o serviço da justiça, tomei-te pela
mão e te modelei, eu te constituí como aliança do povo, como luz das
nações”.
Citando Is 42,1-9, esclarecem-nos:
É o primeiro “cântico do Servo de Javé”. Quem é esse Servo? De
inicio, provavelmente, uma pessoa; depois essa pessoa foi tomada como
figura coletiva, sendo aplicada a todo o povo pobre e fiel. O Servo é a
grande novidade que Javé prepara: o missionário escolhido que, graças ao
Espírito de Javé, recebe a missão de fazer que surja uma sociedade
conforme a justiça e o direito. Ele não submeterá os fracos ao seu
domínio, mas o seu agir acabará produzindo uma transformação radical: os
cegos enxergarão e os presos serão libertos. Os evangelhos aplicam a
Jesus a figura do Servo (cf. Mt 3,17 e paralelos; 12,17-21; 17,5) (Bíblia
Sagrada Pastoral, p. 986).
Novamente temos o “aplicam a Jesus”, uma coisa que não tem nada a
ver com ele, já que, conforme já o dissemos, a esperança de Isaías era
para o reinado de Ezequias.
Já que falamos em Servo, e como este termo é sempre utilizado,
vamos ver, nas explicações dadas sobre o livro de Isaías, o seguinte:
Os capítulos 40-55 foram escritos por profeta anônimo, na época do
exílio na Babilônia, apresentando uma mensagem de esperança e consolação.
Esse profeta é comumente chamado Segundo Isaías. O fim do exílio é visto
como um novo êxodo e, como no primeiro, Javé será o condutor e a garantia
dessa nova libertação. O povo de Deus, convertido, mas oprimido, é
denominado “Servo de Javé”. (Bíblia Sagrada Pastoral, p. 947) (grifo
nosso).
Merecem destaque os “Cânticos do Servo de Deus” (42, 1-4; 49, 1-6;
50, 4-9a; 52, 13-53, 12). Neles se descreve a vocação do Servo, sua
missão de pregador, sua função mediadora da salvação para os homens e,
especialmente, o caráter expiatório de seus sofrimentos e de sua morte. O
Servo às vezes parece ser Israel como povo, ou enquanto elite; outras
vezes um indivíduo, talvez o profeta dos poemas, o rei Ciro, o rei
Joaquim ou outro personagem qualquer. (Bíblia Sagrada Vozes, p. 890).
(grifo nosso).
Assim, conforme estamos vendo, a expressão “Servo de Deus” não
poderia ser aplicada a Jesus, como alguma coisa relacionada a uma
profecia, já que o termo é específico para uma determinada situação
local, sem qualquer vinculação com algum evento num futuro longínquo,
muito menos relacionado ao Messias.
Is 49,8: “Assim diz Iahweh: No tempo do meu favor te respondi, no dia da
salvação te socorri. Modelei-te e te pus aliança do povo a fim de
restaurar a terra, a fim de redistribuir as propriedades devastadas”.
Ao explicar Is 49,1-9a, dizem-nos:
É o segundo “cântico do Servo de Javé” (cf. nota em 42,1-9). Aqui
se descrevem as características da missão profética: desde o início
(ventre), o Servo recebe a missão (o nome) de anunciar a palavra de Javé
para reunir e restaurar seu povo disperso. Esta restauração implica
reunir e organizar o povo, liderando-o no movimento da libertação: isso
implica a reorganização político-social e a justa distribuição de terras
(vv. 8-9a). Mas a missão do Servo ultrapassa as fronteiras de uma nação,
pois fará com que o povo da aliança se torne luz para os outros povos.
(Bíblia Sagrada Pastoral, pp. 992-993).
Aqui, igualmente, não vemos nenhuma profecia; é algo para aquela
época; portanto, também nada tem a ver com algum evento no futuro que
poder-se-ia aplicar a Jesus.
Is 53,2: “Ele cresceu diante dele como renovo, como raiz em terra
árida;...”.
Lemos: “Em Is 11,1.10, as imagens do renovo e da raiz acompanham o
anúncio festivo do Messias davídico. Aqui, elas apenas evocam o aspecto
humilde e mísero do Servo”. (Bíblia de Jerusalém, p. 1340)
O trecho compreendido entre Isaías 52,13–53,12, ou seja, do
versículo 13 do capítulo 52 ao versículo 12 do capítulo 53 é explicado da
seguinte forma:
Estes versículos apresentam o Servo sofrendo vicariamente pelos
pecados dos homens. A interpretação judaica tradicional entende a
passagem como uma referência ao Messias, como, é claro, fizeram os
primeiros cristãos, que criam ser Jesus o referido Messias (At. 8, 35).
Não foi senão no século XII que surgiu a opinião de que o Servo aqui se
refere à nação de Israel, opinião que se tornou dominante no Judaísmo. O
Servo, todavia, é distinto do ‘meu povo’ (53, 8), e é uma vítima
inocente, algo que não se podia dizer da nação (53, 9). (A Bíblia
Anotada, p. 905.)
Interessante que querem, de todas as maneiras, desvirtuar o texto
para aplicá-lo a Jesus, quando, em verdade, se refere especificamente à
nação de Israel.
Sl 22,6(7): “Quanto a mim, sou verme, não homem, riso dos homens e
desprezo do povo;”.
Salmo de Davi que refere a ele mesmo; portanto, não é uma profecia
a respeito de ninguém.
Vejamos algumas opiniões:
(...) E o segundo problema, ainda mais grave, é que provavelmente
Jesus não nasceu em Belém. “Há quase um consenso entre os historiadores
de que Jesus nasceu em Nazaré”, diz o padre Jaldemir Vitório, do Centro
de Estudos Superiores da Companhia de Jesus, em Belo Horizonte. Então por
que o evangelho de Mateus diz que o nascimento foi em Belém? Vitório
explica que o texto segue o gênero literário conhecido por midrash.
Basicamente, o midrash é uma forma de contar a história da vida de alguém
usando como pano de fundo a biografia de outras personalidades
históricas. No caso de Jesus, ele explica, a referência a Belém é feita
para associá-lo ao rei Davi do Antigo Testamento – que, segundo a
tradição, teria nascido lá. (CAVALCANTE, 2002, p. 43). (grifo nosso).
Da mesma forma, inexiste qualquer prova histórica ou arqueológica
da “fuga para o Egito”, como tampouco existe prova da estada de Jesus em
Nazaré. Aliás, a rigor, a Bíblia cita Jesus por muito mais vezes como
“nazireu” do que “nazareno”, e “nazireu” pode ter vários significados,
mas normalmente não define o “homem de Nazaré”. Essa última interpretação
poderia ser deduzida somente de maneira indireta, de um trocadilho com a
palavra hebraica “nezer” = “vara”, veja Isaías 11,1; “Sairá uma vara do
tronco de Jessé e uma flor brotará da sua raiz”. De fato, o Evangelho de
São Mateus torna a citar o termo controvertido “nazareno” no contexto de
uma profecia: “...e, chegando, habitou uma cidade chamada Nazaré,
cumprindo-se desse modo o que tinha sido predito pelos profetas, que
seria lá chamado Nazareno” (Mateus 2,23). Isso em nada facilita as
coisas, pois não deixa bem claro a que profetas o texto se refere (a não
ser Isaías, autor das palavras supracitadas). Talvez se pretenda
estabelecer um certo nexo com o termo “nazireu” (“consagrado a Deus”,
qualificação outrora atribuída a Sansão (Juízes 13,5 e 7, 16,17)), que
exigiu uma certa ascese por parte da pessoa assim qualificada (ele devia
observar determinados tabus); contudo, tal conjetura não deixará de
implicar em certos problemas filológicos. Assim, também, aí torna a
surgir um sinal de interrogação, e a esse respeito cumpre não silenciar o
fato de alguns cientistas interpretarem os pronunciamentos dos
Evangelhos, mencionando Nazaré como “cidade da infância e juventude” de
Jesus, como meras construções, relacionadas com o título “nazireu”, não
muito bem compreendido pelos evangelistas, os quais, por causa disso,
reinterpretam-nos e sumariamente o substituíram por “nazareno”. Mark
Lidzbarski chega a afirmar que, durante a vida de Jesus, nem teria
existido um lugar geográfico chamado Nazaré. Contra-argumentando, pode-se
dizer que, embora não soubéssemos como era Nazaré nos tempos de Jesus,
achados arqueológicos confirmam a existência daquele povoado (se é que
uns precaríssimos abrigos podem ser chamado de “povoado”), no período
entre cerca de 900 a.C. e 600 d.C., e esses achados incluem também peças
datando do reinado de Herodes, o Grande (de 40 a 4 a.C.). Aliás, o
comentário pouco lisonjeiro de Natanael, transmitido pelo Evangelho de
São João: “De Nazaré pode, porventura, sair coisa que seja boa?...”, pode
ser uma alusão à precariedade do lugarejo, todavia promovida a “cidade”
pela Bíblia. Em todo caso, não há nenhum indício de Jesus, Maria e José.
Somente desde o século XI da nossa era, o nome Nazaré ficou sendo
comprovado pela Fonte da Virgem Maria, onde até hoje as mulheres vão
buscar água com a qual enchem suas jarras, como o faziam nos tempos de
Jesus... (KELLER, 2000, pp. 366-367).
Na nossa opinião, não foi esse o motivo de ter sido Jesus chamado
de Nazareno. [referindo-se aqui o autor ao fato de Jesus ter ido morar em
Nazaré] No Antigo Testamento, a lei ordenava que “o primogênito fosse
consagrado ao Senhor”, deixando os cabelos compridos. (ARAÚJO, 2000, p.
386).
Agora devemos passar a tratar de outra fase da história dos pais de
Jesus e Dele mesmo. Em grande parte da literatura cristã Jesus é chamado
de Nazareno, sendo comum acreditar-se que Jesus nasceu ou passou a maior
parte de Sua vida em Nazaré. É estranhável que os estudiosos da
literatura bíblica, especialmente os que escreveram tão exaustivamente
sobre a vida de Jesus, apresentando em seus ensinamentos e preleções os
detalhes pitorescos de Sua vida, nunca tivessem dado a devida atenção ao
título de Nazareno nem investigado a sua significação. Todas essas
autoridades, escritores e professores presumiram que, sendo Jesus chamado
de Nazareno, deveria ser da cidade chamada Nazaré e que, visto que Ele e
Seus pais viveram na Galiléia, a cidade de Nazaré deveria estar
localizada naquela região. Com base neste raciocínio, afirma-se, de modo
geral, que Nazaré foi a cidade natal dos pais de Jesus e que Nazaré, na
Galiléia, foi o lugar onde Jesus passou sua infância.
Estive recentemente em Nazaré e fiz exaustivas pesquisas com o
propósito de comprovar as declarações contidas nos registros Rosacruzes;
a maioria de meus leitores ficará provavelmente surpresa em saber que, ao
tempo em que Jesus nasceu, não havia cidade ou vila na Galiléia com o
nome de Nazaré e que a cidade que hoje traz este nome, na Galiléia, não
só é uma cidade recente mas também veio a ter este nome, por causa da
insistência dos investigadores em encontrar alguma localidade que tivesse
o nome de Nazaré, na Galiléia.
Em primeiro lugar, devemos tornar claro que o título de Nazareno
não queria dizer que a pessoa que o tivesse fosse de uma cidade chamada
Nazaré. O título de Nazareno era dado pelos judeus a pessoas estranhas
que não seguiam sua religião e que pareciam pertencer a um culto ou seita
secreta que existira ao Norte da Palestina por muitos séculos; podemos
verificar na Bíblia Cristã que o próprio João Batista era chamado de
Nazareno. Também encontramos muitas outras referências a pessoas
conhecidas como nazarenos. Em Atos XXIV:5, encontramos um homem qualquer
sendo condenado como provocador de uma rebelião entre os judeus em todo o
mundo e sendo chamado de "líder da seita dos nazarenos". Sempre que os
judeus entravam em contato com alguém em seu país que fosse de outra
religião, e especialmente se tivesse uma compreensão mística das coisas
da vida e vivesse de acordo com um código ético ou filosófico diferente
do judaico, chamavam-no de Nazareno por falta de um nome mais adequado.
Existiu realmente uma seita chamada Os Nazarenos, citada nos
registros judaicos como uma seita de Primitivos Cristãos ou, em outras
palavras, aqueles que eram essencialmente preparados para aceitar as
doutrinas cristãs. De fato, os enciclopedistas e autoridades judaicas
parecem concordar em que o termo Nazareno abrangia todos os cristãos que
haviam nascido judeus, que não desejavam ou não podiam abrir mão de seu
antigo modo de vida, mas que tentavam ajustar as novas doutrinas às
antigas. As enciclopédias judaicas também afirmam ser bastante evidente
que os Nazarenos e os Essênios tinham muitas características em comum, e
mostravam, portanto, tendência para o misticismo. Os Essênios e
Nazarenos, na verdade, eram considerados heréticos pelos judeus cultos,
mas existe a seguinte diferença ou distinção no uso destes dois termos:
os Essênios não eram tão conhecidos pela população da Palestina como os
Nazarenos; um homem dificilmente era chamado Essênio a não ser por
pessoas bem informadas, que conhecessem a diferença entre Essênios e
Nazarenos, ao passo que muitos Essênios e membros de outras seitas que
levavam uma vida peculiar ou não aceitavam a religião judaica eram
chamados de Nazarenos.
São Jerônimo, famosa autoridade bíblica, refere-se ao fato de que
em seu tempo ainda existia entre os judeus, em todas as sinagogas do
Oriente, uma heresia condenada pelos fariseus, cujos seguidores eram
chamados de Nazarenos. Ele disse que estes acreditavam que Cristo, o
Filho de Deus, havia nascido da Virgem Maria, havia sofrido sob Pôncio
Pilatos e ascendido aos céus. "Mas," disse São Jerônimo, "embora
pretendessem ser ao mesmo tempo judeus e cristãos, não eram nem uma coisa
nem outra".
Consultando as mais altas autoridades da Igreja Católica Romana,
vemos que o título de Nazareno, aplicado ao Cristo, só ocorre uma vez na
versão da Bíblia feita por Douai, e esta autoridade declara que o termo
"Jesus Nazareno" foi uniformemente traduzido como "Jesus de Nazaré", o
que representa um erro de tradução, sendo a forma correta "Jesus, o
Nazareno." Em nenhuma parte do Velho Testamento existe a palavra Nazaré
descrevendo uma cidade existente na Palestina, mas no Novo Testamento
encontramos referências a Jesus regressando a uma cidade chamada Nazaré.
Estas referências resultam da tradução da frase "Jesus voltando aos
Nazarenos" para "Jesus retomando a Nazaré." Um ponto interessante é
reforçado pelas autoridades católicas romanas, que dizem que Jesus,
embora fosse comumente chamado de Nazareno, não pertencia absolutamente
àquela seita.
Reunindo os registros judaicos e católicos romanos e comparando-os
com as informações contidas em nossos próprios registros, verificamos que
os nazarenos constituíam uma seita de judeus que, embora tentasse seguir
os antigos ensinamentos judaicos, acreditava na vinda do Messias, que
nasceria de maneira singular e seria o Salvador de sua raça. Depois de
iniciado o ministério de Jesus, esses Nazarenos aceitaram Jesus como o
Messias e também as doutrinas que Ele pregava, ao mesmo tempo que
continuavam a tentar seguir muitos fundamentos de sua religião judaica.
Os registros judaicos afirmam que os Nazarenos rejeitaram Paulo, o
Apóstolo dos Gentios, e que alguns Nazarenos só exaltavam em Jesus o fato
de ser um homem justo.
Outro termo para esses heréticos judeus era "Nazarita". De acordo
com as autoridades judaicas, o termo Nazarita foi aplicado àqueles que
viviam à parte ou separados da raça Judia, por causa de alguma crença
ética, moral ou religiosa distinta. Os registros judaicos dizem que essas
pessoas eram, freqüentemente, as que não bebiam vinho ou qualquer bebida
feita de uvas, ou que não cortavam o cabelo, ou que não tocavam nos
mortos durante qualquer cerimônia fúnebre. Os mesmos registros nos dizem
que a história ou origem da seita nazarita na antiga Israel é obscura.
Afirmam também que Sansão era nazarita, como o fora sua mãe, e que a mãe
de Samuel prometera dedicá-lo à seita dos nazaritas. Os registros
judaicos também dizem que era comum os pais dedicarem seus filhos menores
à seita nazarita, e afirmam claramente haver referências ao fato de que
se falava que Jesus fora dedicado aos nazaritas quando ainda estava no
ventre de sua mãe. Esses registros judaicos dizem que Lucas I: 15 é uma
referência a esta dedicação. A rainha Helena, e Míriam de Palmira são
mencionadas como nazaritas nos registros judaicos, e muitas outras
pessoas famosas na literatura sacra são apresentadas como nazaritas.
Está claramente indicado em muitos registros históricos que os
termos Nazarita e Nazareno nada tinham a ver com uma cidade ou vila
chamada Nazaré. Dissemos que a atual cidade de Nazaré, na Galiléia,
recebeu este nome porque tinha de haver um local que se encaixasse
naquilo que se entendia como a aldeia onde viveram os pais de Jesus e
onde Ele passou a infância. Durante os primeiros séculos depois de
Cristo, quando as doutrinas cristãs estavam se formando e os Santos
Padres da Igreja Católica Romana e estudiosos de religião em geral
buscavam todos os locais históricos ligados à vida de Jesus, incidentes e
pontos ligados à vida deste grande homem foram ansiosamente tabulados e
glorificados. Minha recente visita à Palestina deixou bem evidente que
este desejo de encontrar locais históricos e sagrados e de glorificá-los
não se apagou e provavelmente continuará a existir por centenas de anos.
O absurdo desta situação se toma aparente quando o turista casual
descobre que três, quatro ou cinco locais diferentes lhe são mostrados,
nos quais ocorreu um determinado incidente da vida de Jesus.
Houve grandes dificuldades na busca de um lugar que correspondesse
ao nome de Nazaré, na Galiléia, visto que nenhuma cidade com este nome
fora mencionada no Velho Testamento e nenhum dos mapas antigos do tempo
do Cristo revelava a existência desse local. Um pequeno povoado chamado
"en-Nasira", entretanto, foi localizado bem longe do Mar da Galiléia e
imediatamente rebatizado "Nazaré" e associado à infância de Jesus. A
descoberta deste povoado en-Nasira ocorreu no terceiro século depois de
Cristo, e desde então passou a ser conhecido pelo nome de Nazaré, embora
ainda hoje continuem a faltar quaisquer evidências que justifiquem o uso
desse nome. Em Marcos VI: 1,2 diz-se que Jesus voltou a seu próprio país
e que Seus discípulos o seguiram e que, quando chegou o Shabat, ele
começou a ensinar na sinagoga. No quarto verso do mesmo capítulo, Jesus
se refere ao fato de que Ele era um profeta em Seu próprio país, entre
seus próprios parentes e em Sua própria casa. Essas referências foram
interpretadas como sendo relativas a Nazaré, a cidade onde muitos
estudiosos da Bíblia acreditam que Jesus nasceu e passou a infância. Ora,
se é verdade que Jesus retomou à Sua cidade natal e pregou na sinagoga
para grandes multidões, não poderia ter sido em en-Nasira, ou a chamada
Nazaré; mesmo no segundo e terceiro séculos após o nascimento de Jesus,
en-Nasira ou Nazaré ainda não tinha uma sinagoga nem era suficientemente
grande para possuir qualquer edificação ampla onde multidões pudessem ter
ouvido Jesus pregando, nem havia multidões nas vizinhanças para ouvi-Lo.
Portanto, as referências de Marcos à Sua cidade natal não podem ter sido
relativas a en-Nasira. En-Nasira era tão-somente um povoado em torno de
um poço chamado na época de "poço da casa da guarda", embora, segundo
descobri, tenha sido chamado, nos últimos anos, de "Poço de Santa Maria".
Esta mudança de nome e a atribuição de significado religioso a um local
sem importância da Palestina é bem típica das modificações que estão
sendo feitas naquele país para agradar os turistas.
Procurando nos registros judaicos, vemos que estes confirmam que só
nos livros do Novo Testamento, escritos muito após a vida de Jesus, há
menção de Nazaré como uma cidade da Galiléia, e que este local não é
mencionado no Velho Testamento, nos escritos históricos de Josefo nem no
Talmude. Durante a vida de Jesus, a cidade de Jafa era a mais importante
na Galiléia, sendo a que mais atraía os viajantes e era mais citada nos
escritos históricos.
Nos registros da Igreja Católica Romana e nas suas enciclopédias,
vemos que o vilarejo en-Nasira era conhecido estritamente como um povoado
judeu até o tempo de Constantino, havendo referências de ser habitado
totalmente por judeus. Esta pequena aldeia, em volta de um poço,
portanto, não poderia ter sido o centro da população gentia da Galiléia.
Hoje em dia há uma pequena igreja ou capela em Nazaré, a qual visitei,
supostamente erigida sobre a gruta onde Maria e José viviam no tempo da
anunciação, quando o arcanjo revelou a Maria o iminente nascimento da
encarnação do Logos.
Todos os fatos acima apresentados indicam claramente que José,
Maria e a criança, eram considerados como Nazarenos ou Nazaritas, junto
com muitos outros de sua localidade, ou seja, pessoas pertencentes a uma
seita não-judaica. Muitas outras referências a esta seita mostram
claramente que a mesma defendia pontos de vista religiosos e místicos que
mereceram ser aceitos como fundamentos da doutrina cristã. Levando isto
em consideração, temos de imediato um quadro interessante das condições
existentes na Palestina e arredores, pouco antes da era cristã. Primeiro,
temos um grande número de homens, mulheres e crianças, que ou eram judias
por nascimento, gentias por nascimento, ou de várias raças, e se
recusavam a aceitar completamente a lei mosaica, somente sendo judias
porque as leis da terra as forçavam a adotar a circuncisão e
apresentarem-se na sinagoga ao completarem doze anos, e só seguiam os
ensinamentos judeus no que revelavam de Deus e de Suas leis e lhes
serviam em seus estudos dos princípios divinos. Eram eles preparados por
alguma escola ou sistema que os tornava aptos a aceitar os ensinamentos
místicos mais elevados, revelados de tempos a tempos pelas mentes
evoluídas ou pelos ensinamentos dos Avatares. (LEWIS, 2001, pp. 56-64).
Será chamado Nazareno?
(Mateus 2:23) – “... assim se cumpriu o que foi anunciado pelos
projetas: <Ele será chamado Nazareno>”.
Aqui, num pequenino trecho, não só um amontoado de erros, como
muita mentira e má fé de Mateus (ou do escriba que fez o texto e atribuiu
a ele a autoria do versículo). Mateus especializou-se em inventar
"profecias retroativas" que aconteciam muitos anos (pelo menos 40 anos)
depois dos fatos terem sido relatados como acontecido. Como também Mateus
inventava muitas profecias do Antigo Testamento, sem que as citadas
profecias realmente estivessem no Antigo Testamento. Isto porque, não
existe um único registro no Antigo Testamento a respeito de Nazaré ou
Nazareno. Trata-se de invencionice de Mateus (ou do escriba que escreveu
por ele), escrevendo sobre a vida de Jesus mais de 70 anos após o seu
nascimento e após a destruição de Jerusalém no ano 70, e tentando fazer
coincidir, no ano 70, "profecias retroativas", como se elas tivessem
realmente se realizado. Aliás, Nazaré sequer existia como cidade quando
Jesus nasceu. Existia, sim, o lago de Genesaré (Mar de Tiberíades), mas
não a cidade de Nazaré, que somente veio a existir alguns anos (cerca de
quinze anos) após Jesus ter nascido.
Vejamos a má fé de Mateus (ou do escriba que escreveu por ele). Ele
afirma, após o ano 70, época da destruição de Jerusalém e da diáspora e
extermínio dos essênios, portanto 70 anos depois de Jesus já ter nascido,
que 70 anos antes iria se realizar uma "profecia retroativa" e que Jesus
iria ser chamado de Nazareno.
Uma profecia ao Contrário, relatada depois do fato ter acontecido,
passados mais de 70 anos. Porém, o mais gritante é que além de Nazaré
sequer existir quando Jesus nasceu, sendo impossível, dessa forma, tal
registro, Mateus ainda confunde Nazireu com Nazareno, que são coisas
completamente diferentes.
Para efeito de argumentação, vamos conceder o benefício da dúvida e
admitir que Mateus estivesse com falhas mentais (pois ele era
contemporâneo de Jesus e que quando teoricamente escreveu o seu
evangelho, logicamente já tinha mais de 80 anos) e com isso não se
lembrou ou "confundiu" que Nazaré (a cidade) não existia quando Jesus
nasceu, mas tão somente o lago de Genesaré.
Entretanto, como Mateus pode ter "confundido", novamente, Nazareno
(nascido em Nazaré) com Nazireu (de Nazir), que é um judeu que tomou os
votos de sacrifícios especiais, de não beber vinho, não comer uvas e não
cortar os cabelos, que não era o caso de Jesus, pois Jesus era essênio, e
como tal era adepto da eucaristia, do ritual do pão e do vinho, e comia
uvas. Não podendo, por isso mesmo, ser um Nazireu.
A profecia do Antigo Testamento a respeito do Nazireu, refere-se a
Sansão e não a Jesus. Dessa forma, Mateus ao "confundir" a profecia do
Antigo Testamento sobre Sansão, que era Nazireu, que não bebia vinho, não
comia uvas e não cortava os cabelos, com Jesus, chamando-o de Nazareno,
não é o que se pode dizer como um caso do acaso, quando a má fé e má
intenção estão bastante claras. Mas o pior de tudo é dizer que cumpriu-se
a profecia do Antigo Testamento afirmando que o messias se chamaria
Jesus, quando os nomes de "Jesus", assim como Nazaré, sequer são citados
no Antigo Testamento. Muito pelo contrário, o messias, segundo o Antigo
Testamento, não viria de Nazaré e sim de Belém e deveria chamar-se
Emannuel, conforme:
Isaías (7:14) "Por isso mesmo, o Senhor, por Sua conta e risco, vos
dará um sinal: Olhai: A jovem (palavra correta) mulher está grávida e
dará a luz a um filho, por-lhe-á o nome de Emmanuel".
Portanto, a mãe de Jesus, Maria, era uma jovem mulher ("almah", que
não quer dizer virgem), e não uma virgem ("bethulah"), e Jesus de Nazaré,
não era de Nazaré (e nem de Belém) e não se chama Emmanuel conforme
previsto pelas profecias de Isaias no Antigo Testamento. Ou seja, as
profecias alegadas por Mateus como tendo sido cumpridas, jamais se
realizaram (mesmo ele "prevendo" isso 70 anos depois do acontecimento).
As profecias de Isaias, no Antigo Testamento também não se realizaram,
pois Jesus chama-se Jesus e não Emmanuel. (MACHADO, 2004, pp. 168-170).
O teólogo e ex-padre Carlos T. Pastorino (1910-1980), oferece-nos,
para o caso, as seguintes explicações:
Então, ainda durante o noivado, José verificou a gravidez (??-????
?? ?????? ??????). O fato só pode ter ocorrido depois que Maria regressou
da casa de Isabel Ai’n-Karim, para sua aldeia de Nazaré. Mateus silencia
a esse respeito, fazendo que o leitor suponha que eles normalmente
habitavam em Belém.
Tanto que, mais tarde (2:23) diz que, quando José regressava do
Egito para sua casa (Belém), ao saber que Arquelau, filho de Herodes, é
que lá reinava, resolveu ir morar na Galiléia, a conselho do anjo, na
cidade de Nazaré, “para que o menino pudesse realizar a profecia e ser
chamado nazareno”. Portanto, para Mateus, Nazaré era um lugar ainda
desconhecido de José e de Maria, ao passo que, para Lucas, Nazaré era a
residência normal dos dois. (PASTORINO, vol. 1, p. 53).
Após a morte de Herodes, novamente funciona a mediunidade onírica
de José: em sonhos um “anjo” manda-o regressar à “terra de Israel”, como
ainda hoje se diz: ?? ??? ???? José obedeceu de imediato e (segundo
Mateus) dispunha-se a regressar a Belém, quando “ouve dizer” que lá
governava Arquelau, filho de Herodes. Instala-se nele o medo. Realmente,
à morte de Herodes (4 A.C.) Arquelau tinha 18 anos; mas como os judeus se
opuseram a seu reinado, revoltando-se por não ter sido deposto o sumo
sacerdote Joasar, ele mandou matar 3.000 judeus (Josefo, Ant. Jud. XVII,
9, 1). Mas à noite, outro sonho esclarece-o, indicando-lhe que se dirija
à Galiléia, a “uma cidade chamada Nazaré”. Como estamos vendo, essa
cidade constituía para Mateus uma “novidade absoluta”. Parece que José e
Maria nem a conheciam. Como conciliar com as palavras de Lucas, de que
eles eram da cidade de Nazaré, isto é, que lá tinham nascido e residiam
normalmente? Teria sido mais fácil dizer que do Egito regressaram à sua
cidade de Nazaré... pois lá eles possuíam casa, a oficina de carpinteiro
de José, os parentes e amigos.
Entretanto, Mateus desconhece tudo isso, mostra-o desejoso de ir
para Belém (fazer o quê?) e só o aviso em sonho o faz dirigir-se para
Nazaré, como se fora um local que eles pisassem pela primeira vez. E
ainda explica: “para que se cumprisse a profecia, que o chama NAZOREU”.
Nem é “nazareno”...
Esse gentilício é usado quatro vezes por Marcos e duas vezes por
Lucas. Mas o próprio Mateus emprega duas vezes nazoreu, que é utilizado
uma vez por Lucas, três vezes por João, e sete vezes por Atos. Eram assim
chamados (nazoreus) os cristãos por volta do ano 60 (At. 24:5). O Talmud
denomina Jesus o NOZRI, e chama os cristãos NOZRIM.
Notemos que não há profecia alguma que diga dever o Messias ser
chamado “nazareno”, nem “nazoreu”. A única frase que poderia ser aplicada
seria a de Isaías (11:1) quando diz que do tronco de Jessé sairá um
rebento, e de suas raízes sairá um renovo (= nezêr) que frutificará. E o
Espírito de YHWH se deterá nele. Tendo Mateus apresentado Jesus como o
último rebento (o renovo) na genealogia, pode ter feito mentalmente uma
aproximação, embora forçada. (PASTORINO, vol. 1, p. 90).
A Palavra "Nazareno" aparece com mais freqüência sob a forma
"Nazoreu" (nâshôray e nazôraios, em hebr. e grego). Porém, não se
confunda essa palavra com "nazireu"! Com efeito, nos evangelhos temos
onze vezes a forma nazoreu (Mt. 2:23 e 26:71; João, 18:5,7, e 19:19; Atos
2:22; 3:6; 4:10; 6:14; 22:8; 24:5 e 26:9) contra seis vezes a forma
"nazareno" (Marc. 1:24; 10:47; 14:67 e 16:6, e Luc. 4:34 e 24:19). Mesmo
neste local o texto de Mateus varia nos códices entre nazarenus (Vaticano
e outros) e nazoreu (Sinaítico e outros). (PASTORINO, vol. 6, p. 129).
É-nos muito mais fácil alinhar-nos com o pensamento de Pastorino,
tendo em vista que, esse eminente teólogo, não mais preso aos dogmas,
procurou apresentar, aos leitores, a verdade dos fatos, baseando-se nos
inegáveis conhecimentos de exegese bíblica.
O fato é que se ficarmos restritos ao texto de Mateus, não haverá
outra alternativa senão aceitarmos que, quando cita-se que Jesus foi
morar em Nazaré, queria que se entendesse por Nazareno como “homem de
Nazaré”, mas ao citar que isso foi predito pelos profetas, disse algo que
não é verdadeiro, pois, nenhum, mas nem um único só profeta disse
textualmente que o Messias seria chamado de Nazareno. Quando nos
apresentam Isaías como “salvador da pátria”, demonstram falta de análise
contextual, ajeitando-se uma passagem que não tem nada a ver com o caso
para derrubar a incoerência do texto bíblico objeto deste questionamento.
Mediunidade no tempo de Jesus
A mediunidade é uma faculdade humana que consiste na sintonia
espiritual entre dois seres. Normalmente, a usamos para designar a
influência de um Espírito desencarnado sobre um encarnado, muito embora,
na definição de “médium”, dada por Kardec, não se discuta a identidade ou
a natureza desses espíritos. Assim ele o define: “Todo aquele que sente,
num grau qualquer, a influência dos Espíritos é, por esse fato, médium.
Essa faculdade é inerente ao homem; não constitui, portanto, um
privilégio exclusivo”. (Livro dos Médiuns, cap. XIV, item 159, p. 203).
Sendo assim, julgamos que, por se tratar de uma aquisição do espírito
imortal, pouco importa a situação em que se encontrem esses dois seres,
para que se processe a ligação espiritual entre eles.
É comum, que ataques ao Espiritismo ocorram por conta desse “dom”,
como se ele viesse a acontecer exclusivamente em nosso meio. Ledo engano,
pois, conforme já o dissemos, é uma faculdade humana; e assim sendo,
todos a possuem, variando apenas quanto ao seu grau, conforme nos
asseverou Kardec, quando da seqüência de sua fala anterior: “Por isso
mesmo, raras são as pessoas que dela não possuam alguns rudimentos. Pode,
pois, dizer-se que todos são, mais ou menos, médiuns” (Livro dos Médiuns,
cap. XIV, item 159, p. 203)
Os detratores querem, por todos os meios, fazer com que as pessoas
acreditem que isso é coisa nova, justamente para transparecer que só
acontece no Espiritismo; mas podemos provar que a mediunidade não é coisa
nova e que até mesmo Jesus dela pode nos dá exemplos. É o que veremos a
seguir.
Quando Jesus recomenda a seus doze discípulos divulgar que o
“reino do Céu está próximo” fica evidenciado, aos que estudaram ou
vivenciam esse fenômeno, que o Mestre estava falando mesmo era da
faculdade mediúnica, uma vez que eles seriam inspirados pelo alto naquilo
que deveriam dizer. Entretanto, por conta dos tradutores e/ou dos
teólogos, essa realidade ficou comprometida no texto bíblico. Mas como
não é possível “tapar o sol com uma peneira”, podemos, perfeitamente,
identificá-la, apesar de que, em algumas situações, percebemos um certo
esforço para escondê-la.
O evangelista Mateus, ao narrar as recomendações de Jesus aos doze
discípulos, para quando fossem divulgar a Boa Nova, disse o seguinte:
Mt 10,19-20: “Quando vos entregarem, não fiqueis preocupados em saber
como ou o que haveis de falar. Naquele momento vos será indicado o que
deveis falar, porque não sereis vós que falareis, mas o Espírito de vosso
Pai é que falará em vos”.
Para comparação e análise, vamos colocar as outras passagens
correlatas:
Mc 13,11: "Quando conduzirem vocês para serem entregues, não se preocupem
com aquilo que vocês deverão dizer: digam o que vier na mente de vocês
nesse momento, porque não serão vocês que falarão, mas o Espírito Santo”.
Lc 12,11-12: “Quando introduzirem vocês diante das sinagogas, magistrados
e autoridades, não fiquem preocupados como ou com que vocês se
defenderão, ou o que dirão. Pois, nessa hora o Espírito Santo ensinará o
que vocês devem dizer”.
Conforme alguns exegetas, nas passagens bíblicas em que a palavra
grega pneuma não vem precedida de artigo, deve ser traduzida por “um
espírito” e não “o Espírito”. Isso se deve ao fato de que, no grego, não
existe artigo indefinido. A definição ou indefinição do sujeito, seria
regida pela presença ou ausência do artigo. A presença do artigo
indicaria definição, e a ausência, indefinição. É o que podemos encontrar
em qualquer gramática de grego do Novo Testamento. Mas isso também irá
depender de uma série de outras regras gramaticais, já que se trata de
uma língua que tem as suas peculiaridades próprias. O que não justifica
traduzir em todos os lugares onde falte o artigo por “o Espírito”, como
acontece em algumas traduções, numa clara tentativa de estabelecer alguma
relação com a trindade, que nada mais é do que uma corruptela das tríades
de povos pagãos, já que estes, em geral, cultuavam três deuses.
Em relação a essas passagens citadas, pesquisamos em Sabedoria do
Evangelho, vol. 5, (pp. 97-98) de Carlos Torres Pastorino (1910-1980),
formado em Teologia e Filosofia, por um Seminário Católico em Roma,
catedrático em grego, hebraico e latim. Segundo seus estudos, somos
informados de que, em grego, os textos se encontram desta forma:
“tò pneuma = o espírito”, em Mt 10,20;
“tò pneuma tò hágion = o Espírito o santo”, em Mc 13,11;
“tò hágion pneuma = o santo Espírito”, em Lc 12,12.
Assim, podemos observar que as narrativas não trazem a mesma
palavra; Mateus diz “O Espírito do Pai”, Marcos “O Espírito o santo” e,
finalmente, Lucas “o santo Espírito”.
Pastorino, inclusive, ressalta, em relação a Lucas, o seguinte:
“Há uma observação a fazer. Neste trecho (vers. 10 e 12) não aparece
pneuma hágion, mas hágion pneuma; isto é, não 'Espírito Santo', mas
'Santo Espírito'”. (p. 96)
Se, numa multiplicação, a ordem dos fatores não altera o produto,
no caso gramatical isso altera e muito, pois uma coisa é afirmar santo
espírito e outra é Espírito santo. No primeiro caso, trata-se de um
espírito santificado, no segundo poder-se-á abrir precedentes para dizer
que se trata de uma das pessoas atribuídas à trindade. Colocando mais
lenha nessa fogueira, trazemos Marcos que diz “o espírito o santo” o que
obviamente, não é a mesma coisa que dizer o Espírito Santo.
Então, concluímos que, nessa passagem, o fenômeno mediúnico é
inequívoco, já que, para nós, quem colocava palavras na boca dos
discípulos eram um santo espírito, ou seja, um espírito bom.
Principalmente, levando-se em conta as próprias palavras de Jesus: “não
fiquem preocupados como ou com aquilo que vocês vão falar, porque, nessa
hora, será sugerido a vocês”, que arremata: “Com efeito, não serão vocês
que irão falar, e sim o Espírito do Pai de vocês é quem falará através de
vocês”. (Mt 10,19-20)
E, antes de sua morte, Jesus predisse a seus discípulos:
Lc 21,12-15: "Mas, antes que essas coisas aconteçam, vocês serão presos e
perseguidos; entregarão vocês às sinagogas, e serão lançados na prisão;
serão levados diante de reis e governadores, por causa do meu nome. Isso
acontecerá para que vocês dêem testemunho. Portanto, tirem da cabeça a
idéia de que vocês devem planejar com antecedência a própria defesa;
porque eu lhes darei palavras de sabedoria, de tal modo que nenhum dos
inimigos poderá resistir ou rebater vocês”.
Essa promessa de Jesus a seus discípulos, de que após a sua morte
“daria palavras de sabedoria”, não é outra coisa senão que Ele do plano
espiritual, exerceria influência sobre eles dando-lhes palavras de
sabedoria, o que é, portanto, fenômeno mediúnico. Foi exatamente a mesma
coisa que aconteceu com Paulo: “... vocês estão procurando uma prova de
que é Cristo quem fala em mim...” (2Cor 13,3).
Por outro lado, para aquelas passagens citadas há pouco, se não
arredarmos o pé de que seja mesmo “o Espírito do Pai” ou “o Espírito
Santo” a influenciar os discípulos, teremos que, forçosamente, admitir
que o próprio Deus venha a se manifestar num ser humano. Pensamento
absurdo como esse só pode ser fruto da falta de compreensão da grandeza
de Deus, bem como, de suas formas de agir.
Dizem os cientistas que no cosmo há cerca de 100 bilhões de
galáxias; para cada uma delas estimam-se 100 bilhões de estrelas, fazendo
do Universo uma coisa fora do alcance da limitada imaginação humana; mas,
mesmo que à custa de um grande esforço, vamos imaginar tamanha grandeza.
Bom; façamos agora a pergunta: o que criou tudo isso? Diante disso,
admitir que esse ser possa estar pessoalmente inspirando uma pessoa é
fora de propósito; coisa aceitável somente a povos primitivos, cujos
conhecimentos não lhes permitem ir mais longe, por restrição imposta pelo
seu habitat.
Passando isso para o nosso dia-a-dia: é como um cidadão comum
querer que o Presidente da Republica esteja à sua disposição para
conversar com ele a qualquer hora, em qualquer lugar, esquecendo-se que
esse cargo exige uma montanha de compromissos importantes que fica
impraticável que ele, o Presidente, possa atender a todos. Uma estrutura
administrativa pública foi criada justamente para isso, liberando o
mandatário da nação somente para as questões de alta relevância.
Ora, se o homem teve a capacidade de criar uma estrutura de ação
frente aos seus semelhantes, por que Deus não poderia ter a sua? Ou será
que os profetas e o próprio Jesus, na dimensão física, bem como, os anjos
e demais espíritos, na dimensão espiritual, não fazem parte dessa
estrutura?
Agora perguntamos: Deus age diretamente? Acreditamos que não, por
ter os anjos (espíritos puros) à sua disposição, cuja missão é realizar
os Seus desejos e são eles que entram em contato com os homens para
trazer as Suas revelações. Vejamos o que se diz nas Escrituras, em se
referindo aos anjos:
Hb 1,14: “Não são todos eles espíritos ministradores, enviados para
servir a favor dos que hão de herdar a salvação?”
Sobre essa questão de anjos ela merece uma explicação à parte; por
isso, a colocaremos neste próximo tópico.
Apresentamos, para comprovar que os anjos eram mesmo encarregados
de transmitir a vontade de Deus, a passagem que relata uma visão de
Cornélio:
At 10,4: “O anjo lhe replicou: ‘Tuas orações e tuas esmolas chegaram até
Deus e Ele se lembrou de ti’”.
E mais uma; essa relativa ao anjo enviado a Zacarias:
Lc 1,19: “O anjo respondeu-lhe: ‘Eu sou Gabriel, que assisto diante de
Deus, e fui enviado para te falar e te trazer esta feliz nova’”.
Vejamos agora várias ocorrências de aparições de anjos, que para
uma melhor compreensão, dividiremos em itens, dada a peculiaridade de
cada uma.
a) anjo = homem
Todos os quatro evangelistas narram aparições às mulheres que
foram ao sepulcro, onde Jesus havia sido colocado. São elas: Mt, 28,1-8;
Mc 16,1-7, Lc 24,1-8 e Jo 20,11-13. Embora exista divergência quanto à
quantidade dos que apareceram, apenas queremos ressaltar que, enquanto
Mateus e João dizem ser anjo(s), Marcos e Lucas afirmam ser homem(ns). O
detalhe em que todos concordam é quanto às vestes que eram brancas como a
neve ou brilhantes. Vamos apenas relatar a de Lucas, pois dela iremos
fazer um destaque especial.
Lc 24,1-8: “... Entraram e não acharam ali o corpo do Senhor Jesus. Não
sabiam ainda o que pensar, quando apareceram dois homens com vestes
brilhantes. Cheias de medo, inclinaram o rosto para o chão. Eles
disseram: ‘Por que procurais entre os mortos quem está vivo? Não está
aqui, mas ressuscitou...'...”.
Aqui, os dois seres com “vestes brilhantes”, conversam com as
mulheres, fato que identificamos como fenômeno mediúnico. Os espíritos
evoluídos sempre aparecem em meio a muita luz; daí, vulgarmente, serem
denominados de “espíritos de luz”.
Em uma passagem mais à frente, Cléofas, falando desse episódio,
disse:
Lc 24,22-23: “É verdade que algumas mulheres... foram de madrugada ao
túmulo, e não encontraram o corpo de Jesus. Então voltaram, dizendo que
tinham visto anjos, e estes afirmaram que Jesus estava vivo”.
Observe que na narrativa anterior foi dito de “dois homens com
vestes brilhantes”, enquanto que aqui está se afirmando que as mulheres,
ao falarem dessa ocorrência, disseram que haviam visto anjos.
Há uma passagem interessante em que Jesus afirma que na
ressurreição todos seremos como anjos do céu (Mt 22,30); portanto, nos
iguala aos anjos; daí não ser difícil de se aceitar que anjo e espírito
humano ressuscitado são seres da mesma natureza; em outras palavras, são
a mesma coisa. Vamos a outra ocorrência:
At 10,1-4: “... Cornélio, ... certo dia, lá pelas três da tarde, viu
claramente em visão um anjo de Deus entrar em sua casa e chamá-lo.
‘Cornélio!’ Ele olhou para o anjo e, com medo, respondeu: ‘Que é o
Senhor?’ O anjo lhe replicou: ‘Tuas orações e tuas esmolas chegaram até
Deus e Ele se lembrou de ti’”.
At 10,30-31: “Cornélio respondeu: ‘Faz três dias que, enquanto eu rezava
em minha casa, lá pelas três da tarde, um homem com roupas muito claras
apareceu na minha frente e me disse: ‘Cornélio, tua oração foi ouvida e
tuas esmolas foram lembradas diante de Deus’”.
Na primeira passagem descreve-se um anjo aparecendo a Cornélio; na
segunda ele afirma que era “um homem com roupas muito claras”, que havia
lhe aparecido, o que vem reforçar que anjos possuíam a forma humana. Não
será por que são eles exatamente seres humanos desencarnados? Daí,
inclusive, justificar-se o medo que Cornélio teve...
Há um outro passo onde essa relação também é nítida; leiamo-la:
Ap 22,8-9: “Eu, João,... ajoelhei-me para adorar o Anjo, aquele que me
havia mostrado essas coisas. Mas ele não deixou: ‘Não! Não faça isso! Eu
sou servo como você, como os seus irmãos, os profetas, e como aqueles que
observam as palavras deste livro. É a Deus que você deve adorar’".
Aqui é o próprio anjo que se iguala a João, em primeiro plano; e
aos profetas e também aos que cumprem a vontade de Deus em seguida,
deixando claro que ele é igual a um ser humano, sem qualquer privilégio.
b) anjo = espírito
Vejamos as passagens:
At 8,26-29: “O anjo do Senhor dirigiu a Filipe estas palavras: ‘Tu irás
rumo ao Sul, pela estrada que desce de Jerusalém a Gaza. Ela está
deserta’. Filipe partiu imediatamente. Ora, vinha chegando um etíope,...
que... tinha ido a Jerusalém para adorar a Deus. Agora voltava, lendo o
profeta Isaías, sentado em sua carruagem. O Espírito disse a Filipe:
'Aproxima-te e acompanha essa carruagem'”.
O texto inicia dizendo anjo para depois denominá-lo de espírito, o
que evidencia ser tudo a mesma coisa, uma vez que consta do mesmo texto e
do mesmo contexto.
At 12,13-16: “Pedro bateu na porta de entrada; uma empregada, chamada
Rosa, foi ao seu encontro. Ela reconheceu a voz de Pedro e, de tanta
alegria, nem abriu a porta, mas correu para dentro, anunciando que Pedro
estava na entrada. Disseram-lhe: ‘Estás delirando!’ Mas ela insistia,
dizendo que era verdade. Observaram então: ‘Deve ser o anjo dele!’
Entretanto, Pedro continuava a bater, até que lhe abriram a porta, e
viram que era mesmo ele e ficaram muito admirados”.
Após um anjo libertar Pedro da prisão, ele se dirige à casa da mãe
de João (Marcos), onde estavam reunidas várias pessoas em oração. Rosa, a
pessoa que atende à porta, reconhece a voz de Pedro; mas, ao invés de
abrir a porta, sai correndo para dar a notícia aos outros. Entretanto,
eles não acreditaram nela, pois pensavam que Herodes já havia mandado
matar Pedro, já que o prendeu com essa intenção. Assim, como o supunham
morto, disseram que só poderia “ser o anjo dele”. Então concluímos que o
“ser o anjo dele” aqui é a possibilidade de alguém morto aparecer; isso
não é senão o que, em outras palavras, poderia ser dito: “ser o espírito
dele”. Assim, podemos compreender que, àquela época, anjo significava
também espírito. A questão é: o que é espírito? A resposta que poderemos
dar é: são seres humanos desencarnados.
c) Espírito = homem
Embora não estivéssemos querendo sair do Novo Testamento, somos
obrigados, para um maior esclarecimento, a buscar no Antigo Testamento
uma passagem que vem corroborar tudo quanto estamos afirmando aqui.
Tb 5,4-6.11-14: “Tobias saiu para procurar uma pessoa que pudesse ir com
ele até a Média e conhecesse o caminho. Logo que saiu, encontrou o anjo
Rafael bem à frente dele, mas não sabia que era um anjo de Deus. Tobias
lhe perguntou: ‘De onde você é, rapaz?’ Ele respondeu: ‘Sou israelita,
seu compatriota, e estou aqui procurando trabalho’. Tobias lhe perguntou:
‘Você sabe o caminho para a Média?’ Ele respondeu: ‘Sim. Já estive lá
muitas vezes e conheço bem todos os caminhos. Fui muitas vezes à Média, e
me hospedei na casa do nosso compatriota Gabael, que mora em Rages, na
Média. São dois dias de viagem de Ecbátana até Rages, pois Rages fica na
região montanhosa e Ecbátana fica na planície’. Tobit lhe perguntou: ‘Meu
irmão, de que família e tribo você é?’ ... Rafael respondeu: ‘Sou
Azarias, filho do grande Ananias, um compatriota seu’. Tobit disse: ‘...
Acontece que você é parente meu e vem de uma família honesta e honrada.
Conheço bem Ananias e Natã, os dois filhos do grande Semeías...’”.
Apesar desse livro constar apenas em Bíblias católicas, resolvemos
colocá-lo aqui assim mesmo, já que irá ajudar-nos em nosso propósito de
estudo. Observe que o anjo Rafael afirma ser um israelita compatriota de
Tobias, cujo pai diz conhecer-lhe a família, dizendo, inclusive, que são
parentes. Rafael, o anjo, em sua fala disse conhecer bem a região, para
onde Tobias desejava ir, propondo ser seu guia. Se supusermos que o anjo
Rafael seja, em realidade, um espírito desencarnado que viveu naquelas
bandas e que, por isso, conhece bem a região, tudo isso não se encaixaria
perfeitamente? Podemos até acreditar no contrário, desde que alguém nos
prove que os anjos vivem perambulando aqui na Terra e sendo recebidos
pelas pessoas.
d) nome de anjo = nome de homem
No item anterior já encontramos “um anjo” como o nome de Rafael
(Deus curou). Aquele que apareceu a Zacarias, afirmou chamar-se Gabriel
(homem de Deus) (Lc 1,19), e encontramos ainda mais um de nome Miguel (=
quem é como Deus?), o arcanjo (Jd 9).
Se anteriormente não se aplicava a matemática, aqui podemos
aplicá-la certamente. Se “B” é igual a “A” e “C” igual a “A”, então “B” é
igual a “C”. Vejamos, então: se anjo é igual a homem, se homem é igual a
espírito e, ainda, se anjo é espírito, então anjo, homem e espírito são
iguais. A conclusão que chegamos é que é bem provável que em todas as
passagens em que aparecem anjos e espíritos estamos a falar de seres
humanos desencarnados. E para confirmar essa nossa conclusão, trazemos o
pastor Rev. Haraldur Nielsson (1868-1928), com essas qualificações:
teólogo, professor universitário, tradutor – traduziu para o Irlandês o
Antigo Testamento a pedido da Sociedade Bíblica Inglesa, fundador da
Sociedade de Estudos Psíquicos. Disse ele:
De resto, acho que há muitas passagens no Novo Testamento que
indicam, exatamente, que se compreendia, pela palavra “espírito” (em
grego pneuma), a “alma de um morto”.
(...)
Se Deus é, em Hebreus XII, 9, chamado o “Deus dos Espíritos”, o
dicionário indica que a palavra espírito significa tanto as almas dos
homens mortos como as dos anjos. Posso ainda acrescentar, sobre o
assunto, que o Cristo foi chamado, várias vezes, depois da sua
ressurreição, de pneuma e, indiscutivelmente, se tratava de “alma de um
morto”, pois que ele vivera na Terra. (NIELSSEN, 1983, p. 88).
Há uma passagem em que fica clara essa questão do intercâmbio com
os espíritos e com os anjos; leiamo-la:
At 23,7-9: “Quando ele [Paulo] disse isto, surgiu uma acirrada discussão
entre os fariseus e saduceus, e assim a multidão ficou dividida. É que os
saduceus dizem que não há ressurreição, nem anjo, nem espíritos, enquanto
que os fariseus admitem todas estas coisas. Houve então uma enorme
gritaria e alguns dos escribas partidários da seita dos fariseus se
levantaram e declaravam energicamente: ‘Nada de mal encontramos neste
homem. Quem sabe se não foi um espírito que lhe falou? Ou talvez um
anjo?’”.
Não resta, portanto, dúvida alguma que isso era fato comum, ou
seja, a mediunidade como uma ocorrência verificada naquela época. A única
coisa que não conseguimos estabelecer, aqui nessa passagem, foi saber
qual a diferença que faziam entre espírito e anjo.
O maior tormento de um médium é tornar-se uma presa de espíritos
inferiores, pois dessa influência, muitas vezes, sozinho, não consegue
desvencilhar-se. A sintonia com esses espíritos se estabelece por
afinidade vibracional, cujas vítimas são os médiuns que ainda não
conquistaram sua elevação moral, consolidada nos ensinamentos do Mestre
Jesus.
Sobre esse assunto disse Kardec:
Pululam em torno da Terra os maus Espíritos, em conseqüência da
inferioridade moral de seus habitantes. A ação malfazeja desses Espíritos
é parte integrante dos flagelos com que a Humanidade se vê a braços neste
mundo. A obsessão que é um dos efeitos de semelhante ação, como as
enfermidades e todas as atribulações da vida, deve, pois, ser considerada
como provação ou expiação e aceita com esse caráter.
Chama-se obsessão à ação persistente que um Espírito mau exerce
sobre um indivíduo. Apresenta caracteres muito diferentes, que vão desde
a simples influência moral, sem perceptíveis sinais exteriores, até a
perturbação completa do organismo e das faculdades mentais... (KARDEC, A
Gênese, 1995, p.304).
Quando isso ocorre, dizemos que a pessoa está obsedada. Entre os
tipos de obsessão podemos citar a possessão. É fato indiscutível para
nós, os Espíritas, que toda pessoa que está sob obsessão é um médium. A
questão agora é a seguinte: podemos encontrar essa ocorrência no tempo de
Jesus? Acreditamos que sim. Vejamos algumas passagens onde se percebe
isso:
Mt 10,1: “Então Jesus chamou seus discípulos e deu-lhes poder para
expulsar os espíritos maus, e para curar qualquer tipo de doença e
enfermidade”.
Mc 3,11: “Vendo Jesus, os espíritos maus caíam a seus pés gritando: ‘Tu
és o Filho de Deus!’"
Lc 7,21: “Nessa mesma hora, Jesus curou muitas pessoas de suas doenças,
males e espíritos maus, e fez muitos cegos recuperar a vista”.
Lc 8,1-2: “... Jesus andava por cidades e povoados,... os Doze iam com
ele, e também algumas mulheres que haviam sido curadas de espíritos maus
e doenças: Maria, chamada Madalena, da qual haviam saído sete demônios;”.
Então temos aqui, nessas passagens, a comprovação de que a
obsessão não é coisa nova, porquanto os espíritos maus já faziam das suas
desde há muito tempo.
Outras passagens, interessantíssimas por sinal, podemos citar,
principalmente para se ter uma idéia de até onde pode chegar uma
influência espiritual. Em todas essas passagens se relata a influência
demoníaca; e estamos falando exatamente disso. Observar que no último
passo acima (Lc 8,1-2) é citado primeiramente “espíritos maus” e depois
“demônios”, do que concluímos que está se falando da mesma coisa com
nomes diferentes. Em corroboração a isso, podemos ainda relacionar:
PassagemEvangelistaTermo utilizadoMuitos PossessosMateus 8,16
Marcos 1,32-34
Lucas 4,40-41Espíritos
Demônios
DemôniosO possesso de GerasaMateus 8,28-34
Marcos 5,1-13
Lucas 8,26-39Demônios
Espírito impuro e demônio
Espírito impuro e demôniosO possesso de CafarnaumMarcos 1,21-28
Lucas 4,31-37Espírito impuro
Espírito de demônio impuro e demônioA filha da mulher CananéiaMateus
15,21-28
Marcos 7,24-30Demônio
Espírito impuro e demônioO menino mudo e epiléticoMateus 17,14-21
Marcos 9,14-29
Lucas 9,37-43Demônio
Espírito
Espírito, demônio e espírito impuro
Vamos relatar apenas uma dessas
passagens, para confirmar o que Kardec disse sobre até onde pode chegar a
influência dos espíritos inferiores:
Mc 5,1-13: “Jesus e seus discípulos chegaram à outra margem do mar, na
região dos gerasenos. Logo que Jesus saiu da barca, um homem possuído por
um espírito mau saiu de um cemitério e foi ao seu encontro. Esse homem
morava no meio dos túmulos e ninguém conseguia amarrá-lo, nem mesmo com
correntes. Muitas vezes tinha sido amarrado com algemas e correntes, mas
ele arrebentava as correntes e quebrava as algemas. E ninguém era capaz
de dominá-lo. Dia e noite ele vagava entre os túmulos e pelos montes,
gritando e ferindo-se com pedras. Vendo Jesus de longe, o endemoninhado
correu, caiu de joelhos diante dele e gritou bem alto: ‘Que há entre mim
e ti, Jesus, Filho do Deus altíssimo? Eu te peço por Deus, não me
atormentes!’ O homem falou assim, porque Jesus tinha dito: "Espírito mau,
saia desse homem!’ Então Jesus perguntou: ‘Qual é o seu nome?’ O homem
respondeu: ‘Meu nome é 'Legião', porque somos muitos’. E pedia com
insistência para que Jesus não o expulsasse da região. Havia aí perto uma
grande manada de porcos, pastando na montanha. Os espíritos maus
suplicaram: ‘Manda-nos para os porcos, para que entremos neles’. Jesus
deixou. Os espíritos maus saíram do homem e entraram nos porcos. E a
manada - mais ou menos uns dois mil porcos - atirou-se monte abaixo para
dentro do mar, onde se afogou”.
A força descomunal que esse obsedado possuía, sob a influência dos
espíritos maus, era tanta que nem mesmo correntes o seguravam. Vivia no
cemitério e à noite vagava pelos montes gritando como um tresloucado. E
um fato mais grave ainda lhe acontecia, pois tais espíritos – “meu nome é
legião, porque somos muitos” – faziam com que esse pobre coitado viesse a
ferir-se com pedras.
A informação de que demônios e espíritos são a mesma coisa, é, em
parte, admitida por Champlin, quando de seus comentários sobre Mc 5,2 se
refere à palavra “os demônios”:
Esse vocábulo era empregado, no grego clássico, ocasionalmente como
sinônimo do termo “theos”, “deus”. Assim usou Homero (século IX A.C.).
Por outros autores, entretanto, a palavra foi utilizada para indicar
certas divindades subordinadas, que inocentavam os deuses maiores da
prática de muitas maldades; e é provável que por causa dessa mesma
circunstância é que a palavra eventualmente passou a significar alguma
entidade sobrenatural cujo propósito é o de praticar a maldade. Esse
termo também tem sido usado para referir-se às almas dos homens que, por
ocasião da morte, são elevados a determinados privilégios, e,
posteriormente, passou a indicar os espíritos humanos em geral, partidos
deste mundo. Gradualmente esse vocábulo foi-se limitando aos espíritos
malignos em geral, exclusivamente, sem qualquer definição sobre a origem
ou natureza desses espíritos.
Nada de realmente certo se encontra sobre a origem dos demônios,
nas páginas da Bíblia, ainda que muitos creiam que sejam os anjos caídos
que seguiram a Satanás (Ver Apo 12:7-9 com Apo 12: 3,4). Mas outros
estudiosos acreditam (conforme criam muitos dos antigos) que são
espíritos dos mortos que ainda não entraram em qualquer estado bem
determinado de transição. Outros ainda, sustentam que os demônios
pertencem a ambas essas ordens de seres. Muitos psicólogos modernos
duvidam que exista realmente a possessão por meio de espíritos, mas a
experiência universal com tais espíritos desaprova essas dúvidas. Alguns
daqueles que se ocupam de pesquisas psíquicas, nestes últimos anos, estão
convencidos da realidade do mundo dos espíritos, tanto bons como maus. É
uma completa tolice pensar que simplesmente porque não podemos ver os
espíritos eles não existem – todavia, alguns sensíveis (pessoas
psiquicamente dotadas) asseveram que podem ver ocasionalmente aos
espíritos, e alguns deles vêem-nos regularmente. É fato sobejamente
conhecido que os sentidos humanos são extremamente limitados, não
percebendo muitas coisas que sabemos que realmente existem, como por
exemplo, a força chamada lei da gravidade; e assim, a maior parte deste
mundo totalmente físico continua imperceptível para os nossos sentidos (e
quanto menos o mundo espiritual)! Assim, pois, afirmar alguém que algo
não existe simplesmente porque os seus sentidos não são aptos a captá-lo,
mostra que esse alguém se deixa levar por preconceitos. Mas uma coisa que
sabemos bem é que não sabemos praticamente coisa alguma acerca do
universo em que vivemos. Não obstante, existem muitas evidências
inequívocas, perceptíveis até mesmo para os sentidos humanos, que
confirmam a existência de um mundo dos espíritos ao nosso redor.
Era ponto teológico comum, entre os judeus (sendo ensinado nas
escolas teológicas judaicas dos fariseus e de outros), que os demônios,
capazes de possuir e de controlar um corpo vivo, são espíritos de mortos
partidos deste mundo, especialmente aqueles de caráter vil e de natureza
perversa. (Ver Josefo, de Bello Jud. VII. 6.3). Os gregos, os romanos e
outros povos antigos compartilhavam dessa crença. Alguns dos pais da
igreja também aceitaram essa idéia, tais como Justino Mártir (150 D.C.) e
Atenágoras.
Tertuliano (150 D.C.) foi o primeiro pai da igreja a começar a
modificar essa idéia, e deu origem à crença de que os demônios fazem
exclusivamente parte de uma ordem de anjos decaídos. Finalmente, tendo
aparecido o grande comentador Crisóstomo (407 D.C.), obteve aceitação
geral a idéia de que os demônios não são espíritos humanos caídos, e,
sim, pertencem à ordem de anjos caídos juntamente com Satanás. Essa idéia
também prevalece na teologia moderna, apesar de ainda existirem alguns
que se apegam à idéia mais antiga, como Lange (do Comentário de Lange), o
qual acredita que aquilo que conhecemos pelo título de demônio pertence
tanto à ordem de espíritos humanos que daqui partiram e que se tornaram
parte de um nível mais baixo dos espíritos como à ordem de seres
angelicais caídos. Lange, portanto, aceita ambos os pontos de vista. As
próprias Escrituras nada nos informam acerca da origem dos demônios, pelo
menos em termos bem definidos; por isso mesmo, a sua identificação com os
anjos caídos pode representar ou não a verdade. Se isso representa a
verdade, mesmo assim pode não representar a verdade inteira sobre a
questão. Muitos casos de possessão demoníaca parecem demonstrar que
alguns demônios, pelo menos, são de fato entidades que antes eram seres
humanos comuns. Pois é possível que por enquanto, pelo menos
parcialmente, estejamos dentro de um intervalo de tempo, antes do
julgamento, e que os espíritos não foram ainda para o seu destino final;
embora seja possível que exista alguma forma de comunicação entre certas
dimensões espirituais (que podem até mesmo ser chamadas de hades) e os
homens. Diversos exemplos bíblicos mostram que a comunicação com os
mortos é algo que ocorre ocasionalmente. Nas Escrituras somos advertidos
contra essa prática, mas não nos é dito ali que tal comunicação seja
impossível. Existem evidências que parecem indicar que a posição assumida
por Lange, de que os demônios pertencem a ambas as ordens: tanto
espíritos humanos de mortos como seres pertencentes à ordem de anjos
caídos – é a mais correta, embora nos faltem provas inequívocas quanto a
isso. (CHAMPLIN, 2002, vol. 1, pp. 694-695). (itálico do original,
negrito nosso).
Um fato, que reputamos como de inquestionável ocorrência da
mediunidade, aconteceu logo depois da morte de Jesus, quando os
discípulos reunidos receberam “como que línguas de fogo” e começaram a
falar em línguas, de tal sorte que, apesar da heterogeneidade do povo que
os ouvia, cada um entendia o que falavam em sua própria língua. Fato
extraordinário registrado no livro Atos dos Apóstolos, desta forma:
At 2,1-6: “Quando chegou o dia de Pentecostes, todos eles estavam
reunidos no mesmo lugar. De repente, veio do céu um barulho como o sopro
de um forte vendaval, e encheu a casa onde eles se encontravam.
Apareceram então umas como línguas de fogo, que se espalharam e foram
pousar sobre cada um deles. Todos ficaram repletos do Espírito Santo, e
começaram a falar em outras línguas, conforme o Espírito lhes concedia
que falassem. Acontece que em Jerusalém moravam judeus devotos de todas
as nações do mundo. Quando ouviram o barulho, todos se reuniram e ficaram
confusos, pois cada um ouvia, na sua própria língua, os discípulos
falarem”.
Nesse passo podemos identificar o fenômeno mediúnico conhecido
como xenoglossia, que na definição do Aurélio é: A fala espontânea em
língua(s) que não fora(m) previamente aprendida(s). Mas para mudar o
sentido do texto alteram o artigo indefinido para o definido, quando a
realidade seria exatamente de que estavam “repletos de um Espírito santo
(bom)”. Isso é fato, pois segundo Pastorino, em Sabedoria do Evangelho,
vol. 5, (pp. 97-98), o termo grego empregado no versículo 4 é pneuma
hágion, ou seja, sem o artigo, portanto, a tradução correta seria “um
espírito santo”. Fica tão evidente isso que na seqüência está dito que
falavam em línguas “conforme o espírito lhes concedia”, ou seja, conforme
aquele espírito específico, pois como em grego não há a palavra hágion
(santo) não poderia ser traduzido por “o Espírito Santo”.
Fato semelhante aconteceu, um pouco mais tarde, nomeado como o
Pentecostes dos pagãos:
At 10,44-46: “Pedro ainda estava falando, quando o Espírito Santo desceu
sobre todos os que ouviam a Palavra. Os fiéis de origem judaica, que
tinham ido com Pedro, ficaram admirados de que o dom do Espírito Santo
também fosse derramado sobre os pagãos. De fato, eles os ouviam falar em
línguas estranhas e louvar a grandeza de Deus...”.
Episódio que confirma que “Deus não faz acepção de pessoas” (At
10,34); daí podermos estender à mediunidade não como uma faculdade
exclusiva a um determinado grupo religioso, mas como algo que existe em
todos os segmentos em suas expressões de religiosidade.
Aqui, segundo Pastorino, em Sabedoria do Evangelho, vol. 5, (p.
97-98) os versículos 44 e 47 estão, respectivamente, em grego: tò pneuma
tò hágion, ou seja, o Espírito o santo, portanto, não é Espírito Santo
como consta dessa tradução.
A bem da verdade não há como ninguém transmitir a mediunidade para
outra pessoa. Entretanto, pelos relatos bíblicos, a imposição das mãos
fazia com que houvesse sua eclosão, óbvio que naqueles que a possuíam em
estado latente. Vejamos algumas situações em que isso ocorreu:
a) Em Atos 8,17-19:
“Então Pedro e João impuseram as mãos sobre os samaritanos, e eles
receberam o Espírito Santo. Simão viu que o Espírito Santo era comunicado
através da imposição das mãos. Então ele ofereceu dinheiro a Pedro e
João, dizendo: ‘Dêem para mim também esse poder, a fim de que receba o
Espírito todo aquele sobre o qual eu impuser as mãos’”.
Simão era um mago que, com suas artes mágicas, deixava o povo da
região de Samaria maravilhado. Mas, ao ver o “poder” de Pedro e João,
ficou impressionado com o que fizeram; daí lhes oferece dinheiro, a fim
de que dessem a ele esse poder, para que sobre todos os que ele impusesse
as mãos, também recebessem o Espírito Santo.
Em grego o v. 17 está sem artigo, no v. 18 não há o santo e o
v.19, também sem artigo, significando que deveria ser “um espírito
santo”, “o espírito” e “um espírito santo”, respectivamente, conforme
Pastorino, no livro já citado.
b) Em Atos 19,1-7:
“Enquanto Apolo estava em Corinto, Paulo atravessou as regiões mais altas
e chegou a Éfeso. Encontrou aí alguns discípulos, e perguntou-lhes:
‘Quando vocês abraçaram a fé receberam o Espírito Santo?’ Eles
responderam: ‘Nós nem sequer ouvimos falar que existe um Espírito Santo’.
Paulo perguntou: ‘Que batismo vocês receberam?’ Eles responderam: ‘O
batismo de João’. Então Paulo explicou: ‘João batizava como sinal de
arrependimento e pedia que o povo acreditasse naquele que devia vir
depois dele, isto é, em Jesus’. Ao ouvir isso, eles se fizeram batizar em
nome do Senhor Jesus. Logo que Paulo lhes impôs as mãos, o Espírito Santo
desceu sobre eles, e começaram a falar em línguas e a profetizar. Eram,
ao todo, doze homens”.
Será que podemos entender que o batismo de Jesus é “receber o
Espírito Santo”, conseguido pela imposição das mãos? A narrativa nos leva
a aceitar essa hipótese; apenas ressalvamos quanto à expressão “o
Espírito Santo”. No grego está: v. 2, pneuma hágion e no v.6 tò pneuma tò
hágion, cuja tradução, pela ordem, é “um espírito santo” e “o espírito o
santo”; não é como está nessa tradução. Igualmente estamos usando
Pastorino, mais uma vez.
Na estrada de Damasco, Paulo, que até então perseguia os
cristãos, numa ocorrência transcendente, se encontra com Jesus, passando,
a partir daí, a segui-lo. Durante o seu apostolado se comunicava
diretamente com o Espírito de Jesus, demonstrando sua incontestável
mediunidade.
Aliás, o apóstolo Paulo foi quem mais entendeu do fenômeno
mediúnico; tanto que existem recomendações preciosas de sua parte aos
agrupamentos cristãos de então. Ele o chamava de “dons do Espírito” e
dizia: “sobre os dons do Espírito, irmãos, não quero que vocês fiquem na
ignorância” (1Cor 12,1), mostrando-se interessado em que todos pudessem
conhecer tais fenômenos.
E esclarece o apóstolo dos gentios:
1Cor 12,4-11: “Existem dons diferentes, mas o Espírito é o mesmo;
diferentes serviços, mas o Senhor é o mesmo; diferentes modos de agir,
mas é o mesmo Deus que realiza tudo em todos. Cada um recebe o dom de
manifestar o Espírito para a utilidade de todos. A um, o Espírito dá a
palavra de sabedoria; a outro, a palavra de ciência segundo o mesmo
Espírito; a outro, o mesmo Espírito dá a fé; a outro ainda, o único e
mesmo Espírito concede o dom das curas; a outro, o poder de fazer
milagres; a outro, a profecia; a outro, o discernimento dos espíritos; a
outro, o dom de falar em línguas; a outro ainda, o dom de as interpretar.
Mas é o único e mesmo Espírito quem realiza tudo isso, distribuindo os
seus dons a cada um, conforme ele quer”.
Se aqui entendermos que “o Espírito” é na realidade “um Espírito”,
baseando-nos nos conhecimentos do intercâmbio entre os dois planos da
vida, estaremos, indubitavelmente, diante da faculdade mediúnica,
bastando “ter olhos de ver”.
Ao que parece, naquela época, os médiuns se preocupavam mais com a
xenoglossia, e Paulo, para desfazer esse engano, faz várias recomendações
aos coríntios (1Cor 14,1-25), entre elas disse ele:
“Procurem o amor. Entretanto, aspirem aos dons do Espírito,
principalmente à profecia. Pois aquele que fala em línguas não fala aos
homens, mas a Deus. Ninguém o entende, pois ele, em espírito, diz coisas
incompreensíveis. Mas aquele que profetiza fala aos homens: edifica,
exorta, consola. Aquele que fala em línguas edifica a si mesmo, ao passo
que aquele que profetiza edifica a assembléia. Eu desejo que vocês todos
falem em línguas, mas prefiro que profetizem. Aquele que profetiza é
maior do que aquele que fala em línguas, a menos que este mesmo as
interprete, para que a assembléia seja edificada...”. (1Cor 14,1-5)
Destaque especial para o versículo 12, pois é dele que fala o Rev.
Haraldur Nielsson, em O Espiritismo e a Igreja. Leiamos o que o pastor
Nielsson disse:
E, em outra passagem do mesmo capítulo, diz: “Assim também vós,
pois que aspirais dons espirituais (isto é, desenvolver a mediunidade e
entram em relação com os espíritos) seja isto para edificação da Igreja e
que os procureis possuir em abundância. (I Cor., XIV, 12)”.
No texto grego está “espíritos” e não “dons espirituais” como
menciona a tradução dinamarquesa da Bíblia. Em muitas traduções da
Bíblia, esta passagem está vertida em sentido confuso, apesar de não
haver a menor dúvida quanto à verdadeira significação dos termos gregos
do texto original: epei zelotai este penumaton.
Os tradutores e os revisores da Bíblia nem sempre têm tido a
coragem de traduzir, exatamente, as Escrituras Sagradas, o que não nos
causa espanto. Os teólogos prenderam os seus sistemas dogmáticos em
pesadas e estreitas cadeias. Por outro lado, leigos ortodoxos, em muitos
países, não podem suportar a verdadeira tradução por julgarem que ela
destrói os seus dogmas. Tenho alguma experiência sobre o assunto e falo
do que conheço. (NIELSSEN, 1983, p. 49-50).
Um pouco atrás citamos uma passagem (2Cor 13,3) que nos leva à
conclusão de que Paulo era um médium notável, razão pela qual pôde, por
experiência própria, orientar aos outros. Algumas circunstâncias que
apóiam a sua mediunidade:
At 9,3-17: “Durante a viagem, quando já estava perto de Damasco, Saulo se
viu repentinamente cercado por uma luz que vinha do céu. Caiu por terra,
e ouviu uma voz que lhe dizia: ‘Saulo, Saulo, por que você me persegue?’
Saulo perguntou: ‘Quem és tu, Senhor?’ A voz respondeu: ‘Eu sou Jesus, a
quem você está perseguindo. Agora, levante-se, entre na cidade, e aí
dirão o que você deve fazer’. ...Então Ananias saiu, entrou na casa e
impôs as mãos sobre Saulo, dizendo: ‘Saulo, meu irmão, o Senhor Jesus,
que lhe apareceu quando você vinha pelo caminho, me mandou aqui para que
você recupere a vista e fique cheio do Espírito Santo".
At 16,7-10: “Chegando perto da Mísia, eles tentaram entrar na Bitínia,
mas o Espírito de Jesus os impediu. Então atravessaram a Mísia e desceram
para Trôade. Durante a noite, Paulo teve uma visão: na sua frente estava
de pé um macedônio que lhe suplicava: ‘Venha à Macedônia e ajude-nos!’
Depois dessa visão, procuramos imediatamente partir para a Macedônia,
pois estávamos convencidos de que Deus acabava de nos chamar para
anunciar aí a Boa Notícia”.
Na primeira passagem Jesus lhe aparece e conversa com ele; na
segunda é um macedônio quem lhe aparece numa visão e pede ajuda, fatos
que provam a mediunidade de Paulo. Observe que no início da aparição se
fala sobre uma luz que vinha do céu, exatamente o que dissemos sobre como
os espíritos puros se apresentam.
Inúmeras passagens bíblicas nos dão conta de que várias pessoas
receberam a influência do Espírito Santo; entretanto, parece-nos ser essa
uma questão controversa, pois muitas delas falam de “um espírito santo” e
não de “o Espírito Santo”, já que a diferença entre o artigo indefinido e
o definido aqui é fundamental para sabermos de quem está se falando.
Anteriormente já citamos algumas dessas passagens, e, por agora,
só acrescentaremos mais essa:
Lc 11,13: “Se vocês, que são maus, sabem dar coisas boas aos filhos,
quanto mais o Pai do céu! Ele dará o Espírito Santo àqueles que o
pedirem".
O teólogo Pastorino, em Sabedoria do Evangelho (vol. 2, p. 139),
assim traduz essa passagem: “Ora, se vós, sendo maus, sabeis dar boas
dádivas a vossos filhos, quanto mais vosso Pai, o do céu, dará um
espírito bom aos que lho pedirem!”.
Realmente, a expressão usada em grego é pneuma hágion; portanto,
seria “um” espírito santo; quer dizer, um espírito bom, conforme nos diz
Pastorino. Dessa forma fica evidenciado que Deus envia espíritos bons
para ajudar aos que Lho pedem.
O que ainda não conseguimos entender é como o Espírito Santo é
citado em várias passagens bíblicas, sem ao menos se darem conta de que
isso não poderia ter ocorrido. Senão vejamos:
Jo 7,39: “Jesus disse isso, referindo-se ao Espírito que deveriam receber
os que acreditassem nele. De fato, ainda não havia Espírito, porque Jesus
ainda não tinha sido glorificado”.
Jo 14,16-17.26: “Então, eu pedirei ao Pai, e ele dará a vocês outro
Advogado, para que permaneça com vocês para sempre. Ele é o Espírito da
Verdade, que o mundo não pode acolher, porque não o vê, nem o conhece.
Vocês o conhecem, porque ele mora com vocês, e estará com vocês. Mas o
Advogado, o Espírito Santo, que o Pai vai enviar em meu nome, ele
ensinará a vocês todas as coisas e fará vocês lembrarem tudo o que eu
lhes disse".
Jo 16,12-14: "Ainda tenho muitas coisas para dizer, mas agora vocês não
seriam capazes de suportar. Quando vier o Espírito da Verdade, ele
encaminhará vocês para toda a verdade, porque o Espírito não falará em
seu próprio nome, mas dirá o que escutou e anunciará para vocês as coisas
que vão acontecer. O Espírito da Verdade manifestará a minha glória,
porque ele vai receber daquilo que é meu, e o interpretará para vocês”.
Portanto, se Jesus ainda não tinha sido glorificado, o Espírito
Santo não poderia aparecer. Até mesmo porque se Deus é trino, e se Jesus
é Deus, como dizem, então estando Ele encarnado (Jesus = Deus) entre nós,
conseqüentemente, todas as pessoas da trindade também estariam, uma vez
que só assim poderá valer o tal do “três em um”.
A ocorrência em que os discípulos recebem o Espírito Santo,
justamente após Jesus ter sido glorificado, é essa:
Jo 20,21-22: “Jesus disse de novo para eles: ‘A paz esteja com vocês.
Assim como o Pai me enviou, eu também envio vocês’. Tendo falado isso,
Jesus soprou sobre eles, dizendo: ‘Recebam o Espírito Santo’”.
Tudo se explicaria bem até aqui; mas a coisa se complica, pois em
grego está “um espírito santo”, o que nos faz crer que toda vez que é
citado o “Espírito Santo”, na verdade, está-se referindo a um espírito
bom, santificado, uma vez que a trindade, para quem pesquisa, é apenas
uma aculturação de crenças pagãs.
Se o que estamos concluindo está correto, aí fica fácil entender
uma recomendação de João a respeito do intercâmbio com os espíritos.
Leiamo-la:
1Jo 4,1-6: “Amados, não acrediteis em qualquer espírito, mas examinai os
espíritos para ver se são de Deus; pois muitos falsos profetas vieram ao
mundo. Nisto reconheceis o espírito de Deus: todo espírito que confessa
que Jesus Cristo veio na carne é de Deus; e todo espírito que não
confessa Jesus não é de Deus; é este o espírito do Anticristo. Dele
ouvistes dizer que ele virá; e agora ele já está no mundo. Nós somos de
Deus. Quem conhece a Deus nos ouve, quem não é de Deus não nos ouve.
Nisto reconhecemos o espírito da verdade e o espírito do erro”.
Sendo o intercâmbio feito com toda a sorte de Espíritos, João,
sabiamente, adverte às comunidades cristãs da Ásia Menor, para que não se
deixassem levar pelas artimanhas dos espíritos maus, e verificassem os
espíritos vinham da parte de Deus; se eram “espíritos da verdade” ou
“espíritos do erro”. A advertência de João para “examinai os espíritos”
(no plural) é completamente sem sentido se ele estivesse falando do
Espírito Santo como querem alguns que seja Dele que o apóstolo fala.
Como define a Doutrina Espírita, o fenômeno mediúnico nada mais é
do que uma ocorrência de ordem natural. Podemos identificá-lo desde os
mais remotos tempos da humanidade, e não poderia ser diferente, pois, em
se tratando de uma manifestação de uma faculdade humana, deverá ser mesmo
tão velha quanto a permanência do homem aqui na Terra.
Mas, infelizmente, a intolerância religiosa, a ignorância e, por
vezes, a má-vontade, para não dizer a má-fé, não permitiram que fosse
divulgada da forma correta, ficando mais por conta de uma ocorrência
sobrenatural, que só acontecia a uns poucos privilegiados. Coube ao
Espiritismo a desmistificação desse fenômeno, com a sua explicação
racional. Kardec nos deixou um legado importantíssimo para todos que
possam se interessar pelo assunto, quando lança O Livro dos Médiuns, que
recomendamos a todos que buscam o conhecimento dessa fenomenologia, que,
infelizmente, ainda é muito incompreendida em nossos dias.
Cabe-nos, por dever, ressaltar que nem todos comungam com o
dogmatismo religioso. Assim é que podemos citar, como um bom exemplo, o
comentário de R.N. Champlin, Ph. D., sobre Atos 12,15, uma das passagens
que analisamos nesse estudo. Diz ele:
Aqueles primitivos crentes devem ter crido que os mortos podem
voltar a fim de se manifestarem aos vivos, através da agência da alma.
Observemos que a segunda alternativa, por eles sugerida, sobre como Pedro
poderia estar no portão, era que ele teria sido morto e que o seu “anjo”
ou “espírito” havia retornado. Portanto, aprendemos que aquilo que é
ordinariamente classificado como doutrina “espírita” era crido por alguns
membros da igreja cristã de Jerusalém. Isso não significa, naturalmente,
que eles pensassem que tal fosse a regra nos casos de morte; porém,
aceitaram a possibilidade da comunicação dos espíritos, que a atual
igreja evangélica, especialmente em alguns círculos protestantes
dogmáticos, nega com tanta veemência.
O famoso escritor evangélico C.S. Lewis apareceu a J.B. Philips
tradutor de bem conhecida tradução do Novo Testamento para o inglês, por
duas vezes, após a sua morte, e se assentou naturalmente em sua sala de
estar, tendo conversado com ele como se nada tivesse acontecido que
pudesse ser classificado como falecimento. Porém, por toda a parte
abundam histórias de fantasmas, e muitos céticos negam tudo. Todavia, há
muitos desses fenômenos, sob tão grande variedade, e cruzam todas as
fronteiras religiosas, para que se possa duvidar dos mesmos como fatos.
Algumas vezes os mortos voltam, e entram em comunicação com os vivos. Os
teólogos judeus aceitavam isso como um fato, havendo entre eles a crença
comum de que os “demônios” são espíritos humanos maus, desencarnados.
Essa idéia era forte na igreja cristã até o século V D.C., tendo
sido apresentada por pais da igreja como Clemente de Alexandria, Justino
Mártir e Orígenes, os quais também acreditavam na possibilidade do
retorno e até mesmo da reencarnação de alguns espíritos, com o propósito
de realizarem ou continuarem suas missões. (Ver esta doutrina em Mat.
16.14). Os essênios, dos quais João Batista parece ter sido membro,
também mantinham crenças idênticas. É um equívoco cercarmos as doutrinas
de muralhas, supondo em vão que somente nós, da moderna igreja cristã do
século XX, temos as corretas interpretações das verdades bíblicas. Ainda
temos muito a aprender, sobre muitas questões, e convém que guardemos
nossas mentes abertas, pelo menos o suficiente para permitirmos a entrada
de uma réstia de luz. Sabemos pouquíssimo sobre o mundo intermediário dos
espíritos e supomos que o estado “eterno” já existe, o que todas as
evidências mostram não ser ainda assim. (CHAMPLIN, 2002, vol. 3, p. 250).
(itálico do original, negrito nosso).
Assim, temos uma esperança muito grande em relação ao futuro, pois
sabemos que aos poucos, essas verdades serão disseminadas, exatamente
como na parábola de Jesus sobre o semeador que saiu a semear (Mt 13,3-9).
Parafraseando Tiradentes: "VERITAS QUAE SERA TAMEM" (verdade ainda que
tardia).
Mistérios ocultos aos doutos e inteligentes
Vemos que Jesus, em determinadas situações, não era muito claro em
seus ensinamentos, falava numa linguagem simbólica. Ao ser indagado,
pelos seus discípulos, do porquê disso, respondeu: "Porque a vocês foi
dado conhecer os mistérios do Reino do Céu, mas a eles não” (Mt 13,11).
Por outro lado, aos que acham que Jesus tenha dito tudo, enganam-se, pois
afirmou: "Ainda tenho muitas coisas para dizer, mas agora vocês não
seriam capazes de suportar” (Jo 16,12), numa demonstração inequívoca de
que não disse tudo o que poderíamos supor que Ele deveria dizer.
Quando disse: "Eu te louvo, Pai, Senhor do céu e da terra, porque
escondeste essas coisas aos sábios e inteligentes, e as revelaste aos
pequeninos” (Mt 11,25), não estava querendo dizer que fazia as coisas
propositadamente para esconder aos sábios e inteligentes, mas, sim,
porque esses orgulhosos do saber não percebem as coisas simples, onde
reside a verdadeira sabedoria.
Vamos ver como essas coisas simples podem ser encontradas nos seus
ensinamentos.
Mt 4,17: “Jesus começou a pregar, dizendo: 'Convertam-se, porque o Reino
do Céu está próximo'".
Inicia sua vida pública concitando a todos que mudem de vida,
reconhecendo em cada ser um espírito com potencial de evolução
inestimável. Deposita plena confiança em cada um de nós.
Mt 5,5: “Felizes os mansos, porque possuirão a terra”.
Como poderíamos aplicar essas palavras de Jesus num mundo tão
conturbado, onde a violência parece imperar? Quando acontecerá isso? Será
que Jesus estaria enganado ou, quem sabe, nos enganando? Acreditamos que
não. O homem, ainda preso aos dogmas religiosos das igrejas cristãs
tradicionais, não conseguiu perceber que leis imutáveis regem o Universo.
Que para isso acontecer teremos que associar algumas dessas leis;
juntando a lei de ação e reação, a lei do progresso e a lei da
reencarnação, encontraremos essa verdade estabelecida por Jesus de que os
mansos possuirão a Terra. Sabemos que o progresso espiritual do ser é um
fato, e que, em relação à Terra, toda a leva de espíritos pertinazes no
erro, será lançada em “trevas exteriores onde haverá pranto e ranger de
dentes” (Mt 8,12), com a orientação de que “daí não sairá, enquanto não
pagar até o último centavo” (Mt 5,26); mas a misericórdia divina os
haverá de recuperar, já que “o Pai que está no céu não quer que nenhum
desses pequeninos se perca” (Mt 18,14).
Mt 5,29-30: “Se o olho direito leva você a pecar, arranque-o e jogue-o
fora! É melhor perder um membro, do que o seu corpo todo ser jogado no
inferno. Se a mão direita leva você a pecar, corte-a e jogue-a fora! É
melhor perder um membro do que o seu corpo todo ir para o inferno”.
Imagem dura se não a vermos com ponderação. Mas, primeiramente,
por mais fiel à palavra de Deus que seja, existirá algum “pecador” que
faça isso? Já ouvimos alguns casos de pessoas se mutilando, justificando
estar seguindo recomendação bíblica; entretanto, isso não passa de
fanatismo, incompatível com uma fé raciocinada. Não encontramos ninguém
que aprovasse uma atitude dessa; mas por que não fazem isso, esses
fundamentalistas já que se apegam à letra? Será que é por que esses
doutos e inteligentes não conseguem perceber o espírito dessa
determinação? Se assim for, não deve ser seguido literalmente por
ninguém, mesmo que tais doutos e inteligentes afirmem ser isso “a palavra
de Deus”.
Como se vê, a mensagem contida nessa passagem é muito mais
profunda, já que nos leva a entender que devemos cortar de nossa
personalidade tudo aquilo que nos separa de Deus e nos impede de viver
uma vida plena e feliz, pois é melhor "anularmos" nossa personalidade e
viver uma vida feliz do que mantermos nossos defeitos arraigados e
acoroçoados e irmos parar num inferno, ou seja, com eles ter nossas vidas
transformadas num inferno, seja nesta existência ou em existências
futuras.
Mt 5,48: “Portanto, sejam perfeitos como é perfeito o Pai de vocês que
está no céu".
Isso não é exatamente a lei do progresso de que Jesus estaria
falando? Poderíamos numa só vida chegar a esse nível de perfeição que nos
recomenda o Mestre? Todos nós fomos criados simples e ignorantes, com a
faculdade de usarmos o nosso livre-arbítrio para escolher o nosso caminho
em busca da perfeição de acordo com a vontade de Deus. Embora enveredemos
por caminhos tortuosos, longe da meta final estabelecida por Deus a todos
nós, por isso, a busca da perfeição é necessária, pois é da vontade de
Deus que isso aconteça. Jesus mostrou a perfeição do Pai como alvo, viveu
à altura dessa perfeição e, por isso, se tornou o melhor modelo para
seguirmos, conforme Kardec sabiamente se referiu:
Para o homem, Jesus constitui o tipo da perfeição moral a que a
Humanidade pode aspirar na Terra. Deus no-lo oferece como o mais perfeito
modelo e a doutrina que ensinou é a expressão mais pura da lei do Senhor,
porque, sendo ele o mais puro de quantos têm aparecido na Terra, o
Espírito Divino o animava.
Quanto aos que, pretendendo instruir o homem na lei de Deus, o têm
transviado, ensinando-lhes falsos princípios, isso aconteceu por haverem
deixado que os dominassem sentimentos demasiado terrenos e por terem
confundido as leis que regulam as condições da vida da alma, com as que
regem a vida do corpo. Muitos hão apresentado como leis divinas simples
leis humanas estatuídas para servir às paixões e dominar os homens.
(KARDEC, O Livro dos Espíritos, 1995, p. 308).
Ademais, Ele não nos pediria algo que estivesse fora de nosso
alcance.
Mt 9,2: “Nisso, levaram a ele um paralítico deitado numa cama. Vendo a fé
que eles tinham, Jesus disse ao paralítico: ‘Coragem, filho! Os seus
pecados estão perdoados’".
Analisando essa passagem poderá alguém pensar que os nossos erros
serão simplesmente perdoados, o que, a nosso ver, é um engano. Isso
porque vai de encontro ao “a cada um segundo suas obras” (Mt 16,27),
ficando, portanto, estabelecida a suposta contradição. O perdão divino
acontecerá, quando a lei de ação e reação for literalmente cumprida, ou
seja, tenha sido pago até o último centavo. Se Jesus disse ao paralítico
que irá perdoar os seus pecados, implicitamente fala da lei de ação e
reação, demonstrando que tal enfermidade, a paralisia, lhe aconteceu por
conta de seus erros. Tal fato poderá ser comprovado, quando, numa outra
oportunidade, disse a um outro paralítico, que pouco antes havia curado,
“vê ficaste curado, não tornes a pecar para que não te suceda coisa pior”
(Jo 5,14).
Mt 11,11-12: “Eu garanto a vocês: de todos os homens que já nasceram,
nenhum é maior do que João Batista. No entanto, o menor no Reino do Céu é
maior do que ele. Desde os dias de João Batista até agora, o Reino do Céu
sofre violência, e são os violentos que procuram tomá-lo.”
Veja que interessante: João Batista é o maior (mais evoluído) que
todos os homens aqui na Terra; entretanto, no reino do céu é o menor. Mas
onde ocorreu essa evolução dele e a dos outros espíritos? Será que Deus
os teria criado perfeitos, enquanto a nós outros a necessidade de amargar
para evoluir? Isso se coaduna com algum senso de justiça? Uma outra
coisa: sendo João Batista contemporâneo de Jesus como explicar o “desde
os dias de João Batista”? Senão admitindo que João era realmente o Elias
reencarnado, posto que a preposição “desde” indica um ponto de referência
no tempo, que só pode ser no passado. Assim, diríamos: “desde os dias em
que João era Elias até agora, o Reino do Céu sofre violência...”
Mt 16,27: “Porque o Filho do Homem virá na glória do seu Pai, com os seus
anjos, e então retribuirá a cada um de acordo com a própria conduta”.
Aos que buscam no perdão puro e simples ou na filiação a
determinada corrente religiosa a sua tábua de salvação, ficarão, no dia
do juízo, decepcionados, pois, conforme nos ensina Jesus, o que salva é o
“a cada um segundo suas obras”. Plenamente em consonância com a Lei de
ação e reação, pois “todos os que usam da espada, pela espada morrerão”
(Mt 26,52).
Mt 18,14: “Do mesmo modo, o Pai que está no céu não quer que nenhum
desses pequeninos se perca".
Paulo, numa extraordinária percepção espiritual, disse: “Estou
convencido de que nem a morte nem a vida, nem os anjos nem os
principados, nem o presente nem o futuro, nem os poderes nem as forças
das alturas ou das profundidades, nem qualquer outra criatura, nada nos
poderá separar do amor de Deus, manifestado em Jesus Cristo, nosso
Senhor” (Rm 8,38-39); juntando-se essa sua fala à de Jesus, fica evidente
que o amor de Deus para conosco é infinitamente maior do que aquilo que
denominamos de pecado. Como um ser tão pequeno, como nós o somos, poderia
atingir, por qualquer ato, a divindade cósmica, o Grande Arquiteto do
Universo? Somente por pura ignorância humana, que, não possuindo
capacidade de entender a Deus, passa a atribuir como se fossem Seus os
mais variados sentimentos próprios de seres ínfimos, espiritualmente
falando. Devemos entender Deus nessa grandeza a que nos remete Jesus, e
dentro disso ninguém se perderá; para isso, as três leis básicas já
citadas são as que novamente deverão se encaixar aqui.
Mt 21,31: “... Então Jesus lhes disse: ‘Pois eu garanto a vocês: os
cobradores de impostos e as prostitutas vão entrar antes de vocês no
Reino do Céu’”.
Às vezes passamos por determinada narrativa do Evangelho sem lhe
perceber o alcance. Quando a ficha cai, como se diz popularmente, aí
passamos a ver quão profundo é o ensinamento ali contido. Sabemos que
tanto os cobradores de impostos, quanto às prostitutas, eram consideradas
gentes de má vida; mas, mesmo assim, Jesus diz que ambos os tipos de
pessoas vão entrar no reino do céu, e que até mesmo os sacerdotes e
fariseus, apesar de toda a hipocrisia que possuíam, também lá chegariam,
apenas que aqueles outros chegariam primeiro do que eles. Isso vem,
incontestavelmente, derrubar a idéia de penas eternas apregoadas por aí,
usadas como um verdadeiro terrorismo religioso, já que o próprio Jesus
nos disse: “Se vocês, que são maus, sabem dar coisas boas a seus filhos,
quanto mais o Pai de vocês que está no céu dará coisas boas aos que lhe
pedirem” (Mt 7,11).
Na análise das inúmeras passagens bíblicas só encontraremos o
verdadeiro significado delas com a chave que a Doutrina Espírita nos dá,
porquanto essa é única forma de conciliar os ensinamentos de Jesus com a
misericórdia, a justiça e o amor infinitos de Deus. Fora disso é limitar
o infinito, por absoluta incapacidade de voar mais alto rumo ao
entendimento das enigmáticas leis da Natureza, que refletem esses
atributos divinos em sua mais evidente expressão.
Obviamente “os doutos e inteligentes” não conseguirão perceber
essas nuanças de que estamos falando, pois é deles justamente que Jesus
falava; atingiremos preferencialmente os pequenos, já que são para eles
os ensinos de Jesus, e deles não nos afastamos um milímetro sequer. “Quem
tem ouvidos que ouça” (Mt 11,15).
João Batista é mesmo Elias?
Pelo fato de não aceitarem a reencarnação, muitas pessoas têm
defendido a tese de que João Batista não teria sido Elias em nova
encarnação. Evidentemente, partem de uma interpretação pessoal,
completamente associada ao dogmatismo religioso em que vivem, resultando
em algo que pouco ou nada tem a ver com os textos bíblicos.
Faremos um estudo para ver qual é a realidade, esperando responder
à pergunta inicial; mas, como sempre, em relação a esses, de quem
falamos, não alimentamos a mínima pretensão de demovê-los de suas idéias
com o que resultar desse estudo. A única coisa que irá modificar-lhes o
pensamento é, por ironia do próprio destino, só mesmo a reencarnação, já
que ela é uma lei natural que não pergunta a ninguém se nela crê ou não,
para que lhe sujeite e se cumpra o “é necessário nascer de novo”.
Vamos analisar algumas passagens bíblicas para elucidar o caso.
O povo hebreu esperava a volta de Elias confiante numa profecia do
Antigo Testamento, que afirma sobre o seu retorno. Leiamo-la:
Ml 3,1: “Vejam! Estou mandando o meu mensageiro para preparar o caminho à
minha frente. De repente, vai chegar ao seu Templo o Senhor que vocês
procuram, o mensageiro da Aliança que vocês desejam. Olhem! Ele vem! diz Javé dos exércitos”.
Mais à frente esse mensageiro é identificado pelo mesmo profeta
Malaquias, que, segundo pudemos levantar, viveu cerca de 400 anos a.C.
(Bíblia Sagrada, Barsa, Dicionário Prático, p. 165):
Ml 3,22-24[9]:“Lembrem-se da Lei do meu servo Moisés, que eu mesmo lhe
dei no monte Horeb, estatutos e normas para todo o Israel. Vejam! Eu
mandarei a vocês o profeta Elias, antes que venha o grandioso e terrível
Dia de Javé. Ele há de fazer que o coração dos pais voltem para os filhos
e o coração dos filhos para os pais; e assim, quando eu vier, não
condenarei o país à destruição total”.
O passo seguinte é quando, no tempo de Herodes, rei da Judéia, um
sacerdote chamado Zacarias recebe a visita de um anjo, que lhe anuncia
que sua mulher Izabel, apesar de estéril, daria a luz a uma criança, cujo
nome deveria ser João (Lc 1,5-13). Caracterizando essa criança, o anjo
Gabriel declara a Zacarias:
Lc 1,14-18: “... ele vai ser grande diante do Senhor. Ele não beberá
vinho, nem bebida fermentada e, desde o ventre materno, ficará cheio do
Espírito Santo. Ele reconduzirá muitos do povo de Israel ao Senhor seu
Deus. Caminhará à frente deles, com o espírito e o poder de Elias, a fim
de converter os corações dos pais aos filhos e os rebeldes à sabedoria
dos justos, preparando para o Senhor um povo bem disposto”.
Afirmando que a criança virá “com o espírito e o poder de Elias”,
se usa da linguagem de época, para confirmar que aquela criança seria o
espírito de Elias reencarnado. Isso se confirma quando, na seqüência, é
dito “a fim de converter os corações dos pais aos filhos”, exatamente
como disse Malaquias na profecia que anteriormente citamos (Ml 3,22-24),
na qual também afirma categoricamente que Elias haveria de voltar: “eu
mandarei a vocês o profeta Elias”
No dia em que o menino foi levado para ser circuncidado, Zacarias,
mudo por castigo imposto pelo anjo, escreve, numa tábua, o nome que
deveria ser dado a seu filho: João. Fez isso porque queriam dar à criança
o mesmo nome do pai ou de algum parente. Logo após, Zacarias profetiza
dizendo várias coisas (Lc 1,67-79), e dentre elas destacamos:
Lc 1,76-77: “... E a você, menino, chamarão profeta do Altíssimo,
porque irá à frente do Senhor, para preparar-lhe os caminhos, anunciando
ao seu povo a salvação e perdão dos pecados”.
Isso confirma, primeiro, a profecia anterior de Malaquias e,
segundo, o que o anjo Gabriel havia dito a Zacarias, como para não pairar
dúvidas de quem era aquele menino, embora, nos dias de hoje, haja os que,
por puro dogmatismo, não enxergam isso.
Na narrativa, em que se relata o início da pregação de João
Batista, lemos:
Lc 3,3-6: “E João percorria toda a região do rio Jordão, pregando o
batismo de conversão para o perdão dos pecados, conforme está escrito no
livro do profeta Isaías: ‘Esta é voz daquele que grita no deserto:
preparem o caminho do Senhor, endireitem suas estradas. Todo vale será
aterrado, toda a montanha e colina serão aplainadas; as estradas curvas
ficarão retas, e os caminhos esburacados serão nivelados. E todo homem
verá a salvação de Deus’”.
Relaciona-se, portanto, João a mais uma passagem aceita como sendo
uma profecia a respeito da vinda do mensageiro.
Mais à frente, João Batista é preso por Herodes e, da prisão,
envia seus discípulos a Jesus. Logo após esse encontro de Jesus com os
discípulos de João, ele, o Mestre, em se referindo à “voz que clama no
deserto” diz:
Mt 11,7-15: “O que é que vocês foram ver no deserto? Um caniço agitado
pelo vento? O que vocês foram ver? Um homem vestido com roupas finas? Mas
aqueles que vestem roupas finas moram em palácios de reis. Então, o que é
que vocês foram ver? Um profeta? Eu lhes afirmo que sim: alguém que é
mais do que um profeta. É de João que a Escritura diz: 'Eis que eu envio
o meu mensageiro à tua frente; ele vai preparar o teu caminho diante de
ti'. Eu garanto a vocês: de todos os homens que já nasceram, nenhum é
maior do que João Batista. No entanto, o menor no Reino do Céu é maior do
que ele. Desde os dias de João Batista até agora, o Reino do Céu sofre
violência, e são os violentos que procuram tomá-lo. De fato, todos os
Profetas e a Lei profetizaram até João. E se vocês o quiserem aceitar,
João é Elias que devia vir. Quem tem ouvidos, ouça”.
Na afirmação de que “é de João que a Escritura diz”, Jesus está
relacionando João Batista exatamente à profecia de Malaquias a respeito
do envio do mensageiro (Ml 3,1), identificado pelo próprio profeta como
sendo Elias (Ml 3,22-24).
Há aqui uma frase que nunca vimos ninguém comentar; entretanto,
ela é muito singular. Estamos falando da frase: “Desde os dias de João
Batista até agora”, expressão que, por lógica, só faria sentido se João
Batista não fosse contemporâneo de Jesus. Mas acreditamos que é realmente
isso que Jesus, de forma indireta, está afirmando o que, em outras
palavras, poderia ser dito assim: “Desde os dias de Elias até agora”, já
que, na seqüência, ele arremata claramente que João é Elias, aquele mesmo
que havia de vir. Na certeza de que muitos não acreditariam, completa:
“quem tem ouvidos, ouça”, ou seja, quem quiser acreditar que acredite:
João Batista é mesmo o Elias reencarnado. Vale observar que Jesus nunca
impôs sua maneira de pensar a ninguém, exemplo que muitos não se
preocupam e nem fazem questão de seguir, principalmente, aqueles que
tentam incutir na cabeça dos outros suas interpretações pessoais dos
textos bíblicos; seriam eles os falsos profetas de quem Jesus sempre
falava? Em Mt 7,21-23 ele nos dá algumas pistas sobre quem seriam esses
falsos profetas: usariam o nome dele para: (1) profetizar; (2) expulsar
demônios e (3) fazer muitos milagres. Será que é deles que estamos
falando? Fica a resposta por sua conta, caro leitor.
Como explicar que João Batista seja o maior de todos os homens,
mas que no Reino do Céu ele é o menor? Somente com a possibilidade de
evolução individual de cada um de nós. Se isso não for verdade, haveremos
de, forçosamente, acreditar que Deus age com parcialidade, contrariando a
afirmação de que “Deus não faz acepção de pessoas” (At 10,34), o que
faria de Sua “justiça” uma justiça por demais humana, privilegiando
algumas pessoas em detrimento de outras.
Em outra passagem Jesus volta, novamente, a afirmar sobre João ser
Elias. Ei-la:
Mt 17,1-13: “Seis dias depois, Jesus tomou consigo Pedro, os irmãos Tiago
e João, e os levou a um lugar à parte, sobre uma alta montanha. E se
transfigurou diante deles: o seu rosto brilhou como o sol, e as suas
roupas ficaram brancas como a luz. Nisso lhes apareceram Moisés e Elias,
conversando com Jesus. Então Pedro tomou a palavra, e disse a Jesus:
‘Senhor, é bom ficarmos aqui. Se queres, vou fazer aqui três tendas: uma
para ti, outra para Moisés, e outra para Elias’. Pedro ainda estava
falando, quando uma nuvem luminosa os cobriu com sua sombra, e da nuvem
saiu uma voz que dizia: ‘Este é o meu Filho amado, que muito me agrada.
Escutem o que ele diz’. Quando ouviram isso, os discípulos ficaram muito
assustados, e caíram com o rosto por terra. Jesus se aproximou, tocou
neles e disse: ‘Levantem-se, e não tenham medo’. Os discípulos ergueram
os olhos, e não viram mais ninguém, a não ser somente Jesus. Ao descerem
da montanha, Jesus ordenou-lhes: ‘Não contem a ninguém essa visão, até
que o Filho do Homem tenha ressuscitado dos mortos’. Os discípulos de
Jesus lhe perguntaram: ‘O que querem dizer os doutores da Lei, quando
falam que Elias deve vir antes?’ Jesus respondeu: ‘Elias vem para colocar
tudo em ordem. Mas eu digo a vocês: Elias já veio, e eles não o
reconheceram. Fizeram com ele tudo o que quiseram. E o Filho do Homem
será maltratado por eles do mesmo modo’. Então os discípulos
compreenderam que Jesus falava de João Batista”.
Transcrevemos a passagem por completo para podermos melhor
explicá-la. Os espíritos Moisés e Elias aparecem no monte Tabor e
conversam com Jesus, fato que Pedro, Tiago e João testemunham (e ainda
dizem que os mortos não se comunicam...). Os discípulos, lembrando-se das
profecias a respeito da volta de Elias, ficam intrigados; daí pensaram:
se Elias está aqui, então como nas Escrituras se diz que ele voltaria? Em
conseqüência pedem uma explicação a Jesus: “O que querem dizer os
doutores da Lei, quando falam que Elias deve vir antes?”. A resposta de
Jesus sobre isso é categórica: “Elias já veio, e eles não o
reconheceram”. Fato que por si só se explica porque o espírito que animou
Elias estava reencarnado como João Batista; entretanto, nem todos o
reconheceram. É por isso que no texto consta “eles”, os doutores da Lei,
e não “ninguém”, que abrangeria o desconhecimento por parte de todo
mundo, inclusive, dos apóstolos, de que João era Elias. Quanto aos
apóstolos, pelos menos quanto a Pedro, Tiago e João, podemos dizer que
apenas queriam essa confirmação por parte de Jesus, pois já supunham que
João era mesmo Elias.
Será interessante vermos essa passagem pela narrativa de Marcos,
leiamo-la:
Mc 9,2-13: “Seis dias depois, Jesus tomou consigo Pedro, Tiago e seu
irmão João, e os levou sozinhos a um lugar à parte, sobre uma alta
montanha. E se transfigurou diante deles. Suas roupas ficaram brilhantes
e tão brancas, como nenhuma lavadeira no mundo as poderia alvejar.
Apareceram-lhes Elias e Moisés, que conversavam com Jesus. Então Pedro
tomou a palavra e disse a Jesus: 'Mestre, é bom ficarmos aqui. Vamos
fazer três tendas: uma para ti, outra para Moisés e outra para Elias'.
Pedro não sabia o que dizer, pois eles estavam com muito medo. Então
desceu uma nuvem e os cobriu com sua sombra. E da nuvem saiu uma voz:
'Este é o meu Filho amado. Escutem o que ele diz!' E, de repente, eles
olharam em volta e não viram mais ninguém, a não ser somente Jesus com
eles. Ao descerem da montanha, Jesus recomendou-lhes que não contassem a
ninguém o que tinham visto, até que o Filho do Homem tivesse ressuscitado
dos mortos. Eles observaram a recomendação e se perguntavam o que queria
dizer 'ressuscitar dos mortos'. Os discípulos perguntaram a Jesus: 'Por
que os doutores da Lei dizem que antes deve vir Elias?' Jesus respondeu:
'Antes vem Elias para colocar tudo em ordem. Mas, como dizem as
Escrituras, o Filho do Homem deve sofrer muito e ser rejeitado. Eu,
porém, digo a vocês: Elias já veio e fizeram com ele tudo o que queriam,
exatamente como as Escrituras falaram a respeito dele'".
Será que o “ressuscitar dos mortos” aí equivale a reencarnar? Os
discípulos discutiam sobre o que queria dizer “ressuscitar dos mortos” e,
ao que parece, não chegaram a um denominador comum; assim, querendo um
esclarecimento, perguntam a Jesus sobre a volta de Elias. Obviamente, se
estavam conversando sobre ressurreição dos mortos, e nessa conversa sai o
nome de Elias, é porque, certamente, tinham Elias como morto e não como
um arrebatado.
Embora tudo isso quanto colocamos até aqui, seja claro aos que não
estão encabrestados por sua liderança religiosa, ainda vão continuar
aparecendo dogmáticos com argumentos contrários a essa verdade bíblica,
colocando Jesus como mentiroso, já que foi Ele quem disse que João era
Elias, e não nós, os Espíritas, fato que não há como contestar.
Falta-nos ainda fazer uma análise da passagem que relata a morte
de João Batista; é o que faremos agora; mas, primeiro, leiamo-la:
Mt 14,7-11: “Então Herodes prometeu com juramento que lhe daria tudo o
que ela pedisse. Pressionada pela mãe, ela disse: 'Dê-me aqui, num prato,
a cabeça de João Batista.' O rei ficou triste, mas por causa do juramento
na frente dos convidados, ordenou que atendessem o pedido dela, e mandou
cortar a cabeça de João na prisão. Depois a cabeça foi levada num prato,
foi entregue à moça, e esta a levou para a sua mãe”.
Considerando que a reencarnação está diretamente associada à lei
de causa e efeito, a morte de João Batista é mais um fato que se ajusta
ao nosso conjunto de provas, pois ele morreu exatamente da mesma forma
que, quando estava encarnado como Elias, fez perecer os sacerdotes de
Baal: teve a cabeça cortada. Vejamos o relato:
1Rs 18,40: “Então Elias disse a eles: ‘Agarrem os profetas de Baal. Não
deixem escapar nenhum’. E eles os agarraram. Elias fez os profetas de
Baal descer até o riacho Quison, e aí os degolou”.
1Rs 19,1: “Acab contou a Jezabel o que Elias tinha feito e como tinha
matado a fio de espada todos os profetas”.
E para que ninguém diga que a lei de causa e efeito não é bíblica,
como ao gosto dos dogmáticos, apresentamos para sustentação do nosso
entendimento as seguintes passagens:
Jó 4,8: “Pelo que eu sei, os que cultivam injustiça e semeiam miséria,
são esses que as colhem”.
Jo 8,34: “Jesus respondeu: ‘Eu garanto a vocês: quem comete o pecado, é
escravo do pecado’”.
Mt 26,52: “Jesus, porém, lhe disse: ‘Guarde a espada na bainha. Pois
todos os que usam da espada, pela espada morrerão’”.
Gl 6,7: “Não se iludam, pois com Deus não se brinca: cada um colherá
aquilo que tiver semeado”.
Há uma passagem em que Jesus ressalta a lei de causa e efeito ao
estabelecer uma correlação entre a doença de uma pessoa como conseqüência
de, anteriormente, ter “pecado”. É o caso de um paralítico, que assim se
encontrava há dezoito anos, que foi curado num dia de sábado. Pouco tempo
depois Jesus o encontra no templo e lhe diz: “Olha que já estás curado;
não peques mais, para que não te suceda coisa pior” (Jo 5,14). Não resta
dúvida que, perante essa fala de Jesus, podemos concluir que a paralisia
desse homem estava diretamente relacionada a um “pecado” cometido por
ele, embora pelo texto não dê para sabermos se foi ou não de uma outra
vida. Jesus ainda lhe adverte que se pecar outra vez a doença poderá ser
pior, reafirmando essa lei.
Vamos agora analisar as principais objeções que se levantam contra
João Batista ser Elias reencarnado. As dividiremos em dois grupos; um
específico quanto a essa questão e o outro mais genérico, onde argumentam
contra a reencarnação, dizendo que não é bíblica e que Jesus nunca pregou
tal coisa. Convém ressaltar que as genéricas, não raro, têm sido usadas
como rota de fuga e de compensação, perante a inocuidade das objeções
específicas.
1ª - Elias não poderia ter reencarnado porque não morreu, mas foi
arrebatado.
Se João, o Batista, fosse mesmo Elias reencarnado, Elias teria de ter
morrido para reencarnar. Ora, sabemos que Elias nunca morreu, pois foi
arrebatado vivo ao céu (2Rs 2,11). Perguntamos aos espíritas qual o texto
da Bíblia que confirma a morte de Elias? A resposta é: nenhum. Elias não
morreu. Será que os espíritas aceitariam a Bíblia como um livro
inspirado, ou vão torcer o significado do texto?
O grande problema é que muitas pessoas acreditam piamente em tudo
que consta da Bíblia, como se, realmente, ela fosse, “capa a capa”, de
inspiração divina. Certamente, o seria se não houvesse nela a mínima
contradição; e, no entanto, podemos ver que elas existem; mas só percebem
isso os que estão livres das “viseiras dogmáticas”. No presente caso,
acontecem várias. Vejamo-las:
a) Gn 3,19: “... tu és pó e ao pó tornarás”.
Elias, caso tivesse sido arrebatado, não teria voltado ao pó
conforme o que Deus estabeleceu aqui nessa passagem como coisa que
acontecerá a todo ser humano.
b) 1Cor 15,50: “Isto afirmo, irmãos, que carne e sangue não podem herdar
o reino de Deus...”.
Se Elias foi arrebatado, certamente que foi para o reino dos céus
no corpo físico, ou seja, com sua carne e seu sangue, fato que vem
contrariar o que está aqui dito nesse passo.
c) Jo 3,13: “Ora, ninguém subiu ao céu, senão aquele que de lá desceu, a
saber, o Filho do homem”.
Se o arrebatamento de Elias for verdadeiro, então ele subiu ao
céu, e antes do que Jesus, o que contradiz essa fala de Jesus, que foi a
única pessoa que havia subido ao céu, e ninguém mais, conforme suas
próprias palavras.
d) Hb 9,27: “... aos homens está ordenado morrerem uma só vez...”.
Se Elias não morreu - nem uma única vez -, fica evidente que essa
passagem não se cumpriu.
e) At 10,34: “... Reconheço por verdade que Deus não faz acepção
de pessoas;...”.
Explica-nos o Houaiss que acepção é: “escolha, predileção por
alguém; inclinação, tendência em favor de pessoa(s) por sua classe
social, privilégios, títulos etc.”. Conseqüentemente, se tal do
arrebatamento aconteceu a Elias, há evidente contradição com o texto aqui
citado. E, por outro lado, considerando que Tiago disse que “Elias é
homem fraco como nós” (Tg 5,17), qual seria então, a razão desse suposto
privilégio de Elias, já que ele é igual a nós?
f) Jo 6,63: “O espírito é que vivifica; a carne para nada
aproveita;...”.
Na possibilidade de Elias ter sido arrebatado, ele foi “em carne”
para o mundo espiritual; mas isso é estranho em função do “a carne para
nada se aproveita”; porquanto, nessa passagem, fica claro que o Espírito
é que é o mais importante.
g) Jo 4,24: “Deus é Espírito...”.
Agora, sim, é que as coisas se tornaram mais incoerentes, uma vez
que Deus, sendo espírito - essa é a nossa semelhança para com Ele -,
certamente vive em seu reino nessa condição. Entretanto, Elias teria que
viver em corpo físico, caso tivesse sido arrebatado. Se for verdade o que
disse Jesus, de que o “reino dos céus está dentro de vós” (Lc 17,21),
então ele não é um lugar, mas um estado de consciência, ficando,
portanto, sem qualquer sentido alguém ser arrebatado fisicamente.
h) 2Cr 21,12: “Então lhe chegou às mãos uma carta do profeta
Elias”.
Nesse livro, o de Crônicas, está se afirmando que Elias envia uma
carta a Jorão (forma abreviada de Jeorão), fato que comprova que ele não
foi arrebatado coisíssima nenhuma, uma vez que o envio dessa carta
aconteceu cerca de dez anos depois do seu suposto arrebatamento, o que
comprovamos com: “De acordo com a cronologia de 2Rs, Elias tinha
desaparecido antes do reinado de Jorão de Israel (2Rs 2; 3,1) e,
portanto, antes de Jorão de Judá (2Rs 8,16; cf. no entanto 2Rs 1,17)”
(Bíblia de Jerusalém, p. 607). A não ser que o correio daquela época não
tenha sido tão eficiente quanto o atual e tenha atrasado a entrega dessa
carta.
É em 2Rs 2,11 que se narra o suposto arrebatamento de Elias, fato
que causa divergência mesmo entre os teólogos; vejamos a opinião de uma
equipe de tradutores católicos e protestantes: “O texto não diz que Elias
não morreu, mas facilmente se pôde chegar a essa conclusão” (Bíblia de
Jerusalém, p. 509).
2ª – No monte da transfiguração, quem apareceu foi Elias e não João
Batista, como era de se esperar se João fosse a última encarnação de
Elias.
Se João Batista fosse a reencarnação de Elias, aquele que teria aparecido
no monte da transfiguração, deveria ser João Batista e não Elias (Mt
17,1-6). Pois de acordo com a doutrina espírita: a última pessoa
reencarnada é que deve aparecer.
Obviamente que, como um princípio geral, isso está certo.
Entretanto, há casos em que o espírito pode se manifestar com a aparência
de qualquer outra encarnação, desde que tenha evolução espiritual para
isso. O perispírito, como sendo o corpo espiritual, pode ser moldado à
vontade do espírito, uma vez que ele possui entre suas propriedades a da
elasticidade, que, com o poder do pensamento, permite ao espírito assumir
uma outra aparência. Quanto mais evoluído for um espírito, mais
facilmente conseguirá dirigir sua vontade para moldar o perispírito na
aparência que desejar. No caso de João Batista, Jesus disse que entre os
nascidos de mulher ele era o maior, assegurando, portanto, sua condição
de espírito evoluído, embora Tiago tenha dito o contrário, fato que já
citamos.
3ª - A Bíblia diz que João Batista teve o ministério parecido com o de
Elias (Lc 1,17). Este versículo fica esclarecido se comparado com a
história de Eliseu (2Rs 2,9-15).
João Batista cumpriu funcional e profeticamente o ministério de Elias,
pois entendemos o texto da seguinte maneira: João Batista, deveria fazer
o seu ministério dentro do espírito ministerial de Elias (Ml 4,5-6; Lc
1,17).
Em relação ao versículo que diz que João Batista ia no espírito de Elias
(Lc 1,17), a Bíblia não diz que João Batista ia com o espírito de Elias.
Existe uma grande diferença entre ir no espírito e ir com o espírito de
Elias. A palavra no significa no mesmo ímpeto, semelhante. Para provar
essa colocação, vamos ver como João Batista e Elias eram semelhantes.
JOÃO BATISTAELIASPerseguido por uma mulher (Herodias) e por um rei
(Herodes). (Mt 14,3-5 e Mc 6,18-20)Foi perseguido por uma mulher
(Jezabel) e por um rei (Acabe). (1Rs 19,1-3 e 1Rs 21,20)Usava uma capa de
pelos. (Mt 3,4)Usava também uma capa. (1Rs 19,19)Era intrépido. (Lc
3,7)Também era intrépido. (1Rs 18,27)Foi o último profeta. (Lc
16,16)Simboliza os profetas.
De doze livros bíblicos consultados
[10], apenas quatro deles usam o “no”, o que, em termos percentuais,
representa apenas 33% do total. Conseqüentemente, na maioria consta o
termo “com”, e se nisto prevalecer a voz da maioria, então o argumento,
aqui enfocado, cai por terra.
Quanto à questão de ministério semelhante, é apenas uma tentativa
inepta para que não fique evidenciada a idéia da reencarnação, uma vez
que não é isso o que consta da Bíblia e nem mesmo poder-se-ia interpretar
a passagem dessa maneira, uma vez que Jesus não deixou dúvidas ao dizer
que “João é Elias que devia vir”. Se a intenção da profecia fosse mesmo
indicar um “profeta semelhante”, bastaria a Malaquias usar a mesma
expressão empregada em Dt 18,18, onde se diz: “Suscitarei um profeta
semelhante a ti”.
Vejamos agora a mencionada história de Elias e Eliseu:
2Rs 2,9-15: “Depois que passaram o rio, Elias disse a Eliseu: ‘Peça o que
você quiser, antes que eu seja arrebatado da sua presença’. Eliseu pediu:
‘Deixe-me como herança dupla porção do seu espírito’. Elias disse: ‘Você
está pedindo uma coisa difícil. Em todo caso, se você me enxergar quando
eu for arrebatado da sua presença, isso que pede lhe será concedido; caso
contrário, não será concedido’. E, enquanto estavam andando e
conversando, apareceu um carro de fogo com cavalos de fogo, que os
separou um do outro. E Elias subiu ao céu no redemoinho. Eliseu olhava e
gritava: ‘Meu pai! Meu pai! Carro e cavalaria de Israel!’ Depois não o
viu mais. Então Eliseu pegou sua própria túnica e a rasgou em duas
partes. Pegou o manto de Elias, que havia caído, e voltou para a margem
do Jordão. Segurando o manto de Elias, bateu com ele na água, dizendo:
‘Onde está Javé, o Deus de Elias?’ Bateu na água, que se dividiu em duas
partes. E ele atravessou o rio. Ao vê-lo, os irmãos profetas, que estavam
a certa distância, comentaram: ‘O espírito de Elias repousa sobre
Eliseu’. Então foram ao seu encontro, se prostraram diante dele”.
Para o espírito de Elias repousar sobre Eliseu, há de ter havido a
morte do tesbita. De igual modo vemos, nos dias de hoje, ocorrendo com
inúmeras pessoas, esse fenômeno de espírito repousar, o que para nós não
é outra coisa senão a influência de um espírito desencarnado sobre um
encarnado. Mas exigir que àquela época entendessem dessa forma é pedir
muito, com certeza.
A relação das semelhanças entre os dois profetas está mais para se
confirmar que João Batista é mesmo Elias do que para qualquer outra
coisa.
Por outro lado, a profecia de Malaquias é clara quanto à promessa
do envio de Elias, não de alguém semelhante a ele como mostramos, e nem
Jesus disse que João era semelhante a Elias, como querem os dogmáticos,
justamente para fugir sorrateiramente da idéia da reencarnação.
4ª - João Batista disse claramente que não era Elias.
Em alguns passos parece haver uma idéia de reencarnação, mas combatemos
tal idéia com a passagem bíblica: “Então, lhe perguntaram: Quem és, pois?
És tu Elias? Ele disse: Não sou. És tu o profeta? Respondeu: Não”. (Jo
1,21). Assim, é o próprio João Batista que nega tal fato.
O que ocorre é que, quando o espírito passa a habitar um corpo
físico, ele perde temporariamente a lembrança de suas outras vidas; daí
ser perfeitamente normal a resposta negativa de João Batista à pergunta
se ele era Elias. Por outro lado, aí ficaremos num dilema, pois em quem
devemos acreditar: em Jesus que afirmou categoricamente que João Batista
era Elias; ou no próprio João que disse não ser? De nossa parte estamos
com Jesus e pronto!
Mas a lembrança de outras vidas pode surgir de uma hora para
outra, o que, facilmente, poder-se-á confirmar lendo a obra do Dr. Ian
Stevenson, Reincarnation and Biology: A Contribution to the Etiology of
Birth Marks and Birth Defects, (Vol. I: Birthmarks, 1200 páginas e vol.
II: Birth Defects and Other Anomalies, 1100 páginas) e a sinopse desse
livro, Where Reincarnation and Biology Intersects: A Synops. Nessa obra o
autor relata 225 casos de crianças que se lembraram de uma outra vida
dos, nada menos, 2600 investigados por ele. A pesquisa do Dr. Stevenson,
na opinião do pesquisador brasileiro, Dr. Hernani de Guimarães Andrade
(1913-2003):
(...) não-só representa a evidência definitiva da reencarnação,
como ‘deita uma pá de cal’, em cima de qualquer argumentação negativista
contra a ‘Lei da Reencarnação’. Não há mais lugar para dúvidas. De agora
em diante, restará apenas a sofisticada e inútil controvérsia acerca da
natureza ‘daquilo’ que passa de uma encarnação para outra... (ANDRADE,
2002, p. 107).
Os que se apegam demais à negação, não se dão conta de que, se
naquele tempo não acreditassem que uma pessoa que havia vivido pudesse
viver novamente num outro corpo, não haveria sentido nessa pergunta feita
a João Batista, fato que comprova que, àquela época, se acreditava na
reencarnação, um dos significados para a palavra ressurreição. No Velho
Testamento, temos um texto que nos mostra a existência de nossas vidas
passadas, e que nós não nos lembramos delas: “Somos de ontem, e nada
sabemos” (Jó 8,9). E é óbvio que esse ontem não se refere a um tempo
anterior de 24 horas, mas a um passado remoto.
Se João Batista não for mesmo Elias, então os cristãos que assim
acreditam deveriam mudar de religião, já que é exatamente por esse
motivo, ou seja, falta de cumprimento das profecias, que, para os judeus,
Jesus não é o Messias e, por conseguinte, o judaísmo é que deveria ser a
religião própria para abrigá-los.
5ª – A alegação de que Elias seja João Batista não procede, tanto pelo
contexto das Escrituras quanto pela pregação dele.
Quando o "Elias reencarnado" viu a Jesus, exclamou: “Eis o Cordeiro de
Deus, que tira o pecado do mundo”. Para ele, que viria restaurar todas as
coisas, é Jesus, e não nós através de sucessivas vidas, que pagamos o
preço pelos nossos pecados. A revelação completa que hoje está na Bíblia
confere com o que João Batista trouxe, hoje não precisamos mais oferecer
cordeiros em expiação, Cristo, o Cordeiro de Deus, hoje, é a nossa páscoa
(1Cor 5,7). Como os cordeiros do Velho Testamento expiavam os pecados??
Como eles deveriam ser?? Pedro responde em sua carta: "Sabendo que não
foi com coisas corruptíveis, como prata ou ouro, que fostes resgatados da
vossa vã maneira de viver, que por tradição recebestes dos vossos pais,
mas com precioso sangue, como de um cordeiro sem defeito e sem mancha, o
sangue de Cristo" (1Pe 18,19).
Apesar de João Batista ter dito “Eis o cordeiro de Deus que tira o
pecado do mundo” (Jo 1,29), o fato é que ele também disse que “Eu vos
batizo com água, para arrependimento; mas aquele que vem depois de mim é
mais poderoso do que eu, cujas sandálias não sou digno de levar...” (Mt
3,11). Portanto, em se considerando que o próprio João disse que Jesus é
mais poderoso que ele, não pode prevalecer sua opinião à de Jesus.
Reputamos ao Mestre a autoridade suprema para a qual devem convergir
nossas atenções e prioridades. Neste caso, como ele identifica,
claramente e sem rodeios, a identidade espiritual de João Batista, tornase de importância secundária o que possa advir de seus discípulos, que
venha a contradizer a qualquer de seus ensinos, uma vez que: “Nenhum
discípulo está acima do mestre...” (Mt 10,24). Portanto, preferimos crer
que a palavra final cabe a Jesus e não a Pedro, Paulo, João Batista ou a
qualquer outro, no sentido de João Batista ser mesmo Elias, tanto pelo
contexto das escrituras quanto pela pregação dele a seus discípulos, para
os quais ensinava claramente sobre os “mistérios do Reino de Deus”. Os
mesmos que, por fim, “compreenderam que Jesus lhes tinha falado a
respeito de João Batista” (Mt 17,13).
Quanto à questão de que “o sangue de Jesus lavou nossos pecados”,
trata-se de mais uma opinião pessoal de autores bíblicos, contrária ao
que Ele pregou. “A cada um segundo suas obras” (Mt 16,27), a parábola do
bom samaritano (Lc 10,25-37) e a do juízo final (Mt 25,31-46), são
passagens que asseguram que realmente nós mesmos é que nos salvamos. Os
discípulos apenas transferiam a Jesus o papel da vítima do holocausto das
práticas ritualísticas dos judeus, quando se matava um novilho, sem
defeito, para a expiação dos pecados do povo. Diremos como Paulo de
Tarso: “se Jesus morreu pelos nossos pecados: comamos e bebamos”, pois já
estamos salvos. Entretanto, essa absurda idéia contém uma contradição,
uma vez que, pelo costume da época, os pecados perdoados eram os
anteriormente cometidos em relação ao momento do ritual. Não havia,
portanto, nenhuma relação para com os pecados futuros. Podemos confirmar
isso em “... Sua morte aconteceu para o resgate das transgressões
cometidas no regime da primeira aliança; ...” (Hb 9,15) Por conseguinte,
a crer nessa expiação dos pecados por Jesus, haveremos de arrumar outro
Cristo para pagar pelos nossos, tomando-se como ponto de partida os
ocorridos da sua morte até os dias de hoje. Outra opção é, quem sabe,
ficar aguardando a vinda de um próximo “cordeiro”? E como fica o “não
peques mais”? (Jo 5,14; 8,11).
6ª – João não era Elias, mas “o” Elias, ou seja, alguém com as qualidades
de Elias.
Ainda em nossos dias usamos esse estilo de expressão: "Nunca mais surgirá
um Rui Barbosa". "O Ronaldinho é um verdadeiro Pelé". São termos
comparativos. [Se acreditais na vinda de um Elias], "e, se quiserdes dar
crédito, ele é o Elias que havia de vir" (Mt 11.14).
Por suas mensagens vibrantes e seu corajoso desempenho diante de
situações difíceis, Elias tornou-se símbolo dos profetas. Moisés, por
exemplo, era símbolo da Lei (Lc 16.31). As profecias sobre a vinda de
Elias não se contradizem. Muito pelo contrário. Vejam: Malaquias 4.5:
"Eis que eu vos envio o profeta Elias, antes que venha o dia grande e
terrível do Senhor; e converterei o coração dos pais aos filhos e o
coração dos filhos a seus pais; para que eu não venha e fira a terra com
maldição". Lucas 1.15-17: "Porque será grande diante do Senhor, e não
beberá vinho, nem bebida forte, e será cheio do Espírito Santo, já desde
o ventre de sua mãe. E converterá muitos dos filhos de Israel ao Senhor,
seu Deus. E irá adiante dele no espírito e virtude de Elias, para
converter o coração dos pais aos filhos e os rebeldes, à prudência dos
justos, com o fim de preparar ao Senhor um povo bem disposto". Logo, as
profecias da vinda de Elias se cumpriram em João Batista. Portanto, Elias
veio na pessoa de João Batista. É esta a real interpretação de Mateus
11.14 e 17.10-13.
Os que assim argumentam se esquecem de mencionar que a frase
"nunca mais surgirá um Rui Barbosa" não é sinônima de "nunca mais surgirá
o Rui Barbosa", da mesma forma que correto é "Ronaldinho é um verdadeiro
Pelé" e não "Ronaldinho é o verdadeiro Pelé". Por este motivo não
consideramos que seja de uma boa lógica concluir que a expressão "ele é o
Elias", seja o mesmo que dizer "ele é um Elias". Basta, para isso,
observar atentamente como Jesus se expressa, de modo a não deixar sobre
isso a menor sombra de dúvida:
Mt 11,10: “É de João que a Escritura diz: 'Eis que eu envio o meu
mensageiro à tua frente; ele vai preparar o teu caminho diante de ti'”.
Mt 17,12: “Mas eu digo a vocês Elias já veio, e eles não o
reconheceram”.
E não adianta se apegar demais a esse pormenor, tendo em vista que
a expressão “é o Elias” não consta de todas as traduções bíblicas como,
por exemplo: Bíblia Pastoral - Paulus, Bíblia Anotada – Mundo Cristão e
Escrituras Sagradas – Novo Mundo. Por outro lado, colocar Elias como
corajoso é no mínimo falta de conhecimento bíblico, pois após ele degolar
os profetas de Baal, foge, como se diz popularmente, com “o rabo entre as
pernas”, de Jezabel, mulher de Acab, sétimo rei de Israel (875-853), que
promete matá-lo por conta disso (1Rs 19,1-3).
Há também algumas objeções genéricas que merecem ser comentadas:
1ª - Os judeus não criam em reencarnação, e sim na ressurreição dos
mortos (Mc 6,14-16 e Lc 9,7-8).
Será que é isso mesmo a verdade? Analisemos para constatar.
Tomemos as passagens citadas:
a) Mc 6,14-16: “O rei Herodes ouviu falar de Jesus, cujo nome tinha-se
tornado famoso. Alguns diziam: ‘João Batista ressuscitou dos mortos. É
por isso que os poderes agem nesse homem’. Outros diziam: ‘É Elias’.
Outros diziam ainda: ‘É um profeta como os profetas antigos’. Ouvindo
essas coisas, Herodes disse: ‘Ele é João Batista. Eu mandei cortar a
cabeça dele, mas ele ressuscitou!’".
Interessante a argumentação de que Jesus fazia milagres pelos
poderes de João Batista que agia sobre Ele. Isso é ressurreição do corpo
físico? Não! Mas o que é? É o que conhecemos por influência espiritual.
Uma pessoa morre e, ressuscitada em espírito, passa a influenciar uma
pessoa encarnada. Portanto, a idéia de ressurreição, nesta passagem, nada
tem a ver com aquela ressurreição do final dos tempos, aceita pelos
dogmáticos. Ressuscitar, nesse passo, é voltar à condição espiritual.
b) Lc 9,7-9: “O governador Herodes ouviu falar de tudo o que estava
acontecendo, e ficou sem saber o que pensar, porque alguns diziam que
João Batista tinha ressuscitado dos mortos; outros diziam que Elias tinha
aparecido; outros ainda, que um dos antigos profetas tinha ressuscitado.
Então Herodes disse: ‘Eu mandei degolar João. Quem é esse homem, sobre
quem ouço falar essas coisas?’ E queria ver Jesus”.
Nessa passagem é flagrante o uso da palavra ressurreição com o
significado de reencarnação. Se as pessoas acreditavam que Jesus poderia
ser Elias, Jeremias (Mt 16,14) ou um dos antigos profetas ressuscitado
isso não é ressurreição, mas sim reencarnação, já que se fosse Jesus um
deles, estaria num novo corpo, o de Jesus, obviamente. Quem pensa assim,
acredita que alguém já morto poderia voltar num novo corpo como outra
pessoa. É exatamente isso o que definimos como reencarnação; portanto,
provamos que na época se acreditava em reencarnação sim; só que para
designá-la usavam a palavra ressurreição, que também possuía, àquela
época, outros significados.
Em uma certa oportunidade, Jesus pergunta aos discípulos: “Quem
dizem os homens que é o Filho do Homem?" Eles responderam: "Alguns dizem
que é João Batista; outros, que é Elias; outros ainda, que é Jeremias, ou
algum dos profetas" (Mt 16,13-14). Isso confirma que o povo acreditava na
ressurreição em outro corpo, reencarnação para nós. Só que há algo
importante nessa passagem: é que Jesus não protestou contra essa crença
popular, o que significa que tacitamente a confirma. É como diz um velho
provérbio: “quem cala consente”.
Mas, ainda vamos trazer outra fonte para comprovar essa questão.
Nós buscaremos esta informação no historiador daquela época chamado
Flávio Josefo, que viveu entre 37 a 103 d.C. Suas obras históricas são:
“Antiguidades Judaicas”, “Guerra dos Judeus” e “Resposta de Flávio Josefo
a Ápio”, que, em nosso caso, fazem parte do livro História dos Hebreus.
Josefo, descrevendo a maneira de viver dos fariseus, coloca:
“(...) Eles julgam que as almas são imortais, que são julgadas em um
outro mundo e recompensadas ou castigadas segundo foram neste, viciosas
ou virtuosas; que umas são eternamente retidas prisioneiras nessa outra
vida e que outras voltam a esta. (...)” (p. 416). E, quando alguns
soldados, derrotados na guerra contra os romanos, pensavam em suicidaremse, alerta-os dizendo-lhes:
(...) Não sabeis que Ele difunde suas bênçãos sobre a posteridade
daqueles, que depois de ter chamado para junto de si, entregam em suas
mãos, a vida, que, segundo as leis da natureza, Ele lhes deu e que suas
almas voam puras para o céu, para lá viverem felizes e voltar, no correr
dos séculos, animar corpos que sejam puros como elas e que ao invés, as
almas dos ímpios, que por loucura criminosa dão a morte a si mesmos são
precipitados nas trevas do inferno; (...) (p. 600).
Assim, podemos dizer que os fariseus, grupo religioso que existia
à época de Jesus, acreditavam numa ressurreição em outro corpo. Ora, isso
não é nada mais nada menos do que aquilo que entendemos por reencarnação.
2ª - Fica claro que Jesus nunca ensinou a reencarnação.
Dizer que Jesus nunca ensinou a reencarnação é forçar a barra,
ignorando que ele não disse, em momento algum, que estavam em erro os que
o supunham ser Elias, Jeremias, ou algum dos antigos profetas. É recusar
a ver o que disse a Nicodemos “é necessário nascer de novo” (Jo 3,3).
Certo é que em algumas Bíblias não é dito “nascer de novo”, mas “nascer
do alto”. Entretanto, podemos ponderar que a tradução da palavra grega
anóthem, segundo alguns estudiosos, tanto pode ser uma quanto a outra;
daí, para não realçar a idéia da reencarnação, foi melhor colocar aquela
que não levasse as pessoas a entenderem como reencarnação. Mas, pela
dúvida de Nicodemos, fica claro que o sentido era nascer de novo mesmo:
“Como é que um homem pode nascer de novo, se já é velho? Poderá entrar
outra vez no ventre de sua mãe e nascer?” (Jo 3,4). Na seqüência, Jesus
não nega que seja sobre isso que está dizendo, mas reforça com outras
palavras: “Eu garanto a você: ninguém pode entrar no reino de Deus, se
não nascer da água e do Espírito” (Jo 3,5), donde devemos tomar a água
como símbolo da origem da matéria ou, como entendem alguns, uma analogia
ao líquido amniótico.
Por outro lado, mesmo que Jesus não a tivesse ensinado, isso não
significa que ela não exista, pois, convém lembrar que Ele disse: “Ainda
tenho muitas coisas para dizer, mas agora vocês não seriam capazes de
suportar” (Jo 16,12).
3ª - A Bíblia combate tal ensinamento
Curioso é que os contrários não se cansam de nos afirmar que a
Bíblia não fala, em momento algum, em reencarnação; mas, quando o assunto
é combatê-la, aí sim, nela se diz algo. Parece brincadeira! Só que,
quando apresentam as passagens para comprovar o que alegam, verificamos
que é pura interpretação equivocada, já que sempre as usam fora do seu
contexto. Vejamos algumas, normalmente citadas.
A mais citada é: “... aos homens está ordenado morrerem uma só
vez, vindo depois disto o Juízo” (Hb 9,27). Essa é uma das mais
interessantes, já que nem mesmo se sabe quem é o autor; daí é singular
que usem um autor completamente desconhecido para contestar o que Jesus
afirmou: “João é Elias que devia vir” (Mt 11,14). Poderia ser um
argumento forte contra a reencarnação se o autor tivesse dito: “... aos
homens está ordenado viverem uma só vez”.
Lázaro, o filho da viúva de Naim e a filha de Jairo, entre outros
que ressuscitaram, morreram duas vezes, provando que, em se acreditando
nisso, a “ordem” contida na passagem é inconsistente. Mas, de qualquer
forma, esse autor não está completamente errado, pois fisicamente em cada
vida só morremos uma vez mesmo e em definitivo, por sinal.
Ainda em relação a essa passagem: até o presente ninguém conseguiu
nos esclarecer se haverá dois julgamentos ou não. Se “depois disto o
Juízo”, e em algumas Bíblias, está “logo depois”, qual será a utilidade
de mais um juízo no final dos tempos? Quem for condenado no primeiro,
poderá se salvar no segundo? Mas, se ficarmos apenas no que se diz nessa
frase, então ninguém ficará esperando a ressurreição no último dia para
ser julgado.
4ª – O homem não pode se salvar por si mesmo
A Palavra de Deus, nos diz que é em Jesus que o homem consegue a expiação
dos seus pecados (Jo 8,24; 1Jo 1,7-9). O homem só é salvo pela graça de
Deus, sem nenhum esforço meritório (Ef 2,8-9; At 4,12; Rm 4,4-5).
Se isso for verdadeiro então o “Sede perfeitos como é perfeito o
vosso pai celestial” (Mt 5,48) torna-se um ensinamento inoperante que
Jesus nos passou, pois, certamente, numa vida só, espírito algum
conseguirá ser perfeito como o Pai o é. Mas ninguém disse que não
conseguimos a salvação a não ser por Jesus; entretanto, ela não será pela
graça e nem será pelo seu sangue derramado na cruz; porém unicamente
seguindo os seus ensinamentos: “É pelo evangelho que vocês serão salvos”
(1Cor 15,2) ou “Em Cristo, também vocês ouviram a Palavra da verdade, o
Evangelho que os salva” (Ef 1,13).
Certamente que, não fosse a graça de Deus em nos dar outra
oportunidade, estaríamos fritos; portanto, é pela graça de Deus mesmo que
somos salvos. Entretanto, não é salvação “de graça” como muitos pensam,
pois haverá de ser “segundo a suas obras” (Mt 16,27), a crermos no que
Jesus disse.
Por outro lado, se a nossa salvação não estivesse em nossas mãos,
então Deus, certamente, salvaria a todos, já que isso só dependeria da
vontade dele.
Uma crença que se opõe à reencarnação é a do inferno eterno; mas
não há como explicá-lo diante disso: “O Senhor é misericordioso e
compassivo; longânimo e assaz benigno. Não repreende perpetuamente, nem
conserva para sempre a sua ira. Não nos trata segundo os nossos pecados,
nem nos retribui consoante as nossas iniqüidades” (Sl 103,8-10).
Uma coisa que ainda estamos esperando é alguém nos provar que Deus
tenha criado o inferno, lugar destinado ao suplício eterno dos
contraventores de Suas leis. Que nos mostrem que a pena para os que não
cumprem os Dez Mandamentos seja ir para o inferno, já que é nesse momento
que Deus deveria tê-lo, certamente, criado.
5ª - A proposta de uma vida feliz através da reencarnação não é atestada
pela Bíblia.
E nem poderia ser de outra forma, já que “Ainda tenho muitas
coisas para dizer, mas agora vocês não seriam capazes de suportar” (Jo
16,12). Como, naquela época, não tinham uma noção clara quanto a isso,
não adiantaria explicar o que não eram capazes de entender.
O que assegura uma vida feliz é a vivência do Evangelho em toda a
sua plenitude, e a reencarnação é a oportunidade oferecida para todos
aqueles que viveram e morreram, sem haverem tido a chance de ouvir o
Evangelho. A reencarnação pode até não garantir uma vida feliz, mas
garante a oportunidade de vivê-la. Em contrapartida, nossos críticos
evitam dizer que a proposta contrária, a de vida única, não dá essa mesma
garantia para todos. Aliás, nem mesmo os que se acham merecedores de uma
vida futura feliz apenas por pregarem o Evangelho sem o praticar, têm
essa garantia.
Procuramos desenvolver esse estudo de forma a provar que essa
questão de João Batista ser Elias é muito clara no Evangelho; tão clara
como a luz do Sol ao meio-dia, num “céu de brigadeiro”. Entretanto,
percebemos que por interesses, que não nos cabe aqui citá-los, as
lideranças religiosas procuram esconder isso de seus fiéis, mantendo-os
na ignorância. Qualquer pessoa de bom senso ou que não se encontra
atrelada a dogmas, verá que isso é ponto irrefutável. Só não vê quem não
quer. Finalizando, repetimos essas palavras de Jesus: “Quem tem ouvidos,
ouça” (Mt 11,15).
Eucaristia: Jesus a instituiu?
Para justificar a eucaristia, pegam a passagem em que Jesus,
ceando com os apóstolos, lhes distribui o pão e o vinho. Fato acontecido,
segundo alguns, na sexta-feira anterior à sua crucificação.
Transcrevemos da Bíblia Sagrada, edição Pastoral, o trecho da
narrativa de Mateus, no capítulo 26:
A INSTITUIÇÃO DA EUCARISTIA
“Enquanto comiam, Jesus tomou um pão e, tendo pronunciado a bênção, o
partiu, distribuiu aos discípulos, e disse: 'Tomem e comam, isto é o meu
corpo'. Em seguida, tomou um cálice, agradeceu, e deu a eles dizendo:
'Bebam dele todos, pois isto é o meu sangue, o sangue da aliança, que é
derramado em favor de muitos, para remissão dos pecados. Eu lhes digo: de
hoje em diante não beberei desse fruto da videira, até o dia em que, com
vocês, beberei o vinho novo no reino do meu Pai'". (vv. 26-29).
Fato curioso é que João não fala absolutamente nada sobre essa
distribuição de pão e vinho, considerando que ele também se encontrava
presente no evento; inclusive, se foi ele o discípulo a quem Jesus amava,
certamente, estava a seu lado. É ele quem descreve com maior número de
pormenores tal acontecimento.
Sobre essa passagem, em nota de rodapé, os tradutores da Bíblia de
Jerusalém explicam: “Estamos no meio da ceia pascal. É em gestos precisos
e solenes do ritual judaico (ações de graças a Iahweh pronunciadas sobre
o pão e sobre o vinho) que Jesus enxerta os ritos sacramentais do novo
culto que instaura” (p. 1751). Isso se deu no primeiro dia dos pães
ázimos (Mt 26,17), portanto, é mesmo um ritual judaico realizado durante
a celebração da Páscoa. Essa ceia, com a distribuição de pão e vinho,
fazia mesmo parte dos rituais judeus, conforme explica Renan (1823-1892):
... Naquela refeição, assim como em muitas outras [48]. Jesus
praticou seu rito misterioso da divisão do pão. Como se acreditou, desde
os primeiros anos da Igreja, que a refeição em questão tivesse acontecido
no dia de Páscoa e tivesse sido o banquete pascal, naturalmente veio a
idéia de que a instituição eucarística se fizera naquele momento supremo.
Partindo da hipótese de que Jesus sabia antecipadamente com precisão
quando morreria, os discípulos deveriam ter sido levados a supor que ele
reservara para aquelas últimas horas uma enorme quantidade de atos
importantes. Como, aliás, uma das idéias fundamentais dos primeiros
cristãos era a de que a morte de Jesus fora um sacrifício, substituindo
todos os da antiga Lei, a Ceia tornou-se o sacrifício por excelência, o
ato constitutivo da nova aliança, o sinal do sangue derramado para a
salvação de todos [49]. O pão e o vinho, relacionados à própria morte,
foram, dessa forma, a imagem do Novo Testamento, que Jesus selara com
seus sofrimentos, a comemoração do sacrifício do Cristo até a sua vinda
[50].
Muito cedo esse mistério se fixou num pequeno relato sacramental, que
possuímos em quatro versões [51] muito parecidas entre si. O quarto
evangelista, tão preocupado com idéias eucarísticas [52], que descreve a
última ceia com tanta prolixidade, que liga a ela tantas circunstâncias e
discursos [53], não conhece esse relato. Isso prova que não considerava a
instituição da Eucaristia como uma particularidade da Ceia. Para o quarto
evangelista, o rito da Ceia é a lavagem dos pés.
______
[48] Luc., XXIV, 30-31, 35, representa a divisão do pão como um hábito de
Jesus.
[49] Luc., XXII, 20.
[50] I Cor., XI, 26.
[51] Mat. XXVI, 26-28; Marc., XI, 22-24; Luc., XXII,19-21; I Cor., XI,
23-25.
[52] Cap. VI.
[53] Cap. XIII-XVII.
(RENAN, A Vida de Jesus, 2004, pp. 360-361) (Grifo nosso).
Seria interessante que aqui fôssemos ver essa passagem bíblica
citada por Renan, a primeira da lista acima, na qual ele diz ser a
divisão do pão um hábito de Jesus; que, para um melhor entendimento,
iremos começá-la num versículo anterior ao citado; então, leiamo-la:
Lc 24,28-35: “Quando chegaram perto do povoado para onde iam, Jesus fez
de conta que ia mais adiante. Eles, porém, insistiram com Jesus, dizendo:
'Fica conosco, pois já é tarde e a noite vem chegando'. Então Jesus
entrou para ficar com eles. Sentou-se à mesa com os dois, tomou o pão e
abençoou, depois o partiu e deu a eles. Nisso os olhos dos discípulos se
abriram, e eles reconheceram Jesus. Jesus, porém, desapareceu da frente
deles. Então um disse ao outro: 'Não estava o nosso coração ardendo
quando ele nos falava pelo caminho, e nos explicava as Escrituras?' Na
mesma hora, eles se levantaram e voltaram para Jerusalém, onde
encontraram os onze, reunidos com os outros. E estes confirmaram:
'Realmente, o Senhor ressuscitou, e apareceu a Simão!' Então os dois
contaram o que tinha acontecido no caminho, e como tinham reconhecido
Jesus quando ele partiu o pão.
Jesus, depois de ressuscitado, foi reconhecido pelos dois
discípulos, que estavam se dirigindo a Emaús, exatamente pelo ato de
partir o pão. Dessa forma, a conclusão de Renan é absolutamente correta,
não sendo, portanto, o ritual de partir o pão e beber vinho a instituição
da eucaristia, rito sacramental praticado em determinadas correntes
religiosas.
Estranhamos que tal fato ainda venha a acontecer, pois a nós, da
forma que é praticado, mais parece ritual de canibalismo do que qualquer
outra coisa. Povos primitivos acreditavam que, ao se comer o corpo de um
guerreiro que haviam matado, a sua força e coragem, muito valorizadas por
esses povos, passariam àquele que fizesse do guerreiro vencido o seu
“prato do dia”.
Qual será a razão para se justificar que os fiéis ainda “comam do
corpo e bebam do sangue” de Jesus que crêem presentes na hóstia, após
consagrada pelo sacerdote? Para nós é algo sem sentido, principalmente,
considerando que Jesus disse “não é o que entra pela boca que torna o
homem impuro,...” (Mt 15,11); da mesma forma podemos entender que o que
entra pela boca não torna o homem puro. Conseqüentemente, podemos
concluir que, mesmo que se coma algo sagrado (hóstia), ninguém se tornará
um ser purificado por isso.
Pesquisando sobre o assunto, encontramos o autor Bart D. Ehrman,
considerado a maior autoridade em Bíblia do mundo, dizendo:
[...] Em um de nossos mais antigos manuscritos gregos, assim como
em vários testemunhos latino, temos:
E tomando o cálice, dando graças, ele disse: “Tomai-o, reparti-o
entre vós, pois eu vos digo que não beberei do fruto da vinha a partir de
agora, até que venha o reino de Deus”. E tomando o pão, dando graças, ele
o partiu e o deu a eles, dizendo: “Isto é o meu corpo... Mas vede que a
mão daquele que me trai está comigo nesta mesa” (Lucas 22,17-19).
Contudo, na maioria de nossos manuscritos, há um acréscimo ao
texto, que soará familiar a muitos leitores da Bíblia, visto que se
assentou nas traduções modernas. Ali, depois que Jesus diz: “Isto é meu
corpo”, ele continua dizendo as palavras: “'Que foi dado por vós; fazei
isto em memória de mim', e fez o mesmo com o cálice após a refeição,
dizendo: 'Este cálice é a nova aliança em meu sangue derramado por vós'”.
Estas são as palavras, muito familiares, da “instituição” da Ceia
do Senhor, registradas também sob uma forma muito similar na primeira
carta de Paulo aos Coríntios (1 Coríntios 11,23-25). A despeito do fato
de serem tão familiares, há boas razões para pensar que esses versículos
não estavam no original do Evangelho de Lucas, mas que foram
acrescentados para ressaltar que foram o corpo partido e o sangue
derramado de Jesus que trouxeram a salvação “para vós”. [...]
Além do mais, não se pode deixar de notar que os versículos, por
mais familiares que sejam, não representam a própria compreensão que
Lucas demonstra ter da morte de Jesus. É uma característica
surpreendentemente do retrato que Lucas faz da morte de Jesus – por mais
estranho que isso seja à primeira vista – que ele nunca, em nenhuma outra
passagem, indica que a morte em si seja o que traz a salvação do pecado.
Em nenhum outro lugar de toda a obra em dois volumes de Lucas (Lucas e
Atos dos Apóstolos), se diz que a morte de Jesus foi “por vós”. De fato,
nas duas ocasiões em que a fonte de Lucas (Marcos) indica que foi por
meio da morte de Jesus que veio a salvação (Marcos 10,45; 15,39), Lucas
mudou a disposição do texto (ou o eliminou). Em outros termos, Lucas tem
uma compreensão diferente da forma com que a morte de Jesus conduz à
salvação, diferente da de Marcos (da de Paulo e da de outros escritores
cristãos antigos). (EHRMAN, 2006, pp. 175-176).
Assim, dentro da visão desse autor, o texto a qual se apegam para
justificar a eucaristia não é outra coisa senão uma adulteração dos
originais bíblicos. E pelo visto ele não está sozinho em sua tese.
Vejamos uma outra opinião:
Jesus seguia a ordem essênia em suas refeições de festa e, em
especial, na última ceia, ou seguia a ordem não-sectária: vinho e pão?
Segundo Mateus e Marcos, Jesus primeiro abençoava o cálice e depois o
pão, mas a situação em Lucas é diferente. “Chegada a hora, pôs-se Jesus à
mesa, e com ele os apóstolos. E disse-lhes: Tenho desejado ansiosamente
comer convosco esta páscoa, antes de meu sofrimento. Pois vos digo que
nunca mais a comerei, até que ela se cumpra no reino de Deus. E, tomando
um cálice, havendo dado graças, disse: Recebei e reparti entre vós; pois
vos digo que de agora em diante não mais beberei do fruto da videira, até
que venha o reino de Deus. E, tomando um pão, tendo dado graças, o partiu
e lhes deu, dizendo: Isto é meu corpo” (Lc 22:14-19). Aí termina o texto
de Lucas, de acordo com o famoso Codex Bezae, a antiga tradução latina, e
dois antigos manuscritos siríacos. Todos os leitores atentos reconhecerão
com facilidade que o que se segue em Lucas nos outros testemunhos é
tirado de 1 Cor 11:23-26, de modo que temos aqui a estranha situação de
que no texto aceito aparecem dois cálices, um no começo e o outro no
final. Tanto a Versão Padrão Revista como a Nova Bíblia Inglesa adotaram
o ponto de vista correto, de que Lc 22:19b-20 não fazia parte do texto
original de Lucas. Depois que Jesus disse do pão partido ‘Isto é meu
corpo” fazendo alusão a sua iminente morte violenta, ele continuou e
tornou-se mais explícito, dizendo: “Todavia a mão do traidor está comigo
à mesa” (Lc 22:21). (FLUSSER, 2000, p. 227)
É inacreditável o que ainda se faz, nos dias atuais, como práticas
religiosas tomadas “por bíblicas”, quando, na verdade, são, em sua
esmagadora maioria, atos pagãos, para usar de uma expressão ao gosto dos
teólogos. É o caso que estamos analisando, que é corroborado por Kersten
e Gruber, que narrando o culto persa a Mitra, dizem: “O serviço religioso
semanal era realizado aos domingos, dia dedicado ao deus. A cerimônia
mais importante do culto era uma ceia que constava de vinho e pão –
oferecido na forma de hóstias consagradas que tinham o sinal da cruz”.
(KERSTEN E GRUBER, p. 316). (grifo nosso).
Curiosa é essa frase atribuída a Mitra, que nos coloca diante de
fato de que qualquer semelhança não é mera coincidência: "Aquele que não
comer minha carne e não beber meu sangue para ser um comigo, e eu um com
ele, aquele não conhecerá a salvação". (FREKE e GANDY, p. 2).
Pedro, tu és Papa?
Concordaremos com os que disserem que esse deveria ser um assunto
que não nos diz respeito. Entretanto, como detratores estão sempre nos
aparecendo, especialmente, no presente caso, os fundamentalistas
católicos que querem justificar sua religião como sendo a que é
exclusivamente verdadeira, usando, para isso, do argumento de que Pedro
foi nomeado por Jesus o primeiro Papa, e daí concluírem que somente a
Igreja Católica Romana é quem tem as chaves do reino dos céus, e que quem
estiver fora dela pode ir se preparando para arder eternamente no fogo do
inferno. O que diremos é que ele poderia muito bem não ter sido escrito,
não fosse por isso.
Sabemos que iremos contrariar interesses seculares, entretanto, a
verdade deve aparecer, porquanto “nada há oculto que não venha a ser
conhecido” (Lc 12,2). Não sem razão, disse o escritor José Reis Chaves:
“Acontece que a verdade é, às vezes, para todos nós seres humanos, o que
menos queremos ouvir, principalmente com relação aos nossos princípios
religiosos, pois o nosso ego aflora logo com esses assuntos”. (CHAVES,
2006).
Buscando o significado da palavra papa encontramos as seguintes
explicações:
... “papa” é a forma latinizada de uma palavra grega popular,
“papas”, variante de “pappas”, pai. Nos primeiros tempos da história do
cristianismo, o título de papa era dado a todos os padres; depois, com o
passar dos anos, foi limitado aos bispos. Em algumas aldeias de origem
grego-bizantina, na Itália meridional, o pároco ainda era chamado papa,
em sinal de respeito, de acordo com o costume do clero ortodoxo, segundo
nos informa Ambrogio Donini. (Donini, Ambrogio - “História do
Cristianismo: das origens a Justiniano”, Lisboa, Edições 70, 1988,p.
262). (MARTINS, 1993, pp. 32).
“Donde vem essa palavra? Não se sabe ao certo. Para a Igreja
Romana, essa palavra é formada pelas iniciais da expressão “Petrus
Apostolus Princeps Apostolorum” (Pedro Apóstolo, Príncipe dos Apóstolos);
mas essa interpretação é mera coincidência, e ocorreu porque os católicos
consideram o Apóstolo Pedro como o primeiro Papa, e o chefe supremo da
Igreja como sendo o sucessor de São Pedro (Daí a expressão: o Papa está
assentado na “cadeira de S. Pedro”.). (ALMEIDA, 2002, p. 86).
Iremos acompanhar as passagens que tratam do convite e do nome do
apóstolo, que dizem ser o primeiro papa:
Mt 4,18-20: “Jesus andava à beira do mar da Galiléia, quando viu dois
irmãos: Simão, também chamado Pedro, e seu irmão André. Estavam jogando a
rede no mar, pois eram pescadores. Jesus disse para eles: 'Sigam-me, e eu
farei de vocês pescadores de homens.' Eles deixaram imediatamente as
redes, e seguiram a Jesus.”
Mc 1,16-18: “Ao passar pela beira do mar da Galiléia, Jesus viu Simão e
seu irmão André; estavam jogando a rede ao mar, pois eram pescadores.
Jesus disse para eles: 'Sigam-me, e eu farei vocês se tornarem pescadores
de homens.' Eles imediatamente deixaram as redes e seguiram a Jesus.”
Mc 3,13-16: “Jesus subiu ao monte e chamou os que desejava escolher. E
foram até ele. Então Jesus constituiu o grupo dos Doze, para que ficassem
com ele e para enviá-los a pregar, com autoridade para expulsar os
demônios. Constituiu assim os Doze: Simão, a quem deu o nome de Pedro;”.
Lc 5,1-11: “Certo dia, Jesus estava na margem do lago de Genesaré. A
multidão se apertava ao seu redor para ouvir a palavra de Deus. Jesus viu
duas barcas paradas na margem do lago; os pescadores haviam desembarcado,
e lavavam as redes. Subindo numa das barcas, que era de Simão, pediu que
se afastasse um pouco da margem. Depois sentou-se e, da barca, ensinava
as multidões. Quando acabou de falar, disse a Simão: 'Avance para águas
mais profundas, e lancem as redes para a pesca.' Simão respondeu:
'Mestre, tentamos a noite inteira, e não pescamos nada. Mas, em atenção à
tua palavra, vou lançar as redes.' Assim fizeram, e apanharam tamanha
quantidade de peixes, que as redes se arrebentavam. Então fizeram sinal
aos companheiros da outra barca, para que fossem ajudá-los. Eles foram, e
encheram as duas barcas, a ponto de quase afundarem. Ao ver isso, Simão
Pedro atirou-se aos pés de Jesus, dizendo: ‘Senhor, afasta-te de mim,
porque sou um pecador!’ É que o espanto tinha tomado conta de Simão e de
todos os seus companheiros, por causa da pesca que acabavam de fazer.
Tiago e João, filhos de Zebedeu, que eram sócios de Simão, também ficaram
espantados. Mas Jesus disse a Simão: ‘Não tenha medo! De hoje em diante
você será pescador de homens.’ Então levaram as barcas para a margem,
deixaram tudo, e seguiram a Jesus”.
Lc 6,12-14: “Nesses dias, Jesus foi para a montanha a fim de rezar. E
passou toda a noite em oração a Deus. Ao amanhecer, chamou seus
discípulos, e escolheu doze dentre eles, aos quais deu o nome de
apóstolos: Simão, a quem também deu o nome de Pedro, e seu irmão
André;...”.
Jo 1,35-42: “No dia seguinte, João aí estava de novo, com dois
discípulos. Vendo Jesus que ia passando, apontou: 'Eis aí o Cordeiro de
Deus.' Ouvindo essas palavras, os dois discípulos seguiram a Jesus. Jesus
virou-se para trás, e vendo que o seguiam, perguntou: 'O que é que vocês
estão procurando?' Eles disseram: 'Rabi (que quer dizer Mestre), onde
moras?' Jesus respondeu: 'Venham, e vocês verão.' Então eles foram e
viram onde Jesus morava. E começaram a viver com ele naquele mesmo dia.
Eram mais ou menos quatro horas da tarde. André, irmão de Simão Pedro,
era um dos dois que ouviram as palavras de João e seguiram a Jesus. Ele
encontrou primeiro o seu próprio irmão Simão, e lhe disse: ‘Nós
encontramos o Messias (que quer dizer Cristo).’ Então André apresentou
Simão a Jesus. Jesus olhou bem para Simão e disse: ‘Você é Simão, o filho
de João. Você vai se chamar Cefas (que quer dizer Pedra)’".
Mateus diz que Simão também se chamava Pedro, que ele e André, seu
irmão, eram simples pescadores.
Marcos confirma ser essa a profissão dos dois, mas, em relação ao
nome, fala que ele se chamava Simão, que mais tarde Jesus trocou o seu
nome para Pedro, especificando que isso aconteceu quando constituiu o
grupo dos doze.
Lucas denomina o pescador de Simão e também de Simão Pedro, e, em
contradição, um pouco mais adiante, disse que Jesus, quando escolhe os
doze discípulos, dá a ele o nome de Pedro, e só neste momento é que
aparece o seu irmão André.
João coloca André como discípulo de João Batista, que, um pouco
depois de aceitar o convite de Jesus, apresenta seu irmão, Simão Pedro,
ao Messias. E é neste momento que Jesus muda-lhe o nome de Simão, não
para Pedro, mas para Cefas. Não fala nada a respeito da profissão deles.
Apesar de João ter afirmado que Jesus mudara o nome para Cefas,
continua chamando-o de Simão Pedro, por quinze vezes (Jo 6,8; 6,68; 13,6;
13,9; 13,24; 13,36; 18,10, 18,15; 18;25, 20,2; 20,6; 21,2; 21,3; 21,7;
21,11) ou só de Pedro, por treze vezes (Jo 13,37; 18,16, 18,17; 18,18;
18,26; 18,27; 20,3; 20,4; 21,7; 21,17; 21,19; 21,20; 21,21) e ainda
coloca o próprio Jesus chamando-o de Pedro (Jo 18,11), também de Simão
(Jo 21,16; 21,17) e só por uma vez Ele o chama de Simão Pedro (Jo 21,15).
A não ser no versículo 42 de Jo 1, que diz ter Jesus lhe dado o nome de
Cefas, em nenhuma outra passagem de seu Evangelho, João o nomeia assim.
Então o que adiantou mudar-lhe o nome, se não o chama pelo seu novo nome
(se é que é novo mesmo)? E, em relação aos evangelhos sinópticos, não há
disso uma ocorrência sequer.
Em Atos, usa-se Pedro (cinqüenta e sete vezes) e, somente por
quatro vezes, é dito Simão, mas completando com “o que tinha por
sobrenome Pedro” (At 10,5; 10,18; 10,32; 11,13). Somente encontraremos o
uso de Cefas em Paulo, na sua primeira carta aos coríntios (1Cor 1,12;
3,22; 9,5; 15,5) e na sua epístola aos gálatas (Gl 1,18; 2,9; 2,11;
2,14), entretanto, nela foi usado o nome Pedro, por duas vezes (Gl 2,7;
2,8). Isso é muito pouco, porquanto são atribuídas a Paulo treze cartas,
ou seja, onze além dessas duas.
Vejamos, a título de curiosidade, como o versículo 42 (Jo 1),
aparece nas várias traduções bíblicas:
1. “...Cefas, que quer dizer Pedra”: Santuário, Paulus (de Jerusalém, do
Peregrino e Pastoral) e Ave Maria.
2. “...Cefas, que quer dizer Pedro”: Barsa, Mundo Cristão, Vozes,
Paulinas e SBB.
3. “...Cefas, que, traduzido, é Pedro”: Novo Mundo.
Dessa última retiramos: “Cefas”. Gr. Ke.fás. Este é um nome aram.
(Keh.fa'), aqui no masc., como em Mt 16;18 nos mss. sir. (p. 1232),
significa “rocha”. Pelo Dicionário Prático da Barsa: cefas. Nome aramaico
equivalente ao grego petrus que quer dizer rocha (p. 51).
Mas a moral da história é que é tudo muito estranho: o nome era
Simão Pedro ou só Simão que foi mudado para Pedro ou para Cefas? Tamanha
confusão nos leva até a pensar que Jesus não mudou o nome de Simão Pedro,
e que, provavelmente, foram os teólogos, que, querendo defender seus
próprios dogmas, é que interpolaram isso, como é fácil de se perceber.
Aqui vale a expressão: “só não vê quem não quer”. A finalidade era
relacionar o nome de Pedro com a palavra “pedra” para daí nomeá-lo
primeiro papa. Vejamos, na seqüência, a passagem na qual buscam
estabelecer essa relação.
A passagem, que é sempre citada para justificar o assunto, é a de Mateus.
Entretanto, ocorreu-nos fazer uma comparação, cujo resultado, pelo que já
vimos até aqui (e ainda nem bem começamos), não nos surpreendeu. Vejamos:
Mt 16,13-20Mc 8,27-30 (= Lc 9,18-21)13. Jesus chegou à região de Cesaréia
de Filipe, e perguntou aos seus discípulos: "Quem dizem os homens que é o
Filho do Homem?"27. Jesus partiu com seus discípulos para os povoados de
Cesaréia de Filipe. No caminho, ele perguntou a seus discípulos: "Quem
dizem os homens que eu sou?"14. Eles responderam: "Alguns dizem que é
João Batista; outros, que é Elias; outros ainda, que é Jeremias, ou algum
dos profetas."28. Eles responderam: "Alguns dizem que tu és João Batista;
outros, que és Elias; outros, ainda, que és um dos profetas."15. Então
Jesus perguntou-lhes: "E vocês, quem dizem que eu sou?" 16. Simão Pedro
respondeu: "Tu és o Messias, o Filho do Deus vivo."29. Então Jesus
perguntou-lhes: "E vocês, quem dizem que eu sou?" Pedro respondeu: "Tu és
o Messias."17. Jesus disse: "Você é feliz, Simão, filho de Jonas, porque
não foi um ser humano que lhe revelou isso, mas o meu Pai que está no
céu. 18. Por isso eu lhe digo: você é Pedro, e sobre essa pedra
construirei a minha Igreja, e o poder da morte nunca poderá vencê-la. 19.
Eu lhe darei as chaves do Reino do Céu, e o que você ligar na terra será
ligado no céu, e o que você desligar na terra será desligado no
céu."Nihil.20. Jesus, então, ordenou aos discípulos que não dissessem a
ninguém que ele era o Messias.30. Então Jesus proibiu severamente que
eles falassem a alguém a respeito dele.
A narrativa de Lucas (9,1821) é bem semelhante à de Marcos, portanto, não há nenhuma necessidade de
se colocarem aqui as duas, ficaremos somente com a dele, mas que você,
leitor, não se esqueça disso.
Fica evidente a interpolação dos versículos 17 a 19 no texto de
Mateus 16, cujo conteúdo não consta dos outros dois Evangelhos,
exatamente daquilo de que se servem para justificar a hierarquia papal.
Certamente, algum papa “inspirado” resolveu fazer isso para assentar seu
poder temporal sobre os homens. Isso está “tão na cara” que, em nenhum
outro lugar da Bíblia, será encontrada a expressão “chaves do Reino do
céu”. Entretanto, Jesus atribuiu, como a Pedro (Mt 16,19), também aos
outros discípulos a possibilidade de: “... tudo o que vocês ligarem na
terra, será ligado no céu, e tudo o que vocês desligarem na terra, será
desligado no céu” (Mt 18,18), ou seja, não era uma atribuição exclusiva
dele, mas de todos os discípulos e de todos nós, pois todo bem ou mal,
que fizermos, fica registrado (ligado) no que os orientais chamam de
arquivo akáshico. E não seria esse arquivo o livro da vida a que se
refere o Apocalipse?
Para corroborar a nossa conclusão, apresentamos, a você, leitor, a
opinião do professor da Universidade de Oxford, o teólogo Geza Vermes
(1924- ):
O episódio da confissão feita por Pedro de que Jesus é o Cristo
está contido nos três Evangelhos Sinópticos, mas sua indicação para ser a
pedra não figura nem em Marcos nem em Lucas. O silêncio sobre algo de
tamanha importância, como a nomeação de Pedro como chefe da ekklesía,
sugere vigorosamente que Mateus 16,17-19 deva ser um acréscimo
secundário. A inexistência de qualquer menção à igreja nos outros
Evangelhos, inclusive em João, também aponta nessa direção. Em suma, as
palavras sobre a designação de Pedro não devem ser creditadas a Jesus,
mas a Mateus ou a seu editor em 80 d.C. ou mais tarde. (VERMES, 2006, p.
410). (Grifo nosso).
Por outro lado, se João era, segundo Paulo, um dos notáveis (Gl
2,9), e como ele, no seu Evangelho, não fala absolutamente nada sobre
essa suposta nomeação de Pedro para ser o primeiro papa, isso é muito
curioso.
O escritor Pinheiro Martins (1967- ) elucida:
Papias, bispo de Hierápolis (c. 60 – c. 135 d.C.), teria afirmado
que João Marcos, sobrinho de Barnabé, servia de intérprete ao apóstolo
Pedro, quando este pregava aos gentios, pois o humilde pescador da
Galiléia não sabia falar outro idioma senão o aramaico. Marcos traduzia,
então, a pregação de Pedro do aramaico para o grego. De tanto ouvir e
repetir a pregação do mestre e amigo, que relatava fatos da vida de
Cristo, Marcos tornou-se uma das pessoas mais indicadas para escrever a
respeito. E o fez.
O evangelho atribuído a Marcos é a mais antiga narrativa sobre a
vida de Jesus que conhecemos. Curiosamente, inicia-se com a pregação de
João Batista e o batismo de Jesus: Marcos nada informa sobre a concepção,
o nascimento e a infância do Cristo – como se tivessem sido normais, nada
tendo de diferentes aos de outros seres humanos, não merecendo, por isso,
maiores atenções. Trata Maria, sua mãe, como uma mulher comum (exceto,
claro, pelo fato de ter dado à luz um Messias) que se faz acompanhar de
seus outros filhos. Também nada deixou registrado sobre o episódio em que
Jesus teria delegado poderes a Pedro, fazendo dele alicerce da igreja e
portador das chaves do Reino dos Céus; o que é estranho, já que, estando
Marcos tão próximo de Pedro, dificilmente teria deixado de conhecer e
registrar tal fato, dando-lhe destaque. (MARTINS, 1993, pp. 15-16).
(Grifo nosso).
Carlos A. Pastorino (1910-1980), ex-sacerdote católico, filósofo e
teólogo, analisando essa passagem disse:
Em Mateus, porém, prossegue a cena com três versículos que suscitaram
acres e largas controvérsias desde épocas remotíssimas, chegando alguns
comentaristas até a supor tratar-se de interpolação. Em vista da
importância do assunto, daremos especial atenção a eles, apresentando,
resumidas, as opiniões dos dois campos que se digladiam.
Os católicos-romanos aceitam esses três versículos como autênticos, vendo
neles:
a) a instituição de uma "igreja", organização com poderes discricionários
espirituais, que resolve na Terra com a garantia de ser cegamente
obedecida por Deus no "céu";
b) a instituição do papado, representação máxima e chefia indiscutível e
infalível de todos os cristãos, passando esse poder monárquico, por
direito hereditário-espiritual, aos bispos de Roma, sucessores legítimos
de Pedro, que recebeu pessoalmente de Jesus a investidura real, fato
atestado exatamente com esses três versículos.
Essa opinião foi combatida com veemência desde suas tentativas iniciais
de implantação, nos primeiros séculos, só se concretizando a partir dos
séculos IV e V por força da espada dos imperadores romanos e dos decretos
(de que um dos primeiros foi o de Graciano e Valentiniano, que em 369
estabeleceu Dâmaso, bispo de Roma, como juiz soberano de todos os bispos,
mas cujo decreto só foi posto em prática, por solicitação do mesmo
Dâmaso, em 378). O diácono Ursino foi eleito bispo de Roma na Basílica de
São Júlio, ao mesmo tempo em que Dâmaso era eleito para o mesmo cargo na
Basílica de São Lourenço. Os partidários deste, com o apoio de Vivêncio,
prefeito de Roma, atacaram os sacerdotes que haviam eleito Ursino e que
estavam ainda na Basílica e aí mesmo mataram 160 deles; a seguir, tendose Ursino refugiado em outras igrejas, foi perseguido violentamente,
durando a luta até a vitória total do "bando contrário". Ursino, a
seguir, foi exilado pelo imperador, e Dâmaso dominou sozinho o campo
conquistado com as armas. Mas toda a cristandade apresentou reações a
essa pretensão romana, bastando citar, como exemplo, uma frase de
Jerônimo: "Examinando-se do ponto de vista da autoridade, o universo é
maior que Roma (orbis maior est Urbe), e todos os bispos, sejam de Roma
ou de Engúbio, de Constantinopla ou de Régio, de Alexandria ou de Tânis,
têm a mesma dignidade e o mesmo sacerdócio" (Epistula 146, 1).
Alguns críticos (entre eles Grill e Resch na Alemanha e Monnier e
Nicolardot na França, além de outros reformados) julgam que esses três
versículos tenham sido interpolados, em virtude do interesse da
comunidade de Roma de provar a supremacia de Pedro e, portanto, do
bispado dessa cidade sobre todo o orbe, mas, sobretudo, para provar que
era Pedro, e não Paulo, o chefe da igreja cristã.
Essa questão surgiu quando Marcion, logo nos primeiros anos do 2º século,
revolucionou os meios cristãos romanos com sua teoria de que Paulo foi o
único verdadeiro apóstolo de Jesus, e, portanto, o chefe inconteste da
Igreja.
Baseava-se ele nos seguintes textos do próprio Paulo: "Não recebi (o
Evangelho) nem o aprendi de homem algum, mas sim mediante a revelação de
Jesus Cristo" (Gál. 1:12); e mais: "Deus ... que me separou desde o
ventre materno, chamando-me por sua graça para revelar seu Filho em mim,
para pregá-lo entre os gentios, imediatamente não consultei carne nem
sangue, nem fui a Jerusalém aos que eram apóstolos antes de mim"
(Gál.15:15-17). E ainda em Gál. 2:11-13, diz que "resistiu na cara de
Pedro, porque era condenado". E na 2ª Cor. 11:28 afirma: "sobre mim pesa
o cuidado de todas as igrejas", após ter dito, com certa ironia, não ser
"em nada inferior aos maiores entre os apóstolos" (2ª Cor. 11:5)
acrescentando que "esses homens são falsos apóstolos, trabalhadores
dolosos, transformando-se em apóstolos de Cristo; não é de admirar, pois
o próprio satanás se transforma em anjo de luz" (2ª Cor. 11:13-14). Este
último trecho, embora se refira a outras criaturas, era aplicado por
Marcion (o mesmo do "corpo fluídico" ou "fantasmático") aos verdadeiros
apóstolos. Em tudo isso, baseava-se Marcion, e mais na tradição de que
Paulo fora bispo de Roma, juntamente com Pedro. Realmente as listas
fornecidas pelos primeiros escritores, dos bispos de Roma, dizem:
a) Irineu (bispo entre 180-190): "Quando firmaram e estabeleceram a
igreja de Roma, os bem aventurados apóstolos Pedro e Paulo confiaram a
administração dela a Lino, de quem Paulo fala na epístola a Timóteo.
Sucedeu-lhe depois Anacleto e depois deste Clemente obteve o episcopado,
em terceiro lugar depois dos apóstolos, etc." (Epíst. ad Victorem, 3, 3,
3; cfr. Eusébio, His. Eccles., 5,24,14).
b) Epifânio (315-403) escreve: "Porque os apóstolos Pedro e Paulo foram,
os dois juntos, os primeiros bispos de Roma" (Panarion, 27, 6).
Ora, dizem esses críticos, a frase do vers. 17 "não foi a carne nem o
sangue que to revelaram, mas meu Pai que está nos céus", responde, até
com as mesmas palavras, a Gálatas 1:12 e 16.
Para organizar nosso estudo, analisemos frase por frase.
VERS. 18 a - "Também te digo que tu és Pedro e sobre essa pedra
construir-me-ei a "ekklêsia") (oi kodomêsô moi tên ekklêsían).
O jogo de palavras corre melhor no aramaico, em que o vocábulo kêphâ
(masculino) não varia. Mas no grego (e latim) o masculino Petros (Petrus,
Pedro) é uma criação ad hoc, um neologismo, pois esse nome jamais aparece
em nenhum outro documento anterior. Mas como a um homem não caberia o
feminino "pedra", foi criado o neologismo. Além de João (1:42), Paulo
prefere o aramaico Kêphá (latim Cephas) em 1 Cor. 1:12; 3:22; 9:5; 15:5 e
Gál. 2:14.
Quanto ao vocábulo ekklêsía, que foi transliterado em latim ecclésia
(passando para o português "igreja"), temos que apurar o sentido: A etimológico; B - histórico; C - usual; D - seu emprego no Antigo
Testamento; e E - no Novo Testamento.
A - Etimologicamente ekklêsía é o verbo Kaléô, "chamar, convocar", com o
preverbo ek, designativo de ponto de partida. Tem pois o sentido de
"convocação, chamada geral".
B - Historicamente, o termo era usado em Atenas desde o 6.º século A.C.;
ao lado da Boulê ("concílio", em Roma: Senado; em Jerusalém: Sinédrio),
ao lado da Boulê que redigia as leis, por ser constituída de homens
cultos e aptos a esse mister, havia a ekklêsía (em Roma: Comitium; em
Jerusalém: Synagogê), reunião ou assembléia geral do povo livre, que
ratificava ou não as decisões da autoridade. No 5.º séc. A.C., sob
Clístenes, a ekklésía chegou a ser soberana; durante todo o apogeu de
Atenas, as reuniões eram realizadas no Pnyx, mas aos poucos foi se
fixando no Teatro, como local especial. Ao tornar-se "cidade livre" sob a
proteção romana, Atenas viu a ekklêsía perder toda autoridade.
C - Na época do início do cristianismo, ekklêsía corresponde a sinagoga:
"assembléia regular de pessoas com pensamento homogêneo"; e tanto
designava o grupo dos que se reuniam, como o local das reuniões. Em
contraposição a ekklésía e synagogê, o grego possuía syllogos, que era um
ajuntamento acidental de pessoas de idéias heterogêneas, um agrupamento
qualquer. Como sinônimo das duas, havia synáxis, comunidade religiosa,
mas que, para os cristãos, só foi atribuída mais tarde (cfr. Orígenes,
Patrol. Graeca, vol. 2 col. 2013; Greg. Naz., Patrol Graeca vol. 1 col.
876; e João Crisóst., Patrol.Graeca, vol. 7 col. 22). Como "sinagoga" era
termo típico do judaísmo, foi preferido "ecclésia" para caracterizar a
reunião dos cristãos.
D - No Antigo Testamento (LXX), a palavra é usada com o sentido de
reunião, assembléia, comunidade, congregação, grupo, seja dos israelitas
fiéis, seja dos maus, e até dos espíritos dos justos no mundo espiritual
(Núm. 19, 20; 20:4; Deut. 23:1, 2, 3, 8; Juizes 20:2; 1.º Sam. 17:47; 1.º
Reis 8:14,22; 1.º Crôn. 29:1, 20; 2.º Crôn. 1:5; 7:8; Neem. 8:17; 13:1;
Judit 7:18; 8:21; Salmos 22:22, 25; 26:5; 35:18; 40:10; 89:7; 107:32;
149:1; Prov. 5:14; Eccli, 3:1; 15:5; 21:20; 24:2; 25:34; 31:11; 33:19;
38:37; 39:14; 44:15; Lam. 1:10; Joel 2:16; 1.º Mac. 2:50;3:13; 4:59; 5:16
e 14:19).
E - No Novo Testamento podemos encontrar a palavra com vários sentidos:
1) uma aglomeração heterogênea do povo: At. 7:38; 19:32, 39, 41 e Heb.
12:23.
2) uma assembléia ou comunidade local, de fiéis com idéias homogêneas,
uma reunião organizada em sociedade, em que distinguimos:
a) a comunidade em si, independente de local de reunião: Mat. 18: 17 (2
vezes); At. 11:22; 12:5; 14:22; 15:41 e 16:5; 1ª Cor. 4:17; 6:4; 7:17;
11:16, 18,22; 14:4,5,12,19,23,28, 33,34,35; 2.a Cor. 8:18, 19,23,24;
11:8,28; 12:13; Filp. 4:15; 2.a Tess. 1:4; 1ª Tim. 3:5, 15; 5:6; Tiago
5:15; 3.a Jo. 6; Apoc. 2:23 e 22:16.
b) a comunidade estabelecida num local determinado, uma sociedade local:
Antióquia, At. 11:26; 13:1; 14:27; 15:3; Asiáticas, 1ª Cor. 16:19; Apoc.
1:4, 11, 20 (2 vezes); 2:7, 11, 17, 29; 3:6, 13, 22; Babilônia, 1 Pe.
5:13; Cencréia, Rom. 16.1; Corinto, 1 Cor. 1:2; 2 Cor. 1:1; Êfeso, At.
20:17; Apoc. 2:1; Esmirna, Apoç. 2:8; Filadélfia, Apoc. 3:7; Galácia, 1
Cor. 16.1; Gál. 1:2; dos Gentios, Rom. 16:4; Jerusalém, At. 5:11; 8:1,3;
12:1; 15:4,22: 18:22; Judéia, At. 9:31; 1 Tess. 2:14; Gál. 1:22;
Laodicéia, Col. 4:16; Apoc. 3:14; Macedônia, 2 Cor. 8:1; Pérgamo, Apoc.
2:12; Roma, Rom. 16:16; Sardes, Apoc. 3:1; Tessalônica, 1ª Tess. 1:1; 2ª
Tess. 1:1; Tiatira, Apoc. 2: 18.
c) a comunidade particular ou "centro" que se reúne em casa de família:
Rom. 16:5, 23; 1 Cor. 16:19; Col. 4:15; Film. 2; 3 Jo. 9, 10.
3) A congregação ou assembléia de todos os que aceitam o Cristo como
Enviado do Pai: Mat. 16:18; At. 20:28; 1ª Cor. 10:32; 12:28; 15:9;
Gál.1:13; Ef. 1:22; 3:10,21: 5:23,24,25,27,29,32; Filp. 3:6; Col.
1:18,24; Heb. 2:12 (citação do Salmo 22:22).
Anotemos, ainda, que em Tiago 2:2, a comunidade cristã é classificada de
"sinagoga".
Concluímos desse estudo minucioso, que a palavra "igreja" não pode ser,
hoje, a tradução do vocábulo ekklêsía; com efeito, esse termo exprime na
atualidade:
1) a igreja católica-romana, com sua tríplice divisão bem nítida de a)
militante (na Terra) ; b) sofredora (no "Purgatório") e c) triunfante (no
"céu");
2) os templos em que se reúnem os fiéis católicos, com suas "imagens" e
seu estilo arquitetônico especial.
Ora, na época de Jesus e dos primeiros cristãos, ekklêsía não possuía
nenhum desses dois sentidos. O segundo, porque os cristãos ainda não
haviam herdado os templos romanos pagãos, nem dispunham de meios
financeiros para construí-los. E o primeiro porque só se conheciam, nessa
época, as palestras de Jesus nas sinagogas judaicas, nos campos, nas
montanhas, à beira-mar, ou então as reuniões informais nas casas de Pedro
em Cafarnaum, de Simão o leproso em Betânia, de Levi, de Zaqueu em
Jerusalém, e de outros afortunados que lhe deram hospedagem por amizade e
admiração.
Após a crucificação de Jesus, Seus discípulos se reuniam nas casas
particulares deles e de outros amigos, organizando em cada uma centros ou
grupos de oração e de estudo, comunidades, pequenas algumas outras
maiores, mas tudo sem pompa, sem rituais: sentados todos em torno da mesa
das refeições, ali faziam em comum a ceia amorosa (agápê) com pão, vinho,
frutas e mel, "em memória do Cristo e em ação de graças (eucaristia)"
enquanto conversavam e trocavam idéias, recebendo os espíritos
(profetizando), cada qual trazendo as recordações dos fatos presenciados,
dos discursos ouvidos, dos ensinamentos decorados com amor, dos sublimes
exemplos legados à posteridade.
Essas comunidades eram visitadas pelos "apóstolos" itinerantes,
verdadeiros emissários do amor do Mestre. Presidiam a essas assembléias
"os mais velhos" (presbíteros). E, para manter a "unidade de crença" e
evitar desvios, falsificações e personalismos no ensino legado (não havia
imprensa!) eram eleitos "inspetores" (epíscopoi) que vigiavam a pureza
dos ensinamentos. Essas eleições recaíam sobre criaturas de vida
irrepreensível, firmeza de convicções e comprovado conhecimento dos
preceitos de Jesus.
Por tudo isso, ressalta claro que não é possível aplicar a essa
simplicidade despretensiosa dessas comunidades ou centros de fé a
denominação de "igrejas", palavra que variou totalmente na semântica. Daí
termos mantido, neste trecho do evangelho, a palavra original grega
"ekklêsía", já que mesmo sua tradução por "assembléia" não dá idéia
perfeita e exata do significado da palavra ekklêsía daquela época. Não
encontramos outro termo para usar, embora a farta sinonímia à disposição:
associação, comunidade, congregação, agremiação, reunião, instituição,
instituto, organização, grei, aprisco (aulê), sinaxe, etc. A dificuldade
consiste em dar o sentido de "agrupamento de todos os fiéis a Cristo"
numa só palavra. Fomos tentados a empregar "aprisco", empregado por Jesus
mesmo com esse sentido (cfr. João 10:1 e 16), mas sentimos que não ficava
bem a frase "construirei meu aprisco".
Todavia, quando ekklêsía se refere a uma organização local de país,
cidade ou mesmo de casa de família, utilizaremos a palavra "comunidade",
como tradução de ekklêsía, porque a correspondência é perfeita.
VERS. 18 b - "As portas do hades (pylai hádou) não prevalecerão contra
ela".
O hades (em hebraico sheol) designava o hábitat dos desencarnados comuns,
o "astral inferior" ("umbral", na linguagem espirítica) a que os latinos
denominavam "lugar baixo": ínferus ou infernus. Diga-se, porém, que esse
infernus (derivado da preposição infra) nada tem que ver com o sentido
atual da palavra "inferno". Bastaria citar um exemplo em Virgílio (En. 6,
106), onde o poeta narra ter Enéias penetrado exatamente as "portas do
hades", inferni janua, encontrando aí (astral ou umbral) os romanos
desencarnados que aguardavam a reencarnação (Na revista anual SPIRITVS edição de 1964, n.º 1 -, nas páginas 16 a 19, há minucioso estudo a
respeito de sheol ou hades. Edições Sabedoria).
O sentido das palavras citadas por Mateus é que os espíritos
desencarnados do astral inferior não terão capacidade nem poder, por mais
que se esforcem, para destruir a organização instituída por Cristo.
A metáfora "portas do hades" constitui uma sinédoque, isto é, a
representação do todo pela parte.
VERS. 19 a - "Dar-te-ei as chaves do reino dos céus".
As chaves constituíam o símbolo da autoridade, representando a
investidura num cargo de confiança. Quando Isaías (22:22) fala da
designação de Eliaquim, filho de Hilquia, para prefeito do palácio, ele
diz : "porei sobre seu ombro a chave da casa de David; ele abrirá e
ninguém fechará, fechará e ninguém abrirá". O Apocalipse (3:7) aplica ao
Cristo essa prerrogativa: "isto diz o Santo, o Verdadeiro, o que tem a
chave de David, o que abre e ninguém fechará, o que fecha e ninguém
abrirá". Em Lucas (11:52) aparece uma alusão do próprio Jesus a essa
mesma figura: "ai de vós doutores da lei, porque tirastes as chaves da
ciência: vós mesmos não entrastes, e impedistes os que entravam".
VERS. 19 b - "O que ligares na Terra será ligado nos céus, e o que
desligares na Terra será desligado nos céus".
Após a metáfora das chaves, o que se podia esperar, como complemento, era
abrir e fechar (tal como em Isaías, texto que devia ser bem conhecido de
Jesus), e nunca "ligar" e desligar", que surgem absolutamente fora de
qualquer seqüência lógica. Aliás, é como esperávamos que as palavras
foram colocadas nos lábios de Clemente Romano (bispo entre 100 e 130, em
Roma): "Senhor Jesus Cristo, que deste as chaves do reino dos céus a teu
emissário Pedro, meu mestre, e disseste: "o que abrires, fica aberto e o
que fechares fica fechado" manda que se abram os ouvidos e olhos deste
homem" - haper àn anoíxéis énéôitai, kaì haper àn kleíséis, kéklestai (Martírio de Clemente, 9,1 - obra do 3.º ou 4.º século). Por que aí não
teriam sido citadas as palavras que aparecem em Mateus: hò eàn dêséis...
éstai dedeménon... kaí hò eàn lêsêis...éstai lelyménon?
Observemos, no entanto, que no local original dessa frase (Mat. 18:18), a
expressão "ligar" e "desligar" se encaixa perfeitamente no contexto: aí
se fala no perdão a quem erra, dando autoridade à comunidade para perdoar
o culpado (e mantê-lo ligado ao aprisco) ou a solicitar-lhe a retirada
(desligando-o da comunidade) no caso de rebeldia. Então, acrescenta:
"tudo o que ligardes na Terra, será ligado nos céus, e tudo o que
desligardes na Terra, será desligado nos céus". E logo a seguir vem a
lição de "perdoar setenta vezes sete”. E entendemos: se perdoarmos, nós
desligamos de nós o adversário, livramo-nos dele; se não perdoarmos, nós
o manteremos ligado a nós pelos laços do ódio e da vingança. E o que
ligarmos ou desligarmos na Terra (como encarnados, "no caminho com ele",
cfr. Mat. 5.25), será ratificado na vida espiritual.
Daí a nítida impressão de que esse versículo foi realmente transportado,
já pronto (apenas colocados os verbos no singular), do capítulo 18 para o
16 (em ambos os capítulos, o número do versículo é o mesmo: 18).
A hipótese de que esse versículo (como os dois anteriores) foi
interpolado, é baseada no fato de que não figura em Marcos nem em Lucas,
embora se trate claramente do mesmo episódio, e apesar de que esses dois
evangelistas escreveram depois de Mateus, por conseguinte, já conheciam a
redação desse apóstolo que conviveu com Jesus (Marcos e Lucas não
conviveram). Acresce a circunstância de que Marcos ouviu o Evangelho
pregado por Pedro (de quem parece que era sobrinho carnal, e a quem
acompanhou depois de haver abandonado Paulo após sua primeira viagem
apostólica. Marcos não podia ignorar uma passagem tão importante em
relação a seu mestre e talvez tio. Desde Eusécio, aparece como razão do
silêncio de Marcos a humildade de Pedro, que em suas pregações não citava
fatos que o engrandecessem. Mas não é admissível que Marcos ignorasse a
cena; além disso, ele escreveu seu Evangelho após a desencarnação de
Pedro: em que lhe ofenderia a modéstia, se dissesse a verdade total? Mais
ainda: seu Evangelho foi escrito para a comunidade de Roma; como
silenciar um trecho de importância tão vital para os cristãos dessa
metrópole? Não esqueçamos o testemunho de Papias (2,15), discípulo
pessoal do de João, o Evangelista, e, portanto, contemporâneo de Marcos,
que escreveu: "Marcos numa coisa só teve cuidado: não omitir nada do que
tinha ouvido e não mentir absolutamente" (Eusébio, Hist. Eccles. 3,39).
E qual teria sido a razão do silêncio de Lucas? E por que motivo todo
esse trecho não aparece citado em nenhum outro documento anterior a
Marcion (meados do 2º século)?
Percorramos os primeiros escritos cristãos, verificando que a primeira
citação é feita por Justino, que aparece como tendo vivido exatamente em
150 A.D.
1. DIDACHE (15,1) manda que os cristãos elejam seus inspetores (bispos) e
ministros (diáconos). Nenhum aceno a uma hierarquia constituída por
Jesus, e nenhuma palavra a respeito dos "mais velhos" (presbíteros).
2. CLEMENTE ROMANO (bispo de Roma no fim do 1º e início do 2º século),
discípulo pessoal de Pedro e de Paulo (parece até que foi citado em
Filip. 4:3) e terceiro sucessor de ambos no cargo de inspetor da
comunidade de Roma. Em sua primeira epístola aos coríntios, quando fala
da hierarquia da comunidade, diz que "Cristo vem da parte de Deus e os
emissários (apóstolos) da parte de Cristo" (1ª Clem. 42,2). Apesar das
numerosíssimas citações escriturísticas, Clemente não aproveita aqui a
passagem de Mateus que estamos analisando, e que traria excelente apoio a
suas palavras.
3. PAPIAS (que viveu entre o 1º e o 2º século) também nada tem em seus
fragmentos.
4. INÁCIO (bispo entre 70 e 107), em sua Epístola aos Tralianos (3,1)
fala da indispensável hierarquia eclesiástica, mas não cita o trecho que
viria a calhar.
5. CARTA A DIOGNETO, aliás, comprovadamente a "Apologia de Quadrado
dirigida ao Imperador Adriano", portanto do ano de 125/126 (cfr. Eusébio,
Hist. Eccles. 4,3 ), nada fala.
6. EPÍSTOLA DE BARNABÉ (entre os anos 96 e 130), embora apócrifa, nada
diz a respeito.
7. POLICARPO (69-155) nada tem em sua Epístola aos Filipenses.
8. O PASTOR, de Hermas, irmão de Pio, bispo de Roma, entre 141 e 155, e
citado por Paulo (Rom. 16:14). Em suas visões a igreja ocupa lugar de
destaque. Na visão 3ª, a torre, símbolo da igreja, é construída sobre as
águas, mas diz o Pastor a Hermas: "o fundamento sobre que assenta a torre
é a palavra do Nome onipotente e glorioso". Na Parábola 9,31, lemos que
foi dada ordem de "edificar a torre sobre a Rocha e a Porta". E o trecho
se estende sem a menor alusão ao texto que comentamos.
9. JUSTINO (+ ou - ano 150) cita, pela vez primeira, esse texto
(Diálogus, 100,4), mas com ele só se preocupa em provar a filiação divina
do Cristo.
10. IRINEU (bispo entre 180-190), em sua obra cita as mesmas palavras de
Justino, deduzindo delas a filiação divina do Cristo (3, 18, 4).
11. ORÍGENES (184-254) é, historicamente, o primeiro que afirma que Pedro
é a pedra fundamental da igreja (Hom. 5,4), embora mais tarde diga que
Jesus "fundou a igreja sobre os doze apóstolos, representados por Pedro"
(In Matt. 12,10-14). Só damos o resumo, porque o trecho é bastante longo.
12. TERTULIANO (160-220) escreve (Scorpiae, 10) que Jesus deu as chaves a
Pedro e, por seu intermédio, à igreja (Petro et per eum Ecclesiae): a
igreja é a depositária, Pedro é o Símbolo.
13. CIPRIANO (cerca 200-258) afirma (Epíst. 33,1) que Jesus, com essas
palavras, estabeleceu a igreja fundamentada nos bispos.
14. HILÁRIO (cerca 310-368) escreve (De Trinit. 3,36-37) que a igreja
está fundamentada na profissão de fé na divindade de Cristo (super hanc
igitur confessionis petram) e que essa fé tem as chaves do reino dos céus
(haec fides Ecclesiae fundamentum est...haec fides regni caelestis habet
claves).
15. AMBRÓSIO (337-397) escreve: "Pedro exerceu o primado da profissão de
fé e não da honra (prirnaturn confessionis útique, non honóris), o
primado da fé, não da hierarquia (primatum fídei, non órdinis)"; e logo a
seguir: "é pois a fé que é o fundamento da igreja, porque não é da carne
de Pedro, mas de sua fé que foi dito que as portas da morte não
prevalecerão contra ela" (De Incarnationis Dorninicae Sacramento, 32 e
34). No entanto, no De Fide, 4,56 e no De Virginitate, 105 – lemos que
Pedro, ao receber esse nome, foi designado pelo Cristo como fundamento da
igreja.
16. JOÃO CRISÓSTOMO (c. 345-407) explica que Pedro não deve seu nome a
seus milagres, mas à sua profissão de fé (Hom. 2, In Inscriptionem
Actorum, 6; Patrol. Graeca vol. 51, col. 86). E na Hom. 54,2 escreve que
Cristo declara que construirá sua igreja "sobre essa pedra", e acrescenta
"sobre essa profissão de fé".
17. JERÔNIMO (348-420) também apresenta duas opiniões. Ao escrever a
Dâmaso (Epist. 15) deseja captar-lhe a proteção e diz que a igreja "está
construída sobre a cátedra de Pedro". Mas no Comm. in Matt. (in loco)
explica que a pedra é Cristo" (in petram Christum); cfr. 1ª Cor 10:4 "e
essa pedra é Cristo".
18. AGOSTINHO (354-430) escreve: "eu disse alhures. falando de Pedro, que
a igreja foi construída sobre ele como sobre uma pedra: ... mas vejo que
muitas vezes depois (postea saepíssime) apliquei o super petram ao
Cristo, em quem Pedro confirmou sua fé; como se Pedro - assim o chamou a
Pedra" - representasse a igreja construída sobre a Pedra; ... com efeito,
não lhe foi dito "tu es Petra", mas "tu es Petrus". É o Cristo que é a
Pedra. Simão, por havê-lo confessado como o faz toda a igreja, foi
chamado Pedro. O leitor escolha qual dos dois sentidos é mais provável"
(Retractationes 1, 21, 1).
Entretanto, Agostinho identifica Pedro com a pedra no Psalmus contra
partem Donati, letra S; e na Enarratio in Psalmum 69, 4. Esses são os
locais a que se refere nas Retractationes.
Mas no Sermo 76, 1 escreve: "O apóstolo Pedro é o símbolo da igreja única
(Ecclesiae unicae typum); ... o Cristo é a pedra, e Pedro é o povo
cristão. O Cristo lhe diz: tu és Pedro e sobre a pedra que professaste,
sobre essa pedra que reconheceste, dizendo "Tu és o Cristo, o filho de
Deus vivo, eu construirei minha igreja; isto é, eu construirei minha
igreja sobre mim mesmo que sou o Filho de Deus. É sobre mim que eu te
estabelecerei, e não sobre ti que eu me estabelecerei. ... Sim, Pedro foi
estabelecido sobre a Pedra, e não a Pedra sobre Pedro".
Essa mesma doutrina aparece ainda em Sermo 244,1 (fim): Sermo 270,2:
Sermo 295,1 e 2; Tractatus in Joannem, 50,12; ibidem, 118,4 ibidem,
124,5: De Agone Christiano, 32; Enarratio in Psalmum 108,1.
Aí está o resultado das pesquisas sobre o texto tão discutido.
Concluiremos como Agostinho, linhas acima: o leitor escolha a opinião que
prefere.
O último versículo é comum aos três, embora com pequenas variantes na
forma:
Mateus: não dizer que Ele era o Cristo.
Marcos: não falar a respeito Dele.
Lucas: não dizer nada disso a ninguém.
Mas o sentido é o mesmo: qualquer divulgação a respeito do messianato
poderia sublevar uma perseguição das autoridades antes do tempo,
impedindo o término da tarefa prevista. (PASTORINO, 1964, pp. 32-38).
(Grifo do original).
É uma opinião de quem esteve do lado de lá, vamos assim dizer,
portanto, importante para o nosso estudo.
Voltando às nossas considerações, apresentamos uma dúvida: se
somente atribuíram o papado a Pedro, porque ele teria identificado a
Jesus com o Messias, qual cargo deveria ser dado aos envolvidos nestas
passagens?:
Mt 14,33: “Os que estavam na barca se ajoelharam diante de Jesus,
dizendo: 'De fato, tu és o Filho de Deus'".
Mc 3,11: “Vendo Jesus, os espíritos maus caíam a seus pés gritando: 'Tu
és o Filho de Deus!'".
Jo 11,24-27: “Marta ... respondeu: 'Sim, Senhor. Eu acredito que tu és o
Messias, o Filho de Deus que devia vir a este mundo'”.
Na seqüência da passagem de Mateus, lemos:
Mt 16,21-23: “E Jesus começou a mostrar aos seus discípulos que devia ir
a Jerusalém, e sofrer muito da parte dos anciãos, dos chefes dos
sacerdotes e dos doutores da Lei, e que devia ser morto e ressuscitar ao
terceiro dia. Então Pedro levou Jesus para um lado, e o repreendeu,
dizendo: 'Deus não permita tal coisa, Senhor! Que isso nunca te
aconteça!' Jesus, porém, voltou-se para Pedro, e disse: 'Fique longe de
mim, Satanás! Você é uma pedra de tropeço para mim, porque não pensa as
coisas de Deus, mas as coisas dos homens!'”.
Se Pedro é mesmo “a pedra”, então, devemos concluir que ele só
pode ter sido “pedra de tropeço” para Jesus, isto sim. Caso seja
verdadeiro o trecho da passagem (Mt 16,17-19), fica a interrogação: a
quem se poderia atribuir a palavra pedra? Vamos pesquisar.
Seria interessante que fôssemos ver a quem se poderia atribuir a
palavra “pedra”. Uma relação de importância que poderíamos fazer é que os
Dez Mandamentos foram escritos em “tábuas de pedra” (Dt 4,13),
significando, talvez, leis sólidas e duráveis.
Encontramos, também citações sobre “a pedra angular”, que seria:
Pedra Angular. Grande pedra que desempenhava importante papel na
construção antiga, assim chamada por ficar nos ângulos. O salmo 117,22
descreve Israel como pedra rejeitada, mas que, depois torna-se-ia a pedra
fundamental. Nisso, Israel era um tipo de Cristo que se apresentou como a
pedra rejeitada pelos construtores, mas depois escolhida por pedra
angular (Mt 21,42), aplicando a Si o salmo citado. S. Paulo em Ef. 2,20
usa a mesma metáfora da pedra angular para apresentar a Cristo, elemento
de união entre os fiéis, gentios e judeus, como a pedra angular que une
duas paredes do mesmo edifício. (Dicionário Prático - Barsa, p. 210).
Endentemos que então Cristo é a pedra angular. Realmente, ele
aplica a si mesmo isso, de acordo com Mateus (Mt 21,42), Marcos (Mc
12,10) e Lucas (Lc 20,17).
O próprio Pedro, que dizem ser a pedra, afirma que Jesus é a pedra
rejeitada (At 4,11; 1Pe 2,4). Paulo, também disse que “a pedra era
Cristo” , conforme poder-se-á ver em Rm 9,32; 1Cor 10,4 e Ef 2,20-21.
Vejamos o texto desse último passo: “Vocês pertencem ao edifício que tem
como alicerce os apóstolos e profetas; e o próprio Jesus Cristo é a pedra
principal dessa construção. Em Cristo, toda construção se ergue, bem
ajustada, para formar um templo santo no Senhor” (Ef 2,20-21). Aliás,
aqui Paulo inclui como alicerce os apóstolos, não sendo, portanto, coisa
exclusiva de Pedro.
Vejamos a opinião de dois eruditos biblicistas:
Voltemos, pois à primeira interpretação que diz que a pedra é Pedro. Há
multas variações dessa interpretação, das quais as seguintes são
representativas:
1. De acordo com a doutrina da Igreja Católica Romana, o texto ensina que
Pedro é a base ou fundamento da Igreja, separado dos demais apóstolos; e
assim aparece a primazia de Pedro, no que fica subentendida a doutrina do
papado. Portanto, a maior parte dos intérpretes católicos romanos, como
Launoi, Dupin, e também alguns protestantes, com alguma variação na
interpretação (Werenfels, Pfaff, Bengel e Crusius), apresentam essa
interpretação. Tais intérpretes exageram o sentido do texto como qualquer
leitor pode observar, se não for desviado por fortes preconceitos.
2. A “pedra” é Pedro, mas não separado dos outros apóstolos, e,
provavelmente, também não separado dos membros da Igreja em geral. Peter
Schaff (in loc., em Lange) diz: “Pedro (representando os outros
apóstolos), tendo confiado em Cristo e tendo-o confessado (devido a
isso), é a petra ecclesiae. As outras idéias parecem ter sido criadas
especialmente para evitar a interpretação duvidosa da Igreja romana, que
tira do texto doutrinas que não se desenvolveram senão alguns séculos
após ter sido feita a declaração simples deste texto. Entretanto, não é
necessário que se criem interpretações errôneas para evitar outras
errôneas. Ainda que esse texto cite Pedro como a pedra Fundamental da
Igreja, não ensina coisa alguma que não possa ser encontrada em outros
trechos bíblicos”. De conformidade com a leitura simples do texto, é
melhor aceitarmos a interpretação natural, entendendo aqui que Pedro é a
“petra”, mas no sentido que segue abaixo. Dificilmente o texto tem bom
sentido se apresentarmos outra interpretação. Por que Jesus chamou Simão
de petros, nesta oportunidade? Por que, no vs. 19, são mencionados
poderes extraordinários que seriam dados a Pedro? Facilmente, Jesus
poderia ter ensinado que Pedro é a pedra fundamental da Igreja, evitando
chamá-lo de “petros”; a referência como existe perde todo o sentido se
não a entendermos que Pedro seria a pedra fundamental da Igreja. É
verdade que no original grego há um jogo de palavras com esses vocábulos,
mas o sentido seria mais ou menos como esta paráfrase: “Tu és uma pedra,
um pequeno e insignificante fragmento, mas eu mostrarei que grande coisa
posso fazer de ti. Tu serás uma rocha maciça, rocha fundamental na minha
Igreja, brevemente começarei a edificar”. Os escritos rabinos usam
expressões como essas, isto é, indicam homens como pedras fundamentais da
congregação de Deus. Por exemplo, esses escritos asseveram que Deus não
pode edificar o seu mundo sobre o fundamento da geração de Enós, mas que
em Abraão o Senhor encontrou tal qualidade de fundamento. E neste texto
encontramos a mesma idéia.
Em confirmação dessa interpretação, consideremos os seguintes argumentos:
1. O uso da literatura rabínica, conforme já vimos.
2. O fato de que o jogo de palavras, no grego, realmente indica essa
interpretação e não a elimina.
3. No idioma falado por Jesus, o aramaico, a palavra que ele usou para
dar nome a Pedro era a mesma palavra que significa “pedra” ou fundamento
da Igreja.
4. As dentais interpretações existem principalmente para combater idéias
consideradas falsas da Igreja Católica Romana; mas não se baseiam no
próprio texto bíblico.
5. A mesma verdade é ensinada em Efé. 2:20: “Edificados sobre o
fundamento dos apóstolos e profetas, sendo ele mesmo, Cristo Jesus, a
pedra angular”. O texto mostra que esse edifício é a Igreja, a habitação
de Deus no Espírito, a “família” de Deus (vs. 19). E a passagem de Apo.
21:14 indica a mesma idéia.
6. O testemunho do próprio Pedro, em I Ped. 2:4-6, também indica a mesma
verdade: “Chegando-vos para ele, a pedra que vive...vós mesmos, como
pedras que vivem, sois edificados casa espiritual...ponho em Silo uma
principal pedra angular...”. A pedra principal, angular é o símbolo de
Cristo. Dificilmente a pedra angular pode conter uma referência ao
fundamento inteiro.
7. Em sentido exclusivo, somente Cristo pode ser o fundamento de Igreja,
e isso é o que se aprende em I Cor. 3:11, que diz: “Porque ninguém pode
lançar outro fundamento, além do que foi posto, o qual é Jesus Cristo”. O
vs. 10 do mesmo capítulo mostra que o tema é Cristo como alicerce da vida
cristã: “...segundo a graça de Deus que me foi dada, lancei o fundamento
como prudente construtor; e outro edifica sobre ele; porém cada um veja
como edifica... Contudo, se o que alguém edifica sobre o fundamento é
ouro, prata, pedras preciosas, madeira, feno, palha...” Essas coisas
falam da vida cristã como que edificada sobre Cristo, em torno de sua
pessoa, e, naturalmente, não pode haver outro fundamento nesse sentido.
Porém, nos textos de Mat. 16 e de Efé. 2 (juntamente com outros), não
está em foco essa questão, porquanto falam do grande edifício da Igreja.
Esse edifício, habitação de Deus, tem algumas pedras fundamentais, a
saber, os apóstolos, os profetas - todos os quais são como que pedras
vivas. Nesse edifício Cristo é a pedra fundamental, angular.
8. Precisamos notar que aquilo que foi dito acerca de Pedro em Mat. cap.
16, foi estendido aos demais Apóstolos em Efé. 2:20, pelo que o texto de
Mateus 16 não subentende a primazia permanente de Pedro, segundo ensina a
Igreja Católica Romana. Dificilmente, portanto, há qualquer possibilidade
de apoio às doutrinas romanistas sobre o papado. Essa interpretação
romanista exagera o texto sagrado. Pedro, como pedra fundamental da
Igreja, recebeu certos poderes de oficio. Na administração de seu oficio,
tinha o poder de “proibir e permitir”, conforme mostra o vs. 19. Mais
tarde, esses poderes também foram dados aos outros apóstolos. Os demais
apóstolos, tendo esses poderes em comum, também eram pedras fundamentais
de Igreja (Efé. 2:20).
9. Pedro, no que diz respeito à porção judaica da Igreja, era fundamental
no edifício da mesma, como se pode ver em Atos l:15; 2:14,37; 3:12; 4:8;
5:15,29; 9:34,40; 10:25,26; Gil. 1:18. Ele é a pedra fundamental no
sentido bíblico, e não no sentido papista. Para transferir para Pedro ou
para qualquer outro individuo as idéias de primazia e papado precisamos
usar de grande preconceito, Imaginação e ginástica lógica. Os privilégios
e poderes que Jesus deu aqui a Pedro, posteriormente, foram conferidos
também a todos os outros apóstolos, e até mesmo aos crentes comuns, como
nos indica a referência em Mat. 18:17-19. Não há, nem nas Escrituras e
nem na história eclesiástica, evidências que indiquem que, na Igreja
primitiva, houvesse papado, oficio esse transferível a outros que também
exercessem a autoridade e a posição que Jesus conferiu a Pedro. Esses
ensinos procedem da tradição, e não das Escrituras. Contra essa
interpretação romanista alinham-se os seguintes argumentos:
1. A doutrina do papado ignora o caráter do símbolo do fundamento, isto
é, um fundamento deve ser posto de uma vez só, deve ser permanente, não
pode ser renovado nem mudado continuamente, como sucede na sucessão
papal.
2. Essa interpretação confunde primazia de tempo com superioridade
permanente de oficio.
3. Essa interpretação confunde o apostolado, que era um oficio
intransferível, válido somente no tempo de Jesus, com o desenvolvimento
do episcopado pós-apostólico na Igreja, que só surgiu depois do tempo dos
apóstolos.
4. Essa interpretação envolve o não reconhecimento do oficio dos outros
apóstolos, os quais também receberam os poderes e privilégios que foram
dados a Pedro naquela ocasião. Eles também foram fundamentos da Igreja,
Isto é, formaram o alicerce da Igreja (ver Efé. 2:20).
5. Essa interpretação contradiz os próprios escritos de Pedro (I Ped.
2:5,6), que são contrários à idéia de um tipo de papado e que jamais
podem Indicar a existência de tal coisa.
6. Finalmente, podemos afirmar que essas doutrinas, como a do papado, a
da extrema primazia de Pedro, só apareceram no dogma posterior da
história eclesiástica, e não se alicerçam nas próprias Escrituras nem em
qualquer precedente da Igreja primitiva. Não havia primazia do bispo de
Roma sobre o bispo de Jerusalém, de Cesaréia ou de qualquer outra
localidade. A primazia do bispo de Roma foi um desenvolvimento
posterior.(CHAMPLIN e BENTES, 1995, pp. 833-834).
Então Pedro não pode ser a base da Igreja de Cristo. Aliás, quem
poderia ser? Se formos seguir estritamente o que consta do NT, poderemos
dizer que Paulo seria um bom candidato, porquanto ele foi o “vaso
escolhido” por Jesus (At 9,15) ou, quem sabe, João, “o discípulo a quem
Jesus amava” (Jo 13,23; 19,26; 20,2; 21,7; 21,20)? Mas será que Pedro não
tinha nenhum lugar de destaque? Vamos ver isso posteriormente, mas por
agora veremos se seu perfil lhe dava proeminência sobre os outros
discípulos. Perguntamos: Será que pelo perfil de Pedro nós poderemos
dizer que ele foi o primeiro papa? Vejamos a seguir.
Pelas informações de Mateus, Marcos e Lucas, ele era um pescador,
juntamente com André, seu irmão, eram sócios de Tiago e João, com os
quais dividiam as tarefas de pesca. Sua condição era de iletrado e sem
posição social (At 4,13), o que não deverá ser objeto de discriminação,
sob qualquer um dos aspectos.
Nos relatos do Evangelho, percebemos um Pedro falante, sempre
questionando a Jesus sobre alguns pontos duvidosos.
Se foi falante, também foi “vacilante”, pois Jesus, ao convidá-lo
para andar sobre as águas, ele não conseguiu, porquanto não confiou no
Mestre (Mt 14,25-32).
Quando Jesus, no Getsêmani, passava por momentos cruciais, pois
breve iria ser crucificado, Pedro e os outros dois discípulos, Tiago e
João, dormiam, ao que o Mestre disse: "Simão, você está dormindo? Você
não pôde vigiar nem sequer uma hora?” (Mc 14,37).
Cobrou alguma recompensa de Jesus pelo fato de seguí-lo (Mt 19,27;
Lc 18,28).
João é o único que fala que Pedro teria tirado uma espada para
defender Jesus, quando de sua prisão (Jo 18,10). Mas, pouco tempo depois,
apesar da advertência do Mestre, ele o nega por três vezes (Mt 26,69-75),
embora tenha dito que morreria com ele (Mt 26,35).
No livro de Atos ele aparece até o “Concílio de Jerusalém”, no ano
de 49. Depois disso ele desaparece do mapa, como se diz popularmente. Sua
participação neste “Concílio” será examinada mais à frente.
Não viajou tanto quanto Paulo, que, em três viagens, visitou
trinta e duas cidades, mas pelo que se depreende das narrativas, esteve
nas seguintes cidades ou regiões: Jerusalém (At 11,2; 15,4); Samaria (At
8,14); Lida (At 9,32) Jope (At 9,43); Cesaréia (At 10,23); Antioquia
(13,1). Admite-se que a sua primeira carta foi escrita em Roma (1Pe
5,13), supondo-se que a citação da Igreja de Babilônia se refira a ela,
isso por volta de 63.
Foi preso por Herodes Agripa I, e solto “milagrosamente” por um
anjo, isso aconteceu, provavelmente, no ano de 42 (At 12).
Como vimos anteriormente, suas cartas são em número muito pequeno
em relação às de Paulo. No ano de 58, o Apóstolo dos Gentios escreve sua
epístola aos romanos, fato que nos causa estranheza, diante da alegação
de que Pedro, a essa época, já morava em Roma, se nessa carta ele não faz
a mínima menção ao suposto primeiro papa. Ademais era de se esperar que
Pedro desse as orientações aos romanos, caso fosse mesmo o papa.
Inclusive, nessa epístola, Paulo chega a afirmar que “Fiz questão de
anunciar o Evangelho onde o nome de Cristo ainda não havia sido
anunciado, a fim de não construir sobre alicerces que outro havia
colocado” (Rm 15,20).
Paulo foi preso por volta de 57-59, sendo, posteriormente, enviado
a Roma (60-61), onde esteve em prisão domiciliar, mas livre para receber
visitas; entretanto, não se tem notícias de que “o nosso primeiro papa” o
tenha visitado. Por que não se comportou como a família de Onesíforo,
citada por Paulo: “... todos os da Ásia me abandonaram, e entre eles
Figelo e Hermógenes. Que o Senhor conceda misericórdia à família de
Onesíforo, porque ele muitas vezes me confortou e não se envergonhou de
eu estar preso; ao contrário, quando chegou a Roma, ele me procurou com
insistência, até me encontrar. Que o Senhor lhe conceda misericórdia
junto a Deus naquele Dia...” (2Tm 1,15-18)?
Sobre essa questão, dize-nos o teólogo Rohden (1893-1981):
No ano 60 ou 61 chega São Paulo a Roma como prisioneiro, e passa
dois anos na capital do Império, com permissão da polícia romana de
receber visitas. De fato, numerosos cristãos o visitam. Estabelece-se
vivo intercâmbio de correspondência entre o “prisioneiro de Cristo” em
Roma e as numerosas Igrejas cristãs da Ásia Menor e do sul da Europa por
ele fundadas. Paulo, na prisão, escreve diversas cartas, aos cristãos de
Filipos, de Éfeso, de Colossos, a seu amigo Filêmon, mencionando os nomes
de seus colaboradores e amigos em Roma – e mais uma vez, nenhuma
referência a Pedro, que, por esse tempo, já devia ser bispo de Roma há
quase vinte anos, segundo a teoria dos teólogos romanos de hoje. Por que
não visita Pedro, o grande confessor de Cristo na prisão? A resposta é
simples, embora nada “romana”: porque Pedro não estava em Roma, nem era
conhecido dos cristãos da capital do Império. (ROHDEN, 1995, p. 99).
Se, por um acaso, Pedro estivesse mesmo vivendo em Roma, apesar de
não existir nenhuma prova disso, o motivo de não ter visitado Paulo não
pode ser outro, senão que ele se acovardou, igual a quando da ocasião da
prisão de Jesus, ele o nega por três vezes.
Logo que chegou a Roma, Paulo convocou uma reunião com os
principais dos judeus, conforme citado no passo:
At 28,16-17: “E, logo que chegamos a Roma, o centurião entregou os presos
ao general dos exércitos; mas a Paulo se lhe permitiu morar sobre si à
parte, com o soldado que o guardava. E aconteceu, que, três dias depois,
Paulo convocou os principais dos judeus, e, junto eles, lhes disse:
'Varões irmãos, não havendo eu feito nada contra o povo, ou contra os
ritos paternos, vim, contudo, preso desde Jerusalém, entregue nas mãos
dos romanos;'”.
Com isso fica provado que Paulo, apesar de preso, mas em prisão
domiciliar, recebia normalmente visitas, conseguiu até convocar os
principais dos judeus para uma reunião a fim de lhes explicar o que havia
acontecido. O nome de Pedro, o suposto papa, sequer é citado, então, a
afirmação de Rohden é exata, Pedro realmente não estava em Roma.
Segundo a tradição, Pedro morreu em Roma, no ano de 64,
provavelmente vítima da perseguição de Nero, foi crucificado de cabeça
para baixo, mas por que não aconteceu a ele, o mesmo que a Paulo? Veja:
“Na noite seguinte, o Senhor aproximou-se de Paulo e lhe disse: 'Tenha
confiança. Assim como você deu testemunho de mim em Jerusalém, é preciso
que também dê testemunho em Roma'" (At 23,11), fato que coloca Paulo, um
subordinado, recebendo uma orientação direta de Jesus, o que não
aconteceu com o suposto papa.
E já que mencionamos suas cartas, seria útil analisá-las.
É sabido que, no Novo Testamento, existem duas cartas atribuídas a
Pedro, o papa, pela ordem, número um. Considerando que um líder deveria
estar sempre em contato com aqueles que lhe são subordinados, essa
quantidade de cartas é extremamente insignificante, especialmente se
levarmos em conta que existem treze cartas, cuja autoria é atribuída a
Paulo, ou seja, Paulo subordinado a Pedro escreve mais carta que ele.
Entretanto, as coisas não são tão simples assim, pois sobre a
autoria dessas cartas “há controvérsias”. É o que veremos das explicações
que nos dão sobre elas.
A primeira de Pedro é uma carta escrita em estilo tão semelhante ao
de São Paulo, que se supõe redigida por Silvano, discípulo de Paulo, que
se tornara colaborador de Pedro, e que é mencionado nesta carta, no cap.
5,12. [...]
A segunda de Pedro, que parece ter sido redigida por outro
secretário que o da primeira, aproxima-se muito estritamente da epístola
de JUDAS. [...] (Bíblia Sagrada – Ed. Ave Maria, p. 47). (Grifo nosso).
Realmente, quem lê a primeira carta de Pedro tem aquela impressão
de que “já leu isso antes”. É fácil, encontrarmos em Paulo a semelhança
entre elas. Justificar isso por conta de que foi redigida por um
discípulo de Paulo, Silvano, que se tornara colaborador de Pedro, não
resolve a questão, pois aí teremos que admitir que esse escritor colocou
os pensamentos de Paulo e não de Pedro, o que nos fará voltar à estaca
zero.
Quanto à segunda carta, afirmam aproximar-se muito da epístola de
Judas. Como àquela época pessoas copiavam as cartas e mudando o nome do
autor, para distribuí-las junto a comunidades cristãs, fica difícil
aceitar pacificamente que essas duas cartas são de autorias de Pedro.
Veja o que diz o renomado teólogo Ehrman:
Por exemplo, Orígenes, um padre da Igreja do século III, uma vez
registrou a seguinte queixa acerca das cópias dos Evangelhos de que
dispunha:
As diferenças entre os manuscritos se tornaram gritantes, ou pela
negligência de algum copista ou pela audácia perversa de outros; ou eles
descuidam de verificar o que transcrevem ou, no processo de verificação,
acrescentam ou apagam trechos, como mais lhes agrade” (EHRMAN, 2006, p.
62).
[...] Copistas associados à tradição ortodoxa muito freqüentemente
alteravam os textos, às vezes, para eliminar a possibilidade de serem
“mal usados” por cristãos que afirmavam crenças heréticas, outras, para
torná-los mais adequados às doutrinas esposadas pelos cristãos de seu
próprio grupo. (EHRMAN, 2006, p. 63).
O que será que não fizeram com as cartas de Pedro? Se não houver
nenhuma, como justificariam sua condição de líder máximo dos cristãos
daquela época?
Temos duas cartas, cujo autor se declara ser o apóstolo Pedro (cf.
1 e 2Ped 1,1-2). Quanto à 1ª Carta, todos os críticos estão de acordo ser
ela do Pescador da Galiléia, ainda que o seu redator foi Silvano (cf.
1Ped 5,12). Pedro não devia dominar muito o grego. Não admira, pois, que
recorresse ao uso freqüente de servir-se de um secretário. Mas esta 1ª
Carta de Pedro vai ainda mais além. É um espelho da pregação pascalbatismal e da catequese da Igreja de Roma, onde foi escrita (cf. 1Ped
5,13 nota). [...]
Quanto à 2ª Carta, ainda que se apresente como da autoria de Pedro
(cf. 1,1), já desde tempos antigos se discute acerca do seu verdadeiro
autor. Com efeito, ela parece ter sido escrita numa época tardia, depois
da destruição de Jerusalém, quando muitos cristãos começavam a perder as
esperanças na 2ª Vinda de Cristo (cf. 2Ped 1,19-21 nota; 3,1-16; 3,4
nota). A primeira geração cristã já tinha morrido. Os nossos pais
morreram (2Ped 3,4), e já existia uma coleção das cartas paulinas, que
alguns interpretavam a seu gosto (3,15-16 nota). Tudo isto dá a entender
que a carta foi escrita depois da morte de Pedro, que a tradição situa no
ano 67. O autor da carta deve ter sido um dos seus discípulos romanos,
que, adotando um uso muito corrente, se cobriu com o nome do seu mestre.
O problema não está de todo resolvido, mas esta é a opinião mais comum.
Apesar disso, a carta é inspirada, pertence aos escritos sagrados do NT.
E, portanto, Palavra de Deus. (Bíblia Sagrada – Ed. Santuário, p. 1798).
(Grifo nosso).
Ainda estamos na dúvida se a primeira carta não foi escrita apenas
para tentar provar que Pedro vivia em Roma, considerada a cidade sede do
papado. Em relação à segunda, a observação coloca em xeque-mate a sua
autoria como sendo de Pedro.
Duas epístolas católicas se apresentam como escritas por são Pedro.
A primeira, que traz no endereço o nome do príncipe dos apóstolos (1,1),
foi recebida sem contestação desde os primórdios da Igreja; citada
provavelmente por Clemente de Roma e certamente por Policarpo, é
atribuída explicitamente a são Pedro a partir de Ireneu. O apóstolo
escreve de Roma (Babilônia 5,13), onde se encontra em companhia de
Marcos, que chama de “seu filho”. Embora sejam muito poucas as
informações que temos a respeito do fim de sua vida, uma tradição muito
segura afirma, com efeito, que ele se transferiu para a capital do
império, onde morreu mártir no tempo de Nero (em 64 ou 67?). Escreve aos
cristãos “da Diáspora”, especificando os nomes de cinco províncias (1,1),
que representam praticamente o conjunto da Ásia Menor. O que diz do
passado deles (1,14.18; 2,9s; 4,3) sugere que são convertidos do
paganismo, embora não se exclua a presença de judeu-cristãos entre eles.
É por isso que lhes escreve em grego; e, se este grego, simples, mas
correto e harmonioso, parece de qualidade boa demais para o pescador
galileu, conhecemos o nome do discípulo secretário que pode tê-lo
assistido na redação: Silvano (5,12), comumente identificado com o antigo
companheiro de são Paulo (At 15,22+).
[...]
Outra dificuldade levantada contra a autenticidade da epístola é o
uso considerável que parece fazer de outros escritos do NT, sobretudo de
Tg, Rm e Ef; fato tanto mais surpreendente, porque o Evangelho parece
pouco utilizado. Mas as reminiscências evangélicas são numerosas, apesar
de permanecerem discretas; se fossem mais destacadas, não faltaria quem
dissesse que algum pseudônimo tentou desta forma fazer-se passar por
Pedro. Quanto aos contatos com Tiago e Paulo, não se deve exagerar. Não
aparece na epístola nenhum dos temas especificamente paulinos (valor
transitório da Lei judaica, Corpo de Cristo etc.). E muitos dos que são
considerados também como “paulinos”, porque nos são conhecidos, sobretudo
através das epístolas de Paulo, de fato são apenas patrimônio comum da
primeira teologia cristã (valor redentor da morte de Cristo, fé e batismo
etc.). Os trabalhos da crítica reconhecem sempre mais a existência de
formulários de catequeses primitivas, de florilégios de textos do AT, que
podem ter sido utilizados paralelamente pelos diversos escritos em
questão, sem que tenha havido entre eles dependência direta. Se, apesar
disso, resta certo número de casos nos quais 1Pd parece de fato ter-se
inspirado em Rm ou Ef, podemos admiti-lo sem rejeitar a autenticidade;
são Pedro não possuía a envergadura teológica de são Paulo e pode muito
bem ter recorrido aos escritos deste último, sobretudo ao dirigir-se,
como neste caso, a círculos de influência paulina. Além disso, não se
deve esquecer que seu secretário Silvano era discípulo de ambos os
apóstolos. Enfim, é justo assinalar, ao lado destas afinidades com os
escritos paulinos, as semelhanças que certos intérpretes julgam ter
descoberto entre 1Pd e outros escritos de cunho petrino, tais como o
segundo evangelho ou os discursos de Pedro nos Atos.
A carta deve ser anterior à morte de Pedro (64 ou 67), mas talvez
só alguns anos mais tarde é que Silvano a deu por terminada, segundo as
diretrizes de Pedro e sob a sua autoridade. Isto seria até mesmo
provável, se se constatasse que a epístola é compósita, combinando
fragmentos diversos, entre os quais uma homilia de origem batismal (1,134,11). Mas essas distinções não conseguem ultrapassar o nível da
conjetura.
[...]
Não há dúvida de que também a segunda epístola se apresenta como
sendo de são Pedro. Não apenas no endereço (1,1) o apóstolo põe seu nome,
mas ainda alude ao anúncio de Jesus a respeito de sua morte (1,14), e
afirma ter sido testemunha da transfiguração (1,1 6-18). Enfim, faz
alusão a uma primeira carta (3,1), que deve ser 1Pd.
Se escreve segunda vez aos mesmos leitores, é com dupla finalidade:
pô-los de sobreaviso contra os falsos doutores (2) e responder à
inquietação causada pela demora da parusia (3). Rigorosamente falando,
podemos imaginar estes falsos doutores e esta inquietação desde o fim da
vida de são Pedro. Mas há outras considerações que põem em dúvida a
autenticidade e sugerem data mais tardia. A linguagem apresenta notáveis
diferenças em relação a 1Pd. Todo o cap. 2 é retomado, livre, mas
patente, da epístola de Judas. A coleção das epístolas de Paulo parece já
formada (3,15s). O grupo apostólico é posto em paralelo com o grupo
profético, e o autor fala como se não fizesse parte deles (3,2). Estas
dificuldades autorizam certas dúvidas que surgiram desde a antigüidade.
Não apenas o uso da epístola não é atestado com certeza antes do séc.
III, mas também alguns a rejeitavam, como o testemunham Orígenes, Eusébio
e Jerônimo. Além disso, muitos críticos modernos recusam-se, por sua vez,
a atribuí-la a são Pedro, e é difícil não lhes dar razão. Mas se um
discípulo posterior se valeu da autoridade de Pedro, pode ser que tivesse
algum direito de o fazer; talvez porque pertencesse aos círculos que
dependiam do apóstolo, ou então porque utilizasse escrito proveniente
dele e o adaptasse e completasse com o auxílio de Jd. Isso não equivale
necessariamente a cometer falsificação, pois os antigos tinham idéias
diferentes das nossas sobre a propriedade literária e a legitimidade da
pseudonímia. (Bíblia de Jerusalém, pp. 2104-2105).
Seguem as dúvidas, nada é preciso, poucas são as informações
disponíveis, deixando tudo em aberto para as suposições.
Autor
Na saudação, o autor se apresenta como “Pedro, apóstolo de Jesus
Cristo”; no final diz que escreve da Babilônia, denominação intencional
de Roma. Ao longo da carta se apresenta como ancião, testemunha ocular da
paixão e glória de Cristo (5,1); cita, embora não verbalmente,
ensinamentos de Cristo. A tradição antiga aceitou o dado desde muito
cedo: 2Pd 3,1, Policarpo, Clemente.
Essa segurança diminuiu ante as objeções da crítica. Vamos repassálas com as correspondentes respostas. Antes de tudo, a linguagem e estilo
gregos impróprios do pescador galileu. Responde-se que Silvano (5,12)
redigiu o texto e não escreveu só o que era ditado. A carta cita o AT na
versão dos Setenta, não em hebraico, e o tece suavemente com seu
pensamento. Responde-se que os destinatários falavam ou conheciam o
grego. Faltam as lembranças pessoais de um companheiro íntimo de Jesus.
Responde-se que a pessoa de Jesus Cristo está presente e domina a carta,
seus ensinamentos ressoam já assimilados: comparar 1,13 com Lc 12,35;
2,12 com Mt 5,16; 3,9 com Mt 5,44; 3,14 com Mt 5,10; 4,14 com Lc 6,22. O
autor conheceu cartas de Paulo, inclusive Efésios (que é posterior).
Responde-se que uns paralelos são pouco convincentes, outros são tirados
de um fundo litúrgico ou da pregação oral, O nome de “Babilônia” não foi
aplicado a Roma antes do ano 70. Responde-se que o AT conhece o uso
emblemático de Babel como poder hostil, e a hostilidade romana não
começou, mas culminou em 70. A perseguição referida (cf 4,12) e a
declaração “ser cristão é crime” começaram no tempo de Domiciano (81-96).
Responde-se que já Nero perseguiu os cristãos e houve outras perseguições
locais. A função de “anciãos” na comunidade é posterior. Responde-se que
Atos documenta o fato como mais antigo e é uma simples transposição do
uso judaico. É irrazoável que escreva a igrejas da Ásia que não havia
fundado nem visitado, e onde a perseguição não chegava. Responde- se que
os cristãos tiveram de sofrer em toda parte.
O balanço da argumentação deixa a solução indefinida, e os
comentaristas se dividem em dois grupos: a) O autor é Pedro, ancião e,
talvez, prisioneiro, próximo da morte; escreve uma espécie de testamento,
cordial, muito sentido. Seu tema principal é a necessidade e o valor da
paixão do cristão, a exemplo de Cristo e em união com Ele. Confia a
redação a Silvano. b) A carta é pseudônima. O autor é um desconhecido do
círculo de Pedro, que em tempos difíceis quer animar outros fiéis, e para
isso se vale do nome de Pedro. Alguns traços hábeis lhe servem para
tornar verossímil a ficção.
Os destinatários eram pagãos convertidos, como mostram as
referências de 1,14.18 e 4,3.
Data
Se é Pedro, teve de ser antes de 67, data limite do seu martírio.
Se é um discípulo de outra geração, seria durante a perseguição de
Domiciano (95-96). (Bíblia do Peregrino, p. 2903). (Grifo nosso).
Esses comentários são interessantes, porquanto coloca os dois
lados da moeda, deixando o leitor informado das dificuldades em tê-la ou
não como uma carta autêntica de Pedro.
PRIMEIRA EPISTOLA DE SÃO PEDRO
O autor da epístola se apresenta como “Pedro, apóstolo de Jesus
Cristo” (1,1), “testemunha dos sofrimentos de Cristo” (5,1). Os Santos
Padres confirmam unanimemente esta autoria. Ultimamente alguns
especialistas negam que Pedro seja o autor em razão da linguagem grega
elegante, da teologia paulina, do aparente desconhecimento da vida de
Jesus e do ambiente tardio que parece refletir. Os argumentos levantados
contra a autenticidade, embora não sejam decisivos, colocam seriamente em
dúvida a autoria petrina da epístola. É possível, contudo, que Pedro
tenha escrito “por meio de Silvano” (5,12), nome latino de Silas (cf. At
15,22.40; 18,5; 2Cor 1,19). Sendo autêntica, a epístola foi escrita em
Roma (cf. 5,13) entre 64-67, antes da morte do apóstolo. Não sendo
autêntica, poderá ter sido escrita entre 70 e 110 d.C.
[...]
SEGUNDA EPISTOLA DE SÃO PEDRO
O autor se identifica como “Simão Pedro” (1,1) e “testemunha” de
Cristo (1,16-18). Mas, ao contrário da 1Pd que foi logo aceita como
autêntica e canônica, sobre a 2Pd já na Igreja antiga pairaram dúvidas
devido à grande diferença de linguagem entre as duas epístolas. A tardia
aceitação da epístola pelas igrejas orientais e ocidentais (séc. V/VI) e
a sua dependência da epístola de Judas, composta após a morte de S.
Pedro, levou a maioria dos exegetas a negar a autenticidade da 2Pd.
O autor é um cristão de origem judaica (1,16; 2,1.18), bom
helenista, mas distinto do autor da 1Pd, pois a linguagem e o gênero
literário são diferentes. A carta foi escrita entre os anos 70 e 125 d.C.
Os leitores da carta são os mesmos da 1Pd, pertencentes às comunidades da
Ásia Menor e todos eles cristãos (1,1). Os hereges combatidos parecem ser
os mesmos visados pela epístola de Judas: gnósticos libertinos que, a
pretexto de possuírem o Espírito, desprezam as leis morais (2,1—3,3) e
negam a parusia (3,4-10).
O autor apresenta o seu escrito como um testamento espiritual de
Pedro (cf. 1,13-15): cônscio de sua morte por revelação divina (1,14), o
apóstolo recorda os ensinamentos do passado (1,12s; 3,1) e as razões para
neles acreditar (1,16-21; 3,2s); anuncia a vinda próxima de propagadores
do erro (2,1-21; 3,3s), contra os quais adverte os leitores por escrito
(1,15). Contra tais erros é necessário ser fiel à palavra apostólica
(3,15s) e profética, produzidas pelo Espírito Santo (1,12-21). (Bíblia
Sagrada – Vozes, pp. 1435 e 1439-1440).
Vê-se que quase todas as explicações dão-nos conta da dúvida a
respeito da autoria, umas são taxativas quanto a isso, outras saem pela
linha do “provavelmente”, sem darem uma posição definitiva, talvez, seja
por falta de dados, mas poderá também ser a fim de se manter a crença na
Bíblia como um livro totalmente inspirado.
Leiamos o que Rohden (1893-1981) coloca:
Quando alguém é eleito presidente da República, é de supor que ele
tenha conhecimento desse fato. Se o apóstolo Pedro foi de fato nomeado
por Jesus chefe supremo da Igreja, é de crer que ele tenha tido ciência
disso. Vejamos se isso acontece. Temos do apóstolo Pedro duas cartas que
fazem parte do Novo Testamento. Peço aos meus leitores que examinem
cuidadosamente essas cartas do “primeiro papa”, escritas cerca de vinte
anos após sua pretensa nomeação. Não há nesses documentos o mais ligeiro
vestígio que denote supremacia pontifícia. O autor considera-se cristão
entre cristãos, fala como irmão a irmãos, igual a iguais. Não dá ordens,
preceitos, mandamentos de superior a inferiores. Pedro ignora
evidentemente a dignidade que, a partir do século quarto, lhe foi
atribuída por alguns historiadores eclesiásticos interessados em
centralizar o governo da Igreja na capital do Império Romano. Numa dessas
cartas, diz o autor que a escreveu em “Babilônia”. (ROHDEN, 1995, p. 97).
Fica aí mais uma judiciosa observação de Rohden.
Mas que ironia, pois sendo verdadeira a primeira carta de Pedro,
então temos nela essa colocação deveras interessante:
1Pe 5,1-4: “Exorto aos presbíteros que estão entre vós, presbítero eu
como eles, testemunha dos sofrimentos de Cristo e participante da glória
que há de se revelar. Apascentai o rebanho de Deus que vos foi confiado,
cuidando dele, não obrigados, mas de boa vontade, segundo Deus, nem por
lucro sórdido mas com prontidão de ânimo, não como tiranos, que dominam
sobre seu quinhão, mas como modelos para o rebanho. Assim, ao aparecer o
Pastor Soberano, recebereis a coroa imarcescível da glória.”
Aqui Pedro o suposto papa, se coloca em igualdade de condições com
os presbíteros, os chefes das comunidades cristãs da época. Alias, as
recomendações dele seriam muito bem-vindas aos tempos atuais, diante do
que vemos alguns líderes fazerem por aí.
Agora sim, vamos buscar responder a pergunta que fizemos
anteriormente: Mas será que Pedro não tinha nenhum lugar de destaque?
Na época em que Jesus estava vivo, Pedro, Tiago e João, sempre
estavam ao seu lado nos acontecimentos importantes, como por exemplo, em
sua transfiguração no Monte Tabor, quando da materialização dos espíritos
Moisés e Elias (Mt 17,1-9; Mc 9,2-10; Lc 9,28-36); quando da ressurreição
da filha de Jairo (Mc 5,37; Lc 8,51), que, segundo nos parece, foram os
doadores das energias necessárias à produção de tais eventos. E ainda,
diante do Getsêmani, eles, embora dormindo, estavam junto ao Mestre.
Foram os primeiros discípulos a serem escolhidos por Jesus, e isso,
certamente, os deixava com certo “poder de liderança” sobre os demais.
Só encontramos algo semelhante em Paulo, leiamos:
Gl 2,1-9: “Em seguida, quatorze anos mais tarde, subi novamente a
Jerusalém com Barnabé, tendo tomado comigo também Tito. Subi em virtude
de uma revelação e expus-lhes – em forma reservada aos notáveis – o
evangelho que proclamo entre os gentios, a fim de não correr, nem ter
corrido em vão. ... E por parte dos que eram tidos por notáveis – o que
na realidade eles fossem não me interessa: Deus não faz acepção de
pessoas – de qualquer forma, os notáveis nada me acrescentaram. Pelo
contrário, vendo que a mim fora confiado o evangelho dos incircuncisos
como a Pedro o dos circuncisos – pois aquele que operava em Pedro para a
missão dos circuncisos operou também em mim em favor dos gentios – e
conhecendo a graça em mim concedida, Tiago, Cefas e João, os notáveis
tidos como colunas, estenderam-nos a mão, a mim e a Barnabé, em sinal de
comunhão: nós pregaríamos aos gentios e eles aos da Circuncisão”.
Aqui vemos a participação de Pedro (Cefas) como um dos notáveis,
ou seja, como um dos principais da comunidade cristã da época. Paulo
falando deles diz que o que eles fossem não lhe interessava. Mas é muito
curioso, pois prova que não havia papa, mas que três pessoas exerciam a
liderança do movimento cristão, com a particularidade do nome de Tiago,
ter sido citado em primeiro lugar, esse sim, quem sabe, não seria ele a
quem se poderia chamar de primeiro papa?
Em Atos, o próprio Pedro falou que ele havia sido escolhido para
levar o evangelho aos gentios (At 15,7). Será que Pedro demonstrou
incompetência nisso, pois segundo Gl 2,9, quem pregava aos gentios era
Paulo e não Pedro, cuja tarefa ficou sendo a de pregar aos judeus (aos da
circuncisão).
E, na seqüência, desse passo de Paulo, vamos ver mais uma
curiosidade:
Gl 2,11-14: “Mas quando Cefas veio a Antioquia, eu o enfrentei
abertamente, porque ele se tornara digno de censura. Com efeito, antes de
chegarem alguns vindos da parte de Tiago, ele comia com os gentios, mas,
quando chegaram, ele se subtraía e andava retraído, com medo dos
circuncisos. Os outros judeus começaram também a fingir junto com ele, a
tal ponto que até Barnabé se deixou levar pela sua hipocrisia. Mas quando
vi que não andavam retamente segundo a verdade do evangelho, eu disse a
Pedro diante de todos: se tu, sendo judeu, vives à maneira dos gentios e
não dos judeus, por que forças os gentios a viverem como judeus?”.
Se Pedro fosse mesmo o primeiro papa, aqui o teríamos numa
situação bastante constrangedora, quando leva um tremendo sabão de Paulo,
um subordinado. E pior, foi incriminado de agir com hipocrisia. Para um
notável tudo bem, mas se ele fosse mesmo o papa, seria muito estranha a
advertência de Paulo. Além disso, se não andava retamente segundo a
verdade do evangelho, conforme o acusa Paulo, com que autoridade iria
pregá-lo? E se aqui percebemos alguém exercendo alguma autoridade,
certamente, é Tiago, pois no texto diz-se que ele enviou algumas pessoas
a Antioquia, coisa própria de um líder.
Em outras ocasiões, também, não se percebe nenhuma liderança de
Pedro:
At 6,1-5: “Naqueles dias, o número dos discípulos tinha aumentado, e os
fiéis de origem grega começaram a queixar-se contra os fiéis de origem
hebraica. Os de origem grega diziam que suas viúvas eram deixadas de lado
no atendimento diário. Então os Doze convocaram uma assembléia geral dos
discípulos, e disseram: 'Não está certo que nós deixemos a pregação da
palavra de Deus para servir às mesas. Irmãos, é melhor que escolham entre
vocês sete homens de boa fama, repletos do Espírito e de sabedoria, e nós
os encarregaremos dessa tarefa. Desse modo, nós poderemos dedicar-nos
inteiramente à oração e ao serviço da Palavra'. A proposta agradou a toda
a assembléia”.
At 9,26-28: “Saulo chegou a Jerusalém, e procurava juntar-se aos
discípulos. Mas todos tinham medo dele, pois não acreditavam que ele
fosse discípulo. Então Barnabé tomou Saulo consigo, o apresentou aos
apóstolos, e lhes contou como Saulo no caminho tinha visto o Senhor, como
o Senhor lhe havia falado, e como ele havia pregado corajosamente em nome
de Jesus na cidade de Damasco. Daí em diante Saulo ficou em Jerusalém com
eles, e pregava corajosamente em nome do Senhor”.
At 14,23: “Os apóstolos [Paulo e Barnabé] designaram anciãos para cada
comunidade; rezavam, jejuavam e os confiavam ao Senhor, no qual haviam
acreditado”.
At 14,27-28: “Quando chegaram a Antioquia [Paulo e Barnabé], reuniram a
comunidade e contaram tudo o que Deus havia feito por meio deles: o modo
como Deus tinha aberto a porta da fé para os pagãos. E passaram então
algum tempo com os discípulos”.
Em todas essas passagens não há a mínima idéia de que Pedro
liderava alguma coisa.
Houve, no princípio do cristianismo, uma divergência por conta do
ritual da circuncisão. Uns achavam que deveria ser feita nos pagãos,
enquanto outros diziam não ser ela necessária, leiamos:
At 15,1-5: “Chegaram alguns homens da Judéia e doutrinavam os irmãos de
Antioquia, dizendo: 'Se não forem circuncidados, como ordena a Lei de
Moisés, vocês não poderão salvar-se'. Isso provocou alvoroço e uma
discussão muito séria deles com Paulo e Barnabé. Então ficou decidido que
Paulo, Barnabé e mais alguns iriam a Jerusalém para tratar dessa questão
com os apóstolos e anciãos. Com o apoio e solidariedade da igreja de
Antioquia, eles atravessaram a Fenícia e a Samaria. Contaram sobre a
conversão dos pagãos, e deram uma grande alegria a todos os irmãos.
Quando chegaram a Jerusalém, foram acolhidos pela igreja, pelos apóstolos
e anciãos, e contaram as maravilhas que Deus tinha realizado por meio
deles. Contudo, algumas pessoas do grupo dos fariseus, que tinham
abraçado a fé, intervieram para sustentar que era preciso circuncidar os
pagãos e mandar que seguissem a lei de Moisés”.
O pivô dessa divergência foi Paulo e Barnabé. Por seguirem as
orientações de Jesus, não admitiam que tal ritual fosse praticado aos
pagãos recém-convertidos, contra alguns homens da Judéia, que queriam
impor a circuncisão àqueles que se convertiam ao cristianismo.
Interessante é que Paulo, judeu por nascimento, anteriormente fiel
cumpridor dos preceitos de Moisés, foi quem defendeu que não havia
necessidade da circuncisão.
Paulo, querendo as coisas claras, decide, então ir a Jerusalém
tratar dessa questão com os apóstolos e anciãos. Uai! Por que não foi
tratar com o papa? Ele não seria a pessoa responsável pela liderança do
movimento cristão? Por outro lado, se tinham desavenças desse tipo é
porque não havia definição como fazer. De duas uma: ou não havia um líder
que orientasse o grupo, ou havia, mas ele foi incompetente ou quem sabe,
não inspirado, para não prever isso.
Instalada a assembléia, formou-se um grande alvoroço, aí aparece
Pedro, que toma a palavra:
At 15,6-12: “Reuniram-se então os apóstolos e os anciãos para examinarem
o problema. Tornando-se acesa a discussão, levantou-se Pedro e disse:
'Irmãos, vós sabeis que desde os primeiros dias, aprouve a Deus, entre
vós, que por minha boca ouvissem os gentios a palavra da Boa Nova e
abraçassem a fé. Ora, o conhecedor dos corações, que é Deus, deu
testemunho em favor deles, concedendo-lhes o Espírito Santo assim como a
nós. Não fez distinção alguma entre nós e eles, purificando seus corações
pela fé. Agora, pois, por que tentais a Deus, impondo ao pescoço dos
discípulos um jugo que nem nossos pais nem mesmo nós pudemos suportar? Ao
contrário, é pela graça do Senhor Jesus que nós cremos ser salvos, da
mesma forma que eles. Então, toda a assembléia silenciou. E passaram a
ouvir Barnabé e Paulo narrando quantos sinais e prodígios Deus operara
entre os gentios por meio deles”.
Pela narrativa, vê-se que o suposto papa não foi quem convocou
esse “Concílio”, o relato apenas diz que “reuniram-se então os apóstolos
e os anciãos para examinarem o problema”, fato que prova que não exercia
autoridade alguma. Como se instalou uma verdadeira balbúrdia, aí sim,
Pedro toma a palavra e fala, fato que fez “toda a assembléia silenciar”,
e depois disso, passaram a ouvir Paulo e Barnabé. O que Pedro fez não foi
usar de alguma suposta autoridade, mas apenas botar ordem na casa, nada,
portanto, como pensam algumas pessoas, de que eles o tinham ouvido
silenciosamente no sentido de aprovar alguma decisão, pois a discussão
mal havia começado, faltava ainda a fala de Paulo e Barnabé e também a de
Tiago, este sim, quem deu o parecer final.
Há ainda uma certa confusão entre algumas pessoas, porquanto,
acham que Pedro havia sido escolhido para papa, usando da expressão
“aprove a Deus” ou “Deus me escolheu” (At 15,7), em outras traduções
bíblicas. Só que, nesse passo, apenas se diz que Pedro foi escolhido para
pregar aos pagãos, não que teria sido escolhido papa!
Pedro não agiu como sendo uma autoridade. Ele apenas deu a sua
opinião pessoal sobre o assunto em pauta, a qual não foi, portanto, a
deliberação final, inclusive, porque como vimos, depois dele ainda
falaram Paulo e Barnabé (At 15,12), para então, aí sim, Tiago tomar a
decisão, que foi acatada por todos. Se alguém aqui agiu como papa, foi,
pois, certamente, que foi Tiago. Leiamos:
At 15,13-21: “Quando acabaram de falar, Tiago tomou a palavra e disse:
'Irmãos, escutai-me! Simão acabou de explicar como Deus, logo de início,
se dignou separar dentre os pagãos um povo consagrado a Ele. Isto
concorda com a palavra dos profetas, porque está escrito: Depois disso,
voltarei e reconstruirei a tenda arruinada de Davi. Reedificarei as suas
ruínas e as reerguerei. Os outros homens irão procurar o Senhor, como
também as nações que foram consagradas pela invocação de meu Nome. Assim
fala o Senhor, que faz essas coisas conhecidas desde os tempos mais
antigos. Julgo, por isso, que deixeis de molestar os que se convertem do
paganismo para Deus. Basta lhes escrever que não se contaminem com a
idolatria ou uniões ilegais, nem tampouco comendo sangue ou carne de
animais estrangulados. Porque desde muito tempo a Lei de Moisés está
sendo lida e proclamada todos os sábados nas sinagogas de cada cidade'”.
O início do discurso de Tiago põe por terra toda e qualquer
suposição de que Pedro tenha, naquele Concílio, evocado, para si, algum
tipo de autoridade. A opinião de Tiago “julgo, por isso, que deixeis de
molestar os que se convertem do paganismo para Deus” foi a aceita, e dela
surgiu a carta que deveria ser levada a todos:
At 15,22-29: “Então os apóstolos e os anciãos, de acordo com toda a
comunidade de Jerusalém, resolveram escolher alguns da comunidade para
mandá-los com Paulo e Barnabé para Antioquia. Escolheram Judas, chamado
Bársabas, e Silas, que eram muito respeitados pelos irmãos. Através deles
enviaram a seguinte carta: 'Nós, os apóstolos e os anciãos, irmãos de
vocês, saudamos os irmãos que vêm do paganismo e que estão em Antioquia e
nas regiões da Síria e da Cilícia. Ficamos sabendo que alguns dos nossos
provocaram perturbações com palavras que transtornaram o espírito de
vocês. Eles não foram enviados por nós. Então decidimos, de comum acordo,
escolher alguns representantes e mandá-los até vocês, junto com nossos
queridos irmãos Barnabé e Paulo, homens que arriscaram a vida pelo nome
de nosso Senhor Jesus Cristo. Por isso, estamos enviando Judas e Silas,
que pessoalmente transmitirão a vocês a mesma mensagem. Porque decidimos,
o Espírito Santo e nós, não impor sobre vocês nenhum fardo, além destas
coisas indispensáveis: abster-se de carnes sacrificadas aos ídolos, do
sangue, das carnes sufocadas e das uniões ilegítimas. Vocês farão bem se
evitarem essas coisas. Saudações!'"
Quem dá o parecer final é Tiago, pois depois dele, ninguém mais
falou. Ele concorda com Pedro na questão de ele ter sido enviado a pregar
às nações pagãs, não porque estava assinado em baixo naquilo que Pedro
havia sido falado. Pensar de outra forma é iludir-se. Diz-nos Renan:
“Tiago, ao contrário, tornou-se para o partido judaico-cristão o chefe de
toda a cristandade, o bispo dos bispos, o presidente de todas as boas
igrejas, das que verdadeiramente foram fundadas por Deus”. (RENAN, Paulo,
13º apóstolo, 2004, p. 235)
Também não apresenta nenhuma decisão de Pedro nessa questão. Foram
os apóstolos e anciãos, de comum acordo com a comunidade, que mandaram a
carta (At 15,22), fato que também pode ser confirmado com o passo:
“Percorrendo as cidades, Paulo e Timóteo transmitiam as decisões que os
apóstolos e anciãos de Jerusalém haviam tomado, e recomendavam que fossem
observadas. (At 16,4). O que novamente prova que Pedro não exercia
nenhuma autoridade e nem mesmo presidiu a esse “Concílio”.
Podemos, inclusive, voltar um pouco mais atrás, no livro de Atos
(12,1-17), e veremos que Pedro, depois de ter sido solto da prisão em que
Herodes o colocara, pede para que Tiago seja informado disso (At 12,17),
reafirmando, mais uma vez, quem era o líder.
Em 58 Paulo, em sua carta aos romanos, fala desse assunto, ao que
parece, ainda não totalmente resolvido:
Rm 2,25-29: “A circuncisão é útil quando você pratica a Lei; mas, se você
desobedece à Lei, é como se não estivesse circuncidado. Se um pagão não
circuncidado observa os preceitos da Lei, não será tido como
circuncidado, ainda que não o seja? E o pagão que cumpre a Lei, embora
não circuncidado fisicamente, julgará você que desobedece à Lei, embora
você tenha a Lei escrita e a circuncisão. De fato, aquilo que faz o judeu
não é o que se vê, nem é a marca visível na carne que faz a circuncisão.
Pelo contrário, o que faz o judeu é aquilo que está escondido, e
circuncisão é a do coração; e isso vem do espírito e não da letra da Lei.
Tal homem recebe aprovação, não dos homens, mas de Deus.”
Nessa época supõe-se que Pedro estava residindo em Roma. Não teria
ele seguido as orientações promanadas do “Concílio de Jerusalém”,
acontecido, como sabemos, no ano de 49?
Nesse apanhado, seria interessante ouvir a opinião de uma pessoa
de indiscutível capacidade intelectiva que foi Rui Barbosa (1849-1923).
Ao traduzir o livro de Janus (1799-1890), O Papa e o Concílio, ele fez
uma Introdução tão longa que se igualou à própria obra teológicoliterária. Disse então o nobre jurisconsulto, advogado, escritor, orador,
jornalista e político brasileiro:
Os que buscam vincular a Pedro a soberania do papa começaram
esquecendo a primeira manifestação coletiva da Igreja cristã, o concílio
de Jerusalém, tipo necessário de todos os outros, no qual a
preponderância na definição do ponto controvertido coube, não ao
apelidado príncipe dos apóstolos, mas a Tiago, bispo da cidade, irmão do
Senhor. (65).
Nem é esse unicamente o lance, em que os livros santos depõem
contra a pretensão da infalibilidade personificada em Pedro. As epístolas
de Paulo testemunham que esse principado nunca teve realidade entre os
primeiros seguidores do Cristo, e que a fé do apóstolo dos judeus não era
menos frágil que a dos outros pregadores da boa nova. (66).
Essa primeira decisão conciliar da cristandade transmitiu-se às
igrejas da Síria, Antioquia e Cilícia em nome dos “apóstolos, anciãos e
irmãos” (apostoli, seniores, fratres), sem que a individualidade
particular de Pedro fosse ao menos mencionada ali. (67). As recordações
democráticas dos tempos subseqüentes ao Crucificado não podem, porém,
tolher o desembaraço a uma seita que, para levar a bom êxito seus planos
temporais, não hesitou nunca diante de nenhuma alteração da verdade
histórica.
Roma nem pela Antigüidade, sequer, podia a princípio prevalecer
sobre as outras sés. Antecederam-na as de Jerusalém, Éfeso, Antioquia e
Corinto. O título de apostólica, reservado hoje exclusivamente à daquela
cidade, Tertuliano atesta-nos que se aplicava a todas as igrejas, quer
instituídas pelos apóstolos, quer ramificações dessas. Pode-se, até,
dizer que chegou a tocar indistintamente a todas as metrópoles episcopais
(68); e, ainda no século IV, os bispos orientais denominavam a Igreja de
Jerusalém “mãe de todas as igrejas”. Essa fórmula de “saudação e bênção
apostólica”, de que hoje Roma arroga a si o privilégio, não começou a
baixar dali senão do século XI, cerca dos dias de Leão IX, para cá. Tal
é, pelo menos, o parecer de um dos mais famigerados Bolandistas, o
jesuíta Papebroch; e, em todo o caso, a invenção de Martinus Polonus, que
faz remontar esse uso da chancelaria eclesiástica aos tempos do bispo
Cleto, no primeiro século, está hoje absoluta mente desmentida.
Sob a unidade moral de uma adesão comum à fé cristã, cada Igreja
nacional vivia e desenvolvia-se com autonomia completa. A par de Roma
floresciam, com uma exuberância de seiva, com uma abundância de
personalidades notáveis, com uma influência moral e real
incomparavelmente maiores, as igrejas do Oriente, a de África, a das
Gálias, a de Espanha. Nenhuma tributava preito de vassalagem aos bispos
romanos. O título de papa, simples honraria então, dirigia-se
indiferentemente a todos os diocesanos, como, ainda no século III, o
endereçou o clero romano mesmo a S. Cipriano, bispo de Cartago. Nenhuma
preeminência, portanto, de jurisdição, quanto mais de doutrina, lograva a
capital da Itália; porque todos os distritos eclesiásticos eram membros
independentes e iguais de uma comunhão superior, onde todos os chefes
espirituais desvaneciam-se de “vigários de Cristo” “As nossas numerosas
igrejas”, dizia Tertuliano, “reputam-se todas a mesma igreja, a primeira
de todas fundada pelos apóstolos e mãe de todas as demais. São todas
apostólicas, e juntas não vêm a ser mais que uma só, pela comunicação da
paz, pelo mútuo tratamento de irmãos, pelos vínculos de hospitalidade que
enlaçam a todos os fiéis.” Tal era, em começos do século III, o caráter
do catolicismo, definido por um dos mais célebres doutores, com a sanção
tácita de Zeferino, bispo de Roma, que o não contrariou.
O sistema eletivo era o meio de se proverem os cargos eclesiásticos
praticados desde os apóstolos Esse regime de sufrágio quase universal, em
que eram co-participantes sacerdotes e leigos, fosse para a escolha dos
prelados, fosse, até, para a designação dos diáconos, estendeu-se tanto,
no seio da cristandade, pelos séculos adiante, que, ainda em princípios
do século XII, nos deparava a Igreja gaulesa exemplos dessa democracia
religiosa. Alma da vida eclesiástica nessa idade áurea da fé, o concurso
do clero e do povo, ora efetuada a eleição por este e ratificada por
aquele, ora iniciada a proposta pelos ministros e aceita pelos fiéis, —
representava essa idéia fecunda, intimamente radicada no primitivo
cristianismo, que atribui ao elemento leigo uma colaboração essencial no
sacerdócio, e que nas assembléias conciliares daquela época lhe facultava
lugar e voto. (70) Memora Eusébio que, falecendo Tiago, primeiro bispo de
Jerusalém, “os apóstolos, discípulos e parentes do Salvador ainda vivos
juntaram-se, para dar-lhe sucessor, e por unânime consentimento elegeram
a Simeão”. (71)
65 Act., c. XV.
66 Os que forcejam por exaltar esse discípulo de Jesus acima dos demais,
careciam cancelar primeiramente da Bíblia as epístolas do apóstolo das
gentes. “Em nada tenho eu sido inferior aos maiores dentre os apóstolos”,
dizia ele: “porque, conquanto inapto em palavras, não o sou, todavia, na
ciência.” Imperitus sermone, sed non scientia. II ad Corinth., Xl, 5, 6.
“São ministros do Cristo; mais o sou eu.” Ministri Christi sunt; plus
ego. Id., 23. Nihil enim minus fui ab iis qui sunt supra modum apostoli.
II ad Corinth., XII, 11.
E, se em nada estava abaixo dos mais excelentes apóstolos, se em
sabedoria tinha-se por tão ilustre quanto os mais sábios, não é de Pedro
que lhe viera essa excelência e ciência na fé, como seria de mister para
que prevalecesse a opinião dos que adjudicam ao papa, como sucessor de
Pedro, o depositum fidei. “O Evangelho, não o aprendi de homem nenhum,
sim de Jesus Cristo, que mo revelou.” “Neque enim ego ab homine accepi
illud, sed per revelationem lesu-ChristL” Ad. Galat., 1, 11. E também ad
Ephes., III, 3. O apostolado, encetou-o ele antes de visitar Jerusalém, e
avistar-se com os apóstolos. “Neque venim lerosolymam ad antecessores
meos apostolos.” Ad Galat., 1, 17. Verdade é que mais tarde ali veio ter,
e achou-se com Cefas quinze dias; mas isso foi muitos anos depois, tendo
já pregado na Ará bia e em Damasco. lbid., 17, 18.
Mais expressiva é ainda a história da sua segunda visita à cidade santa.
Nessa ocasião não diz Paulo que Pedro lhe tivesse transmitido a graça,
mas sim que este, com Tiago e João, reconheceram-na já existente nele.
“Et quum cognovissent gratiam quae data est mihi, Jacobus, et Cephas, et
Johannes, qui videbantur columnae, dextras dederunt mihi.” Ad. Galat.,
II, 9. Deram-lhe as mãos em sinal de companhia, de irmandade, societatis.
Que distância entre isso, entre essa fraterna associação de serviços,
estabelecida sob um símbolo de igualdade, e a paternidade espiritual que
arroga a si o pretenso vigário de Cristo sobre o episcopado inteiro!
Paulo tanto a não reconhecia, que resistiu a Pedro face a face. “In
faciem ei restiti.” Ibid., 11. Por quê? Porque o achou repreensível.
“Quia reprehensibilis erat.” lbid. Viu que infringiam a verdade
evangélica, e a Pedro exprobou, em público, deste modo: “Se tu, sendo
judeu, vives como gentio, e não como judeu, por que obrigas os gentios a
judaizar? Cum vidissem quod non recte ambularent ad veritatem evangelii,
dixi Cephae coram omnibus: Si tu, cum Judaeus sis, gentiliter vicis, et
non judaece, quomodo gentes cogis judaezare?” Ibid., 14. Substituam Cefas
por Pio IX; troquem Paulo por um bispo moderno; ponham-lhe depois na boca
esse desabrimento; e digam, afinal, a que fica reduzida a infabilidade
individual do papa.
67 Act., c. XV, 23-29.
68 J. H. NEWMAN, do Oratório: A letter addressed to his grace the duke of
Norfolk on occasion of Mr. Gladstone recent expostulation. — London,
1875. — p. 29.
69 Act., c. 1 e VI.
70 No concílio de Elvira, o mais antigo de que há cânones, congregaram-se
os bispos e os padres com o povo em comum omni plebe. O quarto cânon do
quarto concílio de Toledo refere como, depois de entrarem e sentarem-se
os bispos, depois de entrarem e sentarem-se atrás deles os padres,
“entraram por sua vez os leigos”. No concílio de Orange, que constou de
13 padres e 9 leigos, todos, sem discrime, subscreveram com as mesmas
palavras: consensi, ou consentiens subscripsi. V. BORDAS-DUMOULIN e F.
HUET: Essais sur la réf. Cath., Paris, 1856 — Pág. 84. E tão valioso era
o assentimento de qualquer membro, ainda leigo, dessa comunhão aniquilada
hoje perante o papa infalível sese, non autem ex consensu eccIesiae que,
no porfioso debate sobre a celebração da páscoa, Polycrates, bispo de
Éfeso, na representação dirigida a Vítor, bispo de Roma, em nome das
igrejas asiáticas, entre os nomes de apóstolos, mártires, bispos e
doutores, que citava em apoio da praxe oriental, não hesitou em mencionar
três mulheres, “filhas de Felipe, duas das quais envelheceram na
virgindade, e a outra, inspirada do Espírito Santo, adormeceu em Éfeso”.
71 Livr. III. cap. II.
(JANUS, vol. 1, 2002, pp. 64-67) (Grifos do original).
Esse depoimento de Rui Barbosa está coerente com tudo quanto
conseguimos levantar do assunto, tornando-se, portanto, indefensável.
Na pesquisa sobre o assunto, encontramos ainda várias outras
coisas que merecem ser citadas, para a informação dos que, porventura,
venham a ler esse estudo.
[...] S. Pedro, a quem Jesus Cristo outorgou o primado da Igreja (Jo
21,15-17; Mt 16,18-19), estabeleceu sua sede em Roma pelos anos 42 d.C.,
que se tornou então a sede principal da cristandade.
[...]
São Pedro, de Betsaida, na Galiléia, príncipe dos Apóstolos, que recebeu
diretamente de Jesus Cristo o supremo Poder Pontifical, para transmiti-lo
a seus sucessores, residiu como papa, primeiro em Antioquia, depois,
durante 25 anos, em Roma, onde foi martirizado em 64 ou 67 d.C.
(Dicionário Bíblico Barsa, p. 204).
Dados transcritos de um dicionário constante da Bíblia Sagrada –
Ed. Barsa, de cunho católico. Observemos que aqui aparece uma outra
passagem para justificar o papado de Pedro, entretanto, todo o capítulo
21 do Evangelho de João é controverso:
Todo o capítulo 21 é curiosamente colocado depois de uma conclusão
do evangelho (20,30-31) que será retomada em parte em 21,25. Além disso,
as duplicatas são numerosas. Notemos em particular as dos capítulos 7-8:
os textos de 7,33-36 e de 8,21-22 são apenas dois desenvolvimentos
paralelos de tema comum; e há muitas tentativas de prender Jesus no
decurso de uma mesma festa (7,30.32.44; 8,20.59).
É provável que tais anomalias provenham do modo como o evangelho
foi composto e editado: ele seria de fato o resultado de lenta
elaboração, compreendendo elementos de épocas diferentes, de retoques, de
adições, de redações diversas, de um mesmo ensinamento, visto que o todo
teria sido publicado, não pelo próprio João, mas, depois de sua morte,
por seus discípulos (21,14); assim, na trama primitiva do evangelho,
estes teriam inserido fragmentos joaninos que não queriam deixar perder e
cujo lugar não era rigorosamente determinado. (Bíblia de Jerusalém, p.
1838).
Moral da história, não foi João quem o escreveu, assim como
aceitar piamente o que lá se encontra?
Supondo-se que João tenha sido morto em 67, é o que se afirma
usando-se da tradição cristã, e que tenha residido como papa por 25 anos
em Roma, então, ele passou a ser papa no ano de 42. Ora, depois da morte
de Jesus (ano 30 até o ano de 42), ou seja, por doze anos, ele foi o quê?
Demorou para “a ficha cair”? Mais um detalhe: no “Concílio de Jerusalém”
ele não liderava ninguém, conforme ficou provado. Por outro lado, “Um
édito do imperador Cláudio, no ano 49, expulsou de Roma os judeus e,
provavelmente, também os cristãos”. (Bíblia Sagrada – Ed. Pastoral, p.
1440), com isso a questão é: será que de 49 até, pelo menos, 58, não
havia um líder em Roma, já que nessa última data Paulo envia uma carta
aos romanos?
Se “Os Atos dos Apóstolos, quinto livro do Novo Testamento, devota
dezesseis capítulos à vida e obra de Paulo” (VAN LOON, 1981, p. 180), e
considerando que “O livro termina com o cativeiro de Paulo 61-63. (Bíblia
Jerusalém, p. 1896), a pergunta é: quem foi a pessoa mais importante no
cristianismo primitivo; Paulo ou Pedro, o suposto papa? Essa supremacia
de Paulo é facilmente percebida, pois “Depois da conversão de Cornélio e
o encarceramento em Jerusalém, Pedro parte para destinação desconhecida
(At 12,17); e é Paulo que doravante, no relato de Lucas, ficará em
evidência”. (Bíblia de Jerusalém, p. 1898).
Vejamos mais outra informação, ainda de Van Loon (1882-1944), que
foi um escritor e jornalista holandês:
Além disso, era um homem capaz de trabalho eficiente. Conhecedor de
suas limitações, deixou a empresa mais espetacular para Paulo, que passou
a vida no estrangeiro, e para Jaime, o irmão de Jesus, que se tornou o
reconhecido chefe da igreja nas terras judaicas.
Pedro contentou-se com um campo de ação menos importante nas
regiões limítrofes da Judéia, e com sua fiel esposa percorreu as longas
estradas da Babilônia a Samaria e da Samaria à Antioquia, transmitindo ao
povo o que Jesus lhe ensinara em seu tempo de pescador no Mar da
Galiléia.
Não sabemos o que o induziu a ir para Roma.
Sobre essa viagem não temos nenhuma informação histórica de valor
indisputado, mas o nome de Pedro está tão conexo ao desenvolvimento
inicial da igreja, que temos de devotar algumas palavras ao admirável
velho a quem Jesus amou mais que aos outros discípulos. (VAN LOON, 1981,
pp. 186-187).
Se Pedro percorreu as estradas de Babilônia a Samaria, por que a
palavra Babilônia que aparece em uma das cartas que lhe é atribuída, não
poderia se referir a essa cidade, que supõem ser Roma? Será preciso
responder?
Voltemos às considerações do filósofo e teólogo Huberto Rohden,
agora no livro Que vos parece do Cristo, onde ele dedica um capítulo ao
assunto:
Instituiu Jesus a Pedro como Pedra Fundamental da Igreja?
Já no século V, escreveu Santo Agostinho, então bispo de Hipona,
que, com as palavras “tu és Pedro” Jesus não instituiu Pedro como pedra
fundamental da Igreja; as palavras de Jesus não se referem à pessoa
humana de Pedro, que é chamada “carne e sangue”; referem-se à revelação
da Divindade do Cristo, confessada pelo apóstolo: “Tu és o Cristo, Filho
de Deus vivo”. A pedra fundamental da Igreja, diz Agostinho, é o Cristo;
a confissão de Pedro, mas não o Pedro da confissão, é a pedra
fundamental, mas não a pessoa humana, que pode ter sucessores, através
dos tempos, ao passo que a Divindade do Cristo é a verdade permanente.
É esta a convicção de Agostinho, que ele nunca revogou, nem mesmo
no seu livro posterior “Retractationes”.
Mais tarde, por motivos de consolidação da hierarquia eclesiástica,
os Concílios adotaram a idéia que hoje prevalece na teologia; que Pedro
fora instituído por Jesus como sendo o fundamento inabalável da Igreja —
o mesmo homem que é por Jesus chamado carne e sangue, e, pouco depois
“satanás”: “Vade retro, satana”.
Nem Paulo de Tarso aceitou a idéia da primazia e infalibilidade de
Pedro, como consta do Concílio Apostólico de Jerusalém, onde prevaleceu a
idéia de Paulo, que repreendeu publicamente a Pedro por que havia
“aberrado da verdade do Evangelho”, exigindo que os neófitos cristãos
fossem circuncidados
Quanto ao pretenso pontificado de Pedro na sede de Roma, é uma
idéia flagrantemente anti-histórica. Pedro pode ter vivido em Roma cerca
de três meses, no ano 67, mas não durante 25 anos. Jamais dirigiu a
igreja de Roma. Sabemos que no ano 64 rompeu a tremenda perseguição dos
cristãos por parte do imperador Nero, perseguição que continuou por quase
três séculos, até o ano 313. Durante este período, nenhum cristão
conhecido sobreviveu em Roma, muito menos o chefe espiritual do
cristianismo.
Aliás, a primeira epístola de Pedro é datada da Babilônia, e deve
ter sido escrita pelos meados do primeiro século.
Em 58, em Corinto, escreveu Paulo a Epístola aos Romanos,
verdadeiro tratado de cristologia, por que não havia na capital do
Império Romano ninguém que pudesse dar esses esclarecimentos - nem mesmo
Pedro.
No fim da Epístola manda Paulo lembranças a numerosos cristãos
conhecidos em Roma - nenhuma saudação a Pedro, que não era conhecido na
capital do Império.
Nos anos 60 a 62 esteve Paulo preso em Roma. No cárcere, escreveu
as epístolas aos Filipenses, aos Efésios, aos Colossenses, e a carta
particular a Filemon. Nestas cartas menciona Paulo os cristãos que o
visitaram no cárcere romano - nunca menciona Pedro, que não o visitou,
porque não estava em Roma.
Pelos historiadores antigos sabemos que durante a perseguição de
Nero, Pedro e Paulo foram, às ocultas, visitar os cristãos sobreviventes
em Roma: foram descobertos, presos e mortos; a tradição localiza a morte
de Pedro e de Paulo no dia 29 de junho de 67.
Para unificar as dezenas de grupos cristãos, cada um dos quais se
dizia o único cristianismo verdadeiro, o primeiro imperador cristão
Constantino Magno, pelo Edito de Milão, de 313, deu liberdade aos
cristãos e proclamou o cristianismo como religião oficial do Império
romano. A fim de estabelecer unidade nos diversos grupos litigantes,
decretou Constantino que o bispo da capital do Império fosse considerado
primus inter pares. A chamada infalibilidade do papa foi decretada
somente pelo primeiro Concílio Vaticano, no ano de 1870, quer dizer, há
pouco mais de um século. De resto, o papa não fez valer a sua suposta
infalibilidade, nem mesmo nas mais veementes controvérsias recentes,
sobretudo após a ruidosa encíclica “Humanae Vitae”, impugnada
violentamente por bispos e cardeais.
Quem confessa o Cristo como suprema e única rocha da Igreja está de
acordo com o Evangelho e com as palavras do próprio Cristo. (ROHDEN, s/d,
pp. 107-110).
Observar que em suas considerações Rohden cita Santo Agostinho um
eminente e respeitável nome entre os antigos escritores cristãos
conhecidos como “Padres da Igreja” ou “Santos Padres”.
Leiamos a opinião do historiador Gardner:
É essencial lembrar que Jesus não era gentio nem cristão. Ele era
um judeu, cuja religião era o judaísmo radical. Com o passar do tempo,
porém, sua missão original foi usurpada e dominada por um movimento
religioso que assumiu seu nome para obscurecer seus herdeiros de fato.
Esse movimento se centralizava em Roma e baseava sua autoridade auto
proclamada na afirmação de Mateus 16:18-19, na qual Jesus teria dito “és
Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha igreja”. Infelizmente, a
palavra grega petra (rocha), relacionada à Rocha de Israel, foi traduzida
erroneamente como se fosse petros (pedra), referindo-se a Pedro (134)
(que chegou a ser chamado de Cefas: uma Pedra, como em João 1:42). Jesus
estava, na verdade, afirmando que a missão dele e de Pedro deveria ser
fundamentada sobre a Rocha de Israel, não sobre o próprio Pedro.
Independentemente disso, o novo movimento decretou que só aqueles que
tivessem recebido autoridade passada diretamente de Pedro poderiam ser
líderes da Igreja Cristã. Foi um conceito engenhoso, cuja intenção era
restringir o controle geral a uma fraternidade seleta e autopromotora. Os
discípulos gnósticos (135) de Simão (Mago) Zelotes o chamavam de “a fé
dos tolos”.
(134) Gladys Taylor, Our Neglected Heritage, Covenant Books, Londres,
1974, vol. 1, p. 42.
(135) Os Gnósticos eram assim chamados porque a eles se atribuía gnosis
(grego: “conhecimento” - principalmente a visão esotérica). O movimento
gnóstico se originou em Samaria, onde Simão Zelote (Simão, o Mago) era
líder dos Magos (homens de sabedoria) samaritanos de Manassés do Oeste.
Posteriormente, desenvolveu-se também na Síria, novamente com Simão como
seu principal proponente, antes de entrar no ambiente cristão pré-romano.
(GARDNER, 2004, p. 101)
Passaremos agora a palavra ao teólogo católico Janus (1799-1890):
Tudo isso se explica, porém, logo que examinarmos de perto,
mediante os Padres, a significação das bem conhecidas palavras de Cristo
a S. Pedro. Não as aplica aos bispos de Roma como sucessores de S. Pedro
nenhum dos Padres que trataram exegeticamente, nessa época, os tópicos do
Evangelho relativos ao poder transmitido a Pedro (Mateus, XVI,18, e João
XXI,18). Que de Padres não se ocuparam com esses tópicos! Entretanto,
nenhum daqueles cujos comentários possuímos ainda, Orígenes, Crisóstomo,
Hilário, Agostinho, Cirilo, Theodoreto, nem dos outros cujas explicações
acham-se agrupadas nas Catenas nenhum desses exprimiu, por uma sílaba
sequer, a idéia de que se refira ao primaz de Roma a conseqüência da
missão incumbida e das promessas dirigidas a Pedro. — Nenhum deles
interpretou a pedra ou a base onde o Cristo quer edificar a sua igreja,
como atributo especialmente cometido a Pedro, e, por morte deste,
hereditário. Aquilo para eles significava o próprio Cristo ou a fé
notória de Pedro em Cristo; porque nos seus escritos é freqüente
confundirem-se essas duas idéias. — Por outro lado, entendiam que Pedro
era tão fundamento da Igreja quanto os demais apóstolos isto é, pensavam
que os apóstolos todos juntos formavam as doze pedras fundamentais da
Igreja (Apocal., XXI,14). (75) — Pelo que pertence à concessão do poder
das chaves, do poder de atar e desatar, tanto menos possível era que os
Padres o tomassem como privilégio ou soberania atribuída aos bispos
romanos, quanto não consideravam essa onipotência (cousa que ao primeiro
aspecto notará qualquer) como propriedade peculiar a S. Pedro, e herdada
por ele aos sós prelados de Roma. — Refletiam que, se fora outorgada a
Pedro em primeiro lugar, também aos outros depois o foi pelas mesmas
palavras. Enfim, tinham todos o símbolo das chaves como perfeito sinônimo
da expressão figurada atar e desatar. (76)
Sabido é que o dito de Cristo a Pedro é hoje em dia o trecho
clássico, que há de ser base ao edifício da infalibilidade papal: “Ora
por ti para que te não faleça a fé; quando converso, esforça a teus
irmãos” (Lucas, XXll,32-37). — Manifesto é, porém, que essas palavras não
se podem referir senão a Pedro pessoalmente, e à sua conversão depois de
ter renegado a Cristo. De feito, a exortação é para que ele, apenas lhe
desaparecesse aquela rápida e passageira fraqueza, restaurasse os outros
apóstolos, em quem vacilara igualmente a fé no Cristo. — É, portanto,
rematado contra-senso querer, onde apenas se tratava do indivíduo em quem
vacilara a fé na dignidade messiânica de Jesus, fé que se pretendia
reanimar, querer descobrir aí promessas de futura infalibilidade a uma
série de papas, unicamente porque esses homens senhorearam mais tarde, na
Igreja romana, o lugar de que Pedro fora o primeiro ocupante. Até ao fim
do VII século nenhum dos antigos doutores da Igreja concebera essa
interpretação. Todos, sem exceção, em número de dezoito haviam divisado
ali apenas uma rogativa de Cristo, empenhado em que o seu apóstolo não
soçobrasse de todo na perigosa e iminente tentação, e não perdesse
inteira a fé. — Foi o papa Ágato, em 680, quem primeiro quis achar ali
uma promessa de prerrogativas à Igreja romana, — isso no tempo dos
esforços com que Roma lidava arredar os perigos anunciados pela
condenação de Honório, predecessor daquele, — condenação que tinha de
levar a Igreja romana a perder o privilégio, tantas vezes encarecido, de
uma pureza doutrinal especialíssima.
75 “Et murus civitatis habens fundamenta duodecim, e in ipsis duodecim,
nomina apostolorum Agni.” (Tinha o muro da cidade doze fundamentos, e, em
todos doze, os doze nomes dos apóstolos do Cordeiro.) (Do tradutor
brasileiro.)
76 Embalde, portanto, diligenciou Döllinger, por exemplo (Cristianismo e
Igreja, pág. 30, 2ª ed.), explicar a autoridade das chaves como idéia
diversa do poder de atar e desatar, na linguagem bíblica, — encarando-o
como um poder sobre a Igreja toda, transmitido por Pedro aos seus
sucessores romanos. Contradiz este parecer de todo ponto as declarações
dos Padres e as tradições exegéticas da Igreja.
(JANUS, vol. 2, 2002, pp. 67-69) (Grifo do original).
Leterre, em abordando o assunto, disse:
Salientaremos, simplesmente, a antinomia do título de Papa, para
com os próprios princípios doutrinários do fundador da Igreja cristã.
O termo Papa é um diminutivo familiar de papá, papai, atribuído ao
bispo de Roma, como sendo o Pai da família cristã. Ora, Jesus proibiu que
o chamassem de Pai, porque este título só pertence a Deus que é o Pai de
todos. Não consentiu que o chamasse de Bom, de Mestre e ainda menos de
Santo; mas o Papa é chamado de Bom Pai e até de .... Santíssimo Pai.
Jesus não tinha onde repousar a cabeça, só tinha uma túnica, um par
de sandálias e se alimentava quando a sacola de Judas, seu Tesoureiro, o
permitia. Proibiu a construção de templos. Enviou seus apóstolos a pregar
o Evangelho do Reinado da Paz, sem alforjes. Repudiou o título que lhe
queriam dar de Rei de Israel e fugiu mesmo para o monte. Em suma, pregou
a bondade de coração, o amor ao próximo e deu o exemplo da perfeita
humildade.
Se Jesus disse, fazendo, como querem, um trocadilho inadmissível na
língua que ele falava, que sua Igreja seria construída sobre a rocha,
isso não significa que ele fizesse Pedro de pedra fundamental do seu
Templo, pois este mesmo apóstolo, em Atos, frisa que Deus não reside em
templos de pedra, construídos e servidos pela mão do homem, confirmando
as palavras do seu mestre, quando este mandava que todos se recolhessem
ao seu aposento, em segredo, e aí implorassem ao Pai que tudo via e lhe
concederia o voto.
Ademais, quem ficou representando esse templo em Jerusalém foi
Tiago, discípulo e irmão de Jesus, revestindo as insígnias de Sumo
Sacerdote dos Judeus e não do Cristo, que não usava nenhuma.
Pedro, portanto, conservou-se na penumbra ou quando muito, por sua
idade, como era praxe respeitar-se, presidiu uma agremiação de fiéis,
aliás, destruída por Paulo, que não consentia que Jesus tivesse
instituído sua Igreja sobre a circuncisão.
Quando Cornelius se ajoelhou aos pés de Pedro para adorá-lo, este
levantou-o dizendo: “Levanta-te, eu mesmo também sou homem” (Atos X, 26).
(LETERRE, 2004, p. 326).
Ainda Leterre, agora falando sobre a Infalibilidade do papa, traz
interessante discurso de um bispo que era contra a instituição desse
dogma católico. Ele tem a ver com o nosso assunto, porquanto fala de
Pedro. Leiamos:
A infalibilidade do papa foi decretada em 1870 por um Concílio
presidido pelo próprio interessado Pio IX e ardentemente preparado para
este fim pela “Companhia de Jesus”, apesar da oposição feita por alguns
bispos e, sobretudo, de Bjakovo, o Revmo. Strossmayer cujo discurso,
embora um tanto longo, convidamos o leitor a assistir, comodamente
sentado em uma das poltronas daquela magna Assembléia, a fim de melhor
ouvir as verdades nuas e cruas, que vão ser ditas naquele Cenáculo, por
um dos seus mais eminentes membros e possa ajuizar do espírito ambicioso
dos partidários que, com essa aprovação, preparavam a possibilidade de
galgar um dia uma cadeira pontifical inatacável.
E bom notar, desde já, que nem esse bispo nem seus partidários
foram condenados ou excomungados pelo referido Papa por ter desmascarado
aquele antro de perdição que é o Vaticano e nem seus argumentos foram
jamais refutados.
Tem a palavra o bispo Strossmayer:
[...] Abri essas sagradas páginas e sou obrigado a dizer-vos: nada
encontrei que sancione, próximo ou remotamente, a opinião dos
ultramontanos! E maior é minha surpresa quando, naqueles tempos
apostólicos, nada há que fale de papa sucessor de S. Pedro e vigário de
Jesus Cristo!
[...] Tenho lido todo o Novo Testamento, declaro ante Deus e com a
mão sobre o crucifixo que nenhum vestígio encontrei do papado.
[...]
Lendo, pois, os Santos Livros, não encontrei um só capítulo, um só
versículo que dê a São Pedro a chefia sobre os apóstolos
Não só o Cristo nada disse a respeito deste ponto, mas, ao
contrário, pro meteu tronos a todos os apóstolos (Mateus XIX, 28) sem
dizer que o de Pedro seria mais elevado que o dos outros.
Que diremos do seu silêncio?
A lógica nos ensina a concluir que o Cristo nunca pensou em elevar
Pedro à chefia do Colégio Apostólico.
Quando o Cristo enviou seus discípulos a conquistar o mundo, a
todos — igualmente — fez a promessa do Espírito Santo.
Dizem as Santas Escrituras que até proibiu a Pedro e a seus
colegas de reinarem ou exercerem senhorio (Lucas XXIII, 25, 26).
Se Pedro fosse eleito Papa, Jesus não diria isso, porque, segundo
nossa tradição, o papado tem uma espada em cada mão, simbolizando os
poderes espiritual e temporal.
Ainda mais: se Pedro fosse papa ou chefe dos apóstolos, permitiria
que esses seus subordinados o enviassem, com João, à Samaria para
anunciar o Evangelho do filho de Deus? (Atos VIII, 14)
[...] Reuniu-se em Jerusalém um Concílio ecumênico para decidir
questões que dividiam os fiéis.
Quem devia convocá-lo? Sem dúvida Pedro, se fosse papa. Quem devia
presidi-lo? Por certo que Pedro. Quem devia formular e promulgar os
cânones? Ainda Pedro. Não é verdade?
Pois bem: nada disso sucedeu! Pedro assistiu ao Concílio com os
demais apóstolos sob a direção de Tiago! (Atos XV).
Assim, parece-me que o filho de Jonas não era o primeiro, como
sustentais. Encarado agora, por outro lado, temos: enquanto ensinamos que
a Igreja está edificada sobre Pedro, São Paulo (cuja autoridade devemos
todos acatar) diz- nos que ela está edificada sobre o fundamento da fé
dos apóstolos e profetas, sendo a principal pedra do ângulo Jesus Cristo
(Epístola dos Efésios II, 20).
Esse mesmo Paulo ao enumerar os ofícios da Igreja menciona os
apóstolos, profetas, evangelistas e pastores; e será crível que o grande
apóstolo dos gentios se olvidasse do papado, se este existisse? Esse
olvido me parece tão impossível como o de um historiador desse Concílio
que não fizesse menção da Sua Santidade Pio IX.
[...]
O apóstolo Paulo não faz menção em nenhuma de suas Epístolas às
diferentes igrejas, da primazia de Pedro, se esta existisse e se ele
fosse infalível como quereis, poderia Paulo deixar de mencioná-la, em
longa Epístola acerca de tão importante ponto?
[...]
Também nos escritos de São Paulo, de São João ou de São Tiago, não
descubro nenhum traço do poder papal! São Lucas, o historiador dos
trabalhos missionários dos apóstolos, guarda silêncio a respeito de tal
assunto! Isso deve preocupar-vos muito.
[...]
Pensei que se Pedro fosse vigário de Jesus Cristo ele não o sabia,
pois nunca procedeu como papa; nem no dia do Pentecostes, quando pregou
seu primeiro sermão, nem no Concílio de Jerusalém, presidido por São
Tiago, nem da Antioquia nem nas Epístolas que dirigiu às igrejas. Será
possível que ele fosse papa sem o saber?
Parece-me escutar de todos os lados: São Pedro não esteve em Roma?
Não foi sacrificado de cabeça para baixo? Não existem os lugares onde
ensinou e os altares em que disse missa nessa cidade?
E eu responder Só a tradição, veneráveis irmãos, é que nos diz ter
São Pedro estado em Roma; e como a tradição é tão-somente a tradição da
sua estada em Roma. E com ela que me provareis seu episcopado e sua supre
macia?
Scaligero, um dos mais eruditos historiadores, não vacila em dizer
que o episcopado de São Pedro e sua residência em Roma devem ser
classifica dos no número das lendas ridículas! [...]
Permite que repita: folheando os sagrados escritos não encontrei o
mais leve vestígio do papado nos tempos apostólicos!
E, percorrendo os anais da Igreja, nos quatro primeiros séculos, o
mesmo me sucedeu! Confessar-vos-ei que o que encontrei foi o seguinte:
Que o grande Santo Agostinho, bispo de Hipona, honra e glória do
Cristianismo e secretário do Concílio de Melive, nega a supremacia do
bispo de Roma.
Que os bispos da África, no sexto Concílio de Cartago, sob a
presidência de Aurélio, bispo dessa cidade, admoestavam a Celestino,
bispo de Roma, por supor-se superior aos demais bispos, enviando-lhes
comissionados e introduzindo o orgulho na Igreja.
Que, portanto, o papado não é instituição divina. Deveis saber,
meus veneráveis irmãos, que os padres do Concílio de Calcedônia colocaram
os bispos da antiga e nova Roma na mesma categoria dos demais bispos.
Que aquele sexto Concílio de Cartago proibiu o título de ‘Príncipe
dos Bispos’, por não haver soberania entre eles.
E que São Gregório I escreveu estas palavras que muito aproveitam
a tese:
Quando um patriarca se intitula ‘Bispo Universal’, o título de
patriarca sofre incontestável descrédito. Quantas desgraças não devemos
nós esperar, se entre os sacerdotes se suscitarem tais ambições?
Esse - bispo - será o rei dos orgulhosos! (Pelágio II, Cet. 13).
Com tais autoridades e muitas outras que poderia citar-vos, julgo
ter prova do que os primeiros bispos de Roma não foram reconhecidos como
- bispos universais ou papas - nos primeiros séculos do Cristianismo.
E, para reforçar ainda mais meus argumentos, lembrarei aos meus
veneráveis irmãos que foi Ósio, bispo de Córdoba, quem presidiu o
primeiro Concílio de Nicéia, redigindo seus cânones; e que foi ainda esse
bispo que, presidindo o Concílio de Sárdica, excluiu o enviado de Júlio,
bispo de Roma! Mas, da direita me citam estas palavras de Cristo: Tu és
Pedro e sobre esta pedra edificarei minha Igreja.
Sois, portanto, chamado para este terreno.
Julgais, veneráveis irmãos, que a rocha ou a pedra sobre a qual a
Santa Igreja está edificada, é Pedro; mas, permite que eu discorde desse
vosso modo de pensar.
Diz São Cirilo no seu quarto livro a respeito da Trindade: A rocha
ou a pedra de que nos fala Mateus é a fé imutável dos apóstolos.
São Gregório, bispo de Poitiers, em seu segundo livro a respeito
da Trindade, repete que aquela pedra é a rocha da fé, confessada pela
boca de São Pedro. E, no seu sexto livro, mais luz nos fornece dizendo: E
sobre essa exata rocha da confissão da fé que a Igreja está edificada.
São Jerônimo, no seu sexto livro a respeito de São Mateus, é de
opinião que Deus fundou sua Igreja sobre a rocha ou pedra que deu seu
nome a Pedro. Nas mesmas águas navega São Crisóstomo quando em sua
homilia 56, a respeito de Mateus, escreve: Sobre esta rocha edificarei
minha Igreja; e esta rocha é a confissão de Pedro.
Já que não me respondeis, eu vô-la darei: ‘Tu és o Cristo, o filho
de Deus’. Ambrósio, o Santo arcebispo de Milão, São Basílio, de Salência,
e os padres do Concílio de Calcedônia ensinam precisamente a mesma coisa.
Entre os doutores da Antiguidade cristã, Santo Agostinho ocupa um
dos primeiros lugares pela sua sabedoria e pela sua santidade.
Escutai como ele se expressa acerca da primeira epístola de São
João: ‘Edificai minha Igreja sobre esta rocha, significa claramente que é
sobre a fé de Pedro’.
No seu tratado 124 acerca do mesmo João, encontra-se esta
significativa frase: ‘Sobre esta rocha ou pedra que me confessaste, que
reconheceste, dizendo: Tu és o Cristo, o filho de Deus vivo, edificarei
minha Igreja, sobre mim mesmo; pois sou o filho de Deus vivo. Edificarei
sobre mim mesmo e não sobre ti'.
Haverá coisa mais clara e positiva?
Deveis saber que esta compreensão de Santo Agostinho, a respeito
de tão importante ponto do Evangelho, era a opinião corrente no mundo
cristão naqueles tempos. Estou certo de que não me contestareis.
Assim é que, resumindo, vos direi:
1 - Que Jesus deu aos outros apóstolos o mesmo poder que deu a
Pedro.
2 - Que os apóstolos nunca reconheceram em São Pedro a qualidade
de vigário de Cristo e infalível doutor da Igreja.
3 - Que o mesmo Pedro nunca pensou ser papa nem fez coisa alguma
como papa.
4 - Que os Concílios dos primeiros quatro séculos nunca deram, nem
reconheceram, o poder e a jurisdição que os bispos de Roma que riam ter.
5 - Que os Santos Padres, na famosa passagem ‘Tu és Pedro e sobre
esta pedra (a confissão de Pedro) edificarei minha Igreja’ nunca
entenderam que a igreja não estava edificada sobre Pedro (super Petrum) e
sim sobre a rocha (super Petram), isto é, sobre a confissão da fé do
apóstolo!
Concluo, pois, com a história, a razão, a lógica, o bom senso e a
consciência do verdadeiro cristão, que Jesus não deu supremacia alguma a
Pedro e que os bispos de Roma só se constituíram soberanos da Igreja
confiscando, um por um, todos os direitos do episcopado! [...]
Contestai a história se ousais fazê-lo; mas, ficai certos de que
não a destruireis! Se avancei alguma inverdade, ensinai-me isso com a
história, à qual prometo fazer a mais honrosa apologia. Mas, compreendei
que não disse ainda tudo quanto quero e posso dizer. Ainda que a fogueira
me aguardasse lá fora, eu não me calaria!
[...]
Evitai, sim, evitai, meus veneráveis irmãos, o terrível princípio
cuja borda estais colocados. Salvai a Igreja do naufrágio que a ameaça e
busquemos todos, nas Sagradas Escrituras, a regra da fé que devemos crer
e professar. Digne-se Deus a assistir-me. Tenho concluído”.
Todos os bispos se levantaram, muitos saíram da sala, porém alguns
prelados italianos, americanos, alemães, franceses e ingleses rodearam o
inspirado orador, e, com fraternais apertos de mão, demonstraram
concordar com seu modo de pensar. (LETERRE, 2004, pp. 338-345).
Apesar de um pouco extenso, acreditamos que valeu a pena citá-lo
para provar que, mesmo dentro da Igreja, nem todos os bispos concordam em
que Pedro tenha sido o primeiro papa, portanto, de valor inquestionável
contra essa hipótese.
Vamos a uma última citação, para fechar o nosso estudo. Trazemos
agora a opinião de Fernando Guedes de Mello:
Assim, tudo indica que Paulo tornou-se o primeiro bispo de Roma, a
pedido do próprio Jesus (At 23,11), e não Pedro. A ida de Pedro a Roma,
se de fato ocorreu, deveu-se muito mais à situação político-religiosa na
Palestina do que a uma necessidade pastoral dos cristãos romanos. Devido
à ruptura definitiva entre os cristãos e os judeus na Judéia e ao clima
de pré-insurreição contra os romanos em Jerusalém, Pedro teria seguido
para Roma muito mais na condição de refugiado do que de primeiro papa da
Cristandade. Episódios como o do romance histórico Quo vadis, Domine? São
lendas que surgiram mais tarde, em meados do século II, e que ganharam
destaque no século IV, para justificar a primazia do bispo da capital
imperial. Tanto assim que, quando a capital passa para Constantinopla,
começaram as dificuldades entre a Igreja latina e a Igreja Oriental.
(MELLO, 1997, p. 123).
Diante de tantas opiniões de pessoas de elevado conhecimento, o
que temos a fazer senão concordar plenamente com elas, especialmente,
aquelas que vieram de pessoas vinculadas ao Catolicismo Romano. Aliás,
nesse estudo, tivemos a preocupação inicial de fazer a análise bíblica
primeiro, para só depois buscar informações em outras fontes. Aí tivemos
a grata satisfação de ver que não somos “heréticos” sozinhos, pois em
nossa companhia estão pessoas de elevado saber e de conhecimentos
teológicos inquestionáveis. Fica a você, caro leitor, a possibilidade de
aceitar ou não tais argumentos, porquanto, nada deve ser imposto a ferro
e fogo, como outrora fizeram com muitos assuntos teológicos, mas rogamoslhe que seja imparcial, não advogando em causa própria!
O Ritual do Batismo
Sempre nos causa espécie, ver passagens bíblicas mencionando o
ritual do batismo, em particular a que relata o batismo de Jesus, uma vez
que esse rito não fazia parte das práticas religiosas dos hebreus. Assim,
não sabemos por qual motivo que, de uma hora para outra, aparece, na
Bíblia, alguém realizando o batismo, porquanto a circuncisão é que era o
ritual praticado naquela época (Lv 12,3). Para nós só existe uma
explicação possível para isso. Embora saibamos que ela não irá agradar
aos fundamentalistas, mas, como buscamos a verdade, não nos resta senão a
alternativa de deduzir que tal episódio seja uma interpolação.
Mais ainda ficamos convictos dessa possibilidade, quando os
próprios textos bíblicos nos levam justamente a essa hipótese. É o que
veremos no desenrolar desse estudo.
Cairbar Schutel, em O Batismo, assim relata sobre a sua origem:
Esta prática, que assinala períodos milenários, parece ter nascido
na Grécia Antiga, logo após a constituição de uma seita que cultuava a
Deusa da Torpeza, a quem denominavam Cotito e a quem os atenienses
rendiam os seus louvores. Esta seita, constituída de sacerdotes que
tinham recebido o nome de baptas, porque se banhavam e purificavam com
perfumes antes da celebração das cerimônias, deixou saliente nas páginas
da História esse ato como símbolo da purificação do Espírito. (SCHUTEL,
1986, p. 15).
Corroborando essa versão, Celso Martins, em Nas Fronteiras da
Ciência, afirma:
[...] Batizando as criaturas nas águas do Rio Jordão como símbolo
da renovação espiritual de cada seguidor seu, João estava apenas lançando
mão de um rito que remontava à Grécia antiga, pois o batismo é uma
prática pagã que nos veio dos sacerdotes da deusa Cotito. Eles se
banhavam antes de dedicar suas oferendas à referida deusa da mitologia
dos gregos. Como tais sacerdotes se chamavam baptas, daí surgiu a
etimologia da palavra batismo, banho em água, no ritualismo de muitas
seitas cristãs e também orientais. (MARTINS, 2001, p. 30) (grifo do
original).
Em Jesus e sua Doutrina, A. Leterre, por sua vez, nos diz ser
outra a origem:
Os antigos persas apresentavam o recém-nascido ao padre, perante o
Sol, simbolizado pelo fogo. O padre pegava a criança e a colocava em uma
bacia com água, a fim de lhe purificar a alma. Nessa ocasião o pai dava
nome ao filho. [...]
A cerimônia do batismo, no verdadeiro sentido de banho expiatório,
já havia, também, na Índia, milhares de anos antes de existir a Europa,
tendo daí passado para o Egito. Na Índia eram as águas do Gange,
consideradas sagradas, como ainda hoje, que possuíam esta propriedade
purificadora, apesar de ser o foco da cólera-morbo; do Gange passou-se
para o Indus, igualmente sagrado, de onde se propagou ao Nilo, do mesmo
modo sagrado, para, finalmente, terminar no Jordão, onde João as
empregava com o mesmo fim e como simples formalidade do seu rito.
(LETERRE, 2004, pp. 172-173). (grifo do original).
Seja lá qual for a sua origem, o que fica claro é que ela está
indubitavelmente ligada às práticas de povos ditos pagãos.
A primeira vez em que aparece, na Bíblia, a realização do ritual
do batismo, é no Novo Testamento, quando João, o batista, às margens do
rio Jordão, batizava, para o perdão dos pecados, àqueles que confessavam
publicamente os seus (Mt 3,6). Jesus vai ao seu encontro para ser
batizado, mas João reconhecendo que Jesus é maior que ele Lhe diz: “Eu é
que preciso ser batizado por ti, e tu vens a mim?” (Mt 3,14); entretanto,
por insistência do Mestre, batiza–O. Imediatamente após o batismo, uma
voz, vinda do céu, afirma: “Este é o meu filho amado, que muito me
agrada” (Mt 3,17).
É-nos estranha essa atitude de Jesus, porquanto João Batista
somente batizava os que vinham a seu encontro para confessar os seus
pecados (Mt 3,5-6), o que, segundo Marcos, significava que fazia o
batismo de conversão para o perdão dos pecados (Mc 1,4-5). Jesus, então,
tinha pecados? Estaria ele se convertendo naquele momento? Fica difícil
aceitar isso...
Observamos que João Batista identificou Jesus como o Messias, fato
confirmado pelo plano espiritual (a voz que vinha do céu); diante disso,
concluímos que não haveria a mínima possibilidade de dúvida por parte da
“voz que clama no deserto”. Entretanto, isso não é um fato, pois, logo
após ser preso, João Batista manda alguns de seus discípulos perguntarem
a Jesus: “És tu aquele que há de vir, ou devemos esperar outro?" (Mt
11,2-3). Falta coerência nisso, já que, conforme relatado, João sabia
perfeitamente quem era Jesus, e se, porventura, houvesse alguma dúvida de
sua parte, ela teria sido completamente sanada pela manifestação
espiritual ocorrida após o batismo, que apresenta Jesus como o Messias.
Assim, a dúvida é de nossa parte para saber qual das duas situações
realmente ocorreu, já que uma é contraditória à outra.
Então, não é de todo improvável que a passagem que relata o
batismo de Jesus é que não espelhe a realidade, mas que pode ter sido
criada para validar e justificar o ritual do batismo realizado pelas
igrejas ditas cristãs que, na verdade, praticam mesmo é o batismo de
João, isto nos é claro. Tal prática ritualística vem contrariar o que o
próprio João, o batista, afirmou: “Eu batizo vocês com água para a
conversão. Mas aquele que vem depois de mim é mais forte do que eu. E eu
não sou digno nem de tirar-lhe as sandálias. Ele é quem batizará vocês
com o Espírito Santo e com fogo” (Mt 3,11); o que é uma evidente
demonstração de que o batismo que ele praticava não era um ritual a ser
seguido. Colocava, isto sim, o batismo do “Espírito Santo e com fogo”
como aquele a que todos deveriam ser submetidos, argumento esse que,
também, pode ser confirmado em At 1,4-5: “Estando com os apóstolos numa
refeição, Jesus deu-lhes esta ordem: ‘Não se afastem de Jerusalém.
Esperem que se realize a promessa do Pai, da qual vocês ouviram falar:
'João batizou com água; vocês, porém, dentro de poucos dias, serão
batizados com o Espírito Santo'". Por isso, concluímos que o relato do
batismo de Jesus é bem provável que seja mesmo uma interpolação.
Interessante é que os fariseus e os saduceus também queriam ser
batizados (Mt 3,7); entretanto, foram prontamente rechaçados, já que João
não via neles nenhuma postura de arrependimento. Essa atitude dele nos
induz a acreditar que não era mesmo sua intenção colocar o batismo como
um ritual, pois, se assim o fosse, teria batizado aquela “raça de
víboras”. João Batista deixou claro o motivo mais importante pelo qual
estava batizando ao dizer: "... para que ele fosse manifestado a Israel,
vim eu, por isso, batizando com água" e "... o que me mandou a batizar
com água, esse me disse: Sobre aquele que vires descer o Espírito, e
sobre ele repousar, esse é o que batiza com o Espírito Santo" (Jo 1,3133). Ou seja, foi apenas para ele identificar o Messias. Mas, uma vez
cumprido esse seu propósito, deixa de ser necessário o batismo de água,
passando a vigorar, daquela hora em diante, o batismo verdadeiro, o de
Jesus. Este, sim, é o verdadeiro batismo cristão: com Espírito Santo e
com fogo.
Ademais, observemos que, embora Mateus, Marcos e Lucas afirmassem
que Jesus tenha sido batizado, João, o evangelista, um dos discípulos bem
próximo a Jesus, nada diz sobre isso. É estranho este fato, para algo que
dizem ser muito importante. E se o batismo fosse tão importante como
alguns afirmam, então por que Jesus não atendeu a João, o batista, que
Lhe disse “eu é que devo ser batizado por ti” (Mt 3,14)? Sem contar que
os apóstolos não foram batizados em água, mas foram no Espírito Santo (At
1,4-5; 2,4). Exatamente por isso é que podemos reafirmar que o batismo em
água não possui sustentação bíblica para a sua aplicação, pois estaria
contrariando a determinação de Jesus citada em At 1,4-5, cujo teor
veremos mais adiante, e o que foi revelado a João Batista.
Vejamos que Paulo, o apóstolo dos gentios, percebe claramente essa
diferença:
At 19,1-6: “... Paulo... chegou a Éfeso e, achando ali alguns discípulos,
perguntou-lhes: Recebestes vós o Espírito Santo quando crestes?
Responderam-lhe eles: Não, nem sequer ouvimos que haja Espírito Santo.
Tornou-lhes ele: Em que fostes batizados então? E eles disseram: No
batismo de João. Mas Paulo respondeu: João administrou o batismo do
arrependimento, dizendo ao povo que cresse naquele que após ele havia de
vir, isto é, em Jesus. Quando ouviram isso, foram batizados em nome do
Senhor Jesus. Havendo-lhes Paulo imposto as mãos, veio sobre eles o
Espírito Santo, e falavam em línguas e profetizavam”.
Com isso fica claro que o batismo de João, ou seja, o de água, não
tinha valor; caso contrário, Paulo teria deixado as coisas como estavam e
não teria ministrado o batismo em nome do Senhor Jesus. E quanto ao fato
de se batizar “em nome de Jesus” e não “em nome da Trindade” queremos,
neste momento, apenas chamar a sua atenção, pois iremos falar sobre isso
um pouco mais à frente.
Em outra oportunidade Paulo disse enfático: “De fato, Cristo não
me enviou para batizar, mas para anunciar o Evangelho...” (1Cor 1,17), do
que podemos ver claramente que, na sua convicção, o batismo não era
importante para salvação de ninguém.
Paulo vai ainda mais longe: era contrário ao ritual que praticavam
naquela época, no caso, a circuncisão. Senão vejamos: “De resto, cada um
continue vivendo na condição em que o Senhor o colocou, tal como vivia
quando foi chamado. É o que ordeno em todas as igrejas. Alguém foi
chamado à fé quando já era circuncidado? Não procure disfarçar a sua
circuncisão. Alguém não era circuncidado quando foi chamado à fé? Não se
faça circuncidar” (1Cor 7,17-18). Evidentemente, não deixou de questionar
tal prática: “Qual é a utilidade da circuncisão” (Rm 3,1)? Ele, Paulo,
responde demonstrando que isso não faz a menor diferença: ”Não tem
nenhuma importância estar ou não estar circuncidado. O que importa é
observar os mandamentos de Deus” (1Cor 7,19). Justificando-se: “Então,
será que Deus é Deus somente dos judeus? Não será também Deus dos pagãos?
Sim, ele é Deus também dos pagãos. De fato, há um só Deus que justifica,
pela fé, tanto os circuncidados como os não circuncidados” (Rm 3,29-30).
Usando dos mesmos argumentos de Paulo, em relação ao batismo de
água, diríamos: não tem nenhuma importância estar ou não estar batizado,
já que o que importa é observar os mandamentos de Deus.
Para análise e melhor entendimento desse assunto, podemos dividir
em dois os períodos: o primeiro é relacionado aos acontecimentos durante
a vida de Jesus, enquanto que o segundo se refere aos depois de sua
morte. Isso é importante para separar o joio do trigo; mas, para tanto,
devemos primeiramente questionar: Jesus batizou alguém? Orientou a seus
discípulos a fazê-lo? Teriam sido eles batizados? Se Jesus falou de algum
batismo, qual?
Então, vejamos o que podemos encontrar no primeiro período.
Quanto a saber se Jesus batizou alguém, só em João é que vamos
encontrar algo a esse respeito. Em determinado momento o evangelista diz
que sim, ou seja, que Jesus batizava; porém depois desmentiu e disse que
não; mas quem batizava eram seus discípulos (Jo 4,1-2). Em relação a seus
discípulos é fato curioso, pois nenhum dos outros evangelistas afirmou
isso; somente João é que conta essa história. É estranho, pois não vemos,
em momento algum, Jesus orientando a seus discípulos para que realizassem
tal prática, o que podemos comprovar com o seguinte passo: “Então Jesus
chamou seus discípulos e deu-lhes poder para expulsar os espíritos maus,
e para curar qualquer tipo de doença e enfermidade... Jesus enviou os
Doze com estas recomendações: ... ‘Curem os doentes, ressuscitem os
mortos, purifiquem os leprosos, expulsem os demônios. Vocês receberam de
graça, dêem também de graça!...’” (Mt 10,1-8, ver tb Mc 3,14-15 e Lc 9,12).
De outra feita, Jesus faz recomendações a setenta e dois
discípulos (Lc 10,1) não estando também entre elas o batismo. Assim,
observamos que Jesus, quando vivo, passou vários conselhos aos
discípulos, mas não há nenhum relacionado a batismo. Será que depois de
morto teria mudado de idéia, uma vez que tal recomendação só aparece após
este fato? É o que veremos agora.
Depois de sua morte o que aconteceu? Encontramos no evangelho
apenas duas passagens em que supostamente Jesus teria orientado o
batismo. Falamos supostamente, pois demonstraremos que uma delas é
interpolação grosseira e a outra um acréscimo ao texto primitivo.
Analisemos a primeira passagem em que aparecem as orientações de
Jesus, ressurreto, aos discípulos (ver tb Mc 16,14-18):
Mt 28,16-20: Os onze discípulos foram para a Galiléia,... Então Jesus se
aproximou, e falou: "... Portanto, vão e façam com que todos os povos se
tornem meus discípulos, batizando-os em nome do Pai, e do Filho, e do
Espírito Santo, e ensinando-os a observar tudo o que ordenei a vocês...”.
Essa passagem é o que, por último, encontramos no evangelho de
Mateus e somente nele é que se recomenda batizar “em nome do Pai, e do
Filho e do Espírito Santo”, ou seja, em toda a Bíblia é o único passo que
diz isso. Chama-nos atenção para o fato de que, naquela época, não se
acreditava na Trindade, provando que isso é uma vergonhosa interpolação
para justificar práticas ritualísticas criadas posteriormente à morte de
Jesus. Agiram dessa forma para transparecer que era coisa comum no
período em que Ele ainda vivia entre os discípulos.
Léon Denis, em Cristianismo e Espiritismo, disse:
Depois da proclamação da divindade de Cristo, no século IV, depois
da introdução, no sistema eclesiástico, do dogma da Trindade, no século
VII, muitas passagens do Novo Testamento foram modificadas, a fim de que
exprimissem as novas doutrinas (Ver João I, 5,7). “Vimos, diz
Leblois(145), na Biblioteca Nacional, na de Santa Genoveva, na do
mosteiro de Saint-Gall, manuscritos em que o dogma da Trindade está
apenas acrescentado à margem. Mais tarde foi intercalado no texto, onde
se encontra ainda”.
__________
(145) “As bíblias e os iniciadores religiosos da humanidade”, por
Leblois, pastor de Strasburgo.
(DENIS, 1987, p. 272). (grifo nosso).
Grifamos apenas para ressaltar que a origem dessa informação foi
tirada da fala de um pastor; isto é importante para demonstrar a
imparcialidade de quem dá a notícia.
O historiador e professor da Universidade Hebraica de Jerusalém,
David Flusser (1917-2000), que lecionou no Departamento de Religião
Comparada por mais de 50 anos, nascido na Áustria, foi estudioso da
literatura clássica e talmúdica, conhecia 26 idiomas, informa que:
De acordo com os manuscritos de Mateus que foram preservados, o
Jesus ressuscitado ordenou aos seus discípulos batizar todas as nações
“em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo”. A fórmula trinitária
franca, aqui, é de fato notável, mas já foi mostrado que a ordem para
batizar e a fórmula trinitária faltam em todas as citações das passagens
de Mateus nos escritos de Eusébio anteriores ao Concílio de Nicéia. O
texto de Eusébio de Mt 28:19-20 antes de Nicéia era o seguinte: “Ide e
tornai todas as nações discípulas em meu nome, ensinando-as a observar
tudo o que vos ordenei”. Parece que Eusébio encontrou essa forma do texto
nos códices da famosa biblioteca cristã em Cesaréia. 75 Esse texto mais
curto está completo e coerente. Seu sentido é claro e tem seus méritos
óbvios: diz que o Jesus ressuscitado ordenou que seus discípulos
instruíssem todas as nações em seu nome, o que significa que os
discípulos deveriam ensinar a doutrina de seu mestre, depois de sua
morte, tal como a receberam dele. (FLUSSER, 2001, p, 156).
É importante transcrevermos também a nota na qual Flusser coloca
sua base de informação:
75. Ver D. Flusser, "The Conclusion of Matthew in a New Jewish Christian
Source", Annual of the Swedish Theological lnstitute, vol. V, 1967,
Leiden, 1967, pp. 110-20; Benjamin J. Hubbard, “The Matthean Redaction of
a Primitive Apostolic Commissioning", SBL, Dissertation Series 19,
Montana, 1974. Mais testemunho da conclusão não-trinitária de Mateus está
preservado num texto copta (ver E. Budge, Miscelleaneous Coptic Texts,
Londres, 1915, pp. 58 e seguintes, 628 e 636), onde é descrita uma
controvérsia entre Cirilo de Jerusalém e um monge herético. "E o
patriarca Cirilo disse ao monge: 'Quem te mandou pregar essas coisas?' E
o monge lhe disse: 'O Cristo disse: Ide a todo o mundo e pregai a todas
as nações em Meu nome em cada lugar". O texto é citado por Morcon Smith,
Clement of Alexandria and a Secret Cospel of Mark, Harvard University
Press, Cambridge, Mass, 1973, pp. 342-6. (FLUSSER, 2001, p. 170).
Na seqüência, Flusser diz que...
“um testemunho adicional das versões mais curtas de Mt 28:19-20a foi
descoberto há pouco tempo numa fonte judeu-cristã...” (FLUSSER, 2001, p.
156), citando como fonte: Sh. Pinès, “The Jewish Christians of the Early
Centuries of Christianity According to a New Source”, The Israel Academy
of Sciences and Humanities Proceedings, vol. II, nº 13, Jerusalém, 1966,
p. 25. (FLUSSER, 2001, p. 170).
Já o escritor José Reis Chaves, em um artigo intitulado O Batismo,
publicado no Jornal O Tempo, nos informa:
Porém, temos sempre nos originais gregos do Novo Testamento “Pneuma
Hagion” (Espírito Santo), sem o artigo definido “ho” (o) diante dele.
Neles não há também o artigo indefinido (um), porque este não existe em
Grego, mas em Português existe. Logo, devemos dizer “um” Espírito Santo e
não “o” Espírito Santo. Só a partir dos Concílios de Nicéia (325) e
Constantinopla (381), é que o Espírito Santo e a Santíssima Trindade
foram instituídos, com as subseqüentes adaptações no Novo Testamento. Nas
primeiras comunidades cristãs e no V.T., eles são desconhecidos. No V.T.,
só aparece o E.S., como sendo um espírito humano evoluído, santo. Em
Daniel 13,45 (Bíblia católica, pois a protestante só tem 12 capítulos),
lemos: “Suscitarei entre vós um homem de um Espírito Santo chamado
Daniel.” E, em Isaías 63, 11, lê-se: “Onde está o que pôs nele seu
Espírito Santo?” “Um” Espírito Santo (Consolador) é, pois, um espírito
humano santo, que profetiza consolando (1 Coríntios 14,3). (CHAVES, 2003,
p. 6).
Podemos colocar dois argumentos para contradizer essa passagem de
Mateus: 1º) é que Jesus, quando vivo, não recomendou o batismo de água,
mas um outro, o que veremos mais à frente; 2º) em Atos (2,38; 10,48 e
19,5) se batiza somente “em nome de Jesus”, evidenciando falta grave de
quem fez a interpolação por não ter percebido esse pequeno detalhe.
Eh!... Não há mesmo crime perfeito!
Mas esse fato não passou despercebido pelos tradutores da Bíblia
de Jerusalém, que o minimizam dizendo:
É possível que, em sua forma precisa, essa fórmula reflita
influência do uso litúrgico posteriormente fixado na comunidade
primitiva. Sabe-se que o livro dos Atos fala em batizar “no nome de
Jesus” (cf. At 1,5+; 2,38+). Mais tarde deve ter-se estabelecido a
associação do batizado às três pessoas da Trindade. Quaisquer que tenham
sido as variações nesse ponto, a realidade profunda permanece a mesma. O
batismo une à pessoa de Jesus Salvador; ora, toda a sua obra salvífica
procede do amor do Pai e se completa pela efusão do Espírito. (explicação
para Mt 28,19, p. 1758).
A segunda passagem, em que se supõe Jesus ter dito algo sobre o
batismo, é essa:
Mc 16,14-16: “Por fim, Jesus apareceu aos onze discípulos... disselhes:’Vão pelo mundo inteiro e anunciem a Boa Notícia para toda a
humanidade. Quem acreditar e for batizado, será salvo. Quem não
acreditar, será condenado’".
Aqui se percebe claramente que atribuíram essas palavras a Jesus.
É tão óbvio isso que se torna difícil negar, especialmente se
verificarmos a frase “quem não acreditar, será condenado”; isso porque,
para ela ser coerente com essa outra “quem acreditar e for batizado, será
salvo”, deveria ser uma sentença negativa da seguinte forma: “Quem não
acreditar e não for batizado, será condenado”.
Além disso, se compararmos essa passagem com o que encontramos em
Atos, veremos que não era esse o pensamento corrente, já que nessa outra
nem se fala em batismo; vejamos: “Crê no Senhor Jesus, e serás salvo, tu
e tua casa” (At 16,31). Desconcertante é que nesse versículo se diz que
apenas “um da família” precisa crer para que sua casa, quer dizer, toda
sua família, seja salva. Já no verso de Marcos a norma é outra, já que
não só nada foi dito dos familiares, mas também porque afirma que a regra
para todos é: "quem crer e for batizado...", deixando-nos na certeza da
interpolação mal feita.
Mais complexa fica essa questão da salvação, já que também está
dito: “... o Evangelho que vos preguei,... por ele sereis salvos,...”
(1Cor 15,1-2), deixando-nos completamente perdidos quanto a saber o que
efetivamente irá nos salvar; fora o que foi dito por Jesus: “a cada um
segundo suas obras” (Mt 16,27).
Entretanto, para não dar a impressão de que isto é só opinião
nossa, vamos apresentar o que disseram os tradutores da Bíblia de
Jerusalém. Leiamos suas observações relativas a Marcos capítulo 16,
versículos de 9 a 20:
O trecho final de Mc (vv. 9-20) faz parte das Escrituras
inspiradas; é tido como canônico. Isso não significa necessariamente que
foi escrito por Mc. De fato, põe-se em dúvida que este trecho pertença à
redação do segundo evangelho. – As dificuldades começam na tradição
manuscrita. Muitos mss, entre eles o do Vat. e o Sin., omitem o final
atual... A tradição patrística dá também testemunho de certa hesitação. –
Acrescentemos que, entre os vv. 8 e 9, existe, nessa narrativa, solução
de continuidade. Além disso, é difícil admitir que o segundo evangelho,
na sua primeira redação, terminasse bruscamente no v. 8. Donde a
suposição de que o final primitivo desapareceu por alguma causa por nós
desconhecida e de que o atual fecho foi escrito para preencher a lacuna.
Apresenta-se como um breve resumo das aparições do Cristo ressuscitado,
cuja redação é sensivelmente diversa da que Marcos habitualmente usa,
concreta e pitoresca. Contudo, o final que hoje possuímos era conhecido,
já no séc. II por Taciano e santo Ireneu, e teve guarida na imensa
maioria dos mss gregos e outros. Se não se pode provar ter sido Mc o seu
autor, permanece o fato de que ele constitui, nas palavras de Swete, “uma
autêntica relíquia da primeira geração cristã”. (Bíblia de Jerusalém, p.
1785). (grifo nosso).
Apesar desses argumentos, é certo que ainda encontraremos pessoas
que continuarão a aceitar a frase como verdadeira. Mesmo que fosse, por
coerência, é muito improvável que Jesus estivesse falando do batismo de
João. O mais certo é que estaria se referindo ao batismo "com Espírito
Santo e com fogo", pois é o que sucede a todo aquele que crê em suas
palavras e pratica seus ensinos.
Que essa passagem de Marcos não deveria ser usada para sustentar o
batismo que praticam é um fato. Inclusive é o que podemos comprovar pela
opinião do tradutor da Bíblia Anotada que, em relação a Mc 16,9-20, diz:
“... A discutível genuinidade dos vv. 9-20 torna pouco sábio
construir uma doutrina ou basear uma experiência sobre eles
(especialmente os vv. 16-18)” (Bíblia Anotada, p. 1265). E,
especificamente, quanto ao versículo 16, ele explica: “Esta pode ser uma
referência ao batismo do Espírito Santo (1Cor 12:13). O batismo com água
não salva (veja as notas sobre At. 2:38; 1Pe 3:21)” (Bíblia Anotada, p.
1265).
Mais opiniões sobre essa parte do evangelho de Marcos:
Mc 9-20: Este trecho difere muito do livro até aqui; por isso é
considerado obra de outro autor. Os cristãos da primeira geração
provavelmente quiseram completar o livro de Marcos com um resumo das
aparições de Jesus e uma apresentação global da missão da Igreja. Parece
que inspiraram no último capítulo de Mateus (28,18-20), em Lucas (24,10-
53), em João (20,11-23) e no início do livro dos Atos dos Apóstolos (1,414). (Bíblia Sagrada, Edição Pastoral, p. 1307). (grifo nosso).
Mc 16,1-8: A conclusão original do evangelho de Marcos é
surpreendente e desconcertante, a ponto de os escritores posteriores
terem acrescentado um epílogo, respaldado como canônico pela autoridade
da Igreja... (Bíblia do Peregrino, p. 2446) (grifo nosso).
Mc 16,9: A passagem 9-20 falta nos manuscritos mais antigos. Não é
provavelmente de Marcos. (Bíblia Sagrada Editora Ave Maria, p. 1344).
(grifo nosso).
Seguindo em nossa análise, veremos que pelo evangelho de Lucas
(cap. 24) nada foi recomendado aos discípulos com relação a esse nosso
assunto. Mas como Lucas, segundo os exegetas, é o autor do livro Atos dos
Apóstolos, é nele que encontramos as recomendações de Jesus, na versão
desse evangelista:
At 1,1-5: “... Jesus começou a fazer e ensinar, desde o princípio, até o
dia em que foi levado para o céu. Antes disso, ele deu instruções aos
apóstolos que escolhera, movido pelo Espírito Santo... Estando com os
apóstolos numa refeição, Jesus deu-lhes esta ordem: ‘Não se afastem de
Jerusalém. Esperem que se realize a promessa do Pai, da qual vocês
ouviram falar: 'João batizou com água; vocês, porém, dentro de poucos
dias, serão batizados com o Espírito Santo’...”.
Conforme já dissemos anteriormente, Jesus pregou, sim, um batismo,
mas o batismo do Espírito Santo e não o de água. E aqui, dessa passagem,
não consta que devemos ser batizados “em nome do Pai, do Filho e do
Espírito Santo”, como está em Mateus, evidenciando, mais uma vez, que
isso é mesmo uma interpolação. E, em relação aos discípulos, o batismo do
Espírito Santo, foi o único ao qual eles se submeteram; o que nos leva a
concluir que, caso haja necessidade de batismo, é esse o que deveria ser
feito.
Podemos ainda, nesse ponto, colocar o que Pedro disse: “Foi então
que me lembrei da declaração do Senhor, quando disse: ‘É verdade que João
batizou com água, mas vós sereis batizados no Espírito Santo’” (At
11,16). Essa passagem confirma a anterior, onde se encontra o que Lucas
disse.
E, por fim, vejamos a narrativa de João.
Jo 20,19-23: “Era o primeiro dia da semana. Ao anoitecer desse dia,
estando fechadas as portas do lugar onde se achavam os discípulos por
medo das autoridades dos judeus, Jesus entrou. Ficou no meio deles e
disse: ‘A paz esteja com vocês’. ‘... Assim como o Pai me enviou, eu
também envio vocês’. Tendo falado isso, Jesus soprou sobre eles, dizendo:
‘Recebam o Espírito Santo. Os pecados daqueles que vocês perdoarem, serão
perdoados. Os pecados daqueles que vocês não perdoarem, não serão
perdoados’".
Em João não encontramos Jesus recomendando diretamente nenhum tipo
de batismo. Mas, por outras passagens, já citadas, podemos entender que
“ao soprar sobre os discípulos” Jesus estava realizando o batismo do
Espírito Santo, aquele que lhes tinha prometido. Inclusive, era esse o
praticado pelos discípulos; senão vejamos:
At 2,38: “Pedro lhes respondeu: ‘Convertei-vos e cada um peça o batismo
em nome de Jesus Cristo, para conseguir perdão dos pecados. Assim
recebereis o dom do Espírito Santo’”.
At 10,44-48: “Pedro ainda falava, quando o Espírito Santo desceu sobre
todos os que escutavam seu discurso. Os fiéis de origem judaica, que
tinham ido de Jope com Pedro, ficaram admirados por verem que o dom do
Espírito Santo tinha sido derramado também sobre os não-judeus. De fato,
eles os ouviam falar em diversas línguas e glorificar a Deus. Então Pedro
disse: ‘Quem poderá recusar a água do batismo a esses, que receberam o
Espírito Santo da mesma forma que nós?’ E decidiu que fossem batizados em
nome de Jesus Cristo...”.
Observe, caro leitor, que uma parte do passo de Atos 10,44-48 tem
tudo para ter sofrido uma interpolação, talvez por quererem justificar o
batismo com água. Vejamos o trecho do texto para análise: “Então Pedro
disse: ‘Quem poderá recusar a água do batismo a esses, que receberam o
Espírito Santo da mesma forma que nós?’”. Se dele retirarmos a expressão
“a água do batismo” o texto estaria mais coerente em sua estrutura e
significado; senão vejamos: “Quem poderá recusar a esses, que receberam o
Espírito Santo da mesma forma que nós?” Assim, percebemos que a expressão
“a água do batismo” não tem nada a ver com o assunto abordado por Pedro,
que certamente questionava se essas pessoas iriam ser recusadas mesmo
depois de terem recebido o “dom do Espírito Santo”.
Ressaltamos também a questão, falada anteriormente, quando
comentamos At 19,1-6, sobre a fórmula do batismo, que, ao invés de “em
nome do Pai, do filho e do Espírito Santo”, batizavam somente “em nome de
Jesus”. Aliás, com relação a essa última expressão podemos encontrar dez
outras passagens [11] em que se diz para fazer algo “em nome de Jesus”,
enquanto que, em relação à primeira, nenhuma, pois a única encontrada
provou-se ser uma interpolação.
Há ainda uma outra passagem bíblica que, apesar de não se
relacionar ao batismo, querem os teólogos, com suas interpretações
dogmáticas, atribuir-lhe tal sentido. É a passagem que narra o diálogo de
Jesus com Nicodemos, conforme o evangelho de João:
Jo 3,1-12: “... Jesus lhe respondeu: ‘Em verdade, em verdade, te digo:
quem não nascer de novo não pode ver o Reino de Deus’. Disse-lhe
Nicodemos: ‘Como pode um homem nascer, sendo velho? Poderá entrar segunda
vez no seio de sua mãe e nascer?’ Respondeu-lhe Jesus: ‘Em verdade, em
verdade, te digo: quem não nascer da água e do Espírito não pode entrar
no Reino de Deus. O que nasceu da carne é carne, o que nasceu do Espírito
é espírito. Não te admires de eu te haver dito: deveis nascer de novo. O
vento sopra onde quer e ouves o seu ruído, mas não sabes de onde ele vem
nem para onde vai. Assim acontece com todo aquele que nasceu do
Espírito’. Perguntou-lhe Nicodemos: ‘Como isso pode acontecer?’
Respondeu-lhe Jesus: ‘És mestre em Israel e ignoras essas coisas? Em
verdade, em verdade, te digo: falamos do que sabemos e damos testemunho
do que vimos, porém, não acolheis o nosso testemunho. Se não credes
quando vos falo das coisas da terra, como crereis quando vos falar das
coisas do céu?’”.
Sobre esse assunto, o primeiro ponto, inclusive, já poderíamos ter
falado antes, quando citamos trechos do evangelho de João. É que nos
parece muito estranho atribuir a autoria desse evangelho a ele, porquanto
sabemos que foi escrito em grego - por volta de 100 d.C. - e que, como
Pedro, João era iletrado e sem instrução (At 4,13), ficando-nos uma
enorme suspeita de que “falaram” por ele, ou então isso veio por uma
provável psicografia. O segundo é em relação ao fato de que Jesus não
batizou nem recomendou batismo de água a ninguém, conforme estamos
constatando neste estudo.
Quanto ao conteúdo deste texto, não há explicação para que
Nicodemos “ignorasse essas coisas”, sendo ele um membro do Sinédrio,
especialmente se Jesus estivesse se referindo ao batismo, pois, se fosse
mesmo, certamente ele o teria entendido. Se ignorava, é porque, na
verdade, era sobre outra coisa que Jesus lhe falava. Pelos seus
questionamentos a Jesus, fica claro que era algo muito mais profundo do
que um simples ritual, como o do batismo; portanto, seria um assunto mais
complexo que esse. Com certeza, a reencarnação é algo assim, já que a
maioria das pessoas por “ignorar essas coisas”, não sabe exatamente como
pode “um homem velho voltar a nascer de novo; porventura, irá entrar no
seio de sua mãe e nascer”? A esses Jesus replicaria, como já o fizera
antes: “Não te admires disso”.
Para justificarem o batismo nessa passagem concentram seus
argumentos no trecho “quem não nascer da água”, jogando por terra todo o
simbolismo que, naquele tempo, se via nisso:
[...] A água tinha grande simbolismo entre os hebreus: tanto o
espírito como as águas são fecundos (Is 32:15; 44,3; Ez 36:25-27); o
espírito é coisa que Deus envia e derrama, como água (Jl 3,1-2; Zc
12;10). Água era uma expressão para indicar influências boas ou más, como
no (Sl 1,3): “Pois será como a árvore plantada junto a ribeiros de águas,
a qual dá o seu fruto na estação própria, e cujas folhas não caem; e tudo
quanto fizer prosperará”. [...] (PALHANO, 2001, p. 403).
Então concluímos que Jesus, após sua ressurreição, manteve-se
coerente com o que pensava antes de sua morte; a mudança ocorreu por
conta de interpolação e acréscimo. Ainda bem!
A justificativa de alguns para o ritual do batismo, é porque
todos, ao nascerem, trazem como herança o pecado original. De fato, é
bastante “original” o pecado de Adão e Eva; apenas isso, pois, ao
imputarem-no a todos nós, além de cometerem a maior das injustiças, é
contrário ao que “a palavra de Deus” determina: “Os pais não serão mortos
pela culpa dos filhos, nem os filhos pela culpa dos pais. Cada um será
executado por causa de seu próprio crime” (Dt 24,16) ou “O indivíduo que
peca, esse é que deve morrer. O filho nunca será responsável pelo pecado
do pai, nem o pai será culpado pelo pecado do filho” (Ez 18,20).
Mas, se tal coisa é verdadeira, se devemos ser batizados por conta
do pecado original, então como explicar o batismo de Jesus, já que todos
nós acreditamos que Ele tenha nascido puro? Por que Jesus nunca disse:
Vá, seja batizado e será salvo? Evidentemente é porque Jesus nunca pregou
o batismo de João, apesar de, conforme já o dissemos, encontrarmos uma
passagem bíblica (Mc 16,14-16), sobre a qual já comentamos, colocando
isso como se fossem palavras de Jesus.
Por outro lado, entre o ritual do batismo praticado por João
Batista e o realizado hoje em dia, há grande diferença, pois o anterior
era o batismo do arrependimento que só era realizado após a pessoa
confessar seus pecados, o que não acontece quando se batiza uma criança
recém-nascida. De fato, o batismo nos primeiros tempos do cristianismo
era tido como sendo um ritual que conferia uma espécie de selo ao novo
cristão, ao novo convertido, ou seja, o ritual não era uma causa, mas uma
conseqüência da conversão. E hoje, mesmo no caso de pessoas adultas que
fizeram "estudo bíblico" para se batizarem, elas não confessam seus
pecados nem antes, nem durante ou após a cerimônia. Além disso, o ritual
era o de submersão (mergulho); mas vemos que, nas práticas atuais, nem
sempre o fazem dessa forma, já que em determinadas correntes religiosas
apenas se esparge água sobre o crente, enquanto que em outras se derrama
água sobre a sua cabeça. Com isso, ratificamos o que dissemos
anteriormente sobre as igrejas cristãs praticarem mesmo é o batismo de
João.
Mas quem tem razão? Qual dos Espíritos Santos está lhes inspirando
o batismo correto?
Uma outra questão: as mulheres eram batizadas? Sim (At 8,12); mas
isso é estranho já que, pela cultura da época, as mulheres não tinham o
menor valor; inclusive, parece-nos que nem mesmo participavam dos rituais
religiosos (1Cor 14,34-35), só admitidos aos homens. Convém lembrar que o
ritual de iniciação judaica era a circuncisão, obviamente feita somente
aos do sexo masculino. Sabendo-se que as mulheres estão salvas “por dar à
luz filhos” (1Tm 2,15), não haveria necessidade de batizá-las visandolhes a salvação por esse ritual; não é mesmo?
Justificam alguns que, pelo fato de Jesus ter sido batizado, nós
também devemos sê-lo. Embora já tenhamos demonstrado por que Jesus foi
batizado (Jo 1,31.33), afirmamos que, se o simples fato dele ter sido
batizado nos obriga a isso, então, por questão de coerência e de lógica,
devemos manter o ritual da circuncisão, já que Jesus também se submeteu a
tal prática. Ah! Só mais um lembrete: Jesus também foi crucificado...
Quem se habilita?
Outros mais, talvez, apresentem alguma passagem bíblica para
corroborar o batismo, por puro apego a rituais, dos quais não querem
largar mão; por isso não buscam uma visão do conjunto e se dão por
satisfeitos com a primeira passagem que encontram. Muitos desses,
provavelmente, irão querer contestar esse nosso texto; mas, se não
pesquisam sobre o assunto e ainda ficam presos às interpretações
dogmáticas, o que poderemos fazer?... A esses apenas apresentamos esta
passagem: “Temos muito a dizer sobre este assunto, mas é difícil
explicar, porque vocês se tornaram lentos para compreender. Depois de
tanto tempo, vocês já deviam ser mestres; no entanto, ainda estão
precisando de alguém que lhes ensine as coisas mais elementares das
palavras de Deus. Em vez de alimento sólido, vocês ainda estão precisando
de leite. Ora, quem precisa de leite ainda é criança, e não tem
experiência para distinguir o certo do errado. E o alimento sólido é para
os adultos que, pela prática, estão preparados para distinguir o que é
bom e o que é mau” (Hb 5,11-14).
Mas cabe-nos um esclarecimento final a respeito do batismo, aquele
que era o praticado naquela época; para isso vamos recorrer a Palhano Jr,
que explica:
Batismo. (Do grego: bapto, mergulhar). Ritual de purificação. João
Batista administrava um batismo de arrependimento para a remissão de
pecados (Marcos 1,4), antecipando o batismo no espírito e em fogo
(verdade) que o Messias exerceria (Mateus 3,10). O batismo cristão está
arraigado na ação redentora de Jesus e o ato d'Ele, quando se submeteu ao
batismo de João (Marcos 1,9), demonstrou e efetivou sua solidariedade com
os homens. Na igreja primitiva, o batismo não era com água, mas com a
imposição das mãos sobre aquele que se convertia e objetivava o chamado
'dom do espírito santo', isto é, sensibilizar aquele que era batizado
para que ganhasse percepção espiritual ou mediúnica (Atos 19,6). O
batismo com água é um mero ritual sem nenhum valor moral e os espíritas
não devem se preocupar com isso. Trata-se de um sacramento dogmático que
afirma ter ação salvadora um ato externo, ritualístico, mais uma
obrigação religiosa que descaracteriza a obrigação do esforço próprio,
para o merecimento da paz e da felicidade. O batismo de criancinhas, para
apagar o 'pecado original', é o resultado da ação judaizante sofrida
pelos cristãos, pois nada mais é do que a substituição do sinal da
circuncisão ao oitavo dia de nascido para o filho varão. O espiritismo
preconiza a inutilidade de qualquer culto, ritual, sacramento, paramento,
sinal, para as coisas religiosas, visto que os verdadeiros adoradores de
Deus o adoram em espírito e verdade (João 4,23). (PALHANO JR, 1999, p.
173).
Esperamos, caro leitor, que esse estudo possa lhe ser útil em
alguma coisa, especialmente para que encontre a “verdade que liberta”.
A traição de Judas – uma história mal contada
É interessante como alguns temas bíblicos não resistem a uma
análise mais profunda. Vários deles, que já tratamos em outros textos,
nos levam a uma certeza que muitos trechos constantes da Bíblia são uma
deliberada e sutil montagem para se chegar a um objetivo previamente
definido. Daí porque muitos deles foram amoldados a esse objetivo,
passando por cima da verdade histórica que deveriam conter tais escritos.
Muitas pessoas se chocam com atitudes como essa: a de uma análise
crítica. Entretanto, não abrimos mão de fazer uso da inteligência com a
qual nos dotou o Criador. Nós, seres humanos racionais, que efetivamente
somos, temos que usar esse dom, pois, não usá-lo é abdicar da única
faculdade que nos difere dos animais, ditos irracionais, por isso,
acreditamos que só ofendemos a Deus, quando não utilizamos a nossa
inteligência plenamente.
Reconhecemos, entretanto, ser muito difícil a inúmeras pessoas,
principalmente as que não pesquisam, abandonar conhecimentos adquiridos,
especialmente quando foram passados como verdades divinas, sob coação
ideológica. Ou seja, o simples questionamento da veracidade das mesmas já
é, por si só, considerado como grave ofensa à divindade. Essa
possibilidade de heresia, acaba gerando um bloqueio mental em função do
medo do conseqüente castigo por esse tipo de “pecado”. Assim, somos
“levados” a aceitar, sem o mínimo questionamento, o que nos tem sido
imposto como verdade absoluta. Com o tempo, passamos a defender idéias,
que nunca analisamos ou criticamos, como se nossas fossem.
O assunto que iremos tratar, desta vez, está relacionado a uma
suposta traição a Jesus, que teria sido realizada por Judas Iscariotes,
um de seus discípulos. Inclusive, tudo que consta na Bíblia sobre ele
está somente nas passagens que iremos ver a seguir.
Em Lucas 22,3-6, está escrito que, após satanás ter entrado em
Judas, ele foi procurar os sacerdotes para ver de que maneira entregaria
Jesus. Os sacerdotes ficaram tão satisfeitos com isso que combinaram em
dar-lhe dinheiro, uma vez que eles desejavam, de há muito, eliminar esse
herético. Tal acontecimento se deu, na versão de Lucas, antes da festa
dos Ázimos; evidentemente, antes da ceia de páscoa, cujo prato principal
eram os cordeiros que matavam especificamente para essa finalidade. No
entanto, segundo João, esse fato se deu após a ceia (Jo 13,26-27), apesar
de, um pouco antes, ele ter dito: “Enquanto ceavam, tendo já o diabo
posto no coração de Judas, filho de Simão Iscariotes, que o traísse” (Jo
13,2), sendo, por conseguinte, omisso sobre qualquer combinação anterior
entre Judas e os sacerdotes. Portanto, podemos verificar que há conflito
entre as narrativas.
Quanto à questão dessa combinação com os sacerdotes, Mateus diz
que Judas pediu dinheiro para lhes entregar Jesus (Mt 26,15), enquanto
que Marcos (14,11) e Lucas (22,5) afirmam que foram os sacerdotes que
tomaram a iniciativa de retribuir ao discípulo, dando-lhe dinheiro como
recompensa pelo seu ato ignominioso. Um bom observador irá perceber que,
pelas suas narrativas, Mateus teve uma evidente preocupação, qual seja, a
de relacionar Jesus com as profecias, inclusive, muito mais que os outros
Evangelistas. Daí ser ele o único que diz sobre o quanto Judas teria
recebido, dando como certa a importância de trinta moedas de prata (Mt
26,15; 27,3). Essas passagens que falam disso são relacionadas a Zc
11,12-13, no pressuposto de que ela seja uma profecia; entretanto, os
fatos ali narrados se referem ao próprio profeta Zacarias; não é, por
conseguinte, uma revelação sobre algo que viesse a ocorrer no futuro.
Ao narrar os acontecimentos durante a ceia, Mateus relata que
Jesus, ao responder aos discípulos sobre quem o iria trair, teria dito:
“Quem vai me trair, é aquele que comigo põe a mão no prato. O Filho do
Homem vai morrer, conforme a Escritura fala a respeito dele..." (Mt
26,23-24). Passagem relacionada ao Sl 41,10, onde Davi reclama sobre um
amigo que o trai. O que nos leva a concluir que tal passagem não é uma
profecia; assim, não poderia estar relacionada a Jesus, como querem os
que buscam, nas Escrituras, apoio para seus dogmas. Davi foi traído por
um amigo, seu próprio conselheiro, de nome Aquitofel, conforme narrativa
em 2Sm 15,12.31. O final trágico da vida desse “amigo da onça” foi
enforcar-se (2Sm 17,23); por isso, querem, igualmente, atribuir esse
mesmo destino a Judas, como iremos ver mais à frente.
Outra coisa que nos parece sem nenhum sentido, principalmente por
tudo que Jesus fez, é que Ele tenha realmente se preocupado em delatar o
seu traidor, conforme narra Jo 13,26, quando, para identificar quem o
trairia, diz aos que o acompanhavam, naquela ceia, que seria a quem desse
um pão molhado; dito isso, imediatamente, molha um pão e o entrega a
Judas. Talvez a preocupação aqui seja buscar mais uma forma de relacionar
tal episódio a uma suposta profecia sobre esse acontecimento.
Mateus (26,48) e Marcos (14,44) dizem que Judas havia combinado
com os sacerdotes um sinal – o beijo – para que pudessem identificar quem
era Jesus, e o colocam fazendo isso (Mt 26,49; Mc 14,45). Lucas, apesar
de não relatar absolutamente nada sobre esse sinal, diz que Judas
aproximando-se de Jesus o saúda com um beijo (Lc 22,47). Enquanto que
João não fala de ter havido uma combinação de sinal, nem que Jesus teria
dito algo a respeito, e nem mesmo coloca Judas beijando a Jesus, já que,
para ele, foi o Mestre que se adiantou, aos guardas acompanhados de
Judas, se identificando a eles como sendo Jesus, o Nazareno, a quem
procuravam (Jo 18,3-5). Fatos novamente conflitantes.
Nenhum outro evangelista, a não ser João, coloca Judas como sendo
aquele que, entre os discípulos, cuidava da “bolsa”; vai ainda mais longe
acusando-o de ladrão (Jo 12,6). Como uma acusação grave dessa não foi
feita por mais ninguém? Se Judas fosse realmente um gatuno, por que
motivo o deixaram tomando conta do dinheiro? Alguém colocaria um ladrão
como seu administrador financeiro? Não seria, evidentemente, para colocar
a honra desse discípulo em jogo, fórmula encontrada para se justificar
que, por ser assim, ele não teria também nenhum escrúpulo em trair o seu
próprio Mestre?
Não bastassem os que já encontramos, aparecem-nos agora mais dois
evidentes conflitos.
O primeiro está relacionado à forma pela qual Judas deu cabo à sua
vida, movido, segundo relata Mateus, por profundo remorso. Estranhamente
ele é o único evangelista que fala disso; nenhum outro apresenta uma
linha sequer sobre Judas ter se arrependido. Continuando seu relato,
Mateus diz que Judas enforcou-se (27,5); entretanto, em Atos (1,18) está
se afirmando que ele “precipitando-se, caiu prostrado e arrebentou pelo
meio, e todas as suas entranhas se derramaram”, mudando, desta maneira, a
versão anterior a respeito de sua morte. Encontramos a seguinte
explicação para esse passo: “Possivelmente a narração da morte de Judas
enforcando-se, está inspirada na história da morte de Aquitofel (cf. 2Sm
17,23)” (Bíblia Sagrada Santuário, p. 1463). Conforme citamos
anteriormente Aquitofel enforcou-se, mas querer, daí, apenas por
inspiração, atribuir a Judas uma morte semelhante é lamentável, pois esse
fato bíblico deveria ter sido relatado fielmente como ocorrido, aliás,
não só esse mas todos; não como o autor quer que tenha acontecido, o que
nos coloca diante de uma mera suposição.
O segundo diz respeito ao destino dado às moedas. Mateus menciona
que Judas as teria devolvido, atirando-as dentro do santuário, que,
recolhidas pelos sacerdotes, foram, por deliberação, destinadas à compra
do campo do oleiro, para servir de cemitério aos estrangeiros (Mt 27,310), citando que isso aconteceu para se cumprir o que dissera o profeta
Jeremias. Mas essa história parece-nos mal contada, pois em Atos se diz
que o próprio Judas teria comprado um campo (At 1,18), que até poderia
ser esse do oleiro; mas, de qualquer forma, está em conflito com a versão
anterior.
Na maioria das Bíblias em que consultamos, dizem que as profecias
relacionadas a Mt 27,9, cujo teor é: “Cumpriu-se, então, o que foi dito
pelo profeta Jeremias: Tomaram as trinta moedas de prata, preço do que
foi avaliado, a quem certos filhos de Israel avaliaram e deram-nas pelo
campo do oleiro, assim como me ordenou o Senhor”, seriam: Zc 11,12-13 e
Jr 32,5-16, ou Jr 18,1-4 e 19,1-3 (Bíblia Anotada, p. 1229), havendo,
portanto, sérias dúvidas quanto à identificação da profecia específica
relacionada ao episódio. Como já falamos sobre a citação de Zacarias,
fica-nos, por conseguinte, apenas as de Jeremias para dizermos alguma
coisa. Em notas explicativas sobre elas encontramos que: “A citação é uma
combinação artificial de Jr 32,6-9 e Zc 11,12-12” (Bíblia do Peregrino,
p. 2386); isso deixa-nos diante da realidade de que, por se admitir que
seja “uma combinação artificial”, estamos, certamente, diante de mais uma
tentativa de se relacionar acontecimentos no Novo Testamento com
ocorrências registradas no Antigo Testamento, tidas como se fossem
verdadeiras profecias.
Quem tiver a curiosidade de consultar a passagem citada de
Zacarias não encontrará nela nenhum aspecto de profecia; são apenas fatos
relacionados àquele momento vivido por esse profeta. E quanto a Jeremias,
não se encontra absolutamente nada que ele tenha comprado alguma coisa
por trinta moedas. Sobre a compra de um terreno, sim, como podemos ver em
32,6-12; mas uma situação circunstancial, explicada da seguinte forma:
À primeira vista se trata de um incidente: a compra e venda de um
terreno segundo as normas e o procedimento da legislação judaica. O
narrador se compraz em registrar todos os detalhes, mostrando que a lei
foi estritamente cumprida e que o ato é juridicamente válido. O
surpreendente dessa compra-e-venda é que se realiza às vésperas da
catástrofe inevitável. Que sentido tem nesse momento comprar um terreno
para que fique em poder da família? Tudo já está perdido. Mas o absurdo
do ato é a chave do seu sentido. Para efeitos legais imediatos, a compra
nada servirá; para efeitos proféticos, é admirável ato de esperança no
futuro. É um oráculo em ação, Jeremias profetiza ao vivo: não só
palavras, nem ação simbólica, mas ato real jurídico. Esse ato significa o
futuro que ele antecipa: a jarra de barro onde se guarda o contrato é um
penhor que Deus concede. Apesar do que está para acontecer, a terra
continua sendo propriedade dos judaítas: a terra prometida aos patriarcas
e possuída durante séculos... (Bíblia do Peregrino, p. 1928).
Podemos ainda confirmar isso com a seguinte explicação: “A citação
[Mt 27,9] é tirada na realidade de Zacarias (11,12-13). Mas, ele lembra
também diversos versículos de Jeremias onde se faz menção do campo e do
oleiro (32,6-6; 18,2-12)”. (Bíblia Ave Maria, p. 1319). Ressaltamos que a
expressão “ela lembra”, é uma afirmativa que depõe contra o próprio texto
que, positivamente, diz ser de Jeremias essa profecia.
Percebemos que as narrativas possuem diversos fatos conflitantes
entre si, deixando-nos na convicção que tudo não passa, na melhor das
hipóteses, de um ajuste dos textos para se chegar a um objetivo prédeterminado, conforme já falávamos, desde o início. Para se ter uma idéia
mais exata sobre isso, colocaremos a passagem Mateus 27,1-26, que, para
tornar a explicação mais fácil de ser entendida, iremos dividi-la em três
partes:
I) 1-2: “De manhã cedo, todos os chefes dos sacerdotes e os anciãos do
povo convocaram um conselho contra Jesus, para o condenarem à morte. Eles
o amarraram e o levaram, e o entregaram a Pilatos, o governador'.
II) 3-10: “Então Judas, o traidor, ao ver que Jesus fora condenado,
sentiu remorso, e foi devolver as trinta moedas de prata aos chefes dos
sacerdotes e anciãos, dizendo: 'Pequei, entregando à morte sangue
inocente'. Eles responderam: 'E o que temos nós com isso? O problema é
seu'. Judas jogou as moedas no santuário, saiu, e foi enforcar-se.
Recolhendo as moedas, os chefes dos sacerdotes disseram: 'É contra a Lei
colocá-las no tesouro do Templo, porque é preço de sangue'. Então
discutiram em conselho, e as deram em troca pelo Campo do Oleiro, para aí
fazer o cemitério dos estrangeiros. É por isso que esse campo até hoje é
chamado de 'Campo de Sangue'. Assim se cumpriu o que tinha dito o profeta
Jeremias: 'Eles pegaram as trinta moedas de prata - preço com que os
israelitas o avaliaram - e as deram em troca pelo Campo do Oleiro,
conforme o Senhor me ordenou'".
III) 11-26: “Jesus foi posto diante do governador, e este o interrogou:
'Tu és o rei dos judeus?' Jesus declarou: 'É você que está dizendo isso'.
E nada respondeu quando foi acusado pelos chefes dos sacerdotes e
anciãos. Então Pilatos perguntou: 'Não estás ouvindo de quanta coisa eles
te acusam?' Mas Jesus não respondeu uma só palavra, e o governador ficou
vivamente impressionado. Na festa da Páscoa, o governador costumava
soltar o prisioneiro que a multidão quisesse...”
Para o que queremos colocar não é necessário citar toda a
narrativa; assim, omitimos o restante da seqüência dessa última (vv. 1626), pois até aqui, no versículo 15, já encontramos o suficiente para
entendermos e percebermos que os versículos de 3-10 nada têm a ver com o
contexto geral daquilo relatado na passagem. Inclusive, no versículo 3
está dito que Judas viu que Jesus havia sido condenado, quando, no
desenrolar do texto, esse fato ainda não havia acontecido, que só veio
acontecer mais à frente. A quebra brusca na seqüência dessa narrativa,
não deixou de ser percebida pelo tradutor da Bíblia do Peregrino,
conforme nos explica:
O episódio da morte de Judas interrompe estranhamente o curso do
relato, como se a entrega de Jesus ao governador ultrapassasse suas
previsões. Sabemos que a figura de Judas alimentou desde cedo fantasias
legendárias. Lucas dá versão diferente (At 1,18-20). A morte violenta do
perseguidor ou culpado é tema literário conhecido (p. ex. Absalão, 2Sm
18: Antíoco Epífanes, 2Mc9; em versão poética vários oráculos proféticos,
p.ex. Is 14; Ez 28). Antes de morrer, Judas acrescenta seu testemunho
sobre a inocência de Jesus. Confessa o pecado, mas desespera do perdão...
(pp. 2385-2386).
Isso vem confirmar todas as nossas suspeitas de que tudo foi um
calculado “arranjo” visando ajustar os textos às conveniências dos
interessados para que eles tivessem referências às suas idiossincrasias.
E, em relação ao assunto tratado, temos fortes suspeitas de que vários
outros trechos foram intercalados às narrativas bíblicas, para amoldá-los
a um propósito determinado. Podemos citar, como exemplo, Mt 26,14-16; 2125; 28,11-15; Mc 10,10-12; 14,18-21; Lc 22,3-6; 21-23; Jo 1,33; 11,12-16,
para que você, caro leitor, faça uma análise mais aprofundada.
Podemos ainda recorrer a Ernest Renan (1823-1892), que disse:
Quanto ao desgraçado Judas de Cariote, lendas terríveis correram
sobre sua morte. Disseram que, com o prêmio de sua perfídia, comprara
umas terras nos arredores de Jerusalém. Havia, justamente, ao sul do
monte Sião, um local chamado Hakeldama (campo de sangue) (8). Pensou-se
que era a propriedade adquirida pelo traidor (9).Segundo uma tradição,
ele se matou (10). Segundo uma outra, ele levou um tombo na sua
propriedade e, como conseqüência, suas entranhas se espalharam pelo chão
(11). Segundo outras, ele morreu de uma espécie de hidropsia, acompanhada
de circunstâncias repugnantes que foram tomadas como castigo do céu (12).
O desejo de comparar Judas a Achitofel (13) e de mostrar nele o
cumprimento das ameaças que o Salmista pronunciou contra o amigo pérfido
(14) pode ter dado ensejo a essas lendas.
8. São Jerônimo, De situ et nom. Loc. hebr., para a palavra Acheldama.
Eusébio (ibid.) diz ao norte. Mas os itinerários confirmam a lição de São
Jerônimo. A tradição que nomeia Haceldama à necrópole situada no fundo do
vale de Hinon remonta pelo menos à época de Constantino.
9. Atos, I, 18-19. Mateus, ou melhor, seu interlocutor, deu aqui um tom
menos satisfatório à tradição, a fim de ligar a isso a circunstância de
um cemitério para estrangeiros, que se achava perto dali, e de encontrar
uma pretensa confirmação em Zacarias, XI,12-13.
10. Mat. XXVII, 5.
11. Atos, l.c.; Pápias, em Ecumenius, Enarr, in Act. Apost., II e em Fr.
Münter, Fragm. Patrum graec. (Hafniae, 1788, fasc. I, p. 17 e seg.;
Teofilacto, em Mat., XXVII, 5.
12. Pápias, em Münter, l.c., Teofilacto, l.c.
13. II Sam., XVII,23.
14. Salmos LXIX e CIX.
(RENAN, A vida de Jesus, 2004, pp. 396-397). (grifo nosso).
Ficamos a pensar como se sentiu e como ainda pode estar se
sentindo Judas sobre tudo quanto lhe imputaram como procedimento. O pobre
coitado ainda é julgado e condenado, anos após anos, pelos ditos
“cristãos”, que, com certeza, não cumprem o: “Não julgueis os outros para
não serdes julgados, porque com o julgamento com que julgardes, sereis
julgados e com a medida que medirdes sereis medidos” (Mt 7,1-2). Não
bastasse isso, ainda é humilhado, malhado e, ao final, é espetacularmente
“detonado”. Infelizmente esse nos parece ser o seu destino cruel, que se
perpetua anualmente nas comemorações da Semana Santa realizadas por
determinadas religiões cristãs tradicionais.
Reabrimos esse “processo”, pois chega-nos às mãos a revista
Discovery Magazine, mês de março de 2005, com uma interessante reportagem
intitulada Últimos momentos de Jesus, assinada por Walter Falceta Jr, da
qual transcrevemos os seguintes trechos:
(...) Mas pesquisas mais recentes lançam novos olhares
especialmente sobre o odiado Judas – aquela figura que, vestida em boneco
de trapos, mobiliza os malhadores nos Sábados de Aleluia.
Ao contrário da tradição, os estudos modernos são mais complacentes
com o discípulo dissidente, tido no imaginário popular como um homem
ambicioso e sem caráter. O magistrado israelense Haim Cohn, ex-juiz da
Suprema Corte de Israel, autor de O Julgamento e a Morte de Jesus,
defende que, à época da Paixão, Jesus já era conhecido em Jerusalém e
sabia-se de seu costume de meditar no Monte das Oliveiras. “Não seria
necessário, portanto, que alguém indicasse seu refúgio”, diz Cohn. Dessa
forma, o episódio do “beijo da traição”, que teria sido protagonizado por
Judas para indicar aos soldados romanos o momento adequado da captura de
Jesus, pertenceria ao campo da lenda e não da realidade...
Para outros especialistas, o perfil de Judas foi moldado para
representar os arquétipos da maldade. De acordo com o bispo da Igreja
Anglicana John Spong, de Newark (EUA), até o nome de Judas teria sido
escolhido para remeter o inconsciente coletivo ao termo “judaísmo”, numa
estratégia para marcar negativamente a imagem dos primeiros opositores do
cristianismo.
FICÇÃO NOS EVANGELHOS
Na década passada, o padre Raymond Brown, ex-professor do Seminário
Teológico União, de Nova York, produziu o mais detalhado estudo sobre o
que aconteceu nos últimos dias da vida de Cristo. Um calhamaço de 1.600
páginas, o livro The Death of J. B. Howell the Messiah (“A morte do
Messias”, ainda não editado no Brasil) compara os argumentos de vários
intérpretes da Bíblia, os chamados exegetas, à luz de dados históricos.
Em seus textos, Brown dá crédito aos escritos oficiais e estimula uma
leitura conservadora das Escrituras. Mesmo assim, admite que o objetivo
dos autores dos textos sagrados era evangelizar e não reconstituir fatos
históricos. Segundo ele, é natural que tenham recorrido à ficção para
expor suas idéias. Brown considera, por exemplo, que a história das 30
moedas que, segundo a Bíblia, Judas recebeu dos sacerdotes do Sinédrio
para entregar Cristo passou a simbolizar o suposto gosto dos judeus pelo
dinheiro. (pp. 28-33).
Isso vem, de certa forma, em apoio ao que deduzimos de nossos
estudos bíblicos, sinal que não estamos sendo heréticos sozinhos, embora
isso não nos preocupe, pois para nós o que é mais importante é que se
restabeleça a verdade.
A Questão do Bom ladrão
Muitas vezes, a passagem de Lucas a respeito do “bom ladrão” é
utilizada, principalmente, pelos nossos detratores de plantão, para
sustentarem a idéia de que não existe a reencarnação. Não querendo entrar
detalhadamente neste assunto, apenas gostaríamos de dizer para aqueles
que não a aceitam, que vejam como ela é obvia nas seguintes passagens:
Mt 17,12: “Mas digo-vos que Elias já veio, e não o conheceram, mas
fizeram-lhe tudo o que quiseram. Assim farão eles também padecer o Filho
do homem”.
Mt 11,14-15: “E, se quereis dar crédito, é este o Elias que havia de vir.
Quem tem ouvidos para ouvir, ouça”.
Jo 3,3: “Jesus respondeu, e disse-lhe: Na verdade, na verdade te digo que
aquele que não nascer de novo, não pode ver o reino de Deus”.
Jo 3,7: “Não te maravilhes de te ter dito: Necessário vos é nascer de
novo”.
Vemos que, infelizmente, muitos ainda não “têm ouvidos de ouvir”.
Não compreendemos como podem conceber uma Justiça Divina sem a
reencarnação. Já que, para nós, a reencarnação é o único meio de “sermos
perfeitos como o Pai Celestial” (Mt 5,48), conforme nos recomenda Jesus,
a não ser que Ele nos tenha ensinado algo que não pudéssemos fazer, o que
seria um absurdo.
Voltando ao que nos propomos, achamos por bem fazer uma análise
desse episódio, para que possamos encontrar a verdade. Vamos, então, às
narrativas bíblicas sobre tal acontecimento, tiradas da Bíblia Anotada,
Editora Mundo Cristão:
Mt 27,44: “E os mesmos impropérios lhe diziam também os ladrões que
haviam sido crucificados com ele”.
Mc 15,32: “Também os que com ele foram crucificados o insultavam”.
Lc 23,39-43: “Um dos malfeitores crucificados blasfemava contra ele,
dizendo: 'Não és tu o Cristo? Salva-te a ti mesmo e a nós também'.
Respondendo-lhe, porém, o outro repreendeu-o dizendo: 'Nem ao menos temes
a Deus, estando sob igual sentença? Nós na verdade com justiça, porque
recebemos o castigo que os nossos atos merecem; mas este nenhum mal fez'.
E acrescentou: 'Jesus, lembra-te de mim quando vieres no teu reino'.
Jesus lhes respondeu: 'Em verdade te digo que hoje estarás comigo no
paraíso'”.
Jo 19,18: “Onde o crucificaram, e com ele outros dois, um de cada lado, e
Jesus no meio”.
Ressaltamos que se a Bíblia, segundo dizem, é totalmente inspirada
por Deus por que não narram os Evangelistas os mesmos fatos? Ora, se a
fonte de inspiração é de uma mesma origem, Deus, deveriam ser tais
narrativas completamente iguais, pelo menos quanto ao fundo. Poderemos
até aceitar palavras diferentes, mas não com divergências quanto ao fato
ocorrido; e aqui ele é narrado de forma diferente, conforme iremos
observar a seguir:
1 – Quanto ao diálogo:
Mateus, Marcos e João nada relatam de qualquer diálogo entre os
três crucificados.
2 – Quanto à atitude:
Mateus e Marcos dizem que os ladrões estavam, isto sim, entre os
que escarneciam de Jesus. Só Lucas diz que Jesus teria dito para um deles
que “hoje estarás comigo no Paraíso”.
3 – Quanto à testemunha:
João que estava ao pé da cruz, ou seja, a testemunha ocular, nada
diz sobre este diálogo de Jesus com um dos ladrões.
Por curiosidade, vamos ver como essa frase aparece nas Bíblias de
outras editoras:
Mundo Cristão: “Em verdade te digo que hoje estarás comigo no
paraíso”.
Vozes: “Em verdade te digo: ainda hoje estarás comigo no paraíso”.
Pastoral: “Eu lhe garanto: hoje mesmo você estará comigo no
paraíso”.
Ave Maria: “Em verdade te digo, hoje estarás comigo no paraíso”.
Barsa: “Em verdade te digo: que hoje serás comigo no paraíso”.
Loyola: “Eu te asseguro: hoje mesmo estarás comigo no paraíso”.
Perguntaríamos, então, qual delas é a frase mais verdadeira?
Enquanto algumas dizem “em verdade”, outras dizem “eu garanto” e “eu te
asseguro”, apesar dessas Bíblias terem como origem o mesmo segmento
religioso.
Por outro lado, vários outros autores confirmam o que o Dr.
Severino Celestino da Silva disse em seu livro Analisando as Traduções
Bíblicas:
Sabemos que os manuscritos originais do Novo Testamento não
possuíam pontuação, e em face do fato de o grego clássico (incluindo o
grego koiné, no qual foi escrito o Novo Testamento) gozar de ampla
liberdade no tocante à ordem das palavras, é impossível, à base do
próprio texto grego, provar um lado ou outro dessas idéias
contraditórias. (SILVA, 2001, pp. 309-310)
Assim, não fica difícil entender que nas traduções colocaram a
pontuação conforme a conveniência de cada tradutor.
Analisando, especificamente essa frase, e, se admitirmos que isso
realmente tenha acontecido, teremos uma contradição de Jesus, pois Ele
mesmo disse: a cada um segundo suas obras. (Mt 16,27). E, quando do
episódio com Madalena, após sua ressurreição, disse Ele a esta mulher:
“Não me detenhas, porque ainda não subi para meu Pai, mas vai para meus
irmãos, e dize-lhes que eu subo para meu Pai e vosso Pai, meu Deus e
vosso Deus” (Jo 20,17). Ora, se Jesus, três dias após sua morte, ainda
não tinha subido ao Pai, como Ele poderia ter afirmado ao “bom ladrão”,
que hoje estarás comigo, ou seja, justamente no dia de sua morte na cruz?
Por outro lado, o “bom ladrão”, ao reconhecer que “nós na verdade
com justiça, porque recebemos o castigo que os nossos atos merecem; mas
este nenhum mal fez”, ele está aceitando a justiça dos homens, e por mais
forte razão, aceitaria a Justiça de Deus que lhe daria uma pena merecida.
Assim, podemos concluir também que ele não estava pedindo uma recompensa
por algo que não tivesse feito, mas, apenas que Jesus se lembrasse dele
quando voltasse; certamente visando o perdão dos seus pecados; não é
mesmo?
Além disso, o dito “bom ladrão” (e, diga-se de passagem, é o único
ladrão bom da história da humanidade) somente reconheceu que ele e o
outro tinham motivos para morrerem crucificados, e que Jesus era um
inocente sendo condenado; assim, já que não houve nem mesmo um simples
arrependimento, por parte dele, por que o prêmio?
Narra Mateus (20,20-23) que a mãe dos filhos de Zebedeu chega a
Jesus com o seguinte pedido: “Ordena que estes meus dois filhos se sentem
um à tua direita e outro à tua esquerda, no teu reino”. Não vemos Jesus
atendendo ao pedido desta abnegada mãe; ao contrário, disse-lhe: “Mas
quanto a vos sentardes à minha direita ou à minha esquerda, não me cabe
concedê-lo, porque estes lugares são destinados àqueles para os quais meu
Pai os reservou”. Ora, se aqui Jesus afirma que não cabe a Ele conceder
um lugar no Paraíso ou reino dos céus, como, então, promete um lugar ao
“bom ladrão”? Será que Ele estaria contradizendo-se? Acreditamos que não,
pois tanto nesse caso, quanto no outro, teria que agir sem conceder
qualquer tipo de privilegio, ou seja, “a cada um segundo suas obras” (Mt
16,27).
Não bastassem os fatos acima, uma análise cuidadosa da cena do
Calvário revela que o ladrão pode não ter morrido naquele mesmo dia, pois
João (19,31-33) nos diz: "Os judeus, pois, para que no sábado não
ficassem os corpos na cruz, visto como era a Preparação (pois era grande
o dia de Sábado), rogaram a Pilatos que lhes quebrassem as pernas, e que
fossem tirados. Foram, pois, os soldados e, na verdade, quebraram as
pernas do primeiro, e ao outro que com ele fora crucificado; mas, vindo a
Jesus, e vendo-O já morto, não Lhe quebraram as pernas".
Arnaldo B. Chistianini aborda a questão do costume de quebrar as
pernas em seu livro Sutilezas do Erro, de onde transcrevemos:
Por que "quebrar as pernas" dos justiçados? Porque o crucificado
não morria no mesmo dia. Cristo foi caso excepcional e sabemos que não
morreu dos ferimentos ou da hemorragia, mas de quebrantamento do coração.
Morreu de dor moral por suportar os pecados do mundo. Mas os outros, não,
e as crônicas descrevem o condenado esvaindo-se lentamente durante dias.
Diz, por exemplo o comentário de J. B. Howell:
"O crucificado permanecia pendurado na cruz até que, exausto pela
dor, pelo enfraquecimento, pela fome e a sede, sobreviesse a morte.
Duravam os padecimentos geralmente três dias, e às vezes, sete." (1)
É óbvio que os homens de maior robustez física duravam até sete
dias na cruz. No caso em tela, os judeus, não permitiram que se
conservasse um criminoso na cruz no dia de sábado, pois consideravam um
desrespeito à santidade do dia de repouso.
"De acordo com o costume, quebravam as pernas dos criminosos depois
de os haverem removido da cruz, deixando-os estendidos no chão, até que o
sábado passasse. Depois do sábado haver passado, sem dúvida esses dois
corpos foram outra vez amarrados na cruz, e lá ficaram diversos dias, até
morrerem..."
Se era necessário quebrar as pernas aos dois malfeitores, antes do
pôr-do-sol, é porque não haviam, morrido ainda. Na pior das hipóteses
viveram ainda, pelo menos, um dia a mais que o Mestre. Como podia, um
deles, estar no mesmo dia junto de Jesus?
(1) E. Howell, Comentário a S. Mateus, pág. 500.
(CHISTIANINI, 1965, pp. 274-275).
Se era necessário quebrar as pernas aos dois malfeitores, antes do
pôr-do-sol, é porque não haviam morrido ainda. Na pior das hipóteses,
viveram ainda pelo menos um dia a mais que o Mestre. Como podia, um
deles, estar no mesmo dia junto de Jesus?
Já falamos, várias vezes, mas não custa repetir. Coloquemos a
frase do seguinte modo: Em verdade te digo hoje, estarás comigo no
paraíso. Veja como uma simples vírgula muda completamente o sentido do
texto... Desta forma, é muito mais condizente com a Justiça Divina, pois
um indivíduo somente irá para o Paraíso, quando tiver realizado as obras
que justifiquem merecê-lo, não importando quanto tempo levará para isso.
Também não estaria em conflito com o texto: “Ora, se invocais como
Pai aquele que, sem acepção de pessoas, julga segundo a obra de cada um,
portai-vos com temor durante o tempo da vossa peregrinação, ...” (1Pd
1,17). E, para reforçar que Deus não faz mesmo acepção de pessoas,
pedimos para consultar: Dt 10,17; 2Cr 19,7; Jó 34,19; At 10,34; 15,9; Rm
2,11; Ef 6,9 e Cl 3,25.
O Enigma do Sudário
O assunto a respeito do Sudário, volta e meia, aparece na mídia.
Como a sua veracidade ainda não foi cientificamente comprovada, a dúvida
persegue os líderes religiosos que possuem interesse específico no caso,
embora, para alguns deles, seja uma peça absolutamente verdadeira, já
que, conforme pensam, é a mesma que envolveu o corpo de Jesus.
Essa peça de linho branco, medindo 4,30 m de comprimento por 1,10
m de largura, é atualmente propriedade do Vaticano, que, diga-se de
passagem, prudentemente não a reconhece como prova material de qualquer
milagre, deixando para a Ciência atestar ou não a sua autenticidade.
Em 1988, laboratórios internacionais nos EUA, Inglaterra e Suíça,
após o teste do “Carbono 14”, estimaram que essa peça teria menos de 700
anos. Foi um baque para os que acreditavam na sua veracidade. Mas, a
coisa não parou por aí, pois o resultado do teste foi contestado,
voltando tudo a estaca zero.
Assim, até hoje não se tem nada, em definitivo, que possa
assegurar que é uma peça verdadeira. É por isso que esse assunto sempre
está voltando ao palco dos debates. Em Set/2002 o programa “Fantástico”,
da Rede Globo, fez uma reportagem sobre essa relíquia e no mês de
Abr/2003 foi a vez da Revista Galileu trazer novamente à discussão esse
polêmico assunto.
O autor da reportagem na Galileu demonstrou um jornalismo
autêntico, sem tender para lado algum, apenas fornecendo as informações,
para que o leitor tire suas próprias conclusões. Estamos fazendo questão
de ressaltar essa atitude, pois o que normalmente se vê em reportagens é
o jornalista colocar suas próprias idéias a respeito do assunto tratado,
muitas vezes sem ter uma base de dados consistentes para uma opinião
crítica aceitável, agindo mais por “ouvi dizer” do que pelos fatos em si.
Muitos não têm nem mesmo coragem de enfrentar as “instituições”; dizem
mais o que agradam a elas, em detrimento da pura verdade.
Como normalmente somos interessados em assuntos relacionados à
Bíblia, fomos pesquisar para ver o que nela poderíamos encontrar sobre
isso. Foi aí que deparamos com perguntas sem respostas.
Veja bem; os evangelistas Mateus (27,59), Marcos (15,46) e Lucas
(23,52-53) relatam que José de Arimatéia comprou um lençol e com ele
envolveu o corpo de Jesus. Entretanto, João (19,40) já diz que foi
envolvido em panos de linho com aromas, como os judeus costumavam
sepultar, dando-nos a idéia de que foram vários panos, não apenas um.
Esses panos eram longas e largas tiras de linho (A Bíblia Anotada, p.
1353), ou seja, eram faixas (Tradução Novo Mundo das Escrituras Sagradas,
p. 1257)
Ao narrar os acontecimentos do dia da ressurreição João (20,4-7)
relata-nos que os panos de linho estavam no chão e “o sudário que cobrira
a cabeça de Jesus estava enrolado num lugar à parte”. Ora, isso nos
mostra que o sudário é uma peça que se usava para cobrir a cabeça do
morto, não o corpo inteiro, como nos apresentam. No caso da ressurreição
de Lázaro, João (11,44) nos informa que ele saiu do sepulcro com os pés e
mãos enfaixados e com o rosto recoberto com um sudário, coincidindo,
portanto, com o que realmente era.
Nosso “Aurélio” define o Sudário como: “S.m.: 1. Pano com que
outrora se limpava o suor; 2. Véu com que, na Antiguidade, se cobria a
cabeça dos mortos; 3. Espécie de lençol para envolver cadáveres;
mortalha; 4. Tela que representa o rosto ensangüentado de Cristo”. Ora,
uma dessas definições equivale exatamente à que encontramos constante do
Evangelho pela narrativa de João, ou seja, pano que, na antigüidade, se
cobria a cabeça dos mortos.
Deste modo, podemos concluir que o Sudário era, na verdade, uma
peça de pano (lençol de linho) que cobria apenas a cabeça do morto.
Então, como o Sudário, atribuído a Jesus, possui todas as características
de ter envolvido de forma contínua a frente e o verso do corpo, em
desacordo com o costume daquela época? E mais: será que enterravam seus
mortos sem lhes fazer nenhum tipo de asseio? No caso de Jesus, não se
lavou o seu corpo antes de enterrá-lo? Se o corpo foi embalsamado, com
mirra e aloés, para o sepultamento, obviamente deve ter sido lavado, fato
que podemos confirmar com:
[...] Depois que retiraram Jesus do Gólgota, o sol começou a brilhar,
comprovando que ainda eram seis da tarde. José, com a ajuda das mulheres,
levou o corpo para uma carroça que tinha preparado e o conduziu até sua
propriedade. Ali lavaram (43) o corpo, envolveram-no num lençol e o
puseram no sepulcro.
_________
43. Evangelho de Pedro, 24.
(PIÑERO, 2002, p. 126) (grifo nosso).
Assim, a lavagem do corpo certamente não deixaria nenhum vestígio
de sangue; então, como explicar as manchas de sangue no Sudário, na
hipótese de ser ele verdadeiro?
Por outro lado, ainda nessa mesma hipótese, como explicar, diante
da cultura daquela época, que ele tenha sido intencionalmente guardado de
modo a chegar até os nossos dias? Ora, “as mortalhas eram consideradas
ritualmente impuras pelos judeus; não havia motivo, portanto, para que os
discípulos as recolhessem” (MELO, 1997, p. 102). Com certeza, ficar
impuro era o que um judeu não queria de jeito nenhum, pois significava
ser contrário aos preceitos religiosos. A Lei mosaica considerava impuro
todo aquele que viesse a tocar em cadáver humano, em ossos e em
sepultura, etc. Assim, é muito pouco provável que, diante do rigor
religioso daquela época, alguém se atrevesse a entrar no túmulo, onde
Jesus estivera sepultado, para pegar sua mortalha, a fim de guardá-la
como um importante objeto de recordação.
Talvez nos dias de hoje, algumas pessoas pudessem até aceitar isso
como uma coisa normal, principalmente diante do fato de que determinados
indivíduos ainda possuem o costume religioso de usar relíquias. A
história registra, para vergonha de todos nós, que há tempos atrás
ocorreu a venda indiscriminada delas, como se fossem uma mercadoria
qualquer, deixando de lado a sua significação religiosa.
Ficam aí as nossas perguntas, aguardando uma resposta
plausível dos teólogos, não dos fanatizados por sua religião; mas dos que
buscam a verdade, onde quer que ela se encontre, mesmo que com isso
tenham que mudar conceitos ou dogmas estabelecidos.
Espíritos em Prisão
Reza o credo católico que Jesus “... padeceu sob o poder Pôncio
Pilatos, foi crucificado, morto e sepultado. Desceu aos infernos e ao
terceiro dia ressurgiu dos mortos; subiu aos céus e está sentado à mão
direita de Deus-Pai, todo-Poderoso, de onde há de vir julgar os vivos e
os mortos...”.
A pergunta é: o que terá Jesus ido fazer nos infernos? De onde
tiraram essa idéia? Bom, parece-nos que isso foi retirado da primeira
carta de Pedro (3,19-20), onde se diz que Jesus pregou “aos espíritos em
prisão”, acrescentando que esses espíritos são os que foram desobedientes
nos dias de Noé, ou seja, até antes do dilúvio.
Disso se pode concluir que, pela Bíblia, a palavra espírito
significa um ser humano desencarnado e que os espíritos exercem
influência sobre os encarnados. É o que se verifica por várias passagens
bíblicas, onde encontramos os espíritos (imundos ou impuros) exercendo
domínio sobre uma pessoa (o possesso de Gerasa12; o possesso de
Cafarnaum13 e o menino mudo e epilético14). Os seres aos quais se
denominam demônios são, sem sombra de dúvidas, os espíritos, tendo em
vista que, pelas passagens citadas, as narrativas ora dizem demônio ora
espírito impuro, demonstrando, portanto, que são sinônimas.
Mas, voltando à questão inicial, o que terá Jesus pregado a esses
espíritos em prisão? A resposta ainda se encontra na primeira carta de
Pedro (4,6), onde ele diz que “o Evangelho foi pregado também a mortos”.
Resumindo: Jesus desceu aos infernos para pregar o Evangelho aos
espíritos dos que haviam morrido até o dilúvio.
Três questões nos surgem agora: a primeira, por que só pregou para
os que viveram até Noé, e os que morreram após o dilúvio até o início de
sua pregação não tiveram a oportunidade de receber essa pregação? Então
onde fica “Deus não faz acepção de pessoas” (Rm 2,11)? A segunda, é que
se Jesus foi pregar aos mortos que se encontravam nos infernos (em
prisão) é pelo fato de que esses condenados poderiam ser recuperados? Em
função dessa possibilidade de recuperação, na qual acreditamos, podemos
afirmar que na hipótese do inferno existir mesmo, ele não poderá ser
eterno. Até mesmo porque somente se fica na prisão até que seja pago o
último centavo da dívida (Mt 5,26). Terceira, se Jesus foi aos infernos
pregar aos mortos concluímos que os mortos foram julgados; daí, haveria
alguma explicação racional para o tal juízo final, onde serão julgados os
vivos e os mortos?
Vejamos agora o que dizem os teólogos.
Os protestantes, nos explicam a expressão “pregou aos espíritos em
prisão”, dizendo:
Alguns pensam que esta frase significa que Cristo, entre Sua morte
e ressurreição, desceu ao Hades e ofereceu aos que viveram antes de Noé
(v. 20) uma segunda oportunidade de salvação, uma doutrina que não tem
apoio escriturístico. Outros pensam que foi apenas uma proclamação de Sua
vitória sobre o pecado aos que estavam no Hades, sem o oferecimento de
uma segunda chance. É Mais provável que este versículo seja uma
referência ao Cristo pré-encarnado pregando através de Noé àqueles que,
por terem rejeitado Sua mensagem, agora são ‘espíritos em prisão’.
(Bíblia Anotada, p. 1566).
Já com relação à pregação do Evangelho a mortos, dizem:
a mortos, I.e., cristãos já falecidos O evangelho foi pregado àqueles
mártires agora mortos. Eles foram julgados na carne e condenados ao
martírio segundo padrões humanos de justiça, mas estão vivos
espiritualmente depois da morte. Outra interpretação deste versículo
relaciona esta pregação àquela mencionada em 3:19. (Bíblia Anotada, p.
1566).
Diremos que o apoio escriturístico para a pregação de Jesus aos
espíritos que estavam na prisão é confirmado pela própria passagem
questionada, como também em 1Pe 4,6; mas em nota nessa passagem, dizem
que Jesus teria ido pregar aos cristãos já falecidos. Essa hipótese é
absurda, pois os que seguiam Jesus só foram chamados de cristãos mais
tarde (At 11,26), por volta do ano 37 d.C., época da fundação da Igreja
de Antioquia; isso, considerando que a morte de Jesus se deu na Páscoa de
30, nos dá aproximadamente 7 anos depois da morte de Cristo. Resta-nos
portanto, a alternativa de que realmente Jesus foi pregar aos espíritos
em prisão.
Os católicos, por sua vez, explicam:
Provável alusão à descida de Cristo ao limbo. Quem sejam os
espíritos aos quais Jesus foi pregar, é controverso. Há quem afirme que
se trata dos espíritos maus, aos quais Cristo anunciou a derrota e a
sujeição; outros, ao contrário, vêem neles os incrédulos dos tempos de
Noé; mas provavelmente são os justos do A. T. que haviam esperado no
Cristo. (Bíblia Sagrada Paulinas, pp. 1329-1330).
E, em relação aos mortos dizem:
Quanto a esses mortos, cfe 3,19. São os justos que morreram pelo
dilúvio, entre os quais houve os que se arrependeram de seus pecados,
embora esse arrependimento tardio, tendo salvo a alma, não serviu para
salvar o corpo da morte. Há quem sustente tratar-se de mortos
espirituais. (Bíblia Sagrada Paulinas, p. 1330).
A atitude de Jesus descer aos infernos apenas para anunciar aos
espíritos maus a sua derrota e sujeição, não condiz com tudo que Ele
pregou e exemplificou. Isso seria apenas uma demonstração de
superioridade com conseqüente humilhação àqueles que estaria se
dirigindo; portanto, fora de propósito. Seriam os justos como sugerem? Se
os justos estavam na prisão é porque mereceram castigo; ora, só pelo fato
de se merecer castigo é uma conseqüência de não ser justo, pois justo
merece prêmio, não castigo.
Limbo? Ora, na Bíblia não encontramos nada a respeito. Afinal o
que é isso? Segundo o Dicionário da Bíblia Barsa seria também: a
“residência das almas das crianças mortas sem terem sido batizadas,
...quem não tiver cometido pecado mortal não será castigado com o inferno
e de que só os que tiverem tido o pecado original apagado pelo Batismo
(de água, sangue ou desejo) é que entrarão no céu” (p. 159).
Ah! O que esses teólogos não inventam para justificarem seus
dogmas?! Veja bem; criam um lugar que não existe, estabelecendo as
condições para os que para lá irão; tudo sem nenhum apoio bíblico; apenas
como justificativa a seus dogmas. Essa, por exemplo, do pecado original
não condiz com: “Os pais não serão mortos pela culpa dos filhos, nem os
filhos pela culpa dos pais: cada um será morto pelo seu próprio pecado”
(Dt 24,16).
Mas, afinal, a quem Jesus teria pregado? Teria pregado a todos ou
somente aos que morreram do dilúvio para trás? Já que todos podem dar a
sua opinião, diremos que “provavelmente” Jesus tenha pregado a todos os
espíritos que estavam “presos”, até mesmo porque Deus trata todos de
igual modo. Mas presos onde? Acreditamos que no “umbral”, onde todos os
espíritos, que ainda não possuem evolução suficiente para se
desvincularem do planeta Terra, ficam presos nessa faixa, em volta dela.
Assim não admitimos que o “inferno” seja eterno, nem que os “mortos”
ficam dormindo à espera do juízo final. O grande problema que surgirá, se
aceitarem isso, é que vai para o beleléu a fortuna que fazem usando o
dízimo; não é mesmo?
Alguém poderá dizer: Mas o credo que conheço não fala em
“infernos”, cita “mansão dos mortos”. É fato; entretanto, ao que tudo
indica, mudou-se a forma de rezar o credo para fugir dos inevitáveis
questionamentos. Estão querendo, como se diz popularmente, “tapar o Sol
com a peneira”; apenas isso. Não adianta, pois um dia a verdade
aparecerá.
A morte de Agripa
Quem conta um conto, aumenta um ponto.
A ingenuidade de muitos em acreditar piamente em todas as
narrativas bíblicas, como se fossem verdades irrefutáveis, é digna de
pena. A grande maioria dessas pessoas, se nem mesmo ousa admitir uma
simples dúvida, que dirá contestar aquilo que se encontra relatado na
Bíblia, já que pressupõem que tudo que ali está é plena verdade
proveniente de Deus. Ainda não perceberam que, por conta da esperteza da
liderança religiosa da antigüidade, tacitamente incorporada pela atual,
foi o que transformou a Bíblia num livro cujo conteúdo passou a ser
supostamente a palavra de Deus. Foi a forma fácil e prática que se
encontrou para manter sob seu domínio os fiéis: ovelhas que não berram.
Leiamos sobre a morte de Agripa conforme a narrativa bíblica:
At 12,20-23: “Herodes estava enfurecido com os habitantes de Tiro e
Sidônia. Estes fizeram um acordo entre si e se apresentaram diante de
Herodes, depois de conquistarem as graças de Blasto, o camareiro real.
Eles pediam a paz, já que seu país recebia mantimentos do território do
rei. No dia marcado, Herodes vestiu-se com os trajes reais, tomou seu
lugar na tribuna, e lhes dirigiu a palavra oficial. O povo começou a
clamar: 'É a voz de um deus, e não de um homem!' Mas, imediatamente, o
anjo do Senhor feriu Herodes, porque ele não tinha dado glória a Deus. E
Herodes expirou, carcomido por vermes”.
Segundo os tradutores da Bíblia Anotada, esse personagem é
“Herodes Agripa I, neto de Herodes, o Grande, que reinara ao tempo do
nascimento de Cristo. Agripa, pelo menos exteriormente, era um zeloso
praticante dos rituais judaicos e era um patriota em questões religiosas”
(p. 1378). E, em relação à sua morte, completam: “Josefo afirma que
Herodes adoeceu subitamente durante seu discurso e, depois de cinco dias
de sofrimento, morreu (44 A.D.)” (p. 1379).
Vejamos então, para conferir, o que Josefo, o historiador hebreu,
fala a respeito desse assunto. A versão de Josefo, parece-nos ser bem
diferente dessa que acabamos de citar. Vamos iniciar seu relato após
Agripa ter sido preso, acusado por um liberto de nome Eutico, de desejar
a morte do imperador Tibério, para que seu amigo Caio o substituísse no
poder:
Um dia, quando Agripa estava com outros prisioneiros diante do
palácio, a fraqueza, que lhe causava a tristeza, fez que ele se apoiasse
a uma árvore sobre a qual uma coruja veio pousar. Um alemão, que era do
número desses prisioneiros, tendo-o notado, perguntou a um soldado que o
olhava e que estava acorrentado com ele, quem era aquele homem; tendo
sabido que era Agripa, o mais notável de todos os judeus pela glória de
sua origem, rogou-lhe que se aproximasse dele, a fim de que pudesse ouvir
de sua boca alguma coisa sobre os costumes de seu país. O soldado assim
fez; o alemão, então, disse a Agripa, por meio de um intérprete: “Bem
vejo que uma mudança tão grande e tão repentina de vossa sorte vos
aflige, e que dificilmente acreditaríeis que a divina providência vos
dará a liberdade, muito em breve. Mas eu tomo os deuses como testemunhas,
os deuses que eu adoro e os que são reverenciados neste país, que me
puseram nestas cadeias, de que, o que eu vos tenho a dizer, não é para
vos dar uma vã consolação, sabendo, como eu sei, que quando as predições
favoráveis não são seguidas de seus efeitos só servem para aumentar a
nossa tristeza. Quero pois dizer-vos, embora com perigo, o que essa ave
que acaba de voar sobre vossa cabeça vos pressagia. Estareis bem depressa
em liberdade e elevado a tão grande poder, que sereis invejado por
aqueles que agora têm compaixão de vossa infelicidade. Sereis feliz
durante todo o resto de vossa vida e deixareis filhos que sucederão à
vossa felicidade. Mas quando virdes aparecer de novo essa mesma ave,
sabei que somente vos restarão cinco dias de vida. Eis o que os deuses
vos pressagiam e como eu tenho conhecimento disso, julguei dever dar-vos
essa alegria, para amenizar vossos males presentes, com esperança de
tantos bens futuros. Quando vos encontrardes em tão grande prosperidade
não nos esqueçais, eu vos rogo, e trabalhai para nos tirar da miséria em
que nos encontramos”. A predição desse alemão pareceu tão ridícula a
Agripa, que provocou nele, naquele instante, uma gargalhada, tão forte
que depois causou-lhe a ele mesmo, espanto e admiração. (JOSEFO, 2003,
pp. 425-426)
Será que essa profecia foi cumprida? Para sabermos o que
aconteceu, continuemos o relato de Josefo um pouco mais à frente, cujo
tempo decorrido é cerca de seis meses depois:
Trouxeram nesse mesmo tempo duas cartas de Caio; uma endereçada ao
senado, com a qual lhe dava o anúncio da morte de Tibério e de que ele o
havia escolhido para substituí-lo no império; a outra, a Pisão,
governador da cidade, que dizia a mesma coisa, ordenando-lhe tirar Agripa
da prisão e permitir-lhe voltar à sua casa. Assim ele se viu livre de
todo temor: e embora estivesse ainda guardado, vivia no resto, como
queria. Pouco depois, Caio veio a Roma para onde fez trazer o corpo de
Tibério, mandando fazer-lhe, segundo o costume dos romanos, soberbos
funerais. Ele quis pôr Agripa em liberdade, no mesmo dia, mas Antônia
aconselhou-o a diferir, não, porque não sentisse afeto por ele, mas
porque julgava que aquela precipitação iria contra o decoro, porque não
se podia apressar tanto a liberdade daquele a quem Tibério conservava
preso, sem manifestar ódio por sua memória. No entanto, alguns dias
depois, Caio mandou chamá-lo e não se contentou em dizer-lhe que mandasse
cortar os cabelos, mas lhe pôs a coroa na cabeça; depois fê-lo rei da
tetrarquia que Felipe havia possuído e acrescentou-lhe ainda a de
Lisânias. Quis também como sinal de seu afeto dar-lhe uma cadeia de ouro
do mesmo peso da de ferro que ele havia usado e mandou em seguida
Marullhe, como governador da Judéia. (JOSEFO, 2003, p. 427)
Então se a primeira parte da profecia, dita pelo alemão, foi
cumprida, fica provado que os deuses que lhe passaram a informação
estavam certos. Mas, e quanto à segunda parte da profecia, a que dizia a
respeito de sua morte? Será que Agripa ouviu a coruja piar novamente?
Voltemos à Josefo e leiamos:
No terceiro ano do seu reinado ele celebrou na cidade de Cesaréia,
que antigamente era chamada a Torre de Estratão, jogos solenes em honra
do imperador. Todos os grandes e toda a nobreza da província, reuniram-se
nessa festa; no segundo dia dos espetáculos Agripa veio bem cedo, pela
manhã, ao teatro, com uma veste cujo forro era de prata trabalhada com
tanta arte, que quando o sol o iluminava com seus raios, desprendiam-se
reflexos tão vivos de luz, que não se podia olhar para ele sem se sentir
tomado de um respeito, misto de temor. Mesquinhos bajuladores, então, com
palavras melífluas que destilam veneno mortal no coração dos príncipes,
começaram a dizer que até então haviam considerado seu rei, como um
simples homem, mas que agora viam que o deviam reverenciar como um deus,
rogando-lhe que se lhes mostrasse favorável, pois parecia que ele não era
como os demais, de condição mortal. Agripa tolerou essa impiedade, que
deveria ter castigado mui rigorosamente. Mas, logo levantando os olhos,
viu uma coruja, por sobre sua cabeça, pousada numa corda estendida no ar
e lembrou-se de que aquela ave era um presságio de sua infelicidade como
outrora tinha sido de sua prosperidade. Soltou, então, um profundo
suspiro e sentiu, ao mesmo tempo, as entranhas roídas por uma dor
horrível. Voltou-se para seus amigos e disse-lhes: “Aquele que quereis
fazer acreditar que é imortal, está prestes a morrer e essa necessidade
inevitável não podia ser uma mais pronta convicção de vossa mentira. Mas
é preciso querer tudo o que Deus quer. Eu era muito feliz e não havia
príncipe de quem eu devesse invejar a felicidade”. Dizendo estas
palavras, sentiu que as dores cresciam cada vez mais; levaram-no ao
palácio e a notícia espalhou-se imediatamente, de que ele estava prestes
a exalar o último suspiro. Logo todo o povo, com a cabeça coberta de um
saco, segundo costume de nossos pais, fez oração a Deus pela saúde e todo
o ar ressoou com gritos e lamentações. O príncipe que estava no quarto
mais alto do palácio, vendo-os de lá, prostrados por terra, não pôde
reter as lágrimas; as dores, porém, continuaram por cinco dias a fio e o
levaram, aos cinqüenta e quatro anos de sua vida, sétimo do seu reinado,
pois reinara quatro sob o imperador Caio, nos três primeiros dos quais
ele só tinha a tetrarquia, que fora de Filipe, e no quarto,
acrescentaram-lhe a de Herodes; nos três anos em que reinou sob Cláudio,
esse imperador deu-lhe também a Judéia, a Samaria e Cesaréia. Mas, embora
suas rendas [*] fossem muito grandes, ele era liberal e tão magnânimo que
era obrigado ainda a pedir emprestado.
[*] O grego diz: Mil e duzentas vezes dez mil, sem nada mais especificar.
(JOSEFO, 2003, p. 453).
Interessantíssimo é que as duas previsões, constantes da profecia,
que foram ditas pelo alemão a Agripa, se cumpriram. Ora, ele mesmo
afirmou a ter recebido dos deuses, o que então prova que não era somente
o Deus dos hebreus que tinha profetas aqui na terra. Será que havia um
acordo entre os deuses de ambos – o do alemão e o dos hebreus?
Provavelmente; haja vista o cumprimento integral da profecia.
Vejamos, agora, os pontos que foram aumentados:
Lucas: Herodes estava enfurecido com os habitantes de Tiro e
Sidônia. Estes fizeram um acordo entre si e se apresentaram diante de
Herodes, depois de conquistarem as graças de Blasto, o camareiro real.
Eles pediam a paz, já que seu país recebia mantimentos do território do
rei.
Josefo: Nada fala desse assunto. Coloca o evento quando do
acontecimento de jogos solenes oferecidos por Agripa em honra ao
imperador, ocasião em que se reuniram vários príncipes e toda a nobreza
para essa majestosa festa.
Lucas: No dia marcado, Herodes vestiu-se com os trajes reais,
tomou seu lugar na tribuna, e lhes dirigiu a palavra oficial
Josefo: Fala que Agripa chegou ao local dos jogos de manhã usando
“uma veste cujo forro era de prata trabalhada com tanta arte, que quando
o sol o iluminava com seus raios, desprendiam-se reflexos tão vivos de
luz, que não se podia olhar para ele sem se sentir tomado de um respeito,
misto de temor.” Não diz absolutamente nada de que Agripa tenha feito, da
tribuna, algum tipo de discurso oficial.
Lucas: O povo começou a clamar: "É a voz de um deus, e não de um
homem!"
Josefo: O motivo para que alguns o elevaram à categoria de um
deus, foi justamente a roupa brilhante citada anteriormente. Condição não
contestada por Agripa, que ainda, segundo Josefo, deveria tê-los
castigados. E quem disse alguma coisa foram os mesquinhos bajuladores, o
que pode não significar necessariamente que teria sido o povo, que dá uma
idéia de que todos, ou pelo menos, a maioria dos que ali estavam.
Lucas: Mas, imediatamente, o anjo do Senhor feriu Herodes, porque
ele não tinha dado glória a Deus. E Herodes expirou, carcomido por
vermes.
Josefo: Após o episódio acima, Agripa vê uma coruja o que o faz
lembrar-se da profecia que ouvira do alemão; daí sim é que ele fala ao
povo contestando a sua condição de deus, assumindo sua condição de mortal
e dizendo-lhes que brevemente estaria morto. O fato imediato é que ele
começou a passar mal, sentindo muitas dores. Nesse estado, Agripa
permaneceu por cinco dias, quando finalmente dá o seu último suspiro.
Embora Josefo não fale nada sobre o enterro de Agripa, é de se presumir
que aconteceu, pois, se tivesse ocorrido algo em contrário, seria ponto
de destaque que não passaria despercebido por um historiador. Assim,
Agripa não foi imediatamente carcomido por vermes, fato que, para salvar
o texto bíblico, devemos considerar como épico. E mais: o motivo da morte
de Agripa nada tem a ver com ele não ter dado glória a Deus.
Por aqui provamos que, no presente caso, quem contou o conto,
aumentou não foi um só ponto, mas vários. Os relatos históricos não podem
ser preteridos às narrativas bíblicas, cujos autores não se preocuparam
nem com a verdade histórica, nem mesmo com a ordem cronológica dos
acontecimentos, a eles só interessavam os seus heróis enaltecidos.
Sempre estamos ouvindo dogmáticos querendo salvar a veracidade dos
textos bíblicos, relegando os fatos históricos, arqueológicos e mesmo
científicos, na doce ilusão de que “tá na Bíblia é verdade”. Coitados,
pois ainda acham que conseguirão tapar o Sol com uma peneira!
A conversa de Jesus com Nicodemos
- És mestre em Israel e ignoras essas coisas?
O que temos observado, e que achamos muito interessante, é que as
pessoas que não acreditam na reencarnação fazem de tudo para retirar essa
idéia da Bíblia, como se isso, por si só, fosse resolver a questão. Estes
indivíduos pressupõem, ingenuamente, que se a Bíblia não disser nada
sobre a reencarnação, esta não irá existir. Já falamos, e por várias
vezes, que a Bíblia não é um compêndio de Ciência e que, por isso, não
podemos determinar a existência ou não de qualquer uma das leis naturais
com base em suas páginas. Para nós a reencarnação está no âmbito das leis
naturais, não tendo nada a ver com religião como a querem levar a esse
campo seus contraditores, para, daí, apresentarem a Bíblia como prova de
sua não existência. Nosso objetivo será exatamente o de provar o
contrário.
Após retirarem, mudarem ou interpretarem de forma equivocada e
tendenciosa algumas passagens, arrematam categóricos: “não está lá”. Isso
satisfaz, evidentemente, aos que aceitam tudo sem questionar e aos que,
subjugados pela liderança religiosa, não ousam contestá-la, esquecendo-se
de que somente “onde se acha o Espírito do Senhor aí existe a liberdade”
(2Cor 3,17).
Vamos analisar uma das passagens, talvez a que causa maior
polêmica entre os anti-reencarnacionistas de carteirinha, ou seja, os
cristãos fundamentalistas, para extrair dela o seu significado.
A passagem está em João capítulo 3, versículos de 1 a 12; leiamos:
“1. Havia, entre os fariseus, um homem chamado Nicodemos, um notável
entre os judeus. 2. à noite ele veio encontrar com Jesus e lhe disse:
'Rabi, sabemos que vens da parte de Deus como mestre, pois ninguém pode
fazer os sinais que fazes, se Deus não estiver com ele'. 3. Jesus lhe
respondeu: 'Em verdade, em verdade, te digo: quem não nascer de novo não
pode ver o Reino de Deus'. 4. Disse-lhe Nicodemos: 'Como pode um homem
nascer, sendo velho? Poderá entrar segunda vez no seio de sua mãe e
nascer?' 5. Respondeu-lhe Jesus: 'Em verdade, em verdade, te digo: quem
não nascer da água e do Espírito não pode entrar no Reino de Deus. 6. O
que nasceu da carne é carne, o que nasceu do Espírito é espírito. 7. Não
te admires de eu te haver dito: deveis nascer de novo. 8. O vento sopra
onde quer e ouves o seu ruído, mas não sabes de onde vem nem para onde
vai. Assim acontece com todo aquele que nasceu do Espírito'. 9.
Perguntou-lhe Nicodemos: 'Como isso pode acontecer?' 10. Respondeu-lhe
Jesus: 'És mestre em Israel e ignoras essas coisas? 11. Em verdade, em
verdade, te digo: falamos do que sabemos e damos testemunho do que vimos,
porém não acolheis o nosso testemunho. 12. Se não credes quando vos falo
das coisas da terra, como crereis quando vos falar das coisas do céu?'”
(Bíblia de Jerusalém).
O realce, em negrito, aos termos dos versículos 3 e 7, é nosso, já
que deveremos destacá-los mais à frente.
a) A Teologia Católica
A polêmica instala-se por conta do termo grego anóthem, que,
segundo os exegetas, tanto pode ser entendido como “de novo” quanto “do
alto”. Isso é um prato cheio para que os teólogos tirem dessa passagem a
idéia da reencarnação, para introduzirem a do batismo, para, com isso,
justificarem este ritual.
Uma das traduções que destacamos é a da Bíblia de Jerusalém, pelo
motivo dela ter sido elaborada por uma equipe de tradutores católicos e
protestantes. Nela lemos a seguinte explicação: “João emprega um termo
grego, anóthem, que significa também ‘do alto’ (cf. 3, 7.31). Esse duplo
sentido não existe na língua de Jesus e de Nicodemos”. (p. 1847). Aqui
vemos um golpe de morte naqueles que querem buscar nisso um pretexto para
retirar dessa passagem a idéia da reencarnação.
Vejamos o que encontramos em outras Bíblias católicas:
Ave Maria: no v. 4 está dito “renascer”, e quanto ao v. 5 explicam
que é uma alusão ao batismo. (p. 1386).
Pastoral: apenas no v. 3 usaram “do alto”, buscam, também,
relacionar essa passagem ao rito do batismo. (p. 1356-1357).
Barsa: aplicaram ao v. 3 a expressão “renascer de novo”, no v. 5
“renascer” e no 7 “nascer outra vez”. Embora não falem nada sobre
batismo, implicitamente querem levar a essa idéia quando, no v. 5, ao
invés de colocar “e do Espírito”, mudam para “e do Espírito Santo”. Um
detalhe importante dessa Bíblia é sua antigüidade; foi editada em 1965,
do que concluímos que nas edições mais recentes, a preocupação de retirar
a idéia da reencarnação fica mais evidente. (Novo Testamento, p. 79).
Santuário: Usam no v. 3 e 5 “de novo”; na explicação do v. 3
colocam:
O termo grego aqui empregado é ambíguo. Tanto se pode traduzir por
‘nascer de novo’ como por ‘nascer do alto’. Nicodemos entende-o no
primeiro sentido, como se vê pelo contexto. Jesus, porém, reconduz a
conversa ao seu caminho: os que pertencem ao Reino, não são os que
nasceram da carne e do sangue (os descendentes de Abraão, como pensavam
os judeus), mas os que nasceram de Deus (cf. Jo 1,13). Tal nascimento
realiza-se no batismo (Jo 3,5). (p. 1574). (grifo nosso).
Do Peregrino: informam-nos que Nicodemos em grego quer dizer
“vitória do povo”; aliás, muito significativo para a idéia da
reencarnação. (p. 2552).
Vozes: nos v. 3 e 7, aplicam o “do alto”, dando a seguinte
explicação:
A expressão nascer do alto (v. 3) em grego pode ser entendida
também como nascer de novo, como faz Nicodemos (v.4), no sentido de ser
concebido e dado à luz. Jesus, no entanto, fala de um novo nascimento de
Deus, da água e do Espírito Santo (v.5), numa referência direta ao rito
do batismo (cf. 1,12s). (p. 1275) (grifo nosso).
Aqui temos a confirmação de que, pelo contexto, a expressão deverá
ser entendida como “nascer de novo”, pois foi assim que Nicodemos
entendeu, conforme nos afirmam alguns tradutores da Bíblia. Não adianta,
para justificar o contrário, querer comparar o significado de uma palavra
colocada em textos diferentes, uma vez que ela poderia, muito bem, ter
significados distintos, o que somente o contexto em que cada uma está
poderá dar a conhecê-los.
Quanto à questão do batismo, não iremos falar aqui, pois já foi
objeto de estudo num capítulo à parte.
b) A Teologia Protestante
Tanto a Novo Mundo, quanto a SBB e a Mundo Cristão, utilizam o
“nascer de novo”. Dessa última transcreveremos as explicações a seguir:
3:3 nascer de novo. Lit., de cima (como em 3:31; 19:11), embora a
palavra também signifique “outra vez”, “de novo” (Gl 4:9). O novo
nascimento ou regeneração (Tt 3:5) é o ato de Deus que concede vida
eterna ao que crê em Cristo. Como resultado, tal pessoa torna-se membro
da família de Deus (1 Pe 1;23) com uma nova capacidade e um novo desejo
de agradar a seu Pai celeste (2 Co 5;17).
3:5 Quem não nascer da água e do Espírito. Várias interpretações
têm sido sugeridas para o termo água neste versículo: (1) Que ela se
refere ao batismo como condição para a salvação. Isto, porém, contradiz
muitas outras passagens do N.T. (Ef 2:8-9). (2) Representa o ato de
arrependimento indicado pelo batismo de João. (3) Refere-se ao nascimento
físico; assim, o versículo diria: “Quem não nascer a primeira vez da água
e a segunda vez do Espírito”. (4) Significa a palavra de Deus, como em Jo
15;3. (5) É um sinônimo para o Espírito Santo, sendo esta a tradução: “da
água, isto é, do Espírito”. Uma verdade é clara: o novo nascimento vem de
Deus através do Espírito. (p. 1322).
Vez por outra, recorremos a um renomado filósofo do século XVII,
Baruch de Espinosa (1632-1677), já que, o que afirmou, ainda prevalece em
nossos dias. Agora novamente o faremos; assim leiamos:
Admira-me bastante, pois, a engenhosidade de pessoas, como aquelas
de quem já falei, que enxergam na Escritura mistérios tão profundos que
se torna impossível explicá-los em qualquer língua humana e que, além
disso, introduziram na religião tantas matérias de especulação filosófica
que a Igreja até parece uma academia e a religião uma ciência, ou melhor,
uma controvérsia. (...). (ESPINOSA, 2003, p. 208).
O comum dos teólogos, todavia, entende que se devem interpretar
metaforicamente aquelas passagens em que se atribuem a Deus coisas que
eles conseguem ver pela luz natural serem incompatíveis com a natureza
divina, ao passo que tudo aquilo que escapa à sua capacidade de
compreensão se deverá aceitar à letra. Porém, se todas as passagens
daquele gênero que se encontram na Escritura tivessem obrigatoriamente de
ser interpretadas e entendidas metaforicamente, então a Bíblia não teria
sido escrita para o povo e para o vulgo ignorante, mas unicamente para os
especialistas, designadamente os filósofos. (ESPINOSA, 2003, p. 213).
Aqui é interessante notar que mais um tiro mortal é dado, dessa
vez em relação à questão de relacionar a passagem ao ritual do batismo
como condição sine qua non para a salvação, conforme ainda podemos
perceber em alguns argumentos teológicos.
c) A Teologia Espírita
Vamos apresentar os argumentos de um escritor espírita sobre este
assunto. No livro “Analisando as Traduções Bíblicas”, o autor Severino
Celestino da Silva, no capítulo XVII – A Reencarnação no Novo Testamento,
ao se referir à passagem de João 3,1-12 (pp. 238-242), diz-nos o
seguinte:
Este é o texto que tem dado mais trabalho aos exegetas que querem
negar a Reencarnação. No entanto, é o mais claro e contundente de todos,
por isso, existe um verdadeiro malabarismo por parte destes, no sentido
de obscurecer o verdadeiro e claro sentido desta passagem. Iniciamos pelo
vocábulo ’anóten’ que em grego pode significar ’de novo’ e ’do alto’.
Nesta passagem, esse vocábulo significa realmente ‘de novo’, porém
a maioria dos exegetas emprega o termo ‘do alto’ para justificar a sua
descrença na Reencarnação. Este malabarismo envolve também a questão
gramatical na tradução do texto, como veremos mais adiante. Colocaremos,
aqui, muitas observações e conceitos empregados, sobre este texto, feitos
por Torres Pastorino na sua obra ‘Sabedoria do Evangelho’, com relação ao
texto grego. Concordamos plenamente com todos os seus conceitos, razão
por que o usaremos para reforçar nossa exegese. A análise do texto
hebraico é de autoria e responsabilidade nossa.
Muitos começam com a afirmação de que Jesus teria dito: ‘AQUELE QUE
NÃO NASCER ‘DO ALTO’. Observe, no entanto, que a pergunta feita por
Nicodemos, em seguida, denota que ele entendeu que Jesus falava realmente
em nascer ‘de novo’ e não ‘do alto’: Como ‘pode o homem, depois de velho,
entrar pela segunda vez (duteron) no ventre materno?’.
Esta ambigüidade de entendimento só acontece na língua grega,
porque no hebraico, que foi realmente a língua em que Jesus dialogou com
Nicodemos, este problema não existe. O texto é bem claro e jamais pode
significar ‘do alto’. Diz o seguinte: (‘im lô iauled ish mimkôr ‘al lôiukal lirôt et-malkut haelohim’) im=se, lô=não, iualed=incompleto do grau
qal(1) do verbo ‘nolad’=nascer, ish=um homem, mimikôr=palavra composta,
formada por mi=de + makôr=fonte de água viva, origem. Existe a expressão
hebraica ‘Mekôr chaim’ que quer dizer ‘fonte da vida’. Observe que não
existe nada referente ‘ao alto’, no texto grego, como muitos querem se
fazer entender. Assim, o Cristo fala que aquele que não nascer em origem,
no sentido de se voltar à fonte original da vida, ou seja, nascer
novamente, ‘não poderá’ (lô-iuchal=incompleto do verbo iachôl=poder) ver
o reino de Deus (lirôt et-malkut haelohim).
Assim, no diálogo, a palavra grega ‘anóten’ tem o sentido e
significado de ‘de novo’, portanto, Jesus falava de retorno, ou seja, de
Reencarnação mesmo, como foi visto no texto hebraico.
Lembramos, ainda, que Nicodemos já era um cidadão de idade avançada
e o Cristo lhe fala da Reencarnação (Nascer de Novo), como uma esperança
e reconforto para ele, mostrando-lhe que a vida não termina com a morte,
nem os velhos devem temer a morte, pois podem renascer e começar tudo
novamente.
Na seqüência, Cristo confirma que era isso mesmo que Ele queria
dizer: ‘Quem não nascer de água (materialmente, com o corpo denso, dado
que o nascimento físico é feito através da bolsa d’água do líquido
aminiótico), veja o cap. VII deste livro, Salmo 23 e de espírito
(pneumatos), ou seja, que adquira nova personalidade no mundo terreno, em
cada nova existência, a fim de progredir). Se Nicodemos entendeu ao pé da
letra as palavras de Jesus, o Mestre as confirma ao pé da letra e reforça
o seu ensino. Com efeito, o espírito, ao reentrar na vida física, pode
ser considerado o mesmo espírito que reinicia suas experiências,
esquecido de todo passado’.
A questão gramatical: No texto em grego não há artigo diante das
palavras ‘água’ (ek ydatos= de água) ‘e espírito’ (kai pneumatos),
portanto, o texto fala em nascer ‘de água e de espírito’. Não é portanto,
nascer da água do batismo, nem do espírito, mas de água (por meio da
água) e de espírito (pela Reencarnação do espírito).
O primeiro versículo do Gênesis (1:1) fala que no princípio criou
Deus os Céus e a terra. A palavra ‘céus’ em hebraico ‘Shamaim’ - ???? (2)
- significa: ‘Carrega água’, ‘Ali existe água’; ‘fogo e água’ que
misturados um ao outro, formaram o Céus.
Como podemos observar, tudo começou com as águas. Água é vida e
essa era a crença geral naquela época. É lógico que o Cristo não falava
de batismo e sim de retorno através da água. Lembramos ainda que 99% da
constituição das células reprodutoras são água.
Daí a explicação que segue: ‘o que nasce da carne (ek tês sarkos)
com artigo (tês) em grego, é carne’, isto é com corpo físico, com toda a
hereditariedade física herdada do corpo dos pais; ‘e o que nasce do
espírito (ek tou pneumatos) é espírito’, ou seja, o espírito que
reencarna provém do espírito da última encarnação com toda a
hereditariedade pessoal (cármica) que traz do passado.
E Jesus prossegue: ‘Por isso não te admires de eu te dizer: é-vos
necessário nascer de novo’. Observe a diferença de tratamento: ‘dizer-TE’
no singular, e ‘é-VOS’ no plural, porque o renascimento é para todos, não
apenas para Nicodemos. E mais: ‘o espírito sopra (isto é, age, reencarna,
se manifesta onde quer), e não sabes de onde veio (ou seja, sua última
encarnação), nem para onde vai (qual será a próxima).
’As palavras de Jesus foram de modo a embaraçar Nicodemos, que
indaga: “como pode ser isso’? E Jesus: ‘Tu que (entre nós dois) é Mestre
de Israel, te perturbas com estas coisas terrenas? Que te não acontecerá
então, se te falar das coisas celestiais (espirituais)?’.
Logicamente Jesus não podia esperar que Nicodemos entendesse as
interpretações mais profundas desse ensinamento, nem tão pouco estava
querendo ensinar-lhe o batismo, nesta passagem, como muitos querem
justificar
Se o Cristo falava realmente do batismo para Nicodemos, por que não
o convidou a se batizar? E por que o próprio Cristo não o batizou? Leia
em João 4:2 que Cristo não batizava, quem batizava eram os discípulos. E
por que diante de tantas curas, milagres e encontros, como no da
‘Adúltera’, com ‘Zaqueu’, com o ‘Centurião’, com a ‘Cananéia’, Cristo
nunca falou em batismo? Não seria uma oportunidade para este convite? No
entanto, sua recomendação era para a mudança interior: ‘vai e não peques
mais para que coisa pior não te venha acontecer’.
E Jesus conclui exemplificando: ‘como Moisés ergueu a serpente no
deserto, assim o Filho do Homem será erguido da Terra’. (Veja a história
da serpente erguida no deserto no Livro Números – vicrá- 21:4-9).
Aqui o Cristo prevê o que aconteceria a Ele, ou seja, a sua morte
na cruz para que hoje seja erguido na terra como filho de Deus e
dirigente de toda a nação terrena.
Paulo, em sua epístola a Tito 3:4-5, interpreta bem esta citação do
Cristo: ‘Mas quando apareceu a vontade de Deus, nosso salvador, e o seu
amor para com os homens, não por obras da justiça que tivéssemos feito,
mas segundo sua misericórdia nos salvou pelo lavatório da reencarnação, e
pelo renascimento de um espírito santo’.
Aqui, Paulo deixa bem claro que Deus nos salvou não porque o
tivéssemos merecido, mas por Sua misericórdia, servindo-se da
reencarnação a qual é um ‘lavatório’ (de água) e um ‘renascimento do
espírito’. A palavra grega do texto a que se refere Paulo é ... (a
palavra está em grego que não temos condições de reproduzir)
‘Palingenesia’ – isto é, ‘renascimento’, ‘Novo Nascimento’, REENCARNAÇÃO.
(1) Esclarece-nos o autor do livro, Dr. Severino que: O termo QAL
ou qal é uma palavra hebraica que significa "Fácil" que tem o sentido
gramatical de "forma fácil" ou "simples" de conjugação do verbo na língua
hebraica. O verbo em hebraico possui sete graus de conjugação (Qal,
nif'al, piel, pual, hif'iil, haf'al e hitpa'el.) Nesse caso específico
foi colocado com relação ao verbo nascer (nolad-em hebraico). O
incompleto que é o futuro do verbo na forma QAL que é a mais simples das
conjugações.
(2) Neste ponto o Dr. Severino coloca a palavra em grego, na
“fonte” SIL EZRA, que não colocamos por não a possuirmos.
(SILVA, 2001, pp. 238-242) (os grifos são do original).
Deixa-nos Severino Celestino, e com clareza meridiana, um
posicionamento sereno e equilibrado diante da passagem analisada, embora
saibamos que não irá agradar aos fundamentalistas. Mas como já o
dissemos, não é este o nosso objetivo.
Como sempre argumentam que, naquela época, não existia a idéia
conceitual da reencarnação, devemos, por amor à verdade, apresentar as
provas de que isso não tem fundamento.
A primeira questão é que, se nós formos buscar a palavra
“reencarnação” na Bíblia, não a encontraremos. Entretanto, facilmente
encontraremos uma outra terminologia que é usada em algumas situações,
com o conceito de reencarnação, e que é a palavra “ressurreição”.
Quatro são as idéias que eles tinham sobre ressurreição:
1ª - alguém voltar a viver na condição de espírito;
2ª - reviver no mesmo corpo físico;
3ª - voltar a viver num outro corpo físico; e
4ª - ressurgir em espírito e, nessa condição, influenciar uma
pessoa.
Mais informações sobre essas quatro idéias poderão ser vistas,
neste livro, no capítulo Ressurreição, o significado Bíblico.
Para exemplificar a terceira idéia, podemos citar a narrativa de
Lucas (9,18-20) sobre o episódio em que Jesus pergunta aos seus
discípulos o que o povo pensava dele, ao que lhe responderam: "Alguns
dizem que tu és João Batista; outros, que és Elias; mas outros acham que
tu és algum dos antigos profetas que ressuscitou". Pela resposta podemos
perceber que é exatamente a idéia da reencarnação, pois Jesus só poderia
ser Elias, Jeremias, que é citado em Mt 16,14, ou algum outro dos antigos
profetas, se aceitassem essa possibilidade de ressurreição no sentido de
reencarnação, termo, inclusive, usado no texto. A prova que não entendiam
bem sobre a reencarnação, aqui com o nome de ressurreição, é pelo fato de
terem citado João Batista, que foi contemporâneo de Jesus.
Considerando que nos foi informado que Nicodemos era um fariseu,
não podemos deixar de falar dessa classe política e religiosa que existia
àquela época. Nós buscaremos esta informação num historiador que viveu
naquele tempo, chamado Flávio Josefo. Suas obras históricas são:
“Antiguidades Judaicas”, “Guerra dos Judeus” e “Resposta de Flávio Josefo
a Ápio”, que, em nosso caso, fazem parte do livro História dos Hebreus.
E a título de informação transcrevemos:
Quem foi Flávio Josefo? Foi ele um escritor e historiador judeu que
viveu entre 37 a 103 d.C. Seu pai foi sacerdote e sua mãe descendia da
casa real hasmoneana. Portanto, Josefo era de sangue real. Ele foi muito
bem instruído na vasta cultura judaica, bem como na grega. Falava
perfeitamente o latim – o idioma do Império Romano, e também o grego.
Logo cedo na vida demonstrou intenso zelo religioso, filiando-se ao grupo
religioso dos fariseus. (...) (p. 41).
Ele, descrevendo a maneira de viver dos fariseus, coloca:
(...) Eles julgam que as almas são imortais, que são julgadas em um
outro mundo e recompensadas ou castigadas segundo foram neste, viciosas
ou virtuosas; que umas são eternamente retidas prisioneiras nessa outra
vida e que outras voltam a esta. (...) (p. 416). (grifo nosso).
E quando alguns soldados, derrotados na guerra contra os romanos,
pensavam em suicidar-se, alerta-os dizendo:
(...) Não sabeis que Ele difunde suas bênçãos sobre a posteridade
daqueles, que depois de ter chamado para junto de si, entregam em suas
mãos, a vida, que, segundo as leis da natureza, Ele lhes deu e que suas
almas voam puras para o céu, para lá viverem felizes e voltar, no correr
dos séculos, animar corpos que sejam puros como elas e que ao invés, as
almas dos ímpios, que por loucura criminosa dão a morte a si mesmos são
precipitados nas trevas do inferno; (...) (p. 600). (grifo nosso).
Assim, é justo dizer que os fariseus acreditavam numa ressurreição
em outro corpo. Ora, isso não é nada mais nada menos do que aquilo que
entendemos por reencarnação.
Podemos, ainda, para corroborar a afirmativa de que ela era crença
no judaísmo, trazer para comprovação os conhecimentos contidos na Cabala,
que, segundo seus estudiosos, é o significado mais profundo e oculto da
Torá.
O Rabino Philip S. Berg, em “Reencarnação as Rodas da Alma”, diz
que:
A palavra hebraica para reencarnação é Guilgul Neshamot, que
literalmente quer dizer ‘roda da alma’. É para esta vasta roda
metafísica, com sua coroa constelada de almas, como estrelas nas bordas
de uma galáxia, que devemos dirigir nosso olhar, se desejamos ver além da
aparência da inocência punida e da maldade recompensada. Guilgul Neshamot
é uma roda em constante movimento e, ao girar, as almas vêm e vão
diversas vezes, num ciclo de nascimento, evolução e morte e novo
nascimento. A mesma evolução ocorre com o corpo no decorrer de uma única
vida. Ocorre o nascimento, o crescimento das células, a paternidade e a
morte – novos corpos produzidos pelos antigos, dando assim continuidade à
forma física. É sempre um pai que concede sua semente para que haja
continuidade, num processo sem fim. (BERG, 1998, pp. 17-18).
Severino Celestino, citando o Rabino Shamai Ende, diz:
Sobre a Reencarnação, apresentamos, aqui, para ilustrar, o
depoimento do Rabino Shamai Ende, colaborador da Revista Judaica ‘Chabad
News’,publicação de Dez a Fev 1998. Vejamos o texto na íntegra: ‘O
conceito de Guilgul (Reencarnação) é originado no judaísmo, sendo que uma
alma deve voltar várias vezes até cumprir todas as mistsvot(1) da Torá.
Além disso, cada alma tem uma missão específica. Caso não tenha cumprido
a sua, a alma deve retornar a este mundo para preencher tal lacuna.
Somente pessoas especiais sabem exatamente qual é sua missão de vida.
(...)’.
__________
(1) Mitsvot – plural de mitsvá que significa mandamento ou prática de
boas obras – caridade.
(SILVA, p. 161) (grifo do original).
Disso podemos concluir que Nicodemos, sendo um fariseu, fatalmente
acreditava que alguém poderia voltar; entretanto, não sabia como isso
poderia acontecer, razão daquelas suas perguntas a Jesus.
Será que Jesus pregou o batismo? Um fato incontestável é que Jesus
nasceu, viveu e morreu como judeu. Também não há como discutir que o
batismo não era a prática ritualística no judaísmo, que sabemos ser a da
circuncisão, ato a que, segundo narrativa no Evangelho, o próprio Jesus
foi submetido. Sobre esse assunto, veja o estudo no capítulo à parte.
Uma outra questão para análise é: João Batista era Elias
reencarnado?
Após tecer comentários sobre o diálogo entre Jesus e Nicodemos,
Allan Kardec conclui:
Se o princípio da reencarnação, conforme se acha expresso em S.
João, podia, a rigor, ser interpretado em sentido puramente místico, o
mesmo já não acontece com esta passagem de S. Mateus, que não permite
equívoco: ELE MESMO é o Elias que há de vir. Não há aí figura, nem
alegoria: é uma afirmação positiva. (...) (ESE, Capítulo IV, p. 62).
Igualmente julgamos oportuno abordar essa questão, já que é um dos
argumentos que reforçam a reencarnação, pois irá nos ajudar a fortalecer
a convicção que essa idéia era, de fato, não somente comum à época de
Jesus, como também está presente no texto bíblico. Mas como já falamos
sobre isso, não vemos a necessidade de repetir aqui. Pedimos, ao leitor
que reporte ao capítulo no qual tratamos disso.
Concluímos seguramente, sem nenhum medo de estarmos errados, que
realmente a passagem analisada diz da reencarnação. O contexto histórico
nos dá conta de que a reencarnação era crença no judaísmo, embora com o
nome de ressurreição. A grande dificuldade é que encontramos essa palavra
com vários sentidos; daí a grande confusão que causa a alguns,
principalmente àqueles que não querem, por razões dogmáticas, aceitar a
reencarnação como uma realidade.
Citaremos, para corroborar o que temos dito aqui, o que os
pesquisadores Kersten e Gruber disseram no livro O Buda Jesus:
Analisando as teorias de Pitágoras, descobrimos que sua teoria da
reencarnação veio da Índia. Apesar de todos os expurgos, essa idéia
também é preservada em várias passagens do Novo Testamento, a ponto de
ter-se a impressão de que esse conceito não-cristão foi ensinado pelo
próprio Jesus. [...]
Pode-se portanto afirmar que, nessa época, a idéia do renascimento
e da transmigração da alma estava enraizada no sentimento popular dos
judeus. Isso pode ser demonstrado em várias passagens do Novo Testamento.
Lembramo-nos da pergunta dos discípulos a Jesus sobre o homem que era
cego de nascença: “Quem pecou, ele ou os pais para que ele tenha nascido
cego?” (João 9,20. A hipótese de que o próprio homem tivesse pecado
pressupõe, naturalmente, que o pecado tivesse sido cometido numa vida
anterior, constituindo uma aceitação da idéia do carma. [...]
Essa crença evidente no renascimento que encontramos no Novo
Testamento não era, de modo algum, familiar aos judeus dos primeiros
tempos. Foi a filosofia helênica que a disseminou por todas as regiões
dentro de sua esfera de influência. O conceito de renascimento (gilgul)
só se tornou conhecido nos círculos judaicos por volta do início do nosso
milênio. Os talmudistas acreditavam que Deus havia criado um número
determinado de almas judias, que renasciam constantemente. Como punição
elas, retornavam no corpo de animais. De acordo com essa idéia, o ser
humano tinha que experimentar uma longa transmigração da alma (gul-
neschama) até alcançar a redenção (tikkun – a harmonia). A idéia de que a
redenção só ocorre quando é atingido o objetivo do desenvolvimento
terreno indica a origem hindu e budista do conceito e só surgiu entre os
judeus durante o período helênico.
A idéia da reencarnação sem dúvida ocupou um lugar de destaque na
visão que Jesus tinha da vida. Isso coloca duas possibilidades: ou Jesus
era um mestre da sabedoria helenista que adotou o conceito de
renascimento como uma abordagem filosófica, ou extraiu a idéia de fontes
hindus. No entanto, a maneira pela qual a idéia do renascimento é
integrada à sua mensagem, constituindo um componente fundamental de seu
entendimento sobre a redenção, torna a hipótese das raízes hindus muito
plausível. Apenas na Índia a reencarnação desfrutou de tal aceitação, e
apenas na Índia ela esteve ligada a uma moral semelhante à que Jesus
divulgou na Palestina. É por isso que os ensinamentos budistas de Jesus
soavam tão estranho aos judeus.
O tema renascimento está presente em muitas passagens do Novo
Testamento15. Jesus fala de suas vidas passadas e de seu retorno,
assumindo desta forma uma clara defesa da idéia da reencarnação. Sua
referência mais explicita a uma existência anterior (“Antes que Abraão
fosse, eu sou” - João 8:58) encontra um paralelo no mais antigo relato
sobre a vida de Buda, o Nidanakartha, onde o Desperto é apresentado como
um ser preexistente desde o início dos tempos.
As passagens mais importantes do Novo Testamento em que Jesus
revela sua crença no renascimento estão no Evangelho segundo João (João
3:1-4, 7:9-11). Infelizmente, elas têm sido enormemente mutiladas por
traduções incorretas. Graças ao cuidadoso trabalho de Günther Schwarz,
muitos desses erros foram corrigidos. Em diversas publicações, esse
teólogo conseguiu restabelecer o texto aramaico original dos Evangelhos a
partir das traduções gregas existentes, que usou então como base para
urna nova versão alemã. O resultado de todos esses anos de trabalho é a
obra Jesus-Evangelium16, na qual, com a ajuda de seu filho Jörn Schwarz,
reuniu os quatro Evangelhos canônicos e fontes não-bíblicas. Esse
"Evangelho de Jesus" será uma constante fonte de referência em nossa
análise dos paralelos com o budismo. As citações dessa obra serão
abreviadas como "JeEv".
Na tradução correta, o verdadeiro significado das idéias de Jesus
sobre o renascimento se torna evidente. Uma noite, sabendo que Jesus
"fora enviado como mestre" (JeEv 5:11), Nicodemos, um fariseu, foi até
ele. Na tradução alemã usual, a conversa com Nicodemos é acompanhada por
incompreensíveis palavras de Jesus: "Se um homem não nascer do alto, não
poderá ver o reino de Deus" (João 3:3). A versão não autorizada é menos
enigmática: "Se o homem não nascer de novo, não poderá ver o reino de
Deus". Nos séculos seguintes, a Igreja empenhou-se em suprimir do Novo
Testamento todas as referências à reencarnação, sem contudo conseguir
eliminá-las totalmente. Nessa nova versão, corretamente traduzida, a
intenção das palavras de Jesus volta a se tornar clara. Nicodemos
pergunta a Jesus: "O que devo fazer para entrar no Reino de Deus?" Jesus
responde: "Em verdade, em verdade, vos digo: quem não nascer de novo e de
novo, não poderá ser (re)admitido no Reino de Deus". Nicodemos então
pergunta: "Como pode um homem nascer de novo e de novo se já é velho?
Pode ele voltar ao ventre da mãe e nascer de novo?" Ao que Jesus replica:
"Não te admires do que eu disse, é preciso nascer de novo e de novo".
O que está em questão é a readmissão no Reino de Deus como
princípio e fim da existência humana. Essa lição deve ser compreendida à
luz das passagens da Bíblia em que Jesus diz que João Batista é Elias que
voltou à terra (Mateus 11:13-15, 17:10-13; Marcos 9:11-13) e em que ele
próprio é considerado um Elias, um Jeremias ou um dos outros profetas
renascido. Não existe pois nenhuma dúvida de que Jesus estava falando de
um renascimento físico, no sentido hindu de reencarnação. Visto nesse
contexto, o erro de tradução de um famoso versículo de Mateus (18:3) deve
ser corrigido. Jesus supostamente teria dito: "Se não vos converterdes e
não vos fizerdes como crianças...", quando o surpreendente resultado da
tradução correta é: "Se não renascerdes, não entrareis no Reino dos
Céus"17. (JeEv 5:12-16).
________
15.Otto Flink (Schopenhauers Seelenwanderungslehre und ihre Quellen)
menciona as seguintes passagens: Mateus 14:1-2, 1Cor 15:35-55; Mateus
17:9-12; Lucas 9:7,8,19; Marcos 9:9-13; Mateus 19:28-30; João 3,3 e 3:8.
Ele acredita que a idéia de carma está presente em João 9:2-3; Mateus
19:30; Mateus 5:4,26; Marcos 10:19-31; Lucas 18:29-20.
16. Schwarz e Schwarz (1993).
17. Schwarz (1990), p. 46.
(KERSTEN e GRUBER, s/d, pp. 131-132). (grifo nosso).
Acreditamos que, por motivos de interesses de poder e de dinheiro,
a liderança religiosa atual não faz a mínima questão de esclarecer essas
dúvidas, pois estariam colocando em risco esses seus interesses. Mas
estamos confiantes em que, muito mais cedo do que querem alguns, a
ciência dará o veredicto definitivo, quando provar categoricamente a lei
natural da reencarnação, única coisa pela qual poderemos explicar
inúmeros questionamentos humanos, e é por ela que a Justiça de Deus se
manifesta em plenitude. Sobre isso o leitor encontrará informações na
internet pelo endereço: http://geocities.yahoo.com.br/existem_espiritos/.
O Antigo Testamento foi revogado por Jesus?
Neste texto estudaremos algumas passagens do Evangelho buscando
compreender as palavras de Jesus, visando deixar o mais claro possível o
que Ele pensava, de modo que também você, leitor, tenha elementos
suficientes para tirar sua própria conclusão.
Mt 5,17-18: “Não penseis que vim revogar a lei ou os profetas: não vim
para revogar, vim para cumprir. Porque em verdade vos digo: 'Até que o
céu e a terra passem, nem um 'i' ou um 'til' jamais passará da lei, até
que tudo se cumpra'”.
Essa é a passagem em que se apóiam para concluir que Jesus estaria
confirmando toda a Bíblia. Mas, com essa fala, Ele estava apenas querendo
dizer que devia se cumprir tudo que Dele está escrito na Lei e nos
profetas, dizendo que nem um “i” ou nem um “til” do que ali consta
deixaria de ser cumprido; isso ficará bem claro, no desenrolar desse
estudo.
Lc 10,25-28: “E eis que certo homem, intérprete da lei, se levantou com
intuito de por Jesus em provas, e disse-lhe: 'Mestre, que farei para
herdar a vida eterna?' Então Jesus lhe perguntou: 'Que está escrito na
lei? Como interpretas?' A isto ele respondeu: 'Amarás o Senhor teu Deus
de todo o teu coração, de toda a tua alma, de todas as tuas forças e de
todo o teu entendimento; e amarás o teu próximo como a ti mesmo'. Então
Jesus lhe disse: 'Respondeste corretamente; faze isto, e viverás'”.
Se Jesus, quando disse a respeito da Lei (Mt 5,17-18), estivesse
mesmo se referindo a todo o Pentateuco mosaico, estaria em contradição
com esta passagem, pois considerou como correta a resposta do intérprete,
que somente disse que está escrito o: “Amarás o Senhor teu Deus de todo o
teu coração, de toda a tua alma, de todas as tuas forças e de todo o teu
entendimento; e amarás o teu próximo como a ti mesmo”. Ora, na legislação
de Moisés existem muitas outras coisas para se cumprirem além dessas,
que, segundo os exegetas, são, ao todo, 613 normas.
Lc 16,16-17: “A lei e os profetas vigoraram até João; desde esse tempo
vem sendo anunciado o evangelho do reino de Deus, e todo homem se esforça
por entrar nele. E é mais fácil passar o céu e a terra, do que cair um
til sequer da lei”.
Se a Lei e os profetas vigoraram até João é porque depois de João
está vigorando algo diferente, uma nova legislação. Ela não é nada mais
nada menos que o Evangelho, ou seja, o Novo Testamento. A questão de
“cair um til sequer da lei” se refere a tudo que há nela com relação às
profecias sobre a vinda de Jesus. Assim, os acontecimentos que iriam
ocorrer com Ele é que seriam cumpridos e não, como querem alguns, que
todas as ordenações contidas lá, devam ser rigorosamente seguidas. Até
mesmo porque, como iremos ver mais adiante, especificamente algumas delas
Ele as alterou profundamente, como é o caso, por exemplo, da questão do
“olho por olho”.
Lc 24,25-27: “Ele então lhes disse: 'Ó homens sem inteligência, como é
lento o vosso coração para crer no que os profetas anunciaram! Não era
preciso que Cristo sofresse essas coisas para entrar na glória?' E
partindo de Moisés começou a percorrer todos os profetas, explicando em
todas as Escrituras, o que dizia respeito a ele mesmo”.
Após ressuscitar, Jesus caminha com dois discípulos que estavam
indo para a aldeia de Emaús, e lhes explica o que constava nas Escrituras
a respeito dele. Iniciando por Moisés, percorre todos os profetas, ou
seja, esclarece-lhes somente o que era importante e que deveria ser
cumprido nesse contexto. Portanto, confirma o que estamos dizendo desde o
início, quer dizer, o que Ele não veio revogar ou abolir as profecias a
Seu respeito. Se tudo nas Escrituras fosse mesmo importante, não iria
restringir-se a só explicar o que nelas diziam sobre Ele. E para provar
que não estamos distorcendo os fatos, vejamos a passagem seguinte:
Lc 24,44-45: “A seguir Jesus lhes disse: 'São estas palavras que eu vos
falei, estando ainda convosco, que importava se cumprisse tudo o que de
mim está escrito na Lei de Moisés, nos Profetas e nos Salmos'. Então lhes
abriu o entendimento para compreenderem as Escrituras”.
Veja você, caro leitor, que é perfeitamente claro o que Jesus quis
dizer quanto ao cumprimento das Escrituras. Não era, portanto, tudo
quanto existia nelas, mas somente importava que se cumprisse tudo o que
dele estava escrito nela, ou seja, sua origem da casa de Davi, sua
missão, todo o seu padecimento que culminou com sua morte na cruz e sua
gloriosa ressurreição. Assim, não há como entender de outra forma, a não
ser que as palavras de Jesus não sirvam para nada ou que as queiramos
distorcer.
Jo 1,17: “Porque a lei foi dada por intermédio de Moisés; a graça e a
verdade vieram por Jesus Cristo”.
Aqui temos uma nítida demonstração de que a Lei de Moisés não é de
suma importância para os cristãos, já que a VERDADE veio por Jesus
Cristo, e é a Ele que nós procuramos seguir, e não a Moisés. Não
poderemos dizer que a Lei de Moisés não teve o seu valor; é claro que
teve; entretanto, como diz Jesus, somente até João (Lc 16,16). Isso
porque, para um povo atrasado, ela foi um fator de desenvolvimento.
Jo 1,45: “Filipe encontrou Natanael e lhe falou: 'Achamos aquele de quem
escreveram Moisés na Lei e os Profetas, Jesus, filho de José de Nazaré'”.
Passagem que vem confirmar que as profecias a respeito do Messias
estavam se cumprindo no momento em que Jesus inicia a sua vida pública. E
era justamente nisso que os hebreus esperavam, ansiosamente, que se
cumprissem as Escrituras.
Jo 7,23: “Se um homem recebe a circuncisão no sábado, para cumprir a Lei
de Moisés, por que vos irritais contra mim porque curei totalmente um
homem no sábado?”.
Jo 8,5-7: “Na Lei, Moisés nos manda apedrejar as adúlteras; mas tu o que
dizes? ... Jesus... lhes disse: ‘Aquele de vós que estiver sem pecado,
atire-lhe a primeira pedra'”.
Se, realmente, as leis que Moisés passou ao povo hebreu fossem
todas provenientes do Criador, por que nestas duas passagens não se diz:
cumprir a Lei de Deus e Na lei, Deus nos manda, respectivamente? Porque
eram leis de Moisés e não provenientes da divindade. Tanto é que, na
questão da adúltera, Jesus não disse ao povo para cumprir a Lei, antes;
ao contrário, revoga-a, inclusive, demonstrando uma inteligência que Lhe
era peculiar. Deus também nunca diria: “Não cobiçar a mulher do próximo”,
mandamento que realça ser, obviamente, um produto da cultura de uma
sociedade machista daquela época; nada mais que isso, sendo, portanto, da
forma que está expressa, lei dos homens e não de Deus.
Paulo, em carta aos romanos, disse-lhes o seguinte:
Rm 7,5: “Enquanto viviam segundo a carne, as paixões pecaminosas,
estimuladas pela Lei, produziam fruto para a morte em nossos membros”.
Podemos deduzir desta passagem, que a Lei estimulava paixões
pecaminosas? Se for isto mesmo, é porque ela, a Lei, não era a VERDADE,
que veio somente com Jesus. E no versículo seguinte continua:
Rm 7,6: “Mas agora, livres da Lei, estamos mortos para aquilo que nos
conservava prisioneiros, de sorte, que podemos servir a Deus conforme um
espírito novo e não segundo a letra antiga”.
“Livres da Lei”, ou seja, que não estamos mais submissos a ela.
Não é claro isso? Se podemos servir a Deus conforme um espírito novo,
qual seja, os ensinamentos de Jesus, por que ficar ainda apegados a
Moisés (letra antiga)? O Antigo Testamento foi revogado, ou ainda
queremos permanecer na dúvida?
Mt 5,19-20: “Aquele, pois, que violar um destes mandamentos, posto que
dos menores, e assim ensinar aos homens, será considerado mínimo no reino
dos céus; aquele, porém, que os observar e ensinar, esse será considerado
grande no reino dos céus. Porque vos digo que, se a vossa justiça não
exceder em muito a dos escribas e fariseus, jamais entrareis no reino dos
céus”.
Nosso quadro é: Jesus na passagem evangélica do Sermão do Monte,
onde inicia dizendo os novos ensinamentos que deveremos cumprir. São as
verdades que Ele passa a todos nós como roteiro de vida. São apenas os
mandamentos que disse para que não os violássemos. A partir dali, também,
é que altera e revoga a legislação de Moisés; confirmamos isso com as
passagens relativas ao capítulo 5 de Mateus, que serão colocadas logo a
seguir.
Mt 5,21-22: “Ouvistes que foi dito aos antigos: 'Não matarás; e: Quem
matar estará sujeito a julgamento'. Eu, porém, vos digo que todo aquele
que (sem motivo) se irar contra seu irmão estará sujeito a julgamento; e
quem proferir um insulto a seu irmão estará sujeito a julgamento do
tribunal; e quem lhe chamar: Tolo, estará sujeito ao inferno de fogo”.
Moisés: Não matarás. Jesus: que não devemos nem mesmo irar contra
ou insultar ao nosso irmão.
Mt 5,27-28: “Ouvistes que foi dito: 'Não adulterarás'. Eu, porém, vos
digo: Qualquer um que olhar para uma mulher com intenção impura, no
coração já adulterou com ela.
Moisés: Não adulterarás. Jesus: só o fato de olhar para uma mulher
com intenção impura, já cometemos adultério.
Mt 5,31-32: “Também foi dito: 'Aquele que repudiar sua mulher, dê-lhe
carta de divórcio'. Eu, porém, vos digo: Qualquer que repudiar sua
mulher, exceto em caso de relações sexuais ilícitas, a expõe a tornar-se
adúltera; e aquele que casar com a repudiada comete adultério.
Moisés: poder-se-ia repudiar a mulher. Jesus: se a repudiares
estás expondo a mulher ao adultério.
Mt 5,33-37: “Também ouvistes que foi dito aos antigos: 'Não jurarás
falso, mas cumprirás rigorosamente para com o Senhor os teus juramentos'.
Eu, porém, vos digo: De modo algum jureis: Nem pelo céu, por ser o trono
de Deus; nem pela terra, por ser estrado de seus pés; nem por Jerusalém,
por ser cidade do grande Rei; nem jures pela tua cabeça, porque não podes
tornar um cabelo branco ou preto. Seja, porém, a tua palavra: Sim, sim;
não, não. O que disto passar vem do maligno”.
Moisés: Não jurarás falso. Jesus: De modo algum jureis.
Mt 5,38-42: “Ouvistes que foi dito: 'Olho por olho, dente por dente'. Eu,
porém, vos digo: Não resistais ao perverso; mas a qualquer que te ferir
na face direita, volta-lhe também a outra; e ao que quer demandar contigo
e tirar-te a túnica, deixa-lhe também a capa. Se alguém te obrigar a
andar uma milha, vai com ele duas. Dá a quem te pede, e não voltes as
costas ao que deseja que lhe emprestes”.
Moisés: Olho por olho, dente por dente. Jesus: Quem te ferir na
face direita, volta-lhe também a outra.
Mt 5,43-48: “Ouvistes que foi dito: 'Amarás o teu próximo e odiarás o teu
inimigo'. Eu, porém, vos digo: Amai os vossos inimigos e orai pelos que
vos perseguem; para que vos torneis filhos do vosso Pai celeste, porque
ele faz nascer o seu sol sobre maus e bons, e vir chuvas sobre justos e
injustos. Porque, se amardes os que vos amam, que recompensa tendes? Não
fazem os publicanos também o mesmo? E se saudardes somente os vossos
irmãos, que fazeis de mais? Não fazem os gentios também o mesmo?
Portanto, sede vós perfeitos como perfeito é o vosso Pai celeste”.
Moisés: Odiarás o teu inimigo. Jesus: Amai os vossos inimigos.
E, objetivamente, quanto à questão da revogação do Antigo
Testamento, vejamos o que encontramos de apoio a essa tese no Novo
Testamento:
1Cor 15,2: “É pelo evangelho que vocês serão salvos, contanto que o
guardem de modo como eu lhes anunciei; do contrário, vocês terão
acreditado em vão”.
Ef 1,13: “Em Cristo, também vocês ouviram a palavra da verdade, o
Evangelho que os salva”.
Paulo deixa claro que é pelo Evangelho que seremos salvos; em
outras palavras, ele não aceita o Antigo Testamento como algo com que
possamos nos salvar.
Hb 7,18-19: “Portanto, por um lado, se revoga a anterior ordenança, por
causa de sua fraqueza e inutilidade (pois a lei nunca aperfeiçoou cousa
alguma) e, por outro lado, se introduz esperança superior, pela qual nos
chegamos a Deus. E, visto que não é sem prestar juramento (porque
aqueles, sem juramento, são feitos sacerdotes, mas este, com juramento,
por aquele que lhe disse: O Senhor jurou e não se arrependerá; Tu és
sacerdote para sempre); por isso mesmo Jesus se tem tornado fiador de
superior aliança”.
Hb 8,6-8.13: “Agora, com efeito, obteve Jesus ministério tanto mais
excelente, quanto é ele também mediador de superior aliança instituída
com base em superiores promessas. Porque, se aquela primeira aliança
tivesse sido sem defeito, de maneira alguma estaria sendo buscado lugar
para segunda. E, de fato, repreendendo-os, diz: Eis aí vêm dias, diz o
Senhor, e firmarei nova aliança com a casa de Israel e com a casa de
Judá. Quando ele diz Nova, torna antiquada a primeira. Ora, aquilo que se
torna antiquado e envelhecido, está prestes a desaparecer”.
Hb 10,9: “... Desse modo, Cristo suprime o primeiro culto para
estabelecer o segundo”.
Se até aqui ainda poderia existir alguma pequena sombra de dúvida,
agora foi definitivamente dissipada por estas narrativas da carta aos
Hebreus. Poderíamos até dizer: “quem tem ouvidos que ouça”, mas diremos
quem tem olhos veja: a aliança anterior é fraca, inútil e com defeito,
enquanto que a nova é superior a ela. Quanto ao “está prestes a
desaparecer”, só não desapareceu ainda é por causa da insistência de
alguns que querem, a todo custo, manter viva a legislação de Moisés
contida no Antigo Testamento. Repetindo: Porque, se aquela primeira
aliança tivesse sido sem defeito, de maneira alguma estaria sendo buscado
lugar para segunda.
Mc 2,18-22: “Como os discípulos de João e os fariseus estavam jejuando,
foram lhe perguntar: 'Por que é que os discípulos de João e os discípulos
dos fariseus jejuam, e os teus não?' Jesus lhes respondeu: 'Por acaso
ficaria bem que os convidados para um casamento fizessem jejum, enquanto
o esposo está com eles? Enquanto está, não convém. Mas virá um tempo em
que o esposo lhes será tirado. Então sim, eles vão jejuar. Ninguém
costura um remendo de pano novo em roupa velha. Do contrário o remendo
novo, pelo fato de encolher, estraga a roupa velha e o rasgão fica pior.
Ninguém põe vinho novo em velhos recipientes de couro. Caso contrário, o
vinho arrebentaria os recipientes. Ficariam perdidos os recipientes e
também o vinho. Para vinho novo, recipientes novos!'”.
Seria o mesmo que Jesus dizer: Se vocês ficarem apegados aos
ensinamentos de Moisés, não conseguirão suportar nem compreender o que
agora vos trago. Onde se falava sobre os jejuns? Não é no Velho
Testamento, que, tanto os fariseus e quanto os discípulos de João
Batista, tiravam o que seguiam? Lembremo-nos de que “a Lei e os Profetas
vigoraram até João” (Lc 16,16). Assim, não fica claro sua revogação por
Jesus? Só não o é para os que ainda insistem em seguir Moisés. Mais claro
fica quando tomamos da nota de rodapé constante do Novo Testamento,
Edições Loyola, o seguinte: “Tanto o pano novo como o vinho novo são
símbolos duma nova era (cf. At 10,11; Hbr 1,11; Gên 49,11-12); os
cristãos devem estar animados dum espírito novo, incompatível com antigas
prescrições do judaísmo já ultrapassadas” (p. 57).
Há um episódio na vida de Jesus que nos levou a formar uma forte
convicção que seus ensinamentos eram superiores aos de Moisés. É a
passagem em que João narra, o que se supõe como sendo, o primeiro milagre
de Jesus. Apesar de termos refletido muito sobre ela, ainda não tínhamos
nenhuma explicação que justificasse a atitude de Jesus em transformar
água em vinho, para embebedar os convidados da festa de que participava.
Vejamos o episódio:
“No terceiro dia, houve uma festa de casamento em Caná da Galiléia, e a
mãe de Jesus estava aí. Jesus também tinha sido convidado para essa festa
de casamento, junto com seus discípulos. Faltou vinho e a mãe de Jesus
lhe disse: 'Eles não têm mais vinho!' Jesus respondeu: 'Mulher, que
existe entre nós? Minha hora ainda não chegou'. A mãe de Jesus disse aos
que estavam servindo: 'Façam o que ele mandar'. Havia aí seis potes de
pedra de uns cem litros cada um, que serviam para os ritos de purificação
dos judeus. Jesus disse aos que serviam: 'Encham de água esses potes'.
Eles encheram os potes até a boca. Depois Jesus disse: 'Agora tirem e
levem ao mestre-sala'. Então levaram ao mestre-sala. Este provou a água
transformada em vinho, sem saber de onde vinha. Os que serviam estavam
sabendo, pois foram eles que tiraram a água. Então o mestre-sala chamou o
noivo e disse: 'Todos servem primeiro o vinho bom e, quando os convidados
estão bêbados, servem o pior. Você, porém, guardou o vinho bom até
agora'. Foi assim, em Caná da Galiléia, que Jesus começou seus sinais.
Ele manifestou a sua glória, e seus discípulos acreditaram nele”. (Jo
2,1-11).
Mas qual é o verdadeiro sentido dessa passagem? Nós o
encontraremos naquilo que a pessoa encarregada da festa disse para o
noivo: “Todos servem primeiro o vinho bom e, quando os convidados estão
bêbados, servem o pior. Você, porém, guardou o vinho bom até agora”.
Considerando que, com esse primeiro ato público, Jesus inicia a sua
missão, podemos dizer que o “vinho bom guardado até agora” são os
ensinamentos de Jesus, superiores aos recebidos anteriormente, por meio
de Moisés que seria simbolicamente o vinho de pior qualidade, até mesmo
porque, e sem querer desmerecê-los, a humanidade daquela época não estava
preparada para receber vinho (ensinamento) de melhor qualidade, se assim
podemos nos expressar.
Tudo o que já dissemos anteriormente sobre os ensinos de Jesus,
vale para corroborar essa nossa opinião. Mas podemos ainda trazer como
apoio a isso: “Em comparação com esta imensa glória, o esplendor do
ministério da antiga aliança já não é mais nada” (2Cor 3,10).
Provamos que Jesus não se restringiu a só revogar os rituais e
sacrifícios como alguns pensam. Provamos também que não distorcemos as
narrativas da Bíblia à nossa conveniência, de que tanto nos acusam. São
elas, exatamente, que nos dão uma base sólida para afirmar com absoluta
certeza que:
1 – O cumprimento da lei e dos profetas a que Jesus se refere no
Evangelho é apenas com relação às profecias contidas nas Escrituras sobre
Ele mesmo;
2 – Que somente tem que ser cumprido da Lei: Amar a Deus sobre
todas as coisas e ao próximo como a ti mesmo.
3 – Que nunca disse para seguirmos toda a Lei, aqui entendida como
todo o Pentateuco.
Agora, podemos responder ao questionamento inicial: O Antigo
Testamento foi revogado por Jesus? Sim; sem nenhuma sombra de dúvida. E é
por isso que não nos sentimos na obrigação de cumprir nada do que consta
nele, até mesmo para sermos coerentes com o que pensamos e por acreditar
nessa fala de Jesus: "Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida. Ninguém vai
ao Pai senão por mim” (Jo 14,6). Por que Ele se colocou como sendo o
caminho que conduz ao Pai e não a Moisés? É porque somente os seus
ensinos é que devem ser seguidos.
Esse é o entendimento a que chegamos. Entretanto, não há como
obrigar ninguém a pensar como nós. A única coisa que pedimos é para que
as pessoas deixem de se apegar em demasia aos velhos ensinamentos, como
se eles fossem verdadeiros. A Terra já não é mais o centro do Universo,
visto que o homem, percebendo a ignorância de tal afirmativa, finalmente,
aceitou a voz da Ciência. Além de que, muitas coisas não foram mudadas
pelas cúpulas religiosas, justamente para que elas conservassem, a todo
custo, o domínio que têm sobre o povo e, também, para que pudessem mantêlo a todo custo. Ainda hoje encontramos as que buscam incutir a validade
dos ensinamentos do Antigo Testamento não se dando conta de que
“rompestes com Cristo, vós que buscais a justiça na Lei; caístes fora da
graça” (Gl 5,4). Sabemos que não fazem isso por ignorância, mas por
esperteza visando dominar seus “fiéis”, a fim de conseguir e manter o
“poder” e o “dinheiro” na base do que podemos chamar de terrorismo
religioso.
Será que os profetas previram a vinda de Jesus?
Faremos uma análise de várias passagens bíblicas tidas como
profecias a respeito de Jesus, o Messias, considerado o enviado de Deus
com a missão de libertar os judeus do domínio estrangeiro, povo esse que
teria supremacia em relação aos demais.
Primeiramente, cumpre-nos ressaltar que, por mais paradoxal que
seja, cada uma das correntes religiosas tira da Bíblia aquilo que melhor
lhe convém, principalmente, o que parece justificar seus dogmas,
esquecendo-se que se, de fato, sua origem for uma só, ou seja, de Deus,
não poderia haver divergências de interpretações.
Veja, caro leitor, a questão das profecias a respeito de Jesus que
se encontram mencionadas no Novo Testamento, cujo número, segundo o que
pudemos levantar, chega a trinta. Entretanto, navegando pela Internet,
visitamos um Site católico15 que nos apresenta uma lista de sessenta,
enquanto que um protestante16 nos mostra apenas quinze. Se num ponto tão
importante como esse os que se consideram os cristãos verdadeiros não se
entendem, imagine quanto ao resto. E não custa lembrar que, até nos
livros que compõem a Bíblia, essas correntes religiosas divergem, já que
a dos católicos possui setenta e três livros, enquanto que a dos
protestantes contém sessenta e seis. Se afirmam que sua origem é de total
inspiração divina, como pode esta mensagem, provinda de uma mesma fonte,
causar tantos desentendimentos e divergências entre as pessoas, quando,
na verdade, deveria ser justamente o contrário, ou seja, deveria uni-las?
Uma coisa que nos chama a atenção é o fato de que o povo da época,
a quem todas estas profecias teriam sido dirigidas, não aceitou Jesus
como sendo o Messias; daí estranharmos por conta de que as correntes
religiosas ditas cristãs o têm nesse conceito. Ao que tudo indica, houve,
nos evangelhos, uma preocupação, por parte de seus seguidores, de colocar
Jesus como sendo o Messias esperado. Isso ocorre de forma mais evidente
em Mateus. Por esse motivo, apoiar-se nos Evangelhos para sustentar essa
hipótese não é uma boa alternativa.
Não sabemos como encontraram tantas profecias; inclusive, diga-se
de passagem, que muitas não são propriamente o que se pode chamar de
profecia, já que são passagens relacionadas a fatos corriqueiros do diaa-dia das respectivas épocas, não sendo, portanto, uma previsão para um
acontecimento futuro. Acreditamos que, no desenrolar desse estudo, iremos
ressaltar algumas delas, a fim de que, você, leitor, possa ter elementos
suficientes para tirar suas próprias conclusões.
Analisaremos, nesse momento, apenas aquelas que, por coerência,
deveriam ser consideradas como profecias, já que são citadas nos textos
do Novo Testamento. As que foram acrescentadas pelo fanatismo cego,
deixaremos para uma outra oportunidade. Tomaremos essas como base para
nosso estudo que, conforme já falamos, são em número de trinta, ou seja,
o dobro das que os protestantes consideram e apenas a metade das citadas
pelos católicos. Para a identificação das profecias usamos a Bíblia
Sagrada Ave Maria e para a transcrição dos textos a Bíblia Sagrada
Pastoral.
Mt 1,22-23: “Tudo isso aconteceu para se cumprir o que o Senhor havia
dito pelo profeta: 'Vejam: a virgem conceberá, e dará à luz um filho. Ele
será chamado Emanuel, que quer dizer: Deus está conosco'”.
Profecia: Is 7,14: “Pois saibam que Javé lhes dará um sinal: A jovem
concebeu e dará à luz um filho, e o chamará pelo nome de Emanuel”.
Na análise dessa passagem, iremos perceber que ela não diz
respeito a Jesus. Mas, antes, para uma melhor compreensão e para que não
paire dúvida alguma, temos que realçar o início desse versículo, já que
ele é quase sempre subtraído quando justificam suas interpretações: Pois
saibam que Javé lhes dará um sinal. Ora, devemos concluir disso que Deus
daria um sinal a alguém; mas, quem e por quê? Para saber as respostas,
vamos recorrer às informações constantes da Bíblia, em nota de rodapé,
sobre esse episódio. Diz lá:
O reino do Norte (Efraim), cujo rei era Facéia, se aliou a Rason,
rei de Aram, numa tentativa de se libertar do perigo assírio. Como o
reino do Sul (Judá) não participou da coalizão entre o reino do Norte e
Aram, estes dois temeram que Judá se tornasse aliado da Assíria;
resolveram então atacar o reino do Sul, para destronar o rei Acaz e
colocar no seu lugar o filho de Tabeel, rei de Tiro. Acaz teme o cerco e
verifica a reserva de água da cidade. Isaías vai ao seu encontro e o
tranqüiliza, mostrando que não haverá perigo, pois continua válida a
promessa de que a dinastia de Davi será perene, desde que se coloque
total confiança em Javé. O sinal prometido a Acaz é o seu próprio filho,
do qual a rainha (a jovem) está grávida. Esse menino que está para nascer
é o sinal de que Deus permanece no meio do seu povo (Emanuel = Deus
conosco).17 (grifo nosso).
Assim, pelo contexto bíblico e confirmado por essa nota, podemos
observar que Deus promete um sinal ao rei Acaz e esse sinal é justamente
o filho do rei que está por nascer. Fora disso é distorcer a
interpretação do texto. Além de que o fato é próximo e não uma previsão
para um acontecimento num futuro longínquo, já que querem atribuir essa
profecia a Jesus. E mais, o nome Jesus significa “Deus é salvação”;
obviamente, diferente de Emanuel que quer dizer “Deus está conosco”, que
é o nome previsto na profecia, fato que o fanatismo cego não deixa muitos
perceberem.
E continuando. Na explicação do verbete Emanuel, lemos:
É o nome dado por Isaías a uma futura criança cujo nascimento será,
para o rei Acaz, o “sinal” da assistência divina (Is 7,14-17). A
interpretação deste oráculo deve estar ligada ao significado do nome e ao
alcance que terá na conjuntura daquele momento. O reino de Judá é
ameaçado pelos sírios e efraimitas aliados, que querem acertar contas com
a dinastia reinante, a mesma dinastia que se beneficia das promessas
feitas a Davi. Em vez de recorrer a essas promessas, Acaz apela para a
Assíria. Isaías condena este modo de agir e proclama: Deus está presente;
ele está “conosco”.
Qual será a criança cujo nascimento será portador de uma mensagem
como esta? Como é ao rei, contemporâneo de Isaías, que o sinal será dado,
o nascimento anunciado deve ocorrer proximamente. Será Ezequias – afirmase muitas vezes, e com boas razões. Mas esta criança é descrita numa
linguagem poético-mítica, concretamente irrealizável. O oráculo abre
portanto uma perspectiva que vai além do rei em questão. Graças a este
oráculo, os crentes, insatisfeitos com os reis históricos, esperarão por
uma personagem que finalmente satisfará a esperança deles. Mateus e os
cristãos posteriores a ele reconhecem em Jesus aquele que realiza
plenamente o anúncio de Isaías (Mt 1,23).18 (grifo nosso).
Vê-se, portanto, que essa profecia realmente não se refere a
Jesus, conforme ficou bem claro na explicação. Como não ficaram
satisfeitos com Ezequias, a quem se referia esta profecia, foram
postergando para uma outra época até que, finalmente, a encaixaram na
pessoa de Jesus.
Querem passar por cima do contexto histórico, atropelando os
acontecimentos da época, para trazer para os dias de hoje aquilo que
desejam que os outros acreditem piamente.
Mas, é muito interessante ver como os segmentos religiosos
tradicionais se divergem a respeito da interpretação das passagens
bíblicas. Veja, por exemplo, o que dizem os protestantes a respeito dessa
profecia de Isaías:
O sinal divino para Acaz seria de que uma virgem (quando a profecia
foi dada, referia-se provavelmente à mulher, na ocasião virgem, que
Isaías tomaria como segunda esposa, 8:1-4) conceberia um filho, que não
teria mais que 12 ou 14 anos antes de Israel e Síria serem capturadas
pela Assíria.19
Aqui dizem que o filho é de Isaías, não do rei Acaz como é o que
se pode retirar da passagem. Por fim, agem como os outros que sempre
procuram, mesmo sob pena de serem incoerentes, relacionar determinadas
passagens como uma profecia a respeito de Jesus, segundo podemos
confirmar na seqüência dessa nota:
A virgem da profecia de Isaías é um tipo de Virgem Maria, que, pelo
Espírito Santo, concebeu milagrosamente a Jesus Cristo (veja Mt 1:23). A
palavra hebraica aqui traduzida por virgem é encontrada também em Gn
24,43; Ex 2:8; Sl 68:25; Pv 30:19; Ct 1:3; 6:8, e em todas estas
passagens significa uma jovem solteira e casta20. (grifo nosso).
Só que aqui, nos deparamos com um problema. É a questão do
significado da palavra hebraica almah, para a qual encontramos esta outra
explicação: “O termo hebraico “almah” designa, quer a donzela, quer uma
jovem casada recentemente, sem explicitar mais”21. Assim, se evidencia
que é muito difícil estudar a Bíblia usando somente uma tradução, pouco
importando qual seja a denominação religiosa que a tenha editado. Devemos
ler várias, para ver se conseguimos entender os textos como eles são e
não como querem que os entendamos.
Mt 2,5-6: “Eles responderam: 'Em Belém, na Judéia, porque assim está
escrito por meio do profeta: ‘E você, Belém, terra de Judá, não é de modo
algum a menor entre as principais cidades de Judá, porque de você sairá
um Chefe, que vai apascentar Israel, meu povo’”.
Profecia: Mq 5,1: “Mas você, Belém de Éfrata, tão pequena entre as
principais cidades de Judá! É de você que sairá para mim aquele que há de
ser o chefe de Israel. A origem dele é antiga, desde tempos remotos”.
Nesta segunda profecia, perceberemos que, simplesmente, pegaram
parte de um texto, que, fora do seu contexto, se aplica muito bem aos
seus propósitos, mas cuja realidade é completamente outra. Para elucidar
essa questão, vejamos a seqüência da passagem: “Pois Deus os entrega só
até que a mãe dê à luz, e o resto dos irmãos volte aos israelitas. De pé,
ele governará com a própria força de Javé, com a majestade e o nome de
Javé, seu Deus. E habitarão tranqüilos, pois ele estenderá o seu poder
até as extremidades da terra. Ele próprio será a paz. Se a Assíria
invadir o nosso território e quiser pisar o interior de nossos palácios,
poremos em luta contra eles sete pastores e oito comandantes. Eles vão
governar a Assíria com espada, a terra de Nemrod com punhal. Ele nos
livrará da Assíria, se invadirem o nosso território, se atravessarem
nossas fronteiras” (Mq 5,2-5).
A pessoa de quem Miquéias está falando é a que livrará o povo
hebreu da Assíria. Nas pesquisas que fizemos, não conseguimos estabelecer
com precisão quem era. O mais provável é que seja Ezequias, filho do rei
Acaz, Rei de Judá (721-693 a.C.), já que a profecia anterior, conforme
pudemos constatar, se refere a ele.
A Revista Superinteressante traz um artigo esclarecedor intitulado
“Quem foi Jesus?”, assinado por Rodrigo Cavalcante, do qual ressaltamos:
(...) E o segundo problema, ainda mais grave, é que provavelmente
Jesus não nasceu em Belém. “Há quase um consenso entre os historiadores
de que Jesus nasceu em Nazaré”, diz o padre Jaldemir Vitório, do Centro
de Estudos Superiores da Companhia de Jesus, em Belo Horizonte. Então por
que o evangelho de Mateus diz que o nascimento foi em Belém? Vitório
explica que o texto segue o gênero literário conhecido por midrash.
Basicamente, o midrash é uma forma de contar a história da vida de alguém
usando como pano de fundo a biografia de outras personalidades
históricas. No caso de Jesus, ele explica, a referência a Belém é feita
para associá-lo ao rei Davi do Antigo Testamento – que, segundo a
tradição, teria nascido lá. (CAVALCANTE, 2002, p. 43) (grifo nosso).
Não há como contestar os dados da história; não é mesmo?
Mt 2,14-15: “José levantou-se de noite, pegou o menino e a mãe dele, e
partiu para o Egito. Aí ficou até a morte de Herodes, para se cumprir o
que o Senhor havia dito por meio do profeta: 'Do Egito chamei o meu
filho'”.
Profecia: Os 11,1: “Quando Israel era menino, eu o amei. Do Egito chamei
o meu filho;”.
A explicação é que “Oséias compara a relação entre Deus e Israel
como a relação que existe entre pai e filho”22. (grifo nosso). Veja como
a passagem deixa isso bem claro. Trata-se, portanto, da libertação do
povo judeu (chamado de Israel), quando Deus, através do profeta Moisés,
tira esse povo da subjugação dos egípcios. E para confirmar isso,
vejamos, em seqüência, os versículos 2 a 11:
“E no entanto, quanto mais eu chamava, mais eles se afastavam de mim:
ofereciam sacrifícios aos baais, queimavam incenso aos ídolos. E não há
dúvida, fui eu que ensinei Efraim a andar, segurando-o pela mão. Mas eles
não perceberam que era eu quem cuidava deles. Eu os atraí com laços de
bondade, com cordas de amor. Fazia com eles como quem levanta até seu
rosto uma criança; para dar-lhes de comer, eu me abaixava até eles.
Voltarão para a terra do Egito, a Assíria será o seu rei, porque não
quiseram converter-se. A espada devastará suas cidades, exterminará seus
filhos e demolirá suas fortalezas. O meu povo é difícil de se converter:
é chamado a olhar para o alto, mas ninguém levanta os olhos. Como poderia
eu abandoná-lo, Efraim? Como haveria de entregar você a outros, Israel?
Será que eu poderia tratá-lo como a Adama? Eu poderia tratá-lo como a
Seboim? O meu coração salta no meu peito, as minhas entranhas se comovem
dentro de mim. Não me deixarei levar pelo ardor da minha ira, não vou
destruir Efraim. Eu sou Deus, e não um homem. Eu sou o Santo no meio de
você, e não um inimigo devastador. Eles seguirão a Javé. E Javé rugirá
como um leão. E quando ele rugir; eles virão voando como pássaros; como
pombos, eles virão do país da Assíria. Então eu os farei morar nas suas
próprias casas – oráculo de Javé”.
Na narrativa, que acabamos de colocar, a fala está sendo dirigida
ao povo de Israel, não resta a menor dúvida. O que consta do versículo 1,
fora deste contexto, modifica completamente o sentido que se deve dar à
expressão “meu filho”; mas a citação do texto isolado parece ter sido de
propósito, para se dar a idéia de que é a respeito de Jesus que se fala,
já que esse era o objetivo que buscavam atingir.
Mt 2,16-18: “Quando Herodes percebeu que os magos o haviam enganado,
ficou furioso. Mandou matar todos os meninos de Belém e de todo o
território ao redor, de dois anos para baixo, calculando a idade pelo que
tinha averiguado dos magos. Então se cumpriu o que fora dito pelo profeta
Jeremias: 'Ouviu-se um grito em Ramá, choro e grande lamento: é Raquel
que chora seus filhos, e não quer ser consolada, porque eles não existiam
mais'”.
Profecia: Jr 31,15: “Assim diz Javé: Escutem! Ouvem-se gemidos e pranto
amargo em Ramá: é Raquel que chora inconsolável por seus filhos que já
não existem mais”.
Pelo contexto, o fato relacionado à passagem de Jeremias é:
“Raquel: mãe de Benjamim e, por José, avó de Efraim e Manasses. Chora os
homens dessas três tribos levadas para o exílio”, mas continuando a
explicação dizem: “Este trecho é citado em Mat 2,18 por acomodação à dor
das mulheres, cujos filhos Herodes massacrara” 23. Observe bem que na
expressão “por acomodação” já se denuncia que não é o sentido original do
texto. Trata-se aqui do exílio na Babilônia, que o povo hebreu está
vivendo. Este era o motivo do choro de Raquel; portanto, nada tem a ver
com uma profecia a respeito da morte das crianças no tempo de Jesus.
Mt 2,22-23: “... Por isso, depois de receber aviso em sonho, José partiu
para a região da Galiléia, e foi morar numa cidade chamada Nazaré. Isso
aconteceu para se cumprir o que foi dito pelos profetas: 'Ele será
chamado Nazareno'”.
Profecia: Esta profecia não existe.
A que ponto chegaram: citar uma profecia que não existe,
comprovando que o fanatismo religioso é de longa data. Nota-se, como já
falamos anteriormente, a nítida preocupação de citar inúmeras profecias
na tentativa de identificar Jesus como o Messias. O problema é que
conseguem atingir o objetivo, pois a maioria das pessoas justifica a
veracidade da Bíblia justamente usando do argumento do cumprimento das
profecias. Infelizmente poucos são habituados a conferir e/ou questionar;
entretanto, essa é a única forma de se conseguir descobrir a verdade.
Mt 4,13-16: “Deixou Nazaré, e foi morar em Cafarnaum, que fica às margens
do mar da Galiléia, nos confins de Zabulon e Neftali, para se cumprir o
que foi dito pelo profeta Isaías: 'Terra de Zabulon, terra de Neftali,
caminho do mar, região do outro lado do rio Jordão, Galiléia dos que não
são judeus! O povo que vivia nas trevas viu uma grande luz; e uma luz
brilhou para os que viviam na região escura da morte'”.
Profecia: Is 9,1: “O povo que andava nas trevas viu uma grande luz, e uma
luz brilhou para os que habitavam um país tenebroso”.
Em nota explicativa referente às passagens de Isaías 8,23b-9.6,
encontramos:
Em 732 a.C., o rei da Assíria toma os territórios da Galiléia e
adjacências, incluindo Zabulon e Neftali. O povo do Reino do Sul teme o
avanço assírio, mas o profeta mostra que Javé libertará os oprimidos e
trará a paz. O que leva Isaías a essa luminosa esperança é o nascimento
do Emanuel (cf. 7,14), que é Ezequias, o filho herdeiro de Acaz. O
profeta prevê um chefe sábio, fiel a Deus, duradouro e pacífico; ele
perpetuará a dinastia de Davi, estendendo o reinado deste até às regiões
agora dominadas pela Assíria e organizando uma sociedade fundada no
direito e na justiça. 24
Assim, refere-se, como já deduzimos um pouco atrás, a uma outra
pessoa, não a Jesus; trata-se do filho de Acaz chamado Ezequias.
Ao citar Isaías (9,1), não houve nenhuma preocupação em se
analisar o contexto da frase, pois fazer isso é fundamental para o
entendimento dela. Assim, vamos complementar com os versículos de 2 a 6.
Só que agora, iremos recorrer à Bíblia Barsa, cujos versículos
correspondentes são os números 3 a 7, por termos nela uma narrativa mais
clara dos fatos ocorridos àquele momento. Vamos à narrativa:
“Multiplicaste a gente, não aumentaste a alegria. Eles se alegrarão
quando tu lhes apareceres, bem como os que se alegram no tempo da messe,
bem como exultam os vencedores com a presa que tomaram, quando repartem
os despojos. Porque tu quebraste o jugo do peso que o oprimia, e a vara
que lhe rasgava as espáduas, e o ceptro do exator, como o fizeste na
jornada de Madian. Porque todo o violento saque feito com tumulto e a
vestidura manchada de sangue, será entregue à queima, e ficará sendo o
pasto do fogo. Porquanto já UM PEQUENO se acha NASCIDO para nós, e um
filho nos foi dado a nós, e foi posto o principado sobre o seu ombro: e o
nome com que se apelide será admirável, conselheiro, Deus forte, pai do
futuro século, príncipe da paz. O seu império se estenderá cada vez mais,
e a paz não terá fim: assentar-se-á sobre o trono de Davi, e sobre o seu
reino: para firmar e fortalecer em juízo e justiça, desde então e para
sempre. Fará isso o zelo do Senhor dos exércitos”. 25 (grifo do
original). Chamamos a sua atenção, caro leitor, para a expressão
“porquanto já um pequeno se acha nascido”, que evidencia tudo o que já
temos dito anteriormente, no que se refere ao fato de que essa passagem
não diz respeito mesmo a Jesus, porém de uma outra pessoa, já nascida na
época, conforme a narração. Ora, se já se achava nascida, não se trata de
profecia, mas, sim, de confirmação de um fato já ocorrido.
Com relação aos títulos: “admirável conselheiro, Deus forte, Pai
do futuro século, Príncipe da Paz”, encontramos a seguinte explicação:
“Os quatro títulos aqui empregados imitam o protocolo egípcio lido
durante a coroação do novo Faraó. Trata-se, pois, de um rei ideal que é
aqui anunciado. O texto refere-se, provavelmente, ainda ao mesmo Emanuel
prometido em Is 7,14”. 26 Explicação que vem também reforçar que não se
trata de Jesus.
Mt 8,16-17: “À tarde, levaram a Jesus muitas pessoas que estavam
possuídas pelo demônio. Jesus, com a sua palavra, expulsou os espíritos e
curou todos os doentes, para que se cumprisse o que fora dito pelo
profeta Isaías: 'Ele tomou as nossas enfermidades e carregou as nossas
doenças'”.
Profecia: Is 53,4: “Todavia, eram as nossas doenças que ele carregava,
eram as nossas dores que ele levava em suas costas”.
Os versículos compreendidos entre Isaías 52,13–53,12, ou seja, do
versículo 13 do capítulo 52 ao versículo 12 do capítulo 53, são
explicados da seguinte forma:
Apresentam o Servo sofrendo vicariamente pelos pecados dos homens.
A interpretação judaica tradicional entende a passagem como uma
referência ao Messias, como, é claro, fizeram os primeiros cristãos, que
criam ser Jesus o referido Messias (At. 8,35). Não foi senão no século
XII que surgiu a opinião de que o Servo aqui se refere à nação de Israel,
opinião que se tornou dominante no Judaísmo. O Servo, todavia, é distinto
do “meu povo” (53,8), e é uma vítima inocente, algo que não se podia
dizer da nação (53,9)”.27
Interessante que querem, de todas as maneiras, desvirtuar o texto
para aplicá-lo a Jesus, quando, em verdade, se refere especificamente à
nação de Israel.
Também encontramos:
Os capítulos 40-55 foram escritos por profeta anônimo, na época do
exílio na Babilônia, apresentando uma mensagem de esperança e consolação.
Esse profeta é comumente chamado Segundo Isaías. O fim do exílio é visto
como um novo êxodo e, como no primeiro, Javé será o condutor e a garantia
dessa nova libertação. O povo de Deus, convertido, mas oprimido, é
denominado “Servo de Javé”. 28 (grifo nosso).
Veja que até divergem quanto à questão da palavra “Servo”. Essa
divergência se torna ainda mais inexplicável, pois ambas as Bíblias que
foram consultadas, segundo dizem, são a “palavra de Deus” e de “tradução
diretamente dos originais”.
Já que falamos em Servo, e como este termo será utilizado outras
vezes, vamos ver nas explicações dadas sobre o Livro de Isaías o
seguinte:
Merecem destaque os “Cânticos do Servo de Deus” (42,1-4; 49,1-6;
50,4-9a; 52,13-53,12). Neles se descreve a vocação do Servo, sua missão
de pregador, sua função mediadora da salvação para os homens e,
especialmente, o caráter expiatório de seus sofrimentos e de sua morte. O
Servo às vezes parece ser Israel como povo, ou enquanto elite; outras
vezes um indivíduo, talvez o profeta dos poemas, o rei Ciro, o rei
Joaquim ou outro personagem qualquer.29
Bom, aqui assumem não saberem exatamente a que se refere a palavra
Servo; mas, apesar disso, continuam: “Seja como for, o Novo Testamento
viu no Servo sofredor o tipo por excelência dos sofrimentos e da morte
redentora de Cristo”. Ora, ver “ser um tipo” não quer dizer que a
profecia seja exatamente a respeito de Jesus. E mais, o Novo Testamento
não vê nada, quem viu foram alguns dos autores do Novo Testamento ou,
quem sabe, foram colocadas umas palavrinhas aqui, outras ali, como sendo
desses autores, conforme o interesse.
Quanto a Ciro, que sabemos ter sido o rei da Pérsia, podemos ver
que, em Is 44,28, ele é colocado como pastor do rebanho de Deus, e mais
especificamente em Is 45,1, está como ungido de Deus que, para melhor
destaque, grifamos: “Eis aqui o que diz o Senhor a Ciro meu cristo, a
quem tomei pela destra para lhe sujeitar ante a sua face as gentes, e
fazer voltar as costas aos reis, e abrir diante dele as portas, e estas
mesmas portas não se fecharão”. (texto da Bíblia Barsa).
Especificamente quanto ao capítulo 53 do livro de Isaías, deverá
ser, mais à frente, objeto de várias citações, para as quais servem as
explicações que estamos colocando aqui.
Mt 12,15-21: “Jesus soube disso, e foi embora desse lugar. Numerosas
multidões o seguiram, e ele curou a todos. Jesus ordenou que não
dissessem quem ele era. Isso aconteceu para se cumprir o que foi dito
pelo profeta Isaías: 'Eis aqui o meu servo, que escolhi; o meu amado, no
qual minha alma se compraz. Colocarei sobre ele o meu Espírito, e ele
anunciará o julgamento às nações. Não discutirá, nem gritará, e ninguém
ouvirá a sua voz nas praças. Não esmagará a cana quebrada, nem apagará o
pavio que ainda fumega, até que leve o julgamento à vitória. E em seu
nome as nações depositarão a sua esperança'”.
Profecia: Is 42,1-4: “Vejam o meu servo, a quem eu sustento: ele é o meu
escolhido, nele tenho o meu agrado. Eu coloquei sobre ele o meu espírito,
para que promova o direito entre as nações. Ele não gritará nem clamará,
nem fará ouvir a sua voz na praça. Não quebrará a cana que já está
rachada, nem apagará o pavio que está para se apagar. Promoverá fielmente
o direito: não desanimará, nem se abaterá, até implantar o direito na
terra e a lei que as ilhas esperam”.
Muitos se prendem à expressão “meu servo”, como aplicação
exclusiva a Jesus; entretanto podemos ver que várias outras personagens
bíblicas também foram chamadas de meu servo como, por exemplo: Abraão (Gn
26,24), Moisés (Nm 12,7), Caleb (Nm 14,24), Davi (2Sm 3,18), Naamã (2Rs
5,6), Eliacim (Is 22,20), Nabucodonosor, rei da Babilônia (Jr 25,9),
Zorobabel (Ag 2,23), Jacó (Ez 37,25) e, finalmente, Jó (Jó 1,8). Notemos
que a expressão “meu servo”, conforme já falamos, também é atribuída ao
próprio povo de Israel.
Em uma nota sobre esta passagem explicam:
É o primeiro “cântico do Servo de Javé”. Quem é esse Servo? De
início, provavelmente, uma pessoa; depois essa pessoa foi tomada como
figura coletiva, sendo aplicado a todo o povo pobre e fiel. O Servo é a
grande novidade que Javé prepara: o missionário escolhido que, graças ao
Espírito de Javé, recebe a missão de fazer que surja uma sociedade
conforme a justiça e o direito. Ele não submeterá os fracos ao seu
domínio, mas o seu agir acabará produzindo uma transformação radical: os
cegos enxergarão e os presos serão libertos Os evangelhos aplicam a Jesus
a figura do Servo (cfe. Mt. 3,17 e paralelos; 12,17-21; 17,5) 30.
Falando-se a respeito do livro de Isaías, colocam:
No livro estão inseridas quatro peças líricas, os “cânticos do
Servo” (42,1-4 [5-9]); 49,1-6; 50,4-9 [10-11]; 52,13-53,12). Eles
apresentam um perfeito servo de Iahweh, que reúne o seu povo e é a luz
das nações, que prega a verdadeira fé, expia por sua morte os pecados do
povo e é glorificado por Deus. Essas passagens estão incluídas entre as
mais estudadas do Antigo Testamento, e não existe acordo nem quanto à sua
origem nem quanto ao seu significado. A atribuição dos três primeiros
cânticos ao Segundo Isaías é muito verossímil; é possível que o quarto
seja obra de um dos seus discípulos. A identificação do Servo é muito
discutida. Muitas vezes se tem visto nele uma figura da comunidade de
Israel, à qual outras passagens do Segundo Isaías dão, de fato, o título
de “servo”. Mas os traços individuais são marcados demais e é por isso
que outros exegetas, que formam atualmente a maioria, reconhecem no Servo
uma personagem histórica do passado ou do presente; nesta perspectiva, a
opinião mais atraente é a que identifica o Servo com o próprio Segundo
Isaías; o quarto cântico teria sido apresentado após sua morte.
Combinaram-se assim as duas interpretações, considerando o Servo como um
indivíduo que incorporava os destinos de seu povo. Seja como for, uma
interpretação que se limitasse ao passado ou ao presente não explicaria
suficiente os textos. O Servo é o mediador da salvação messiânica, que
uma parte da tradição judaica, dava destas passagens, afora o aspecto
sofrimento.31 (grifo nosso).
Apesar de sempre reconhecerem que a expressão o “Servo” se aplica
ao povo de Israel, sempre apresentam um “porém”. Realmente, algumas
vezes, é usado para um indivíduo, conforme já demonstramos; entretanto,
não se trata de Jesus, mas de alguém da época que viria libertá-los.
Mt 13,13-15: “Eis por que vos falo em parábolas: Para que vendo, não
vejam, e ouvindo, não ouçam nem compreendam. Assim se cumpre para eles o
que foi dito pelo profeta Isaías: 'Ouvireis com vossos ouvidos e não
entendereis, olhareis com os vossos olhos e não vereis, porque o coração
deste povo se endureceu: taparam os seus ouvidos, e fecharam os seus
olhos para que seus olhos não vejam, e seus ouvidos não ouçam, nem seu
coração compreenda; para que não se convertam e eu os sare'”.
Profecia: Is 6,8-10: “Em seguida ouvi a voz do Senhor que dizia: 'Quem
hei de enviar? Quem irá por nós?', ao que respondi: 'Eis-me aqui, enviame a mim'. Ele me disse: 'Vai e dize a este povo: Podereis ouvir
certamente, mas não entendereis; podereis ver certamente, mas não
compreendereis. Embora o coração deste povo, torna-lhe pesados os
ouvidos, tapa-lhe os olhos, para que não veja com os olhos, não ouça com
os ouvidos, seu coração não compreenda, não se converta e não seja
curado'”.
Essa passagem de Isaías se refere a ele mesmo, no início de sua
vocação profética, conforme podemos comprovar em:
A prontidão de Isaías lembra a fé de Abraão (Gn 12,1-4) e contrasta
com as hesitações de Moisés (Ex 4,10-12) e sobretudo de Jeremias (Jr
1,6). A pregação do profeta embaterá na incompreensão de seus ouvidos. Os
imperativos aqui usados não devem causar ilusão, equivalem a indicações
(cf. 29,9): Deus não quer essa incompreensão, ele a prevê, ela serve aos
seus desígnios. Ela desvela o pecado do coração e precipita o julgamento;
comparar com o endurecimento do faraó (Ex 4,21; 7,3 etc.)32.
Mt 13,34-35: “Tudo isso Jesus falava em parábolas às multidões. Nada lhes
falava sem usar parábolas, para se cumprir o que foi dito pelo profeta:
'Abrirei a boca para usar parábolas; vou proclamar coisas escondidas
desde a criação do mundo'”.
Profecia: Sl 77,2: “Abrirei os lábios, pronunciarei sentenças,
desvendarei os mistérios das origens”.
No Salmo 77 (78), se relata:
“Asafe recorda a história antiga da nação para advertir as gerações
futuras contra a repetição da infidelidade. Ele convida (vv. 1-11) o povo
a recordar sua provação de Deus no deserto (vv. 12-39), sua ingratidão
durante o Êxodo (vv. 40-5), e a sua infidelidade durante o período dos
juízes (vv. 56-72)”33.
Outra vez encontramos uma aplicação fora do contexto, já que dizem
que essa frase se refere a uma profecia. Ora, nem mesmo disso o texto
trata.
Vejamos, agora, a explicação dada para os versículos 1 e 2:
A história é instrução que ensina o povo a viver. Não é, porém,
instrução direta. De fato, os acontecimentos são parábolas, que exigem
participação para se captar o sentido delas. Tal sentido faz a história
um enigma: é preciso ter a chave da fé para perceber que a história é o
processo através do qual Deus age, levando o povo para a liberdade e a
vida34.
Assim, fica claro que não se trata de uma profecia. E a título de
curiosidade, vejamos como o versículo 2 é colocado nas Bíblias:
Ave Maria: “Abrirei os lábios, pronunciarei sentenças, desvendarei os
mistérios das origens”.
Pastoral: “Vou abrir minha boca em parábolas, vou expor enigmas do
passado”.
Vozes: “Vou abrir a boca para um provérbio e enunciar enigmas de
tempos idos”.
“Pronunciarei sentenças”, “parábolas” e “provérbio” não são
palavras de mesmo sentido, ou seja, sinônimas, uma vez que cada uma tem
um sentido próprio.
Mt 17,5: “Pedro ainda estava falando, quando uma nuvem luminosa os cobriu
com sua sombra, e da nuvem saiu uma voz que dizia: 'Este é o meu Filho
amado, que muito me agrada. Escutem o que ele diz'”.
Profecia: Is 42,1: “Vejam o meu servo, a quem eu sustento: ele é o meu
escolhido, nele tenho o meu agrado”.
Novamente o capítulo 42 está sendo usado fora do contexto, embora
poucos exegetas considerem esse passo de Mateus como uma profecia. Em
qualquer passagem bíblica que pegarmos e tirarmos uma frase isolada do
contexto, ela se aplicará ao que for do nosso interesse; não é mesmo?
Mt 21,1-5: “... Então Jesus enviou dois discípulos, dizendo: 'Vão até o
povoado, que está na frente de vocês. E logo vão encontrar uma jumenta
amarrada, e um jumentinho com ela. Desamarrem, e tragam os dois para mim.
Se alguém lhes falar alguma coisa, vocês dirão: ‘O Senhor precisa deles,
mas logo os mandará de volta’'. Isso aconteceu para se cumprir o que foi
dito pelo profeta; 'Digam à filha de Sião: eis que o seu rei está
chegando até você. Ele é manso e está montado num jumento, num
jumentinho, cria de um animal de carga'”.
Profecia: Zc 9,9: “Dance de alegria, cidade de Sião; grite de alegria,
cidade de Jerusalém, pois agora o seu rei está chegando, justo e
vitorioso. Ele é pobre, vem montado num jumento, num jumentinho, filho de
uma jumenta”.
A seqüência no versículo 10 nos dirá a quem se refere esta
passagem; vejamos: “Ele destruirá os carros de guerra de Efraim e os
cavalos de Jerusalém; quebrará o arco de guerra. Anunciará paz a todas as
nações, e seu domínio irá de mar a mar, do rio Eufrates até os confins da
terra”. Mas, quem seria esse guerreiro que destruirá os carros de guerra?
A nossa resposta é Alexandre Magno. Nesta época, ele marcha pela Síria,
depois pela Fenícia, e finalmente pela Filistia. Assim, pelos
acontecimentos, não se trata de profecia a respeito de Jesus. Como já
dissemos, e agora reafirmamos, qualquer texto que pegarmos, poderemos
aplicar ao que quisermos.
Mt 21,42: “Então Jesus disse a eles: 'Vocês nunca leram na Escritura: ‘A
pedra que os construtores deixaram de lado tornou-se a pedra mais
importante; isso foi feito pelo Senhor, e é admirável aos nossos
olhos?'”.
Profecia: Sl 118,22-23: “A pedra que os construtores rejeitaram tornou-se
pedra angular. Isso vem de Javé, e é maravilha aos nossos olhos”.
A explicação que encontramos para este Salmo é que:
A pedra...: diretamente é o povo israelita que foi rejeitado pelos
construtores de impérios como indigna de seus planos grandiosos, mas foi
por Deus escolhida para pedra angular do reino messiânico. Israel é aqui
um tipo do Cristo, que, em sentido mais perfeito, afirmou ser a pedra
angular 35.
A pedra angular, portanto, é o povo de Israel. Alguma dúvida?
Então, podemos acrescentar, para esclarecer essa questão:
Canto solene de ação de graças, recitado alternadamente por um
solista e pelo coro, durante a procissão ao templo para comemorar
festivamente o dia da vitória de Deus sobre os inimigos de seu povo,
libertado de um grande perigo nacional. Chegando à porta do santuário, a
comitiva pede entrada, só franqueada aos justos, que conformam sua vida
às exigências da lei divina. O motivo da exultação dos fiéis no templo é
o amor de Deus, manifestado na eleição de Israel dentre todos os povos,
para ser pedra angular no edifício da salvação da humanidade. Os
construtores do edifício da história humana excluíam dos conchavos da
política internacional um povo tão insignificante como Israel, o qual,
porém, seguindo os desígnios de Deus, ocupa o lugar central na vida
espiritual dos povos, por ser a chave do processo de estabelecer o reino
de Deus na terra e o veículo de transmissão dos desígnios salvíficos de
Deus na história36.
Esse texto não deixa nenhuma dúvida sobre quem era a pedra angular.
Mt 26,31: “Então Jesus disse aos discípulos: 'Esta noite vocês todos vão
ficar desorientados por minha causa, porque a Escritura diz: ‘Ferirei o
pastor, e as ovelhas do rebanho se dispersarão’”.
Profecia: Zc 13,7: “Espada, desperte contra o meu pastor e contra o homem
da minha parentela – oráculo de Javé dos exércitos. Fira o pastor, para
que as ovelhas se dispersem, pois vou virar a minha mão contra os
pequenos”.
Para um melhor entendimento desta passagem, iremos juntar várias
notas, tiradas da mesma fonte, que explicam muito bem o que está
ocorrendo. Vejamos:
O primeiro ato exigido para reunificação é reconhecer Javé como
único absoluto (olharão para mim). Em seguida, reconhecer os pecados da
idolatria cometidos. O ‘transpassado’, aqui, designa o próprio povo que,
por seus pecados, sofreu a punição do exílio. O processo de purificação
não é simplesmente um ato; é uma atitude, um processo contínuo, que exige
a refontização da própria vida em Deus (fonte). O processo é doloroso
(espada – v. 7 – e fogo – v. 9). Espada: os judeus deixaram de ter um rei
(pastor) depois da destruição de Jerusalém, e o povo mais pobre, sem um
ponto de união, se dispersou pelo país. Fogo: é o exílio na Babilônia,
onde foi testada a fidelidade de Israel37.
Mais uma vez, nós percebemos que se fala do povo de Israel; não é
de uma pessoa específica; portanto não se poderia aplicá-la a Jesus.
Mas, se fazem questão de “descobrir” o cumprimento de profecias,
vamos ver o versículo 8 de Zacarias, que é a seqüência do versículo
citado: “E acontecerá em toda a terra – oráculo de Javé – que dois terços
serão eliminados e somente um terço restará. Farei essa terça parte
passar pelo fogo, para apurá-la como se apura a prata, para prová-la como
se prova o ouro”. Quando foi que isso aconteceu? Ou, se não aconteceu,
quando será que isso acontecerá? Veja: Deus eliminando dois terços da
humanidade e só salvando um terço; seria uma atitude justa? Um pai de
misericórdia agiria assim para com seus filhos?
Mt 26,55-56: “E nessa hora, Jesus disse às multidões: 'Vocês saíram com
espadas e paus para me prender, como se eu fosse um bandido'. Todos os
dias, no Templo, eu me sentava para ensinar, e vocês não me prenderam.
Porém, tudo isso aconteceu para se cumprir o que os profetas escreveram”.
Profecia: Não especificada.
Não foi informada a qual profecia se refere essa passagem. Não
encontraram nada que pudesse se enquadrar nela. Sabe por que, caro
leitor? É porque ela não existe.
Mt 27,6-9: “Recolhendo as moedas, os chefes dos sacerdotes disseram: 'É
contra a Lei colocá-las no tesouro do Templo, porque é preço de sangue'.
Então discutiram em conselho, e as deram em troca pelo Campo do Oleiro,
para aí fazer o cemitério dos estrangeiros. É por isso que esse campo até
hoje é chamado de 'Campo de Sangue'. Assim se cumpriu o que tinha dito o
profeta Jeremias: 'Eles pegaram as trinta moedas de prata – preço com que
os israelitas o avaliaram – e as deram em troca pelo Campo do Oleiro,
conforme o Senhor me ordenou'”.
Profecia: Não se encontra nada igual nem parecido em Jeremias.
Encontramos a seguinte explicação para esse fato:
Estas palavras são encontradas em Zc 11:12-13, com alusões a Jr
18:1-4 e 19:1-3. Foram atribuídas a Jeremias pois, no tempo de Jesus, os
livros dos profetas eram iniciados com Jeremias, não com Isaías como
hoje, e a citação é identificada pelo primeiro livro do volume, e não
pelo nome do livro específico do seu autor. 38
Vejamos então o que se pode encontrar em Zc 11,12-13: Então eu
disse: “Se estão de acordo, façam o meu pagamento; se não, deixem”. Então
eles pesaram o dinheiro do meu pagamento: trinta siclos de prata. E Javé
me disse: “Envie ao fundidor este preço fabuloso com que fui avaliado por
eles...”.
Mas, como explicação para essa passagem de Zacarias lemos: “Por
ter o povo rejeitado o ministério do bom pastor, ele pediu por seu
salário o preço de um simples escravo. Zacarias representava o papel do
Messias futuro”39.
Vejamos a seguinte nota:
Um governador tem direito a ordenado (cf. Ne 5,15). Aqui o ordenado
pago alegoricamente pelas classes dirigentes ao profeta (representando
Iahweh) é irrisório, o preço de um escravo. Em resumo, zombam de Iahweh!
Mt. 27,3-10, aplicou os vv. 12-13 a Cristo, do qual o profeta, tomando o
lugar de Iahweh desprezado, aparece aqui como o “tipo” 40.
Todavia, ainda temos que completar essa nota; para isso, vamos à
nota que consta de Mateus:
Om. (omissão): ‘Jeremias’. Trata-se, de fato, de uma citação livre
de Zc 11,12-13, combinada com a idéia da compra de um campo sugerida por
Jr 32,6-15. Isso juntamente com o fato de que Jeremias fala em oleiros
(18,2s), que se encontravam na região de Hacéldama (19,1s), explica que
todo o texto podia ser-lhe atribuído por aproximação.41
Percebemos que a realidade é bem diferente, já que não se trata de
uma profecia, mas de um fato ocorrido, em que:
Zacarias falando em nome de Deus pergunta se ainda querem que Ele
continue a governá-los, se sim, que Lhe dêem o salário devido ao
governador. As trinta moedas eram um preço irrisório, mais de zombaria do
que de recompensa, pois eram a indenização que a lei estabelecia que se
pagasse ao dono de um escravo que alguém tivesse morto.42
Entretanto, chega-se a misturar duas passagens bíblicas para
tentar justificar uma suposta profecia.
Mt 27,35: E, havendo-o crucificado, repartiram as suas vestes, lançando
sortes, para que se cumprisse o que foi dito pelo profeta: Repartiram
entre si as minhas vestes, e sobre a minha túnica lançaram sortes.
Profecia: Sl 22,19: Entre si repartem minhas vestes, e sorteiam a minha
túnica.
A título de curiosidade, informamos que o trecho sublinhado, na
citação de Mateus, não existe em algumas Bíblias. Aí perguntamos: Como
podem ser todas verdadeiras, se divergem entre si?
Encontramos como explicação para o Salmo 22, cujo autor é o
profeta Davi, o seguinte:
Este Salmo é uma das expressões mais profundas do sofrimento, nas
orações bíblicas. É composto de duas partes: lamentação individual (2.22)
e cântico de ação de graças (23.32). O salmista, abandonado e solitário
em sua dor, privado da presença divina, apela ao Deus da santidade,
lembrando-lhe as promessas relativas aos justos. Depois de relatar seus
sofrimentos morais e espirituais, alude, em sucessão trágica, às dores
físicas, aos tormentos corporais e ao terror da morte. Do extremo da dor
passa à certeza da esperança: a salvação está assegurada e já está
próxima, tanto assim que já pode convidar a comunidade dos fiéis a unirse a ele no louvor a Deus, cujo desígnio de salvação se estende ao mundo
inteiro e às gerações futuras43.
Qual a conclusão que podemos tirar disso? É que todo o Salmo 22 se
refere a Davi, que lamenta a sua própria sorte, não sendo, portanto uma
profecia. Veja que, até aqui, muitas passagens que são tidas como
profecias, na verdade não o são; são apenas fatos ou acontecimentos
localizados, ou daquela época; nada mais que isso.
Devemos ressaltar também que, segundo Mateus e Marcos, Jesus
citando esse Salmo disse: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?”
(Sl 22,2). Não sabemos se são realmente palavras pronunciadas por Jesus
ou se O fizeram falar isso, já que percebemos a nítida preocupação em
identificá-lo como um Messias, objeto de várias profecias.
Mc 15,27-28: “Com ele crucificaram dois bandidos, um à direita e outro à
esquerda. Desse modo cumpriu-se a Escritura que diz: 'Ele foi incluído
entre os fora-da-lei'”.
Profecia: Is 53,12: “Pois isso eu lhe darei multidões como propriedade, e
com os poderosos repartirá o despojo: porque entregou seu pescoço à morte
e foi contado entre os pecadores, ele carregou os pecados de muitos e
intercedeu pelos pecadores”.
Quanto ao capítulo 53 de Isaías, já tivemos oportunidade de falar
anteriormente; não cabe aqui nenhuma nova observação.
Lc 4,16-21: “Jesus foi à cidade de Nazaré, onde se havia criado. Conforme
seu costume, no sábado entrou na sinagoga, e levantou-se para fazer a
leitura. Deram-lhe o livro do profeta Isaías. Abrindo o livro, Jesus
encontrou a passagem onde está escrito: 'O Espírito do Senhor está sobre
mim, porque ele me consagrou com a unção, para anunciar a Boa Notícia aos
pobres; enviou-me para proclamar a libertação aos presos e aos cegos a
recuperação da vista; para libertar os oprimidos, e para proclamar um ano
de graça do Senhor'. Em seguida Jesus fechou o livro, o entregou na mão
do ajudante, e sentou-se. Todos os que estavam na sinagoga tinham os
olhos fixos nele. Então Jesus começou a dizer-lhes: 'Hoje se cumpriu essa
passagem da Escritura, que vocês acabaram de ouvir'”.
Profecia: Is 61,1-2: “O Espírito do Senhor Javé está sobre mim, porque
Javé me ungiu. Ele me enviou para dar a boa notícia aos pobres, para
curar os corações feridos, para proclamar a libertação dos escravos e pôr
em liberdade os prisioneiros, para promulgar o ano da graça de Javé, o
dia da vingança do nosso Deus, e para consolar todos os aflitos, os
aflitos de Sião”.
Em consulta, no Novo Testamento, vemos que dos dois discípulos
diretos de Jesus, Mateus e João, somente o primeiro fala desse
acontecimento, mas nada fala sobre a leitura do livro de Isaías. Marcos e
Lucas, que não foram discípulos, como sabemos, compuseram suas narrativas
por pesquisas ou informações obtidas de outras pessoas e, quem sabe, de
textos já existentes. Marcos age como Mateus, ou seja, registra o
episódio sem citar a leitura. Somente Lucas é quem cita a leitura, o que
já nos deixa intrigados e num questionamento sobre se o fato foi real ou
não.
As explicações sobre essa passagem de Isaías podem nos ajudar a
entender o texto; vejamos:
O profeta, muito provavelmente o autor dos caps. 60 e 62, anuncia
que recebeu de Deus uma mensagem de consolação (vv.1-3): reconstruir-se-á
(v. 4); os estrangeiros assegurarão as necessidades materiais de Israel,
transformando em povo de sacerdotes e cumulado de glória (vv. 5-7); Deus
toma a palavra para estabelecer aliança eterna (vv. 8-9). Os vv. 10-11
são uma ação de graças do profeta que fala em nome de Sião. Este poema
repercute os cânticos do Servo (cf. 42,1; 42,7; 49,49, e também 50,4-11,
onde quem fala é o Servo, como aqui)44.
Do que concluímos que são citações que se aplicam a Isaías e não
uma profecia. Mas, supondo que Jesus tenha realmente lido essa passagem
de Isaías, isso por si só não a torna uma profecia. O que ocorre é que
Jesus aplicou à sua missão uma origem divina, afirmando que estaria
agindo pelo Espírito de Deus, que permanecia sobre ele; essa é uma
certeza que temos. Independentemente de alguma profecia, isso poderia
acontecer; mas, nem sempre, o homem está em plenas condições vibracionais
de receber as instruções do plano espiritual, transmitidas à humanidade
por vontade do Criador; por isso muitas vezes as deturpa ou as modifica,
conforme sua maneira de pensar. Com isso não estamos negando o valor
inestimável de seus ensinamentos; muito ao contrário, já que achamos que
Ele é inigualável em tudo que fez, disse ou exemplificou.
Lc 18,31-33: “Tomando consigo os doze, disse-lhes: 'Eis que subimos a
Jerusalém e se cumprirá tudo o que foi escrito pelos Profetas a respeito
do Filho do Homem. De fato, ele será entregue aos gentios, escarnecido,
ultrajado, coberto de escarros, depois de açoitar, eles o matarão. E no
terceiro dia ressuscitará'”.
Profecia: Não especificada.
Realmente não existe nenhuma profecia a respeito de que,
especificamente, alguém deveria ressuscitar no terceiro dia. Aliás,
Mateus (20,17-19) e Marcos (10,32-34), quando relatam esse episódio não
estabelecem relação a nenhuma profecia. Entretanto em Os 6,1-2
encontramos o seguinte pensamento: “Vinde, e tornemos para o Senhor,
porque Ele despedaçou, e nos sarará, fez a ferida, e a ligará. Depois de
dois dias nos dará a vida: ao terceiro dia nos ressuscitará, e viveremos
diante dele” (Bíblia Sagrada - SBB).
Vejamos o que encontramos a respeito dessa passagem:
a) Para caracterizar a superficial conversão de Israel, o profeta
recorre a uma possível fórmula penitencial da época (cf. 1Rs 8,31-53; Jr
3,21-25; Sl 85)45;
b) Depois de dois dias... terceiro dia. I.e., num curto espaço de
tempo (veja Lc 13,32-33: 2Pe 3, 8) 46;
c) A expressão “depois de dois dias”, “no terceiro dia” (cf. Am
1,3: “por três crimes de Damasco e por quatro”) designa breve lapso de
tempo. Desde Tertuliano a tradição cristã aplicou este texto à
ressurreição de Cristo no terceiro dia. Mas o NT não o cita jamais; neste
contexto é lembrada a estada de Jonas no ventre do peixe (Jn 2,1 = Mt
12,40). Contudo é possível que a menção da ressurreição no terceiro dia
“conforme as escrituras” (1Cor 15,4, cf. Lc. 24,16) do querigma primitivo
e dos símbolos de fé se refira ao nosso texto interpretado de acordo com
as regras exegéticas da época. 47
O que tomam como ressurreição é, na verdade, outra coisa bem
diferente. Observe que até mesmo o significado da expressão “depois de
dois dias... terceiro dia” diz respeito ao que ocorreria num curto espaço
de tempo, não como uma ressurreição ao terceiro dia. Mais claro isso fica
quando pegamos uma outra versão dessa passagem de Oséias: “Vinde, e
tornemos para o Senhor, porque ele nos despedaçou, e nos sarará; fez a
ferida, e ligará. Depois de dois dias nos revigorará; ao terceiro dia
levantará, e viveremos diante dele”.48 Aqui percebemos, nitidamente, não
se tratar de ressurreição, mas de levantar alguém que, após vários
castigos, fica quase desfalecido, sendo revigorado por Deus, num curto
espaço de tempo.
Lc 24,25.27.44-47: “Ele, então, lhes disse: 'Insensatos e lentos de
coração para crer tudo o que os profetas anunciaram! E, começando por
Moisés e percorrendo todos os Profetas, interpretou-lhes em todas as
Escrituras o que a ele dizia respeito'. Depois disse-lhes: 'São estas as
palavras que eu vos falei, quando ainda estava convosco: era preciso que
se cumprisse tudo o que está escrito sobre mim na Lei de Moisés, nos
Profetas e nos Salmos'. Então abriu-lhes a mente para que entendessem as
Escrituras, e disse-lhes: 'Assim está escrito que o Cristo devia sofrer e
ressuscitar dos mortos ao terceiro dia, e que, em seu Nome, fosse
proclamado o arrependimento para a remissão dos pecados a todas as
nações, a começar por Jerusalém'”.
Profecia: Não especificada.
Apesar de também se tratar de mais uma profecia que não se
identifica onde ela se encontra, podemos colocar os argumentos da
anterior, já que aqui também é dito sobre ressuscitar ao terceiro dia.
Por tudo o que estamos vendo até aqui, já não temos mais nenhuma
certeza de que Jesus tenha realmente dito qualquer palavra sobre alguma
profecia a Seu respeito, o que nos leva a supor que, simplesmente, foram
utilizadas palavras adequadas, às conveniências dos “donos” da religião,
ou às dos tradutores, atribuindo-as ao Mestre. Aliás, segundo um grupo de
especialistas, que se reuniram para estudar o evangelho (The Jesus
Seminar), somente 16%49 do que Lhe tenham atribuído é provável que tenha
realmente falado.
Jo 5,46: “Se vocês acreditassem em mim, porque foi a respeito de mim que
Moisés escreveu”.
Profecia: Dt 18,15: “Javé seu Deus fará surgir, dentre seus irmãos, um
profeta como eu em seu meio, e vocês o ouvirão”.
Se tivermos a preocupação de ler todo o contexto de Dt 18,
iniciando, para uma completa elucidação, a partir do versículo nove, indo
até o final desse capítulo, veremos que não se trata de um profeta em
particular. Informação que podemos confirmar pela nota: “Um profeta: esse
texto anuncia a vinda, não de uma determinada pessoa, mas de uma série de
profetas, que falavam, como Moisés, sob o impulso da inspiração”. 50
E, para dirimir quaisquer dúvidas, podemos colocar o final desse
texto bíblico: “Foi o que você me pediu a Javé seu Deus, no Horeb, no dia
da assembléia: 'Não quero continuar ouvindo a voz de Javé meu Deus, nem
quero ver mais este fogo terrível, para não morrer'. Javé me disse: 'Eles
têm razão: Do meio dos irmãos deles, eu farei surgir para eles um profeta
como você. Vou colocar minhas palavras em sua boca, e ele dirá para eles
tudo o que eu lhe mandar. Se alguém não ouvir as minhas palavras, que
esse profeta pronunciar em meu nome, eu mesmo pedirei contas a essa
pessoa. Contudo, se o profeta tiver a ousadia de dizer em meu nome alguma
coisa que eu não tenha mandado, ou se ele falar em nome de outros deuses,
tal profeta deverá ser morto”. Talvez você se pergunte: 'Como vamos
distinguir se uma palavra não é palavra de Javé?’ Se o profeta falar em
nome de Javé, mas a palavra não se cumpre e não se realiza, trata-se
então de uma palavra que Javé não disse. Tal profeta falou com presunção.
Não tenha medo dele”. (Dt 18,16-22).
Assim, não há que se falar em um profeta específico, já que aqui
se trata de como distinguir quem é um verdadeiro profeta. Portanto,
valendo para todos os profetas posteriores a Moisés. Não se aplica a uma
profecia sobre a vinda de Jesus. Se se aplicasse a Jesus, a ameaça
atingiria a Ele.
Por outro lado, se Moisés fala em “um profeta como eu”, isso
equivale a dizer que seria um profeta igual a ele; entretanto, na Bíblia
temos o reconhecimento de que Jesus é superior a Moisés. Quem duvidar é
só verificar em Hb 3,1-6.
Jo 12,37-41: “Apesar de Jesus ter realizado na presença deles tantos
sinais, não acreditaram nele. Assim se cumpriu a palavra dita por Isaías:
'Senhor, quem acreditou em nossa mensagem? Para quem foi revelada a força
Senhor?' O próprio Isaías mostrou a razão pela qual eles não podiam
acreditar: 'Deus cegou os olhos deles e endureceu-lhes o coração, para
que não vejam com os olhos e não compreendam com o coração, a fim de que
não se convertam, e eu tenha que curá-los'. Isaías falou assim, porque
viu a glória de Jesus e falou a respeito dele”.
Profecia: Is 53,1: “Quem acreditou em nossa mensagem? Para quem foi
mostrado o braço de Javé?” e Is 6,10: “Torne insensível o coração desse
povo, ensurdeça os seus ouvidos, cegue seus olhos, para que ele não veja
com os olhos nem ouça com os ouvidos,nem compreenda com o seu coração,
nem se converta, de modo que eu não o perdoe”.
Esta passagem é parecida com Mt 13,13-15, cuja citação da profecia
de Isaías é a mesma (6,10), que comentamos mais no início desse estudo.
Quanto ao capítulo 53, de Isaías já falamos anteriormente.
Jo 13,18: “Eu não falo de todos vocês. Eu conheço aqueles que escolhi,
mas é preciso que se cumpra o que está na Escritura: 'Aquele que come pão
comigo, é o primeiro a me trair!'”.
Profecia: Sl 41,10: “Até o meu amigo, em que eu confiava e que comia do
meu pão, é o primeiro a me trair”.
Situação acontecida com Davi. De fato, um amigo, o seu próprio
conselheiro, o trai, conforme podemos deduzir das narrativas de 2Sm
15,12.31: “Enquanto fazia os sacrifícios, Absalão mandou buscar, na
cidade de Gilo, o gilonita, Aquitofel, que era conselheiro de Davi. A
conspiração se fortalecia e o partido de Absalão aumentava. E disseram a
Davi: 'Aquitofel se uniu à conspiração de Absalão'. Davi, então, rezou:
'Javé, faze com que o plano de Aquitofel fracasse'”. É impressionante
como tomam coisas que nada têm a ver com o que querem demonstrar.
Jo 15,23-25: “Aquele que me odeia, odeia também a meu Pai. Se eu não
tivesse feito entre eles obras, como nenhum outro fez, não teriam pecado:
mas agora as viram e odiaram a mim e a meu Pai. Mas foi para que se
cumpra a palavra que está escrita na Lei: ‘Odiaram-me sem motivo’”.
Profecia: Sl 35,19: “Que não se alegrem à minha custa meus inimigos
traidores. Que não pisquem os olhos aqueles que me odeiam sem motivo!” e
Sl 69,5: “Mais que os cabelos da minha cabeça, são os que me odeiam sem
motivo. Mais duros que meus ossos, são os que injustamente me atacam.
(Deveria eu devolver aquilo que não roubei?)”.
Existe aqui uma coisa que não condiz com a realidade. Trata-se da
expressão “está escrito na Lei”, atribuída a Jesus, pois o correto não
seria “na Lei”, já que a palavra Lei significava, naquele tempo a Torá, o
Pentateuco de Moisés, e as profecias citadas não se encontram nela, mas
nos Salmos, que faziam parte daquilo que os judeus chamavam de Ketuvim ou
Escritos (SILVA, 2001, p. 36).
Com referência ao Salmo 35, encontramos:
“Neste salmo imprecatório, Davi pede ao Senhor que o livre e traga
destruição sobre seus inimigos (vv. 1-10), lamenta o ódio não justificado
de seus inimigos contra ele (vv.11-16) e volta a solicitar a Deus
livramento e justiça (vv. 17-28). É provável que tenha sido escrito numa
época em que Davi estava sendo perseguido por Saul, sendo, em certo
sentido, um desenvolvimento de 1Sm 24:15. A impressão não é contra o
próprio Saul (pois Davi poupara sua vida), mas contra aqueles que
fomentavam o ciúme doentio que Saul sentia de Davi” 51.
É um fato presente vivido por Davi, não uma previsão para uma
ocorrência futura.
No Salmo 69, isso não é diferente; senão vejamos: “Este lamento
pode ser esboçado da seguinte maneira: o desespero de Davi durante a
perseguição (vv. 1-12), seu desejo de punição (para seus inimigos) (vv.
13-28), e sua declaração de louvor (vv. 29-36)” 52. Portanto, nenhuma das
duas citações é realmente profecia, já que ambas se referem a situações
momentâneas, não para o futuro.
Jo 17,12: “Quando eu estava com eles, eu os guardava em teu nome, o nome
que me deste. Eu os protegi e nenhum deles se perdeu, a não ser o filho
da perdição, para que se cumprisse a Escritura”.
Profecia: Não especificada.
Aqui temos, mais uma vez, uma suposta profecia para a qual não se
encontra nenhuma passagem que possamos relacionar a ela.
Jo 18,8-9: “Jesus falou: 'Já lhes disse que sou eu. Se vocês estão me
procurando, deixem os outros ir embora'. Era para se cumprir a Escritura
que diz: 'Não perdi nenhum daqueles que me destes'”.
Profecia: Não especificada.
Vale as mesmas observações da passagem anterior.
Jo 19,33-37: “Vendo que Jesus estava morto, não lhe quebraram as pernas,
mas um soldado lhe atravessou o lado com uma lança, e imediatamente saiu
sangue e água. E aquele que viu, dá testemunho, e o seu testemunho é
verdadeiro. E ele sabe que diz a verdade, para que também vocês
acreditem. Aconteceu isso para se cumprir a Escritura que diz: 'Não
quebraram nenhum osso dele'. E outra passagem que diz: 'Olharão para
aquele que transpassaram'”.
Profecia: Ex 12,46: “Cada cordeiro deverá ser comido dentro de uma casa;
e nenhum pedaço de carne deverá ser levado para fora; e dele não se
deverá quebrar nenhum osso;” Sl 34,21: “Javé protege os ossos do justo:
nenhum deles será quebrado” e Zc 12,10: “Quanto àquele que transpassaram,
chorarão por ele como se chora pelo filho único; vão chorá-lo
amargamente, como se chora por um primogênito”.
É incrível, repetimos, como buscam relacionar determinadas
passagens como sendo proféticas, quando a realidade é bem outra, ou seja,
são fatos do dia-a-dia e não profecia relacionada a algum evento futuro.
E mesmo quando relacionada ao futuro, ele estava próximo, não longínquo.
Vejamos, pela enésima vez, mais um exemplo, o passo Ex 12,46. Nós não
podemos pegá-lo isolado do seu contexto, pois, agindo assim, estaremos
desvirtuando sua interpretação ou até mesmo querendo “forçar a barra”,
para que esse fato se amolde ao que queremos. Portanto, vamos iniciar a
partir do versículo 43: “Javé disse a Moisés e Aarão: 'Assim será o
ritual da Páscoa: nenhum estrangeiro comerá dela. Os escravos que você
tiver comprado por dinheiro, poderão comer dela se forem circuncidados.
Quem estiver de passagem e os mercenários não comerão dela'”. Agora sim,
é que se segue o versículo 46, já citado. Como se vê nesta passagem estão
as determinações de Javé a respeito de como os judeus deveriam celebrar a
Páscoa, com instruções bem específicas a respeito dos cordeiros, que
deveriam ser mortos para serem comidos durante a celebração. É em relação
a esses cordeiros, que Deus determina que nenhum dos ossos deveria ser
quebrado. Fora disso, podemos concluir que são apenas conjecturas
pessoais; dos teólogos, dos autores bíblicos, ou dos tradutores.
Quanto ao Sl 34,21, é uma oração de agradecimento que Davi faz a
Deus, por ter ficado livre de Abimelec, que o perseguia, e para se livrar
dele, Davi fingiu de louco. A respeito dos vv. 12-23, explicam:
Grande catequese, centrada no temor de Javé. Trata-se de reconhecer
que Deus é Deus, e que o homem não é Deus. Em seguida, é preciso empenhar
a própria vida na luta pela verdade e justiça, para que todos possam
viver dignamente. Essa é a luta que constrói a paz. Nessa luta Javé toma
partido dos justos, ouvindo o seu clamor, libertando-os e protegendo-os.
Por outro lado, Javé se posiciona contra os injustos, que são destruídos
pelo próprio mal que produzem. 53
O que demonstra tratar-se de algo relacionado ao próprio salmista
Davi.
E em relação a Zc 12,10, encontramos a seguinte explicação para os
versículos de 12,9 a 13,1: “O primeiro ato exigido para a reunificação é
reconhecer Javé como único Absoluto (olharão para mim). Em seguida,
reconhecer os pecados da idolatria cometidos. O “transpassado”, aqui,
designa o próprio povo que, por seus pecados, sofreu a punição do exílio”
54. Ficando, portanto, claro que “transpassado” é o próprio povo e não
uma profecia a respeito de Jesus, fato que já concluímos anteriormente em
análise de outra passagem.
At 8,30-35: “Filipe correu, ouviu o eunuco ler o profeta Isaías, e
perguntou: 'Você entende o que está lendo?' O eunuco respondeu: 'Como
posso entender, se ninguém me explica?' Então convidou Filipe a subir e
sentar-se junto a ele. A passagem da Escritura que o eunuco estava lendo
era esta: 'Ele foi levado como ovelha ao matadouro. E como um cordeiro
perante o seu tosquiador, ele ficava mudo e não abria a boca. Eles o
humilharam e lhe negaram a justiça. Quem poderá contar seus seguidores?
Porque eles o arrancaram da terra dos vivos'. Então o eunuco disse a
Filipe: 'Por favor, me explique: de quem o profeta está dizendo isso? Ele
fala de si mesmo, ou se refere a outra pessoa?' Então Filipe foi
explicando. E, tomando essa passagem da Escritura como ponto de partida
anunciou Jesus ao eunuco”.
Profecia: Is 53,7-12: “Foi oprimido e humilhado, mas não abriu a boca;
tal como cordeiro, ele foi levado para o matadouro; como ovelha muda
diante do tosquiador, ele não abriu a boca. Foi preso, julgado
injustamente; e quem se preocupou com a vida dele? Pois foi cortado da
terra dos vivos e ferido de morte por causa da revolta do meu povo. A
sepultura dele foi colocada junto com a dos ímpios, e seu túmulo junto
com o dos ricos, embora nunca tivesse cometido injustiça e nunca a
mentira estivesse em sua boca. No entanto, Javé queria esmagá-lo com o
sofrimento: se ele entrega a sua vida em reparação pelos pecados então
conhecerá os seus descendentes, prolongará a sua existência e, por meio
dele, o projeto de Javé triunfará. Pelas amarguras suportadas, ele verá a
luz e ficará saciado, Pelo seu conhecimento, o meu servo justo devolverá
a muitos a verdadeira justiça, pois carregou o crime deles. Por isso eu
lhe darei multidões como propriedade, e com os poderosos repartirá o
despojo: porque entregou seu pescoço à morte e foi contado entre os
pecadores, ele carregou os pecados de muitos e intercedeu pelos
pecadores”.
A respeito do capítulo 53 do livro de Isaías já fizemos
anteriormente nossos comentários. Não o faremos novamente, para não nos
tornarmos mais repetitivos do que o necessário.
Rm 11,26-27: “Então, todo o Israel será salvo, como diz a Escritura: 'De
Sião sairá o libertador, ele vai tirar as impiedades de Jacó; essa será a
minha aliança com eles, quando eu perdoar os seus pecados'”.
Profecia: Is 59,20-21: “Mas de Sião virá um redentor, a fim de agastar os
crimes cometidos, contra Jacó – oráculo de Javé. Da minha parte, esta é a
minha aliança com eles, diz Javé: O meu Espírito está sobre você, e as
minhas palavras, que eu coloquei em sua boca, jamais se afastarão dela,
nem da boca de seus filhos, nem da boca de seus netos, desde agora e para
sempre, diz Javé,” e Is 27,9: “Pois é assim que a culpa de Jacó será
apagada; será esse o fruto por ele se agastar do seu pecado, quando ele
reduziu todas as pedras do altar a pedras de cal que se transformaram em
pó, quando não mais erguer postes sagrados e altares de incenso”.
As explicações para o capítulo 59, versículos 1-21, são dadas da
seguinte maneira:
Aqui temos uma espécie de liturgia penitencial (cf. Jl 1-2; Jr 36)
onde os temas do pecado e seu castigo se sucedem e alternam. Na situação
difícil dos primeiros decênios do pós-exílio o povo tem a impressão que a
Deus falta poder e vontade para trazer tempos melhores (v. 1). Mas como
em 50,1-2 também aqui o profeta responde que a salvação demora por causa
dos pecados do povo contra Deus e contra o próximo. 55.
A explicação é suficiente para chegarmos à conclusão de que não se
trata de uma profecia, mas de liturgia penitencial. E, novamente, a
título de curiosidade, temos a informação de que o versículo 21 é
“prosaico e obscuro, parece um acréscimo” 56. Precisamos dizer mais
alguma coisa?
Duas explicações semelhantes encontramos para a passagem Is 27,69. A primeira diz: “Deus corrige os erros do seu povo, e muito mais os
erros de seus inimigos, pois seu povo conhece seu projeto, enquanto os
inimigos o desconhecem. Todavia, se a comunidade abandona os ídolos, Deus
lhe envia o perdão e a renovação da vida” 57. A segunda nos trás:
A interpretação deste passo é embaraçada pela aparente desordem e
pelo estado corrompido do texto. Parece que os vv. 7-8.10-11 dizem
respeito ao castigo dos opressores de Israel, identificados com a “cidade
fortificada” deste apocalipse (v. 10) Os vv. 6 e 9, que são uma promessa
a Israel, cuja iniqüidade está sendo expiada, poderiam estar preparando o
oráculo de 12-13. 58.
Donde podemos concluir, que também aqui, nada há de se referir a
uma profecia.
Como falamos a respeito de que algumas passagens que não são
propriamente uma profecia é necessário definirmos, mesmo a essa altura do
nosso estudo, o que seja profecia.
Segundo o Dicionário Aurélio, profecia é: “Predição do futuro
feita por um profeta; oráculo, vaticínio, presságio”. Já no Dicionário
Prático, constante da Bíblia da Barsa, explicam:
Propriamente é o ato ou efeito de falar em nome de outrem. Assim
Aarão é chamado, por Deus, o profeta de Moisés, por falar em nome deste
(Ex 4,10-15; 7,1), mas, em geral, o nome de profeta é reservado ao que
fala em nome de Deus. Hoje, porém, entende-se por profecia apenas a
predição de algum acontecimento futuro, que depende da livre vontade de
Deus ou do homem, e que, por conseguinte, só pode ser conhecida por
divina revelação. Esta predição do futuro entrava nas profecias antigas
apenas como prova de que o profeta era autêntico e que suas palavras,
ordens ou conselhos provinham, de fato, de Deus, uma vez que só Deus pode
conhecer o futuro. Com o decorrer do tempo, a palavra profecia passou a
designar apenas esta parte da profecia.
As profecias podem ser: condicionais, por ex.: a cidade de Nínive
teria sido destruída se seus habitantes não tivessem feito penitência à
pregação de Jonas (Jon 3): absolutas, por ex.: Cristo predisse sua morte
e ressurreição. As duas espécies de profecias podem ser encontradas no
Antigo como em o Novo Testamento. As profecias que anunciam a vida de
Cristo são chamadas Messiânicas. O livro de Isaías abunda em profecias
messiânicas e, por esta razão, é algumas vezes chamado o quinto
evangelho. O próprio Jesus, freqüentemente, apelou para as profecias como
prova de sua divindade e de sua missão divina: “Investigai as
Escrituras... São elas que dão testemunho de mim” (Jo 5,39). (p. 221).
Para que as coisas fiquem claras, esclarecemos que todas as vezes
que se diz de profecias a respeito de Jesus, estão dizendo das previsões
que os profetas fizeram para o futuro; portanto, podemos concluir que são
profecias absolutas.
O que se percebe nessa análise das profecias é que o povo hebreu,
após a experiência de ser libertado da escravidão no Egito, e como se
considerava o povo eleito, vivia numa eterna “lua de mel” com Deus,
supondo que todas as vezes que ele estivesse subjugado por outros povos,
Deus o libertaria novamente como já tinha feito através de Moisés. Dentro
desse pensamento, toda vez que se via subjugado, esperava um novo Messias
libertador para fazer o que Moisés fez, até mesmo porque, segundo
acreditavam, Deus teria prometido que faria surgir do meio do povo um
profeta como ele. Só que essa promessa não se referia a um profeta
específico, mas a todos os profetas que falavam em nome de Deus. Apesar
disso, os teólogos preferiram atribuir tal passagem a Jesus.
Na Bíblia de Jerusalém, encontramos algo interessante na
“Introdução aos Profetas”, sobre o pensamento do povo hebreu; vejamos:
Para estabelecer e governar seu reino na terra, o Rei Iahweh terá
um representante, cuja unção o fará um vassalo seu: ele será o “ungido”
de Iahweh, em hebraico seu “messias”. Foi um profeta, Natã, que, ao
prometer a Davi a permanência da sua dinastia (2Sm 7), apresentou a
primeira expressão deste messianismo régio, cujo eco reencontramos em
certos Salmos. Entretanto, os fracassos e a má conduta da maioria dos
sucessores de Davi pareciam desmentir esse messianismo “dinástico”, e a
esperança concentrou-se num rei particular, cuja vinda era esperada para
futuro próximo ou longínquo. É este salvador que vislumbram os profetas,
sobretudo Isaías, mas também Miquéias e Jeremias. O Messias (podemos
agora escrever com maiúsculas) será da estirpe davídica (Is 11, 1; Jr 23,
5 = 33, 15) e sairá como ela de Belém de Éfrata (Mq 5, 1). Receberá os
mais magníficos títulos (Is 9, 5), e o Espírito de Iahweh repousará sobre
ele com todo o cortejo de seus dons (Is 11, 1-5). Para Isaías, ele é
Emmanuel, “Deus conosco” (Is 7, 14); para Jeremias, Iahweh çideqenu
(apesar de estranho a palavra é essa mesmo), “Iahweh é nossa justiça” (Jr
23, 6), dois nomes que resumem o puro ideal messiânico.
Esta esperança sobreviveu ao desmoronamento dos sonhos de dominação
terrestre e à dura lição do Exílio, mas as perspectivas mudaram. Apesar
das esperanças que por um momento Ageu e Zacarias colocaram no davidita
Zorobabel, o messianismo régio sofreu um eclipse: nenhum descente de Davi
estava mais no trono e Israel estava submetido à dominação estrangeira.
Ezequiel, sem dúvida, espera a vinda dum novo Davi, mas chama-o de
“príncipe” e não de “rei”, e descreve-o antes como mediador e pastor do
que como soberano poderoso (Ez 34, 23-24; 37, 24-25); Zacarias anunciará
a vinda dum rei, mas ele será humilde e pacífico (Zc 9, 9-10). Para o
Segundo Isaías , o Ungido de Iahweh não é um rei davídico mas Ciro, rei
da Pérsia, (Is 45, 1), instrumento de Deus para a libertação do seu povo;
mas o mesmo profeta coloca em cena outra figura da salvação, o Servo de
Iahweh, que é o mestre do povo e a luz das nações, pregando com mansidão
o direito de Deus; não terá projeção humana, será rejeitado pelos seus,
mas alcançará a salvação deles ao preço de sua própria vida (Is 42, 1-7;
49, 1-9; 50, 4-9 e principalmente 52, 13-53-12). Enfim, Daniel vê chegar
sobre as nuvens do céu um como que Filho de homem, que recebe de Deus o
domínio sobre todos os povos, um reino que não passará (Dn 7). Houve,
entretanto, uma reaparição da antiga corrente: nas vésperas da nossa era,
a espera dum Messias régio estava largamente difundida, mas certos meios
esperavam também um Messias sacerdotal, e outros um Messias
transcendente. 59.
Bom, isso reafirma o que já dissemos a respeito do que pensavam e
que sempre ficavam esperando um novo messias para libertá-los.
Verificamos que a grande maioria das supostas profecias é tirada
do livro de Isaías, entretanto cabe-nos, por respeito a você, caro
leitor, fazer algumas considerações sobre este livro. Novamente, iremos
recorrer à Bíblia de Jerusalém 60 que coloca:
(...).
Gênio religioso tão grande, marcou profundamente sua época e fez
escola. Suas palavras foram conservadas e sofreram acréscimos. O livro
que traz o seu nome é o resultado de um longo processo de composição,
impossível de reconstituir em todas as suas etapas. (...).
O livro recebeu acréscimos mais consideráveis ainda. Os caps. 40-55
não podem ser obra do profeta do século VIII. Não só nunca é mencionado
aí o seu nome, mas também o contexto histórico é posterior cerca de dois
séculos: Jerusalém foi tomada, o povo se acha cativo em Babilônia, Ciro
já está em cena e será o instrumento da libertação. Sem dúvida, a
onipotência divina poderia transportar um profeta a um futuro longínquo,
retirá-lo do presente e alterar as imagens e seus pensamentos. Mas isso
supõe o desdobramento dos contemporâneos – para os quais ele foi enviado
– os quais não têm paralelo na Bíblia e são contrários à própria noção de
profecia, a qual não faz intervir o futuro senão como ensinamento para o
presente. Esses capítulos contêm a pregação dum anônimo, continuador de
Isaías e grande profeta, como ele, o qual, na falta de um nome melhor,
chamamos de Dêutero-Isaías ou de Segundo Isaías. Pregou em Babilônia
entre as primeiras vitórias de Ciro, em 550 a.C. – que levam a adivinhar
a ruína do império babilônico – e o edito libertador de 538, que permitiu
os primeiros retornos. (...).
(...) Os oráculos dos caps. 1-39 eram geralmente ameaçadores e
cheios de alusões aos acontecimentos dos reinados de Acaz e de Ezequias;
os dos caps. 40-55 estão desligados deste contexto histórico e são
consoladores. O julgamento cumpriu-se na ruína de Jerusalém, o tempo da
restauração está próximo. Será uma renovação completa e este aspecto é
sublimado pela importância dada ao tema de Deus criador, unido ao de Deus
salvador. Um novo êxodo, mais maravilhoso do que o primeiro, reconduzirá
o povo a uma nova Jerusalém, mais bela que a primeira. (...).
A última parte do livro (caps. 56-66) tem sido considerada como
obra de outro profeta, denominado “Trito-Isaías”, Terceiro Isaías. Hoje,
geralmente se reconhece que é uma coletânea diversificada. (...). (todos
os grifos são nossos).
Veja bem; um livro é composto de várias coletâneas que não se sabe
quem são realmente os autores; e ainda têm coragem de afirmar que é
“inspirado por Deus”... Tudo que já dissemos antes vem se confirmar
nesses textos que acabamos de colocar.
E para finalizar, queremos dizer que há muito tempo estávamos
pensando em fazer esse estudo; chegamos a fazer o levantamento das
profecias, pesquisamos na Internet para saber o que as outras correntes
religiosas falavam sobre isso. Nesta busca encontramos um texto, que
merece ser analisado, pois, como “não existe nada de oculto que não venha
a ser conhecido” (Mt 10,26), a verdade acabará aparecendo. Quando isso
acontecer os que advogam teses contrárias ficarão “num mato sem
cachorro”, conforme o dito popular. Não terão nada em que se apoiar e
ruirão por falta de base sólida. Assim, aos que ainda querem manter o
povo na ignorância, que aguardem, pois seu dia chegará. É o que
profetizamos.
Alguém pode objetar dizendo que Jesus em várias oportunidades
disse que estava cumprindo as profecias. Longe de nós contestar o que
Jesus disse; entretanto, agora ao final desse estudo, por não ter
encontrado nenhuma profecia sobre Ele, ficamos com plena convicção de que
é bem provável que atribuíram-Lhe certas palavras. Nada mais que isso. E,
estamos com o Mahatama Gandhi, quando disse: “Se todos os livros
religiosos da humanidade perecessem e só se salvasse o Sermão da
Montanha, nada estaria perdido”. E, coincidência ou não, no Sermão da
Montanha (Mt 5, 6 e 7) não existe nenhuma profecia a respeito de Jesus.
Cremos que o valor dos ensinamentos de Jesus está no sentido
profundo e altamente moral, não por ter Ele vindo cumprir profecias.
Nunca podemos negar o fato, de que Ele foi um enviado de Deus, como
muitos outros também o foram, quer tenham sido profetas ou não. O que faz
Ele diferente dos outros é que ele foi o maior de todos. Mas, apesar
disso, Ele diz: “Quem crê em mim fará as obras que faço e fará até
maiores do que elas” (Jo 14,12); o que deixa claro que, para Ele, todos
nós somos iguais e podemos fazer as mesmas coisas, já que temos a mesma
origem: Deus.
E aqui colocamos o pensamento de um teólogo, que vem justamente ao
encontro do que observamos nesse estudo: “‘Há neles uma clara tentativa
de adaptar os detalhes da vida de Jesus às profecias do Antigo
Testamento’, comenta o teólogo Fernando Altemeyer Júnior, professor da
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo”, conforme nos informa a
Revista Galileu Especial – Jesus e os mistérios que a Bíblia não explica,
no texto de José Tadeu Arantes, p. 16.
Vemos como de necessidade urgente uma completa revisão nos
conceitos teológicos tradicionais, para buscar a “verdade que liberta”,
sob pena de causar, cada vez mais, incrédulos, conforme podemos comprovar
no texto logo abaixo:
Cristianismo: Uma História de Plágio e Profecias Arbitrárias61
Autor: Ubiratan Castro
A base de toda a crença cristã está na Bíblia, livro adotado pelos
cristãos como sendo a Palavra do Deus Vivo. E a existência do próprio
deus cristão é comprovada (?) mediante argumentos bíblicos, em especial
profecias, analisados em termos de verossimilhança ou probabilidades.
Entretanto, a inconsistência das profecias está na arbitrariedade dos
argumentos usados para sustentá-las, selecionados de modo a favorecer a
posição teísta ou bíblica. E a história do cristianismo e do seu mito
Jesus encontra vários paralelos em crenças e mitologias ainda mais
antigas.
Os cristãos consideram espantoso e maravilhoso o fato que tantas
profecias do Velho Testamento se tivessem cumprido de forma precisa e
exata na vida de Jesus, porém não enxergam, não querem enxergar ou
simplesmente desconsideram o caráter arbitrário dado a elas. Eles assumem
que as profecias foram feitas e cumpridas, mas ao mesmo tempo não tem
evidência real para apoiar essas suposições. Quando estes alegados
cumprimentos de profecias são estudados nos seus contextos originais,
vemos facilmente que a maior parte deles nada tinha que ver com as
aplicações que os escritores do Novo Testamento lhes deram de forma
arbitrária. Um exemplo excelente é o cumprimento da profecia sobre a
matança das crianças inocentes promovidas por Herodes. Mateus 2:16-18 diz
o seguinte:
"Então Herodes, vendo-se iludido pelos magos, irritou-se muito e
mandou matar todos os meninos de Belém, e de todos os seus arredores, de
dois anos para baixo, segundo o tempo que diligentemente inquirira os
magos. ENTÃO CUMPRIU-SE O QUE FOI DITO PELO PROFETA JEREMIAS: Ouviu-se
uma voz em Ramá, choro e grande lamentação, Raquel chorando por seus
filhos, e recusando ser consolada, porque já não existem”.
Para o cristão comum, esta é apenas mais uma das profecias
cumpridas a respeito de Jesus. No tempo em que eu era evangélico, não
poucas foram as vezes que ouvi a frase "todo o texto usado sem um
contexto é um pretexto". E mesmo depois de ter me tornado ateu, muitas
vezes esta frase foi a mim dirigida com o intuito de desmentirem meus
argumentos anti-bíblicos. Agora é a minha vez de dar o troco. A profecia
que Mateus afirma ter se cumprido está em Jeremias 31:15. No entanto,
Jeremias 31:15 é uma declaração que no contexto original se referia aos
judeus que tinham sido espalhados pelo estrangeiro durante a Diáspora.
Jeremias referiu-se figurativamente a isto como Raquel chorando pelos
seus filhos, mas no contexto da declaração, há uma promessa no versículo
seguinte segundo a qual estes filhos "regressariam da terra do inimigo"
(versículo 16). Portanto, é óbvio que Jeremias não estava de maneira
nenhuma a falar de um massacre brutal de crianças judias, pelo que torcer
a passagem e dar-lhe a aplicação que Mateus lhe deu só pode ser visto
como um ato de desespero da parte de alguém que, não tendo qualquer
evidência real do seu lado, tenta provar que este homem Jesus cumpriu as
profecias judaicas sobre o vindouro Messias. Quando juntamos a isso a
ausência total de referências em histórias seculares contemporâneas à
matança dos inocentes por Herodes, temos uma boa razão para acreditar que
nunca ocorreu este evento que Mateus alegou ser um cumprimento de
profecia.
O cristianismo, além de apoiado em profecias fundamentadas em
arbitrariedades, é baseado também em histórias de religiões ANTERIORES ao
próprio cristianismo. Entre elas, vale a pena reparar na versão Hindu,
pois é espantosamente paralela à história de Mateus. Segundo a literatura
Hindu, quando Krishna, a oitava encarnação do deus Vishnu, nasceu da
virgem Devaki, ele foi visitado por homens sábios que haviam sido guiados
até ele por uma estrela. Anjos também anunciaram o nascimento a pastores
nos campos próximos. Quando o Rei Kansa soube do nascimento miraculoso
desta criança, enviou homens para "matar todas as crianças nas
localidades vizinhas", mas uma "voz celestial" segredou ao pai adotivo de
Krishna e avisou-o para que tomasse a criança e fugisse através do rio
Jumna.
Um estudo de mitologia pagã estabeleceria paralelos similares nas
histórias de Zoroastro (Persa), Tammuz (Babilônica), Perseus e Adonis
(Grega), Horus (Egípcia), Rômulo e Remo (Romana), Gautama (o fundador do
Budismo), e muitas outras, pois vários elementos do mito da 'criança
perigosa' podem ser observados nas histórias de todos estes deuses e
profetas pagãos. Todos estes mitos são anteriores, geralmente muitos
séculos, ao relato de Mateus sobre o massacre das crianças em Belém.
Krishna, por exemplo, era um salvador Hindu que alegadamente viveu no
sexto século A.C., portanto quando um estudo da literatura do mundo
antigo mostra que um evento incomum como a matança dos inocentes parece
ter ocorrido por todo o lado, pessoas razoáveis percebem que esse evento
provavelmente não ocorreu em lugar nenhum, ou na melhor das hipóteses
ocorreu apenas uma vez e depois foi plagiarizado. Como a história ocorre
muitas vezes antes da versão de Mateus, só podemos concluir que tal
evento não ocorreu em Belém como Mateus, E SOMENTE MATEUS, alegou.
Muitos outros alegados cumprimentos de profecias na vida de Jesus
têm paralelos na mitologia antiga. Os milagres de Jesus haviam sido
profetizados em Isaías 53:4-5, a sua crucificação no Salmo 22:16, a sua
ressurreição no Salmo 16:10, e a sua ascensão no Salmo 68:18. Contudo, o
exame destas passagens no seu contexto revela o mesmo problema citado
acima no caso de Jeremias 31:15. As afirmações são notoriamente obscuras
e só se tornam profecias através das alegações arbitrárias dos escritores
do Novo Testamento, que as retiraram do contexto e as aplicaram a
situações que os escritores originais não referiram. Portanto não há
maneira de alguém estabelecer que estas "profecias" tenham sido
originalmente feitas com a intenção de serem profecias. Tudo o que temos
é a palavra não confirmada de escritores do Novo Testamento, dizendo que
essas declarações foram feitas com a intenção de serem profecias, e isso
não é uma base suficientemente boa sobre a qual se deva construir um
argumento.
O Cristianismo não é a única religião que alega que o seu salvador
realizou milagres, foi crucificado, foi ressuscitado dos mortos e
ascendeu ao céu. Escritos Hindus atribuíram todas estas coisas a Krishna.
De fato, as vidas de Jesus e Krishna, conforme relatadas nas respectivas
literaturas dos seus seguidores, são tão espantosamente paralelas que
pessoas razoáveis só podem concluir que os escritores do Novo Testamento
tomaram de empréstimo muitas das suas idéias de uma mitologia do salvador
que tinha evoluído muito antes do primeiro século. De fato, salvadores
nascidos de virgens, crucificados e ressuscitados eram a coisa mais comum
na mitologia pagã, e se isso não destrói os argumentos bíblicos (na
medida em que se referem a cumprimento de profecias) nas mentes dos
cristãos, então eles estão obviamente determinados a acreditar na
extravagância do mito Cristão, independentemente de quão convincente
possa ser a evidência em contrário.
Ainda assim, vamos supor que seja possível provar o cumprimento da
profecia da matança das crianças inocentes, por exemplo. Deixo bem claro
que esta não é a minha tarefa, mas de todos os cristãos que afirmam que o
seu mito e as profecias que o sustentam são verdadeiras. Desta maneira,
quem quisesse provar que a matança dos inocentes aconteceu e foi
realmente profetizada por Jeremias teria de demonstrar ABSOLUTAMENTE,
além de qualquer dúvida, que Jeremias pretendia que a declaração fosse
uma profecia da matança dos inocentes por Herodes. Particularmente eu
duvido que alguém consiga passar desta etapa, mas supondo que alguém
consiga, mas vamos supor que alguém conseguira provar que Jeremias
pretendia que a declaração fosse uma predição da matança das crianças em
algum momento no futuro do profeta, tal pessoa ainda teria que provar DE
FORMA ABSOLUTA que o massacre das crianças de Belém por Herodes pode ser
estabelecido como fato histórico. A ausência total de qualquer referência
a tal evento por qualquer outro escritor do Novo Testamento ou qualquer
historiador secular contemporâneo a essa época torna isso uma tarefa
impossível para qualquer um. Contudo, se um evento que alegadamente é um
cumprimento de profecia não pode ser estabelecido fatualmente, como é que
uma pessoa que possua um mínimo de inteligência pode afirmar que foi um
cumprimento de profecia?
Se provar que uma profecia a respeito de Jesus realmente aconteceu
é algo impossível, o que dizer de uma série delas? Será que alguém é
capaz de pegar as supostas profecias sobre o messias cristão e passar
pelo mesmo processo? Isto significaria pegar as alegações proféticas
sobre o nascimento virginal de Jesus, os milagres, a entrada triunfal, a
traição, a crucificação, o tratamento durante a crucificação, a
ressurreição, a ascensão e centenas de outros alegados cumprimentos
proféticos e provar para cada uma delas que: (1) a intenção da declaração
original era mesmo fazer uma profecia de algo que ocorreria na vida do
Messias e que (2) o acontecimento profetizado ocorreu mesmo a Jesus.
Alguém se habilita?
É possível de alguma forma que alguém estudasse as escrituras do
Velho Testamento, interpretasse algumas passagens obscuras como profecias
e depois escrevesse uma biografia de um personagem fictício de modo a
fazer parecer que todas estas "profecias" tinham sido cumpridas na sua
vida? De acordo com forma como a vida e as profecias a respeito de Jesus
Cristo nos são apresentadas, é perfeitamente possível sim.
Portanto, o meu objetivo com este artigo é mostrar que estes
alegados cumprimentos de profecias nunca aconteceram, que os escritores
dos evangelhos limitaram-se a procurar no Velho Testamento declarações
que podiam interpretar como profecias e depois escreveram as biografias
do seu Messias de modo a fazer parecer que todas as profecias tinham sido
maravilhosamente cumpridas. Mesmo que as ações de "cumprimento de
profecias" tenham mesmo ocorrido, podiam ter sido feitas deliberadamente
com o objetivo de dar ao pretenso Messias a oportunidade de alegar que
ele tinha de fato cumprido as profecias judaicas.
Com o desabafo desse ex-evangélico, queremos deixar bem claro que,
a manter as coisas como estão, causaremos um prejuízo muito grande, pois
estaremos, cada vez mais, dando origem a indivíduos que se dizem ateus.
Observe que ele era um evangélico; é, pois, uma pessoa que estudou muito
a Bíblia, o que nos leva a crer que todos os que a estudarem em
profundidade e confrontarem suas conclusões com as orientações das suas
respectivas lideranças religiosas, poderão acabar como ele, ou seja, mais
um indivíduo no rol dos ateus.
Ora, um livro de inspiração divina nunca poderia levar pessoas ao
ateísmo; se isso está ocorrendo é porque existe alguma coisa errada. O
que está errado? Pensamos que os teólogos do passado, por mais sábios que
pudessem ser, não possuíam uma visão holística dos fatos, sempre
colocavam os textos bíblicos sob o seu estreito ponto de vista. E não há
como negar que o homem avançou de maneira considerável, principalmente no
campo das ciências. Isso vem provocando uma revisão completa nos
conhecimentos do passado; só que ainda essa revisão não teve como alvo a
teologia tradicional.
A humanidade, hoje, mais questionadora, e indubitavelmente mais
exigente, não quer aceitar mais nada sem o crivo da razão e da lógica. E,
quando resolver passar a Bíblia por esse crivo, as coisas irão complicarse, já que a maioria das correntes religiosas tradicionais terá que
modificar seus conceitos, sob pena de continuarem formando mais ateus que
crentes. Desejamos, com tudo isso, fazer um urgente pedido de socorro:
Vamos separar na Bíblia o joio do trigo para o próprio bem dela.
Agora, como reflexão final, colocaremos o complemento do
pensamento de um Espírito que se identificou como Erasto:
Vale mais repelir dez verdades do que admitir uma só mentira, uma
só falsa teoria. Com efeito, sobre essa teoria poderíeis edificar todo um
sistema que desabaria ao primeiro sopro da verdade, como um monumento
construído sobre areia movediça, ao passo que, se rejeitais hoje certas
verdades, porque não vos são demonstradas lógica e claramente, logo um
fato brutal ou uma demonstração irrefutável virá delas vos afirmar a
autenticidade 62.
Ressurreição, o significado bíblico
Vamos procurar fazer um estudo sobre a questão da ressurreição, na
tentativa de encontrar qual o entendimento que os antigos tinham sobre
isso.
Sabemos não ser muito fácil fazer esse tipo de pesquisa, pois os
textos bíblicos de hoje, não sendo os originais e estando eivados de
“vícios” de tradução, torna o resultado dessa tarefa assaz comprometido
com a verdade, já que “a verdade bíblica” pode ser bem diferente da
realidade. Por outro lado, conceitos arraigados que servem de arquétipo
ao homem hodierno, talvez possam nos levar a um caminho fora do nosso
objetivo principal que é saber quais são realmente os fatos verdadeiros.
Mas, para que não fiquemos apenas numa opinião isolada, e mesmo de
pouco valor, trazemos a opinião do pesquisador holandês Emanuel Tov,
especialista nos Manuscritos do Mar Morto, contida na Revista Veja edição
1747, na reportagem “Espião do Passado”, de autoria de Adriana Carvalho:
Nas cavernas de Qumran e em outros lugares de Israel, nós
encontramos centenas de manuscritos, todos da Bíblia hebraica, o Velho
Testamento. Comparando com as traduções que conhecemos hoje da Bíblia,
notamos que há passagens que eram mais curtas, outras mais compridas ou
com textos diferentes dos que conhecemos hoje. O Livro de Jeremias nos
manuscritos aparece em uma versão talvez 15% mais curta. Isso significa
que, nas cópias feitas por gerações após gerações, freqüentemente os
escribas mudavam os textos, acrescentando alguns detalhes, suprimindo
outros. Eles consideravam-se também autores e permitiam-se fazer
alterações. Isso ocorreu com os textos de Homero, as tragédias gregas,
não apenas com a Bíblia. (CARVALHO, 2002, p. 14).
Primeiramente, cabe-nos informar qual é o significado daquilo que
iremos tratar. Diz-nos o Aurélio que ressurreição significa: “S. f. 1.
Ato ou efeito de ressurgir ou ressuscitar; ressurgência. 2. Rel. Festa
católica comemorativa da ressurreição de Cristo, ao terceiro dia após a
morte: 3. Fam. Cura surpreendente e imprevista. 4. Fig. Vida nova;
renovação, restabelecimento. 5. Quadro que representa a ressurreição de
Cristo. 6. Rel. Na doutrina cristã, o surgir para uma nova e definitiva
vida, distinta e, em certa medida, oposta à existência terrestre, e que,
a partir da ressurreição de Cristo, aguarda todos os fiéis cristãos”.
E que ressuscitar significa: “V. t. d. 1. Fazer voltar à vida;
reviver, ressurgir. 2. Restaurar, renovar, reproduzir: V. int. 3. Voltar
à vida; tornar a viver; reviver, ressurgir. 4. Tornar a surgir;
reaparecer, ressurgir: 5. Escapar de grande perigo”.
Assim, podemos, para o nosso estudo, concluir que ressurreição é a
ocorrência que faz voltar à vida, tornar a viver ou reviver; quem passou
pelo derradeiro momento da morte física. Nesse conceito, mais abrangente,
podemos também considerar como ressurreição a volta do Espírito à sua
condição anterior no plano espiritual, ou seja, a ressurreição do
espírito.
Já pelo conceito encontrado no Dicionário Bíblico Universal é:
Ressurreição não é a volta à vida. É de maneira inexata que se fala
de ressurreição a propósito das crianças curadas por Elias e Eliseu (1Rs
17, 2Rs 4), a propósito do filho da viúva de Naim (Lc 7,11-17), de Lázaro
(Jo 11) etc. Os textos se referem somente a um retorno à vida que não
dispensa a pessoa beneficiada de ter que morrer um dia. Ressuscitar é
descobrir, além da morte, uma vida de tipo novo, comportando relações
novas dos homens entre si e dos homens com Deus. (p. 681)
O que não conseguimos estabelecer é quando e porque o povo hebreu
passou a acreditar na ressurreição, pois os textos bíblicos, só mais
tardiamente, por volta de 175 a 161 a.C., é que passam a falar dessa
possibilidade.
Nos livros que compõem o Antigo Testamento, percebemos que essa
idéia aparece, como que caída de um pára-quedas, já que até o século II
a.C., nem se pensava nisso; antes, ao contrário, não tinham nenhuma
perspectiva para a existência de alguma coisa depois da morte.
A cultura egípcia admitia a vida após a morte. Leiamos:
A morte, para os egípcios, tinha um especial interesse. Havia entre
eles uma crença absoluta no renascer dos mortos. Por isso, a preocupação
em preservar o cadáver e o desenvolvimento da técnica de mumificação. De
acordo com sua religião, a alma precisava de um corpo para morar por toda
a eternidade.
Acreditava-se que a morte apenas separava o corpo da alma. Daí, a
obrigação a ser cumprida pelos parentes quanto ao morto querido: a
mumificação de seu corpo.
Se a vida poderia durar eternamente, desde que a alma encontrasse
no túmulo o corpo destinado a servi-lhe de morada, era precioso,
portanto, preservar suas características físicas. (A Magia do Egito, nº
01, p. 47).
É interessante o que pensavam a respeito do após morte:
A vida no outro mundo começava no próprio túmulo com uma viagem
pelo subterrâneo. Primeiro, o ka (energia vital) deixaria o corpo
acompanhado por ba (alma). O deus Coros conduz o ba através dos portais
de fogo até o salão do juízo final.
O julgamento final era a prova de fogo para que a pessoa morta
alcançasse, finalmente, a vida eterna.
No julgamento final, o morto deveria provar que foi verdadeiro e
justo durante a vida, sem ter faltado com a verdade.
Se a pessoa não passasse pelo julgamento final, estaria condenada a
uma espécie de coma perpétuo, ou seja, teria então uma segunda morte
porque, agora, o acesso à eternidade estaria vedado. (A Magia do Egito,
nº 05, p. 12).
Os egípcios acreditavam que o corpo ressuscitaria magicamente do
outro lado da vida por meio de um ritual chamado de ‘abertura da boca’. O
sacerdote ou alguém da família tocava a boca do morto com um instrumento
de metal para que ele pudesse ter uma boa passagem para o outro mundo e
conseguisse pronunciar as palavras necessárias na hora do julgamento.
No mundo dos mortos, os egípcios eram julgados pelo deus Osíris e
seus 42 assessores. Diante de cada juiz, o defunto declarava não ter
passado por determinada infração. Seu coração era pesado numa balança.
‘Se pesasse mais que a pluma da justiça de Maat, a deusa da ordem
universal, o morto seria engolido por um monstro em forma de crocodilo,
leão e hipopótamo e teria, assim, uma morte definitiva, deixando por
completo de existir’, afirma o historiador Ciro Flamarion Cardoso, da
Universidade Federal Fluminense. (Revista das Religiões, p. 42).
Ora, sabemos que o povo hebreu permaneceu por 430 anos em
escravidão no Egito, tempo suficiente para incorporar, em sua cultura, os
costumes do povo que o subjugava. O que nos causa espécie é: por que a
ressurreição não aparece na Bíblia desde a época dos hebreus no Egito?
O que vemos é que, inicialmente, nem tinham idéia de vida após a
morte. Não aparece nem mesmo, quando promulgados, no monte Sinai, os Dez
Mandamentos. Neles observamos que todas as recompensas e penalidades,
estabelecidas por Deus, estão relacionadas às situações terrenas, não
para uma vida futura após a morte.
Na visão que tinham, todos iam para o mesmo lugar; o sheol. Com o
passar dos anos, desenvolveu-se a idéia de que somente os injustos é que
iam para lá. O sheol era, na verdade, a sepultura comum, da qual não viam
nenhum corpo voltar, razão de pensarem que a vida só se resumia a essa
aqui na terra. Quando imaginavam que alguém estava nas graças de Deus,
davam a ela uma vida longa. É por isso que aparecem na Bíblia pessoas com
tempo de vida inverossímil.
A idéia da ressurreição aparece, pela primeira vez, no período
histórico situado entre 175 a.C. a 161 a.C., narrados em 2 Macabeus e em
Daniel; ambos os relatos se referem a esse mesmo período.
É certo que alguns teólogos admitem que Isaías teria falado a
respeito dela. Mas é difícil saber com certeza, pois quê “suas palavras
foram conservadas e sofreram acréscimos. ... São acréscimos mais extensos
‘o Apocalipse de Isaías’ (24-27), que por seu gênero literário e por sua
doutrina não pode ser situado antes do século V a.C.;...” (Bíblia de
Jerusalém, p. 1238).
Quando lemos em Is 26,19: “Os teus mortos tornarão a viver, os
teus cadáveres ressurgirão”, ficamos na dúvida sobre de que se trata
realmente; mas, em nota de rodapé, explicam-nos: “O texto poderia se
entender como restauração nacional (cf. Ez 37) ou como afirmação da fé na
ressurreição dos mortos (Dn 12,2)”. (Bíblia Sagrada Vozes, p. 912).
Reportando-nos a Ezequiel, lemos a seguinte explicação para o
passo 37,1-14:
Cumprindo-se os castigos anunciados pelo profeta (Ez 4-24) os
exilados caíram em profunda prostração. Longe de sua terra, sem templo
nem culto, estavam ameaçados de perder a identidade de povo eleito (cf.
20,32; 33,10). As esperanças de uma restauração pareciam perdidas
(37,11). Neste contexto Ezequiel anuncia uma restauração milagrosa de
Israel, a ser produzida pelo espírito de Deus. (Bíblia Sagrada Vozes, p.
1072).
E, confirmando essa afirmativa, citamos da Bíblia de
Jerusalém:“Como em Os 6,2; 13,14 e Is 26,19, Deus anuncia aqui (cf. 1114) a restauração messiânica de Israel, após os sofrimentos do Exílio
(cf. Ap 2-,4+)” (p. 1534).
Até aí estavam indo muito bem; mas...
Contudo, pelos símbolos utilizados, ele já orientava os espíritos
para a idéia de ressurreição individual da carne, entrevista em Jó
19,25+, explicitamente afirmada em Dn 12,2; 2Mc 7,9-14; 12,43-46; Cf. 2Mc
7, 9+. Para o NT, ver Mt 22, 29-32 e sobretudo 1Cor 15. (Bíblia de
Jerusalém, p. 1534).
Do texto de Ezequiel: “... estes ossos representam toda a casa de
Israel, que está a dizer: ‘Os nossos ossos estão secos, a nossa esperança
está desfeita. Para nós está tudo acabado. Pois bem, profetiza e dizelhe: Assim diz o Senhor Iahweh: Eis que abrirei os vossos túmulos e vos
farei subir dos vossos túmulos, ó meu povo, e vos reconduzirei para a
terra de Israel” (37,11-12), confirmando o que foi dito a respeito da
restauração do povo de Israel. Não é, portanto, uma ressurreição coletiva
e nem individual o que se pode deduzir do texto. Vemos este apenas como
uma tentativa de se achar uma saída para justificar a crença na
ressurreição da carne.
Embora não fosse desta forma que pensávamos em tratar desse
assunto, devemos, para uma melhor compreensão, ver o que se narra nos
livros 2 Macabeus e Daniel.
a) Livro de Macabeus
O Segundo Livro dos Macabeus não é uma continuação dos fatos
narrados por 1Mc. É antes um relato paralelo a 1 Mc 1-7. Começa com os
fatos do tempo do Sumo Sacerdote Onias III e do rei Seleuco IV (180 aC.).
E termina pouco antes da morte de Judas Macabeu, com a derrota de Nicanor
(161 a.C.). Apresenta-se como um resumo de uma obra mais ampla, em cinco
volumes, de um tal de Jasão de Cirene (2,19-32). Este Jasão mostra-se bem
informado ao menos sobre a situação em Jerusalém, a administração
selêucida e seu funcionamento.
O autor do resumo é um desconhecido, profundamente religioso,
talvez um fariseu. É um apaixonado pela causa dos judeus e grande
admirador de Judas Macabeu, seu herói principal. A obra de Jasão de
Cirene deve ter sido composta em torno de 130 a.C. E o ‘resumo’ deve ser
posterior a 124 a. C (data da primeira carta; 1,9) e anterior a 63 a. C.,
quando Jerusalém foi ocupada pelos romanos. Como se nota pelas duas
cartas iniciais e pelo prólogo, o ‘resumo’ foi composto em Alexandria e
sobretudo para leitores da comunidade judaica local. (Bíblia Sagrada
Vozes, p. 573).
As informações que Jasão possuía – segundo o que podemos deduzir do
resumo fiel – especialmente as notícias minuciosas e exatas sobre certas
particularidades da história dos Selêucidas, informações precisas sobre
títulos, cargos etc., nos levam a crer que tenha consultado arquivos
palestinenses e ouvido boas testemunhas. É sabido, com efeito, que os
judeus cultos da época costumavam empreender tais viagens e pesquisas.
A exatidão das notícias, que Jasão dá só poderá ter recolhido por
via oral, leva-nos a crer que as tenha escrito quando ainda vivas as
testemunhas oculares dos fatos, e que, portanto, sua obra tenha sido
escrita nos últimos 20 anos séc. II a.C. (Bíblia Paulinas, p. 553).
Por que o autor sentiu necessidade de retomar uma história já
conhecida? Qual a originalidade? Podemos dizer que a intenção do autor é
reler os mesmos fatos, para mostrar que a luta em defesa do povo se
enraíza na atitude de fé, que confia plenamente no auxílio de Deus.
(Bíblia Pastoral, p. 611).
Os minúsculos que atestam a recensão do sacerdote Luciano (300
d.C.) conservam por vezes um texto mais antigo que os dos outros
manuscritos gregos, texto que se reencontra nas Antiguidades Judaicas do
historiador Flávio Josefo, que segue geralmente 1Mc e ignora 2Mc. A Vetus
Latina, também, é a tradução dum texto grego perdido e freqüentemente
melhor que o dos manuscritos que conhecemos. O texto que está na Vulgata
não foi traduzido por são Jerônimo – para quem os livros dos Macabeus não
eram canônicos – e não representa senão uma recensão secundária. (Bíblia
de Jerusalém, p. 718).
As informações acima são necessárias para compreendermos bem o que
nos traz esse livro. Observe, principalmente, o que grifamos em negrito.
Podemos tirar que esse livro foi escrito por alguém que acreditava na
ressurreição e o escreveu depois dos fatos acontecidos.
2Mc 7,9: “Estando prestes a dar o último suspiro, disse: ‘Tu, execrável
como és, nos tiras desta vida presente. Mas o Rei do universo nos
ressuscitará para uma vida eterna, pois morremos por fidelidade às suas
leis”.
Analisando a frase “nos tira desta vida presente”, presumimos que
acreditavam em outra vida, e quando se disse: “nos ressuscitará para uma
vida eterna”, confirma essa idéia. Então, a ressurreição aqui tratada é a
do espírito. E sobre essa última expressão, nos informam na Bíblia de
Jerusalém que: “Lit. ‘para uma revivificação eterna da vida’” (Bíblia de
Jerusalém, p. 777), o que sustenta a idéia concluída por nós.
2Mc 7,11: “dizendo com dignidade: ‘De Deus eu recebi esses membros, e
agora, por causa das leis dele, eu os desprezo, pois espero que ele os
devolva para mim’”.
Aqui, ao que parece, a ressurreição que esperavam é a do corpo.
2Mc 7,13-14: “Passado também este à outra vida, submeteram o quarto aos
mesmos suplícios, desfigurando-o. Quase a expirar, disse: ‘É desejável
passar para a outra vida às mãos dos homens, conservando em Deus a
esperança de ser um dia ressuscitado por ele. Para ti, porém, não haverá
ressurreição para a vida!”.
Essa passagem é singular, pois volta à questão de se acreditar em
“outra vida”; entretanto, o texto já induz à idéia de uma ressurreição
futura, talvez a do juízo final. Mas, é aí que a coisa fica difícil de
entender, pois em outras Bíblias encontramos coisa diferente; vejamos:
“Morto este, aplicaram os mesmos suplícios ao quarto, e este disse,
quando estava a ponto de expirar: ‘É uma sorte desejável perecer pela mão
humana com a esperança de que Deus nos ressuscite. Mas para ti,
certamente não haverá ressurreição para a vida”. (Bíblia Sagrada Ave
Maria).
Tiraram a idéia da versão anterior de que acreditavam em uma
“outra vida”, mas já não se tem a idéia que a ressurreição seja para um
tempo futuro, dá-nos a entender que é próxima. Ao dizer que “para ti, não
haverá ressurreição para a vida”, que vida? Não seria a vida espiritual?
Não seria a ressurreição do Espírito? Se for, ficaria contrário a idéia
da ressurreição do corpo. Assim esse livro não nos fornece elementos
seguros para saber o que realmente pensavam.
2Mc 7,23: “Por isso, é o Criador do mundo, que organizou o nascimento dos
homens e preside à geração de todas as coisas, ele mesmo é quem, na sua
misericórdia, vos dará de novo o espírito e a vida, pois agora desprezais
a vós mesmos, por amor às suas leis”.
Será que aqui poderemos entender que “vos dará de novo o espírito
e a vida” como a ressurreição espiritual? Acreditamos que sim. Observe
que é mais forte essa ocorrência do que a ressurreição do corpo.
2Mc 12,43-44: “Em seguida fez uma coleta, enviando a Jerusalém cerca de
dez mil dracmas, para que se oferecesse um sacrifício pelos pecados: belo
e santo modo de agir, decorrente de sua crença na ressurreição, porque,
se ele não julgasse que os mortos ressuscitariam, teria sido vão e
supérfluo rezar por eles”.
Oferecerem sacrifícios pelos pecados, apenas teria sentido, se
acreditassem que já estariam ressuscitados, para que esses sacrifícios
tivessem valor imediato.
b) Livro de Daniel
A data desta [composição] é fixada pelo testemunho claro fornecido
pelo cap. 11. As guerras entre Selêucidas e Lágidas e uma parte do
reinado de Antíoco Epífanes nele são narradas com grande luxo de
pormenores insignificantes para o propósito do autor. Este relato não se
parece com nenhuma profecia do Antigo Testamento e apesar de seu estilo
profético, relata acontecimentos já ocorridos. Mas a partir de 11,40 muda
o tom: o 'Tempo do fim” é anunciado de um modo que recorda os outros
profetas. O livro teria sido composto, portanto, durante a perseguição de
Antíoco Epífanes e antes da morte dele, antes mesmo da vitória da
insurreição macabaica, isto é, entre 167 a 164. (Bíblia de Jerusalém, p.
1245).
O livro de Daniel já não representa a verdadeira corrente
profética. Não contém mais a pregação dum profeta enviado por Deus em
missão junto de seus contemporâneos; foi composto e imediatamente escrito
por um autor que se oculta por detrás dum pseudônimo, como já sucedera no
opúsculo de Jonas. (Bíblia de Jerusalém, p. 1246).
Autor e tempo de origem: Dn 1-6 nos coloca no tempo do exílio
babilônico (séc VI a.C.). Dn 7-12, onde Daniel fala de si na primeira
pessoa, é atribuído a Daniel, judeu deportado em 606 aC. De fato, até o
séc. XIX o livro foi atribuído a este profeta exílico; mas deste então
tornou-se opinião generalizada entre autores não-católicos e católicos
que na realidade o livro foi escrito no séc. II a.C, no tempo da
perseguição de Antíoco IV, entre os anos 167 a 163 a.C., no início do
período macabeu. ... Portanto, o autor é um desconhecido, talvez
pertencente ao grupo assideu (cf. 1Mc 2,27), o que não exclui que o livro
contenha elementos mais antigos.
O Autor desconhecido quis oferecer aos seus contemporâneos,
cruelmente perseguidos pelo rei Antíoco, um livro de conforto e
consolação. (Bíblia Vozes, p. 1086).
Com efeito, este escrito foi redigido em três línguas: em hebraico,
em grego e em aramaico; ora, os dois últimos idiomas não eram ainda
utilizados no tempo em que o livro coloca o profeta. O seu redator, que
escreveu certamente no segundo século a.C, serviu-se de documentos
anteriores, que podem remontar até a própria época de Daniel. (Bíblia Ave
Maria, p. 40).
Pouco depois dele, Dn 12,2 explicitará a fé numa retribuição após a
morte e no pensamento dele esta fé estará ligada à fé na ressurreição dos
mortos, já que a mentalidade hebraica não concebe a vida do espírito
separada da carne. No judaísmo alexandrino a doutrina progredirá em
caminho paralelo e irá mais adiante. Depois que a filosofia platônica,
com sua teoria da alma imortal, tiver libertado o pensamento hebraico de
seus entraves, o livro da Sabedoria afirmará que “Deus criou o homem para
a imortalidade (2,23) e que depois da morte a alma fiel gozará de
felicidade sem fim junto de Deus, enquanto os ímpios receberão seu
castigo (3,1-12). (Bíblia de Jerusalém, p. 798).
A situação histórica coloca o nosso Daniel no reinado do Antíoco IV
Epífanes, que determinou o extermínio da religião judaica e a consecutiva
helenização da Palestina. O autor do livro de Daniel (a nós desconhecido)
serve-se de histórias antigas, segundo o gênero agádico, então muito em
voga (cc. 1-6; 13-14), para inculcar esperança e fé aos judeus
perseguidos por Antíoco IV. Assim como Deus protegeu Daniel e os seus
companheiros de todos os perigos, assim acontecerá com os judeus que
forem fiéis à Lei e às tradições religiosas. O autor não tem em vista
descrever fatos históricos, mas histórias moralizadoras, que poderiam, na
realidade, ter um fundo ou um núcleo histórico, mas de segunda
importância. Os dados internos do livro, lingüístico, histórico e
teológico obrigam-nos a datar o livro por altura da morte do rei Antíoco
IV (165-164 a.C). (Bíblia Santuário, p. 1313).
A explicação que encontramos para o grupo dos assideus: “Forma
grecizada do hebr. Hasîdîm, os ‘piedosos’, comunidade de judeus apegados
à Lei. Eles resistiram à influência pagã desde antes dos Macabeus e
tornaram-se a tropa de choque de Judas (cf. Mc 14,6), mas sem se
subordinarem à política dos Asmoneus (cf. 1Mc 7,13). Segundo Josefo,
durante a chefia de Jônatas, por volta de 150, eles se dividiram em
fariseus (Mt 3,7+ e At 4,1+) e essênios, mais bem conhecidos desde as
descobertas de Qumrã (cf. Ant. XIII, 17s)”. (Bíblia de Jerusalém, p.
724).
Os fariseus acreditavam na ressurreição, anjo, espírito,
imortalidade da alma, coisas que dariam para justificar o aparecimento da
idéia de ressurreição, somente agora, já que estes dois livros, Macabeus
e Daniel, provavelmente tiveram como autores pessoas com essas origens.
O historiador Flávio Josefo registra, nessa época, as classes dos
fariseus, dos saduceus e a dos essênios; inclusive, as duas primeiras são
citadas no Novo Testamento.
Recapitulando: autor desconhecido, escrito por volta de 165-164
a.C., o que nos coloca em data próxima do livro anterior, ou seja, 2
Macabeus.
Dn 12,2: “Muitos dos que dormem na terra poeirenta, despertarão; uns para
a vida eterna, outros para vergonha, para abominação eterna”.
Encontramos a seguinte nota na Bíblia Santuário:
O profeta anuncia a libertação de Israel após os horrores levados a
efeito por Antíoco Epífanes. Além da ressurreição nacional, o v.2 anuncia
a ressurreição da carne (Is 26,29; 2Mc 7,9-14, 23-36; 12,43-46). A
doutrina da ressurreição da carne é tipicamente bíblica e semita,
enquanto que a da imortalidade da alma é de sabor mais helênico. (pp.
1338-1339).
Aqui, como já explicamos anteriormente sobre Ezequiel, é provável
que a idéia seja mesmo a da ressurreição nacional, ou seja, restauração
do povo de Israel.
Vejamos agora qual era o conceito de época para a ressurreição,
dele conseguimos levantar os seguintes significados:
a) Voltar à vida no mesmo corpo
Elias, que ressuscitou um filho de uma viúva (1Rs 17,17-24);
Elizeu, que fez o mesmo com um filho de uma sunamita (2Rs 4,3237);
Pedro, por ter ressuscitado a jovem chamada Tabita (At 9,36-41);
Paulo, que fez voltar à vida o menino Êutico, que havia morrido
após ter caído de uma janela (At 20,9-12);
Jesus, a filha de Jairo (Mt 9,18-26; Mc 5,21-24.35-43; Lc 8,4042.49-56), o filho da viúva de Naim (Lc 7,11-17) e Lázaro (Jo 11,1-44).
Será que realmente houve propriamente uma morte? Devemos observar,
que no caso da filha de Jairo, Jesus disse: “a menina não morreu, está
dormindo” (Mt 9,24; Mc 5,39 e Lc 8,52). Em relação a Lázaro a coisa é
mais complicada, pois, apesar de Jesus ter afirmado que “esta doença não
é para a morte” (Jo 11,4), e “nosso amigo Lázaro dorme” (Jo 11,11), o
texto bíblico apresenta uma contradição a partir do versículo 13 a 16,
dizendo que se trata de morte mesmo. Ora, isso, a nosso ver, decorre de
um acréscimo ao texto original para se justificar a tese da ressurreição
corporal, cujo teor, se retirarmos do texto não ocasiona solução de
continuidade da narrativa, mantendo incólume o contexto.
Temos dito, em várias oportunidades, que os médicos de hoje, se
tivessem vivido naquele tempo, seriam considerados “profetas”, pois, com
certeza, com os atuais conhecimentos de medicina, iriam “ressuscitar”
inúmeras pessoas. A grande questão é saber se Lázaro e a filha de Jairo,
e o filho da viúva de Naim estavam realmente mortos, ou se passaram por
uma EQM - Experiência de Quase Morte, que tem despertado o interesse de
vários pesquisadores nos tempos atuais...
Esse era o significado popular, ou seja, o que o povo entendia;
mas, como já demonstramos pelo Dicionário Bíblico, ele não é exato.
b) Voltar à vida em outro corpo
Lc 9,7-9: “O tetrarca Herodes, porém, ouviu tudo o que se passava, e
ficou muito perplexo por alguns dizerem: ‘É João que foi ressuscitado dos
mortos’; e outros: ‘É Elias que reapareceu’; e outros ainda: ‘É um dos
antigos profetas que ressuscitou”. Herodes, porém, disse: ‘A João eu
mandei decapitar. Quem é esse, portanto, de quem ouço tais coisas?’ E
queria vê-lo”. (ver Mt 14,1-2 e Mc 6,14-16).
Lc 9,18-19: “Um dia Jesus rezava num lugar retirado e seus discípulos
estavam com ele. Ele lhes fez a seguinte pergunta; ‘Quem sou eu no dizer
das turbas?’ Eles responderam: ‘Para uns, João Batista, para outros,
Elias ou algum dos antigos profetas ressuscitado’”. (ver também Mt 16,1314; Mc 8,27-28).
Por essas passagens podemos perfeitamente saber que o povo também
acreditava que alguém, que já havia morrido, poderia voltar como outra
pessoa; senão, não teria sentido o que o povo pensava a respeito de quem
era Jesus. E se isso não fosse possível, com certeza, Jesus não teria
feito essa pergunta; e, mais ainda: teria dito dessa impossibilidade, em
função da resposta dada pelos discípulos. Assim, fica claro que o
conceito de ressuscitar aqui nessas passagens pode muito bem ser
entendido por reencarnar.
Somente devemos fazer uma ressalva quanto a João Batista, que não
poderia se enquadrar nesse entendimento; nós o estaremos explicando no
item “d”.
c) Ressurgir em Espírito
Qual a ressurreição foi pregada por Jesus: a da carne ou a do
Espírito?
Para responder essa questão é necessário lermos a resposta que
Jesus deu aos saduceus, negadores da ressurreição, sobre uma mulher que,
para cumprir a lei mosaica, teve que casar com os sete irmãos. A dúvida
deles era: quando da ressurreição ela seria mulher de qual deles? A isso
responde Jesus: “As pessoas deste mundo se casam. Contudo, as que são
julgadas dignas de ter parte naquele mundo e na ressurreição dos mortos,
lá não se casam. E já não podem morrer outra vez, porque são iguais aos
anjos e filhos de Deus, sendo participantes da ressurreição”. (Lc 20,3436). Se os que morrem são iguais aos anjos, isso significa que serão
seres espirituais; daí, não se justifica mais o casamento, que é coisa
para os que possuem corpos materiais.
Jesus disse que “O espírito é que dá vida, a carne de nada serve”
(Jo 6,63), o que vem reforçar a nossa natureza como sendo a espiritual.
Por outro lado, partindo de que “Deus é Espírito” (Jo 4,24) e que somos a
sua imagem e semelhança, é inevitável concluirmos que, na verdade, somos
também Espíritos.
Seguindo a leitura de Lucas, temos: “E que os mortos ressuscitem,
é Moisés quem dá a conhecer através do episódio da Sarça Ardente, quando
chama ao Senhor: o Deus de Abraão, o Deus de Isaac e o Deus de Jacó. Ora,
Deus não é Deus dos mortos, mas dos vivos; para ele, então, todos são
vivos”. (Lc 20,37-38). Considerando que se afirma, na narrativa, que
Abraão, Isaac e Jacó “todos são vivos”, que não aconteceu o juízo final,
para a esperada ressurreição dos corpos; e ainda que os três tiveram
morte física, é de se deduzir que, se eles estão vivos, estão, portanto,
vivos em Espírito. E, concluindo: pela comparação de Jesus, eles já
ressuscitaram, ou seja, estão vivendo a vida do Espírito; por isso, não
morrem mais.
Disso inferimos que, o que Jesus ensinou foi a ressurreição do
Espírito; não a do corpo físico, dogma de igrejas tradicionais. O que
também poderá ser confirmado em Paulo, quando diz: “a carne e o sangue
não poderão herdar o reino de Deus” (1Cor 15,50).
d) Ressurgir em Espírito influenciando outra pessoa
Mt 14,1-2: “Naquele tempo, Herodes, o tetrarca, veio a conhecer a fama de
Jesus e disse aos seus oficiais: ‘Certamente se trata de João Batista:
ele foi ressuscitado dos mortos e é por isso que os poderes operam
através dele!’”.
Essa passagem nós a estamos colocando para explicar a questão de
João Batista. Ora, se acreditavam que Jesus estava fazendo prodígios
porque “os poderes de João Batista operam através dele”, isso, num
português bem claro, seria a possibilidade de um morto exercer algum tipo
de influência sobre um vivo. Confirmando, pelo menos como uma hipótese
muito provável, que aceitavam a interferência dos mortos sobre os vivos,
ou seja, isso nada mais é do que a comunicação entre os dois planos da
vida.
Assim, também, podemos dizer que ressurreição, neste caso, seria a
volta de um morto à sua condição de espírito.
Podemos concluir que o conceito de ressurreição não é só o que se
nos têm passado pelas tradições religiosas. É mais abrangente.
Mas, ainda ficou uma questão no ar, poderá alguém nos falar. Sim,
deixamos de propósito para falar agora: Jesus não ressuscitou no corpo
físico? Não, apesar de que isso possa lhe causar um certo choque.
Explicaremos.
Sabemos que em várias oportunidades, Jesus disse aos seus
discípulos que ressuscitaria após sua morte. Preocupa-nos a compreensão
correta do que, em seu conceito, era a ressurreição. Vejamos a seguinte
passagem:
Lc 20,37-38: “E que os mortos ressuscitem, é Moisés quem dá a conhecer
através do episódio da Sarça Ardente, quando chama ao Senhor: o Deus de
Abraão, o Deus de Isaac e o Deus de Jacó. Ora, Deus não é Deus dos
mortos, mas dos vivos; para ele, então, todos são vivos”.
Veja bem; se Jesus, em se referindo a pessoas que haviam morrido,
diz que, para Deus, todos “são vivos” é porque nossa individualidade
sobrevive após a morte; em outras palavras, poderia estar se referindo à
nossa condição de espíritos eternos. Ao que chamamos de morte é apenas um
processo, ao qual nosso espírito, em seu regresso ao plano espiritual, de
onde veio, devolve à natureza os elementos constitutivos do corpo físico,
cuja finalidade era viabilizar o seu desenvolvimento moral e intelectual.
Em vista disso, é que devemos entender que a ressurreição de que Jesus
falava não era no corpo físico, e sim o ressurgir em espírito. Foi o que
aconteceu com ele. Depois de sua morte, esteve ainda na terra em seu
corpo espiritual, conforme se encontra em Atos: “Após sua paixão, ele
lhes mostrou, com muitas provas, que estava vivo, aparecendo-lhes durante
quarenta dias e falando-lhes do Reino de Deus” (At 1,3).
Sabemos, por informação dos próprios espíritos, que eles se
manifestam em seu corpo espiritual, denominado perispírito. Nele é
evidenciada toda a evolução moral do espírito; assim quanto mais luminoso
for, maior evolução e, via de conseqüência, quanto menos luz produzir,
mais inferior é o espírito. Deve ser pelo motivo de sua luminosidade que,
em algumas situações, Jesus não foi reconhecido pelos seus discípulos,
como observamos em Mc 16,12: “Depois disto, ele apareceu sob outra forma,
a dois deles que estavam a caminho do campo”. Também ao aparecer a Saulo,
na estrada de Damasco (At 9,3-9), veio em sua plenitude espiritual, fato
que impossibilitou aos que presenciavam o fenômeno de vê-lo; só ouviram
sua voz. Ao narrar esse acontecimento, Paulo diz: “... aí pelo meio-dia,
de repente uma grande luz que vinha do céu brilhou ao redor de mim” (At
22,6-9), o que confirma o que estamos dizendo sobre o perispírito
refletir a evolução moral.
A matéria, igualmente, não oferece nenhuma resistência a esse
corpo perispiritual. Temos a prova disso pelo fato de Jesus ter entrado
em ambiente fechado: “Oito dias depois, os discípulos se achavam de novo
na casa, e Tomé com eles. Jesus entrou, estando as portas fechadas, pôsse no meio deles e os cumprimentou: A paz esteja convosco!”. (Jo 20,26).
Podemos aceitar também que, em algumas circunstâncias, Jesus
poderia ter se materializado diante dos discípulos. É bem provável que
fez isso para se tornar tangível, tendo em vista que nem os discípulos
nem os de sua época tinham conhecimento dos mecanismos das manifestações
espirituais para entender o que estava acontecendo.
Temos que convir que, em certos relatos do Evangelho, existem
alguns exageros. Assim, determinados acontecimentos foram colocados
buscando valorizar os fatos ou a pessoa quem os produziu. Vejamos, como
exemplo, o que consta em Jo 21,25: “Há, porém, muitas outras coisas que
Jesus fez. Se todas elas fossem escritas uma por uma, creio que nem o
mundo inteiro poderia conter os livros que seriam escritos”.
Dito isso, vamos à 1ª carta aos Coríntios 15,3-6: “Eu vos
transmiti principalmente o que eu mesmo recebi: que Cristo morreu pelos
nossos pecados, segundo as Escrituras; que foi sepultado, e ressuscitou
ao terceiro dia, segundo as Escrituras; que apareceu a Cefas, depois aos
doze. Em seguida apareceu, de uma só vez, a mais de quinhentos irmãos,
dos quais a maior parte vive ainda hoje, embora alguns tenham morrido”.
Nenhum dos quatro evangelistas fala que Jesus teria aparecido a
quinhentas pessoas, assim podemos supor que pode ser apenas um exagero de
Paulo.
Por outro lado, até mesmo a questão de Jesus ter ficado quarenta
dias no meio dos discípulos poderíamos entender de outra forma, pois o
número 40 possuía, para eles, um significado importante; observe esses
exemplos:
- O povo hebreu permaneceu 40 anos no deserto (Nm 14,33-34);
- No dilúvio choveu 40 dias e 40 noites (Gn 7,12.17);
- Jacó ao morrer ficou 40 dias embalsamado (Gn 50,2-3);
- Moisés ficou no Sinai 40 dias e 40 noites, quando recebe os
Mandamentos (Ex 24,18);
- Deus, por castigo, entrega os israelitas aos filisteus por 40
anos (Jz 13,1);
- Em desafio um filisteu se apresenta ao exército hebreu por 40
dias (1Sm 17,16);
- Davi reinou por 40 anos (2Sm 5,4);
- O templo tinha 40 côvados.(1Rs 6,17);
- O reinado de Salomão durou 40 anos (1Rs 11,42);
- Elias, após comer o que um anjo lhe dá, caminha 40 dias e 40
noites (1Rs 19,8);
- Jesus jejuou 40 dias e 40 noites (Mt 4,2).
Carlos Torres Pastorino, no Livro A Sabedoria do Evangelho (vol.
I, p. 9), quando fala sobre como devemos fazer a interpretação da Bíblia,
coloca:
Os números possuem sentido muito simbólico, assim:
10 – diversos
40 – muitos
07 – grande número
70 – todos, sempre.
Então, conclui, esse autor: “não devem ser tomados à risca”.
Dessas aparições de Jesus podemos realçar duas coisas. A primeira,
é que há vida após a morte; caso contrário, ninguém poderia aparecer
depois de morto. A segunda, é que os mortos se comunicam com os vivos,
por mais que alguns ainda venham a dizer que isso não pode ocorrer; a nós
não resta dúvida alguma quanto a isso. Alguns querem sustentar que Jesus
tenha se manifestado com o corpo físico; entretanto isso não condiz com o
que podemos tirar dos acontecimentos.
Então o Mestre não ressuscitou no corpo físico? Reafirmamos: não,
apesar de que isso possa lhe causar um certo choque; no entanto,
analisemos:
Quando se apresenta a Maria de Madalena, Jesus diz a ela: “não me
toques porque ainda não subi para meu Pai” (Jo 20,17). Entretanto, em
relação a Tomé disse: “Põe aqui o teu dedo, vê as minhas mãos, aproxima
também a tua mão, põe-na no meu lado” (Jo 20,27), nos parecendo uma
contradição. Ainda fica mais difícil compreender quando colocam Jesus
dizendo “porque um espírito não tem carne, nem ossos, como vós vedes que
eu tenho” (Lc 24,39), e, na seqüência, ele está comendo peixe assado (Lc
24,42-43). Tudo isso nos parece uma montagem para justificar a idéia que
os hebreus tinham que a alma não sobreviveria sem o corpo físico.
No livro de Tobias, encontramos um anjo fazendo coisas comuns ao
seres humanos, inclusive comendo; mas, ao final, ele declara: “Eu sou
Rafael, um dos sete anjos... Vocês pensavam que eu comia, mas era só
aparência... E o anjo desapareceu. Quando se levantaram, não o puderam
ver mais”. (Tb 12,15-22). No caso de Jesus não poderia ser uma
materialização? Nessa hipótese, estaria justificada a questão de ser
tangível.
Mas, considerando que, em determinadas oportunidades, se manifesta
e ninguém o reconhece, somente acontecendo após algum gesto, como isso
poderia ocorrer se ele tivesse ressuscitado no corpo físico? Se fosse em
espírito poderia muito bem, pela sua evolução espiritual, transparecer
com tanta luz que não conseguiram mesmo identificá-lo prontamente. Teria
Ele, quando vivo, dito algo que negaria depois de morto, já que
acreditamos que o que pregou mesmo foi a ressurreição do Espírito?
Todos os evangelistas são unânimes em dizer que o corpo de Jesus
foi colocado num túmulo novo. Enquanto pela narrativa de Mateus (27,5960) e Marcos (15,46) o túmulo era de José de Arimatéia, Lucas (23,52) não
dá a entender isso e João (19,41-42) diz que o túmulo se localizava no
jardim perto do lugar onde Jesus fora crucificado, e o colocaram lá
porque estava perto, ficando, portanto, a idéia que não pertencia a José
de Arimatéia. Preste atenção: “colocaram” e não “enterraram”; não seria,
por conseguinte, um lugar provisório?
Em Atos (5,1-11), quando se narra a morte de Ananias, e, logo
após, a de Safira, sua mulher, está dito: “levaram para enterrar” (At
5,6.10), ou seja, em definitivo. Assim, por falta de maiores
comprovações, podemos concluir que o lugar onde colocaram o corpo de
Jesus não seria o seu túmulo definitivo, o que, provavelmente, foi feito
depois; daí, a razão do desaparecimento de seu corpo, hipótese mais
provável, pelas narrativas.
Por outro lado, no domingo de manhã, dois dias depois da morte de
Jesus, algumas mulheres compraram perfumes e foram ao sepulcro para
embalsamar o corpo (Mc 16,1; Lc 24,1), reforçando a idéia de que foi
colocado ali provisoriamente. No relato de João (20,1-2) somente Maria
Madalena foi ao sepulcro, sem dizer o motivo e que, ao encontrá-lo vazio,
diz: “Retiraram do sepulcro o Senhor e não sabemos onde o puseram”.
(20,2), ou seja, falou exatamente o que se esperava acontecer para um
lugar provisório.
Por que estamos dizendo isso? Quem vai nos tirar desse impasse? Em
Atos (16,7) Paulo e Timóteo tentam entrar na Bitínia; aí diz o texto:
“mas o Espírito de Jesus os impediu”. Em 2Cor 3,17, Paulo afirma: “O
Senhor é Espírito”. Pedro nos diz que Jesus: “...sofreu a morte em seu
corpo, mas recebeu vida pelo Espírito” (1Pe 3,18) e nos dá outra
informação dizendo que Jesus foi pregar o Evangelho aos mortos (1Pe 4,6);
se isso aconteceu, Jesus só poderia ter feito em Espírito. Assim, tudo se
converge para a idéia de que Jesus, após sua morte, ressuscitou em
Espírito.
A conclusão final, portanto, fica-nos que a ressurreição contida
na Bíblia é a do Espírito e não a do corpo. E sendo a do Espírito, a
conseqüência é a influência do Espírito sobre um encarnado.
Fica aí evidenciada a necessidade de uma exegese mais realista dos
fatos acontecidos, já que aquilo que os teólogos nos colocaram não condiz
com a realidade.
Jesus ficava calado?
Vez por outra, ouvimos a afirmativa de que não devemos responder a
isso ou àquilo, pois Jesus não respondeu a ninguém, sempre permanecia
calado. Interessante como certas coisas facilmente são transformadas em
mito. O mito, como sabemos, é algo que prolifera e, mesmo que seja o
maior erro, torna-se uma verdade para muitos. Isso acontece, pois,
normalmente, não somos dados a questionamentos, preferindo seguir pela
“trilha do bezerro” do que abrir novo caminho pela mata.
Recebemos recentemente um e-mail em que uma leitora nos propunha
uma reflexão sobre nossa atitude de sempre defender a Doutrina Espírita
dos ataques gratuitos feitos pelos detratores de plantão, nos sugerindo
que, talvez, fosse melhor que ficássemos calados, seguindo o exemplo do
Mestre.
Sinceramente, até então não tínhamos pensado mais seriamente sobre
isso; mas, dessa vez, não sabemos o porquê, resolvemos ir à fonte para
conhecer como exatamente as coisas se deram. Assim, caro leitor,
apresentamos agora o fruto de nosso estudo sobre esse assunto.
Iremos analisar várias passagens bíblicas a fim de podermos saber
como era realmente o comportamento de Jesus: ficava mesmo calado? Não!
Quem tiver curiosidade de ler mais detidamente o Evangelho verá que a
liderança religiosa da época – escribas, fariseus, saduceus, sacerdotes e
anciãos do povo - não deram tréguas a Jesus. Entretanto, as narrativas
nos dão conta de que o Mestre jamais ficou calado, sempre os respondeu à
altura e nem mesmo os poupou de, por várias vezes, chamá-los de
hipócritas e em uma oportunidade os comparou a sepulcros caiados, brancos
por fora e podres por dentro. Isso, a nosso ver, não é ficar calado.
Ao reler essas passagens foi que nos demos conta disso. Veja, se
temos ou não razão:
Mt 5,20: “Com efeito, eu lhes garanto: se a justiça de vocês não superar
a dos doutores da Lei e dos fariseus, vocês não entrarão no Reino do
Céu".
Percebe-se por aqui que Jesus, em relação aos escribas e fariseus,
já os tomava a conta de pessoas às quais não devíamos seguir o exemplo,
cuja justiça não deveria ser imitada.
Mt 12,1-8: “Naquele tempo, Jesus passou por uns campos de trigo, num dia
de sábado. Seus discípulos ficaram com fome, e começaram a apanhar
espigas para comer. Vendo isso, os fariseus disseram: 'Eis que os teus
discípulos estão fazendo o que não é permitido fazer em dia de sábado!'
Jesus perguntou aos fariseus: 'Vocês nunca leram o que Davi e seus
companheiros fizeram, quando estavam sentindo fome? Como ele entrou na
casa de Deus, e eles comeram os pães oferecidos a Deus? Ora, nem para
Davi, nem para os que estavam com ele, era permitido comer os pães
reservados apenas aos sacerdotes. Ou vocês não leram também, na Lei, que
em dia de sábado, no Templo, os sacerdotes violam o sábado, sem cometer
falta? Pois eu digo a vocês: aqui está quem é maior do que o Templo. Se
vocês tivessem compreendido o que significa: 'Quero a misericórdia e não
o sacrifício', vocês não teriam condenado estes homens que não estão em
falta. Portanto, o Filho do Homem é senhor do sábado'”.
Essa questão de fazer algo no sábado era para eles um ponto de
honra; daí, não perdiam oportunidade de importunar Jesus, quando ele
fazia algo nesse dia. Ao ser questionado, sobre a atitude de seus
discípulos em providenciar alimentação num dia de sábado, Jesus
respondeu-lhes à altura, não deixando passar batido, como se diria
popularmente.
Mt 12,9-14: “Jesus saiu desse lugar, e foi para a sinagoga deles. Aí
havia um homem com uma das mãos paralisada. E, para poderem acusar Jesus,
os fariseus perguntaram: 'É permitido fazer cura em dia de sábado?' Jesus
respondeu: 'Suponham que um de vocês tem uma só ovelha, e ela cai num
buraco em dia de sábado. Será que ele não a pegaria e não a tiraria de
lá? Ora, um homem vale muito mais do que uma ovelha! Logo, é permitido
fazer uma boa ação em dia de sábado'. Então Jesus disse ao homem:
'Estenda a mão'. O homem estendeu a mão, e ela ficou boa e sadia como a
outra. Logo depois, os fariseus saíram e fizeram um plano para matar
Jesus”.
Na continuação da narrativa anterior vemos Jesus curando num dia
de sábado; mas, nem numa situação de estar praticando o bem, os
intolerantes de sua época achavam certa essa atitude. Vemos, hoje em dia,
os fundamentalistas agindo quase que da mesma forma. Os tempos mudam,
mas, para muitos, é como se isso não ocorresse, já que ficam apegados ao
passado.
Mt 12,22-37: “Então levaram a Jesus um endemoninhado cego e mudo. Jesus o
curou, de modo que ele falava e enxergava. E todas as multidões ficaram
admiradas, e perguntavam: 'Será que ele não é o filho de Davi?' Os
fariseus ouviram isso, e disseram: 'Ele expulsa os demônios através de
Belzebu, o príncipe dos demônios!' Sabendo o que eles estavam pensando,
Jesus disse: 'Todo reino dividido em grupos que lutam entre si, será
arruinado. E toda cidade ou família dividida em grupos que brigam entre
si, não poderá durar. E se Satanás expulsa Satanás, ele está dividido
contra si mesmo. Como, então, o seu reino poderá sobreviver? Se é através
de Belzebu que eu expulso os demônios, através de quem os filhos de vocês
expulsam os demônios? Por isso, serão eles mesmos que julgarão vocês. Mas
se é através do Espírito de Deus que eu expulso os demônios, então o
Reino de Deus chegou para vocês. Ainda: como alguém pode entrar na casa
de um homem forte, e se apoderar de suas coisas, se antes não amarrar o
homem forte? Só depois poderá roubar a sua casa. Quem não está comigo,
está contra mim. E quem não recolhe comigo, espalha. É por isso que eu
digo a vocês: todo pecado e blasfêmia será perdoado aos homens; mas a
blasfêmia contra o Espírito não será perdoada. Quem disser alguma coisa
contra o Filho do Homem, será perdoado. Mas quem disser algo contra o
Espírito Santo, nunca será perdoado, nem neste mundo, nem no mundo que há
de vir. Se vocês plantarem uma árvore boa, o fruto dela será bom; mas se
vocês plantarem uma árvore má, também o fruto dela será mau, porque é
pelo fruto que se conhece a árvore. Raça de cobras venenosas! Se vocês
são maus, como podem dizer coisas boas? Pois a boca fala aquilo de que o
coração está cheio. O homem bom tira coisas boas do seu bom tesouro, e o
homem mau tira coisas más do seu mau tesouro. Eu digo a vocês: no dia do
julgamento, todos devem prestar contas de cada palavra inútil que tiverem
falado. Porque você será justificado por suas próprias palavras, e será
condenado por suas próprias palavras'".
Nem ainda saímos do capítulo doze e já encontramos mais uma outra
situação em que a liderança religiosa, cega no seu saber, questiona a
Jesus, quando o Mestre liberta uma criatura endemoninhada. Para seus
adversários ele fazia isso porque era o príncipe dos demônios, ao que
Jesus lhes responde com maestria. E, destacamos, ao final ainda os chama
de raça de cobras venenosas, atiçando a ira deles. Daqui, percebemos que
também a liderança religiosa nos dias atuais faz exatamente a mesma coisa
em relação ao Espiritismo, que, apesar de libertar muitas pessoas das
influências espirituais inferiores, é taxado de “obra do demônio”.
Deveríamos repetir Jesus dizendo-lhes: raça de víboras?
Mt 12,38-42: “Então alguns doutores da Lei e fariseus disseram a Jesus:
'Mestre, queremos ver um sinal realizado por ti'. Jesus respondeu: 'Uma
geração má e adúltera busca um sinal, mas nenhum sinal lhe será dado, a
não ser o sinal do profeta Jonas. De fato, assim como Jonas passou três
dias e três noites no ventre da baleia, assim também o Filho do Homem
passará três dias e três noites no seio da terra. No dia do julgamento,
os homens da cidade de Nínive ficarão de pé contra esta geração, e a
condenarão. Porque eles fizeram penitência quando ouviram Jonas pregar. E
aqui está quem é maior do que Jonas. No dia do julgamento, a rainha do
Sul se levantará contra esta geração, e a condenará. Porque ela veio de
uma terra distante para ouvir a sabedoria de Salomão. E aqui está quem é
maior do que Salomão'".
Aos doutores da Lei e aos fariseus que queriam um sinal como prova
de que Jesus era mesmo o Messias, a resposta de Jesus não se fez esperar;
tanto que, nessa ocasião, os chama de geração má e adúltera.
Mt 15,1-14: “Alguns fariseus e diversos doutores da Lei, de Jerusalém, se
aproximaram de Jesus, e perguntaram: 'Por que os teus discípulos
desobedecem à tradição dos antigos? De fato, comem pão sem lavar as
mãos!' Jesus respondeu: 'Por que é que vocês também desobedecem ao
mandamento de Deus em nome da tradição de vocês? Pois Deus disse: 'Honre
seu pai e sua mãe'. E ainda: 'Quem amaldiçoa o pai ou a mãe, deve
morrer'. E no entanto vocês ensinam que alguém pode dizer ao seu pai e à
sua mãe: 'O sustento que vocês poderiam receber de mim é consagrado a
Deus'. E essa pessoa fica dispensada de honrar seu pai ou sua mãe. Assim
vocês esvaziaram a palavra de Deus com a tradição de vocês. Hipócritas!
Isaías profetizou muito bem sobre vocês, quando disse: 'Esse povo me
honra com os lábios, mas o coração deles está longe de mim. Não adianta
nada eles me prestarem culto, porque ensinam preceitos humanos.' Em
seguida, Jesus chamou a multidão para perto dele, e disse: 'Escutem e
compreendam. Não é o que entra na boca que torna o homem impuro, mas o
que sai da boca, isso torna o homem impuro'. Então os discípulos se
aproximaram, e disseram a Jesus: 'Sabes que os fariseus ficaram
escandalizados com o que disseste?' Jesus respondeu: 'Toda planta que não
foi plantada pelo meu Pai celeste será arrancada. Não se preocupem com
eles. São cegos guiando cegos. Ora, se um cego guia outro cego, os dois
cairão num buraco'”.
A liderança religiosa tinha um apego exagerado à tradição, fazia
dela uma questão religiosa; daí se espantarem quando os discípulos não
lavaram as mãos antes de comerem. Novamente recebem de Jesus uma resposta
à altura, que os chama de hipócritas e guias cegos.
Mt 16,5-12: “Quando atravessaram para o outro lado do mar, os discípulos
se esqueceram de levar pães. Então Jesus disse: Prestem atenção, e tomem
cuidado com o fermento dos fariseus e dos saduceus'. Os discípulos
pensavam consigo mesmos: 'É porque não trouxemos pães'. Mas Jesus
percebeu, e perguntou: 'Por que vocês estão pensando na falta de pães,
homens de pouca fé? Vocês ainda não compreendem, nem mesmo se lembram dos
cinco pães para cinco mil homens, e de quantos cestos vocês recolheram?
Nem dos sete pães para quatro mil homens, e quantos cestos vocês
recolheram? Como é que não compreendem que eu não estava falando de pão
com vocês? Tomem cuidado com o fermento dos fariseus e saduceus'. Então
eles perceberam que Jesus não tinha falado para tomar cuidado com o
fermento de pão, mas com o ensinamento dos fariseus e saduceus”.
Aqui Jesus recomenda aos discípulos para não seguirem o
ensinamento dos fariseus e saduceus. Ficamos a pensar se Jesus não
manteria esse discurso à liderança religiosa atual! Assim, com essa
atitude, Jesus deixa claro que os ensinamentos deles não são de cunho
divino, mas apenas fruto de seus próprios interesses, tal e qual está
acontecendo nos dias atuais.
Mt 19,1-12: “Quando Jesus acabou de dizer essas palavras, ele partiu da
Galiléia, e foi para o território da Judéia, no outro lado do rio Jordão.
Numerosas multidões o seguiram, e Jesus aí as curou. Alguns fariseus se
aproximaram de Jesus, e perguntaram, para o tentar: 'É permitido ao homem
divorciar-se de sua mulher por qualquer motivo?' Jesus respondeu: 'Vocês
nunca leram que o Criador, desde o início, os fez homem e mulher? E que
ele disse: 'Por isso, o homem deixará seu pai e sua mãe, e se unirá à sua
mulher, e os dois serão uma só carne'? Portanto, eles já não são dois,
mas uma só carne. Portanto, o que Deus uniu, o homem não deve separar'.
Os fariseus perguntaram: 'Então, como é que Moisés mandou dar certidão de
divórcio ao despedir a mulher?' Jesus respondeu: 'Moisés permitiu o
divórcio, porque vocês são duros de coração. Mas não foi assim desde o
início. Eu, por isso, digo a vocês: quem se divorciar de sua mulher, a
não ser em caso de fornicação, e casar-se com outra, comete adultério'.
Os discípulos disseram a Jesus: 'Se a situação do homem com a mulher é
assim, então é melhor não se casar'. Jesus respondeu: 'Nem todos entendem
isso, a não ser aqueles a quem é concedido. De fato, há homens castrados,
porque nasceram assim; outros, porque os homens os fizeram assim; outros,
ainda, se castraram por causa do Reino do Céu. Quem puder entender,
entenda'".
Obviamente, que nesse episódio, os fariseus não estavam querendo
se instruir, mas queriam colocar Jesus em situação difícil, ou seja, tudo
que dissesse seria usado contra ele. Esse episódio é semelhante ao que
nos acontece agora, quando algum fundamentalista emite perguntas
capciosas, intentando colocar-nos contra a “palavra de Deus”.
Mt 21,23-27: “Jesus voltou ao Templo. Enquanto ensinava, os chefes dos
sacerdotes e os anciãos do povo se aproximaram, e perguntaram: 'Com que
autoridade fazes tais coisas? Quem foi que te deu essa autoridade?' Jesus
respondeu: 'Eu também vou fazer uma pergunta para vocês. Se responderem,
eu também direi a vocês com que autoridade faço isso. De onde era o
batismo de João? Do céu ou dos homens?' Mas eles raciocinavam, pensando:
'Se respondemos que vinha do céu, ele vai dizer: 'Então, por que vocês
não acreditaram em João?' Se respondemos que vinha dos homens, temos medo
da multidão, pois todos consideram João como um profeta'. Eles então
responderam a Jesus: 'Não sabemos'. E Jesus disse a eles: 'Pois eu também
não vou dizer a vocês com que autoridade faço essas coisas'".
A todo momento Jesus era questionado quanto à sua autoridade, ao
que sempre respondia à altura dos seus interlocutores, de forma que os
deixava acuados perante suas próprias colocações. Diríamos, popularmente:
“perderam uma ótima ocasião de ficar calados”.
Mt 21,33-46: "Escutem essa outra parábola: Certo proprietário plantou uma
vinha, cercou-a, fez um tanque para pisar a uva, e construiu uma torre de
guarda. Depois arrendou a vinha para alguns agricultores, e viajou para o
estrangeiro. Quando chegou o tempo da colheita, o proprietário mandou
seus empregados aos agricultores para receber os frutos. Os agricultores,
porém, agarraram os empregados, bateram num, mataram outro, e apedrejaram
o terceiro. O proprietário mandou de novo outros empregados, em maior
número que os primeiros. Mas eles os trataram da mesma forma. Finalmente,
o proprietário enviou-lhes o seu próprio filho, pensando: 'Eles vão
respeitar o meu filho'. Os agricultores, porém, ao verem o filho,
pensaram: 'Esse é o herdeiro. Venham, vamos matá-lo, e tomar posse da sua
herança'. Então agarraram o filho, o jogaram para fora da vinha, e o
mataram. Pois bem: quando o dono da vinha voltar, o que irá fazer com
esses agricultores?' Os chefes dos sacerdotes e os anciãos do povo
responderam: 'É claro que mandará matar de modo violento esses perversos,
e arrendará a vinha a outros agricultores, que lhe entregarão os frutos
no tempo certo'. Então Jesus disse a eles: 'Vocês nunca leram na
Escritura: 'A pedra que os construtores deixaram de lado tornou-se a
pedra mais importante; isso foi feito pelo Senhor, e é admirável aos
nossos olhos'? Por isso eu lhes afirmo: o Reino de Deus será tirado de
vocês, e será entregue a uma nação que produzirá seus frutos. Quem cair
sobre essa pedra, ficará em pedaços; e aquele sobre quem ela cair, será
esmagado'. Os chefes dos sacerdotes e os fariseus ouviram as parábolas de
Jesus, e compreenderam que estava falando deles. Procuraram prender
Jesus, mas ficaram com medo das multidões, pois elas consideravam Jesus
um profeta”.
Constata-se, também, que Jesus não deixava por menos quando se
defrontava com essa “raça de cobras venenosas”. Aqui, percebe-se,
claramente, que a parábola é dirigida a eles; tal fato, nitidamente
percebido por todos, lhes aumentava a raiva que nutriam por Jesus.
Aguardavam, assim, o momento propício para lhe darem o venenoso bote.
Mt 22,15-22: “Então os fariseus se retiraram, e fizeram um plano para
apanhar Jesus em alguma palavra. Mandaram os seus discípulos, junto com
alguns partidários de Herodes, para dizerem a Jesus: 'Mestre, sabemos que
tu és verdadeiro, e que ensinas de fato o caminho de Deus. Tu não dás
preferência a ninguém, porque não levas em conta as aparências. Dize-nos,
então, o que pensas: É lícito ou não é, pagar imposto a César?' Jesus
percebeu a maldade deles, e disse: 'Hipócritas! Por que vocês me tentam?
Mostrem-me a moeda do imposto'. Levaram então a ele a moeda. E Jesus
perguntou: 'De quem é a figura e inscrição nesta moeda?' Eles
responderam: 'É de César'. Então Jesus disse: 'Pois dêem a César o que é
de César, e a Deus o que é de Deus'. Ouvindo isso, eles ficaram
admirados. Deixaram Jesus, e foram embora”.
Nunca perderam uma oportunidade de colocar Jesus numa situação
difícil, sendo isso cabalmente denotado nessa situação. Percebendo a
segunda intenção deles, Jesus, sem meias palavras, disse-lhes:
“hipócritas!” Não poucas vezes os chamou desse modo, apontando-lhes a
falsidade.
Mt 22,23-33: “Os saduceus afirmam que não existe ressurreição. Alguns
deles se aproximaram de Jesus, e lhe propuseram este caso: 'Mestre,
Moisés disse: 'Se alguém morrer sem ter filhos, o irmão desse homem deve
casar-se com a viúva, a fim de que possam ter filhos em nome do irmão que
morreu'. Pois bem, havia entre nós sete irmãos. O primeiro casou-se, e
morreu sem ter filhos, deixando a mulher para seu irmão. Do mesmo modo
aconteceu com o segundo e o terceiro, e assim com os sete. Depois de
todos eles, morreu também a mulher. Na ressurreição, de qual dos sete ela
será mulher? De fato, todos a tiveram'. Jesus respondeu: 'Vocês estão
enganados, porque não conhecem as Escrituras, nem o poder de Deus. De
fato, na ressurreição, os homens e as mulheres não se casarão, pois serão
como os anjos do céu. E, quanto à ressurreição, será que não leram o que
Deus disse a vocês: 'Eu sou o Deus de Abraão, o Deus de Isaac e o Deus de
Jacó'? Ora, ele não é Deus dos mortos, mas dos vivos'. Ouvindo isso, as
multidões ficaram impressionadas com o ensinamento de Jesus”.
A pergunta dos saduceus não tinha por objetivo esclarecerem-se
sobre o assunto, mas, tão somente, constatar se Jesus possuía a
capacidade de se explicar, já que, intimamente, acreditavam que não; por
conseguinte, adveio o desejo de pegá-lo com suas próprias palavras.
Mt 22,34-40: “Os fariseus ouviram dizer que Jesus tinha feito os saduceus
se calarem. Então eles se reuniram em grupo, e um deles perguntou a Jesus
para o tentar: 'Mestre, qual é o maior mandamento da Lei?' Jesus
respondeu: 'Ame ao Senhor seu Deus com todo o seu coração, com toda a sua
alma, e com todo o seu entendimento. Esse é o maior e o primeiro
mandamento. O segundo é semelhante a esse: Ame ao seu próximo como a si
mesmo. Toda a Lei e os Profetas dependem desses dois mandamentos”.
Nem bem deixou os saduceus acuados, aparecem-lhe os fariseus, que,
no íntimo, pensavam serem mais capazes que os primeiros. Assim, fizeram
um novo questionamento a Jesus. Com certeza orgulhosos que eram,
pensavam, intimamente, conduzirem Jesus àquilo que obstinadamente
queriam: usar as palavras do Mestre para obterem um bom motivo de o
matarem ou, na pior das hipóteses, confrontá-lo com o poder político.
Mt 22,41-46: “Os fariseus estavam reunidos, e Jesus lhes perguntou: 'O
que é que vocês acham do Messias? Ele é filho de quem?' Os fariseus
responderam: 'De Davi'. Então Jesus disse: 'Como é que Davi, pelo
Espírito, o chama Senhor, quando afirma: 'O Senhor disse ao meu Senhor:
sente-se à minha direita, até que eu ponha os seus inimigos debaixo dos
seus pés'? Se o próprio Davi o chama de Senhor, como ele pode ser seu
filho?' E ninguém podia responder a Jesus uma só palavra. Desse dia em
diante, ninguém mais se arriscou a fazer perguntas a Jesus”.
Nessa passagem, verifica-se que Jesus é quem os indaga. Agindo
sabiamente, os coloca em uma situação embaraçosa. O feitiço virou contra
o feiticeiro, diríamos. Enfrenta-os destemido, mesmo conhecendo suas
reais intenções; mas não os deixava sem respostas às suas indagações, por
mais difíceis que fossem.
Mt 23,1-12: “Jesus falou às multidões e aos seus discípulos: 'Os doutores
da Lei e os fariseus têm autoridade para interpretar a Lei de Moisés. Por
isso, vocês devem fazer e observar tudo o que eles dizem. Mas não imitem
suas ações, pois eles falam e não praticam. Amarram pesados fardos e os
colocam no ombro dos outros, mas eles mesmos não estão dispostos a movêlos, nem sequer com um dedo. Fazem todas as suas ações só para serem
vistos pelos outros. Vejam como eles usam faixas largas na testa e nos
braços, e como põem na roupa longas franjas, com trechos da Escritura.
Gostam dos lugares de honra nos banquetes e dos primeiros lugares nas
sinagogas; gostam de ser cumprimentados nas praças públicas, e de que as
pessoas os chamem mestre. Quanto a vocês, nunca se deixem chamar mestre,
pois um só é o Mestre de vocês, e todos vocês são irmãos. Na terra, não
chamem a ninguém Pai, pois um só é o Pai de vocês, aquele que está no
céu. Não deixem que os outros chamem vocês líderes, pois um só é o Líder
de vocês: o Messias. Pelo contrário, o maior de vocês deve ser aquele que
serve a vocês. Quem se eleva será humilhado, e quem se humilha será
elevado'”.
Ao recomendar a todos que não agissem como os doutores da lei e
fariseus, implicitamente, estava chamando-os, indubitavelmente, de
hipócritas. Jesus vai mais longe quando menciona que gostavam de serem
vistos, dos primeiros lugares, de serem destacados na multidão, deixando
a descoberto todo orgulho que acalentavam em seus corações. Podemos
acrescentar que usavam a religião para esse fim, fato comum, também, nos
dias de hoje, quando essa liderança religiosa, que se vê por aí, buscar
na religião um veículo de satisfação de seu próprio interesse, ao invés
de se preocupar, efetivamente, com a salvação dos fiéis.
Mt 23,13-36: "Ai de vocês, doutores da Lei e fariseus hipócritas! Vocês
fecham o Reino do Céu para os homens. Nem vocês entram, nem deixam entrar
aqueles que desejam. Ai de vocês, doutores da Lei e fariseus hipócritas!
Vocês exploram as viúvas, e roubam suas casas e, para disfarçar, fazem
longas orações! Por isso, vocês vão receber uma condenação mais severa.
Ai de vocês, doutores da Lei e fariseus hipócritas! Vocês percorrem o mar
e a terra para converter alguém, e quando conseguem, o tornam merecedor
do inferno duas vezes mais do que vocês. Ai de vocês, guias cegos! Vocês
dizem: 'Se alguém jura pelo Templo, não fica obrigado, mas se alguém jura
pelo ouro do Templo, fica obrigado'. Irresponsáveis e cegos! O que vale
mais: o ouro ou o Templo que santifica o ouro? Vocês dizem também: 'Se
alguém jura pelo altar, não fica obrigado, mas se alguém jura pela oferta
que está sobre o altar, esse fica obrigado'. Cegos! O que vale mais: a
oferta ou o altar que santifica a oferta? De fato, quem jura pelo altar,
jura por ele e por tudo o que está sobre ele. E quem jura pelo Templo,
jura por ele e por Deus que habita no Templo. E quem jura pelo céu, jura
pelo trono de Deus e por aquele que nele está sentado. Ai de vocês,
doutores da Lei e fariseus hipócritas! Vocês pagam o dízimo da hortelã,
da erva-doce e do cominho, e deixam de lado os ensinamentos mais
importantes da Lei, como a justiça, a misericórdia e a fidelidade. Vocês
deveriam praticar isso, sem deixar aquilo. Guias cegos! Vocês coam um
mosquito, mas engolem um camelo. Ai de vocês, doutores da Lei e fariseus
hipócritas! Vocês limpam o copo e o prato por fora, mas por dentro vocês
estão cheios de desejos de roubo e cobiça. Fariseu cego! Limpe primeiro o
copo por dentro, e assim o lado de fora também ficará limpo. Ai de vocês,
doutores da Lei e fariseus hipócritas! Vocês são como sepulcros caiados:
por fora parecem bonitos, mas por dentro estão cheios de ossos de mortos
e podridão! Assim também vocês: por fora, parecem justos diante dos
outros, mas por dentro estão cheios de hipocrisia e injustiça. Ai de
vocês, doutores da Lei e fariseus hipócritas! Vocês constroem sepulcros
para os profetas, e enfeitam os túmulos dos justos, e dizem: 'Se
tivéssemos vivido no tempo de nossos pais, não teríamos sido cúmplices na
morte dos profetas'. Com isso, vocês confessam que são filhos daqueles
que mataram os profetas. Pois bem: acabem de encher a medida dos pais de
vocês! Serpentes, raça de cobras venenosas! Como é que vocês poderiam
escapar da condenação do inferno? É por isso que eu envio a vocês
profetas, sábios e doutores: a uns vocês matarão e crucificarão, a outros
torturarão nas sinagogas de vocês, e os perseguirão de cidade em cidade.
Desse modo, virá sobre vocês todo o sangue justo derramado sobre a terra,
desde o sangue de Abel, o justo, até o sangue de Zacarias, filho de
Baraquias, que vocês assassinaram entre o santuário e o altar. Eu garanto
a vocês: tudo isso acontecerá a essa geração".
Essa é, talvez, a passagem em que mais Jesus chamou a liderança
religiosa de hipócrita. Aqui, desnudou aqueles falsos líderes,
demonstrando que realmente preocupavam-se tão somente com aquilo que
pudesse satisfazer seus desejos, explorando, para isso, a fé do povo.
Infelizmente, tal forma de proceder está presente nos “lideres”
contemporâneos.
Mc 2,1-12: “Alguns dias depois, Jesus entrou de novo na cidade de
Cafarnaum. Logo se espalhou a notícia de que Jesus estava em casa. E
tanta gente se reuniu aí que já não havia lugar nem na frente da casa. E
Jesus anunciava a palavra. Levaram então um paralítico, carregado por
quatro homens. Mas eles não conseguiam chegar até Jesus, por causa da
multidão. Então fizeram um buraco no teto, bem em cima do lugar onde
Jesus estava, e pela abertura desceram a cama em que o paralítico estava
deitado. Vendo a fé que eles tinham, Jesus disse ao paralítico: 'Filho,
os seus pecados estão perdoados'. Ora, alguns doutores da Lei estavam aí
sentados, e começaram a pensar: 'Por que este homem fala assim? Ele está
blasfemando! Ninguém pode perdoar pecados, porque só Deus tem poder para
isso!' Jesus logo percebeu o que eles estavam pensando no seu íntimo, e
disse: 'Por que vocês pensam assim? O que é mais fácil dizer ao
paralítico: 'Os seus pecados estão perdoados', ou dizer: 'Levante-se,
pegue a sua cama e ande?' Pois bem, para que vocês saibam que o Filho do
Homem tem poder na terra para perdoar pecados, - disse Jesus ao
paralítico eu ordeno a você: Levante-se, pegue a sua cama e vá para
casa'. O paralítico então se levantou e, carregando a sua cama, saiu
diante de todos. E todos ficaram muito admirados e louvaram a Deus
dizendo: 'Nunca vimos uma coisa assim!'".
Algumas vezes esses críticos não tinham coragem de externar suas
idéias; mas, mesmo assim, no íntimo, o faziam. Jesus, conhecendo-lhes o
pensamento, rebate essa crítica “mental” para não perder mais essa
oportunidade de provar-lhes a incoerência de suas atitudes.
Mc 2,15-17: “Mais tarde, Jesus estava comendo na casa de Levi. Havia
vários cobradores de impostos e pecadores na mesa com Jesus e seus
discípulos; com efeito, eram muitos os que o seguiam. Alguns doutores da
Lei, que eram fariseus, viram que Jesus estava comendo com pecadores e
cobradores de impostos. Então eles perguntaram aos discípulos: 'Por que
Jesus come e bebe junto com cobradores de impostos e pecadores?' Jesus
ouviu e respondeu: 'As pessoas que têm saúde não precisam de médico, mas
só as que estão doentes. Eu não vim para chamar justos, e sim
pecadores'".
Mas não havia nada que Jesus fizesse que agradasse essa liderança
religiosa... Tudo quanto fazia era motivo de críticas. Será que é mera
coincidência o que está acontecendo nos dias atuais em relação ao
Espiritismo, ou será que os líderes religiosos de hoje são os saduceus e
fariseus de antanho em nova reencarnação?
Mc 2,18-22: “Os discípulos de João Batista e os fariseus estavam fazendo
jejum. Então alguns perguntaram a Jesus: 'Por que os discípulos de João e
os discípulos dos fariseus fazem jejum e os teus discípulos não fazem?'
Jesus respondeu: 'Vocês acham que os convidados de um casamento podem
fazer jejum enquanto o noivo está com eles? Enquanto o noivo está
presente, os convidados não podem fazer jejum. Mas vão chegar dias em que
o noivo será tirado do meio deles. Nesse dia eles vão jejuar. Ninguém põe
um remendo de pano novo em roupa velha; porque o remendo novo repuxa o
pano e o rasgo fica maior ainda. Ninguém coloca vinho novo em barris
velhos; porque o vinho novo arrebenta os barris velhos, e o vinho e os
barris se perdem. Por isso, vinho novo deve ser colocado em barris
novos'".
O apego às determinações de Moisés também era um dos motivos pelos
quais eles não deixavam de criticar as atitudes de Jesus, já que o Mestre
não parecia muito disposto a seguir ao pé da letra tais recomendações.
Analisando a sua resposta podemos entender que Jesus claramente sobrepõe
seus ensinamentos aos de Moisés; todavia, apesar disso ser tão óbvio, a
liderança religiosa finge não ver. Para ela é interessante manter também
a legislação anterior, pois é desta a premissa de que só se salvará
aquele fiel que, pontualmente, pagar o dízimo.
Lc 16,14-15: “Os fariseus, que são amigos do dinheiro, ouviam tudo isso,
e caçoavam de Jesus. Então Jesus disse para eles: 'Vocês gostam de
parecer justos diante dos homens, mas Deus conhece os corações de vocês.
De fato, o que é importante para os homens, é detestável para Deus'”.
Mais uma vez, Jesus ressalta a hipocrisia dos fariseus. Assim,
como ocorria àquela época, a liderança religiosa atual caçoa daqueles que
vêm justamente tentar restaurar os verdadeiros ensinamentos de Jesus
mediante o Espiritismo.
Lc 19,37-40: “Quando Jesus estava junto à descida do monte das Oliveiras,
toda a multidão de discípulos começaram, alegres, a louvar a Deus em voz
alta, por todos os milagres que tinham visto. E dizia: 'Bendito seja
aquele que vem como Rei, em nome do Senhor! Paz no céu e glória no mais
alto do céu'. No meio da multidão, alguns fariseus disseram a Jesus:
'Mestre, manda que teus discípulos se calem'. Jesus respondeu: 'Eu digo a
vocês: se eles se calarem, as pedras gritarão'”.
Nota-se que, até mesmo o fato de Jesus ter sido aclamado pelos
seus discípulos, incomodava os fariseus. Mas não ficaram sem resposta, já
que esse é o estilo do Mestre, que perfeitamente estamos identificando ao
longo desse estudo.
Aqui, terminamos as passagens em que Jesus responde a todas as
críticas dos seus opositores, dando, a todas elas, a devida resposta. Não
os poupou ao chamá-los de hipócritas, raça de víboras, entre outras
denominações. Entretanto, agora vamos apresentar uma atitude ainda mais
enérgica de Jesus, a qual demonstra, perfeitamente, que ele não agia como
um manso cordeirinho, conforme querem que pensemos. Vejamos:
Mt 21,12-13: “Jesus entrou no Templo, e expulsou todos os que vendiam e
compravam no Templo. Derrubou as mesas dos cambistas e as cadeiras dos
vendedores de pombas. E disse: 'Está nas Escrituras: 'Minha casa será
chamada casa de oração'. No entanto, vocês fizeram dela uma toca de
ladrões".
Nesse ponto, mais energicamente ainda, agiu Jesus ao expulsar do
Templo os cambistas e todos os que estavam ali a vender, levando-nos a
concluir que ele não era tão manso assim como querem pintá-lo. Acaba por
insinuar que eram todos eles ladrões na toca.
Bom; até agora somente apontamos passagens demonstrando que Jesus
não cultivava o silêncio. Alguém poderia nos perguntar: “será que você
não está distorcendo os fatos, considerando que, possivelmente, em algum
momento, ele tenha mesmo silenciado?” A resposta é negativa: a verdade
joga por terra toda essa idéia que tentam nos passar, ou seja, de um
Mestre sem personalidade, pois, para nós, quem age tão mansamente assim é
desprovido dessa característica. Vejamos então esta passagem:
Mt 27,1-2.11-14: “De manhã cedo, todos os chefes dos sacerdotes e os
anciãos do povo convocaram um conselho contra Jesus, para o condenarem à
morte. Eles o amarraram e o levaram, e o entregaram a Pilatos, o
governador. Jesus foi posto diante do governador, e este o interrogou:
'Tu és o rei dos judeus?' Jesus declarou: 'É você que está dizendo isso”.
E nada respondeu quando foi acusado pelos chefes dos sacerdotes e
anciãos. Então Pilatos perguntou: 'Não estás ouvindo de quanta coisa eles
te acusam?' Mas Jesus não respondeu uma só palavra, e o governador ficou
vivamente impressionado”.
Está aí a única passagem em que Jesus nada respondeu. Foi
exatamente aquela em que os chefes dos sacerdotes e anciões o acusaram
diante de Pilatos. Mas isso se justifica, pois consciente de seu destino,
em relação à sua missão, simplesmente entregou-se a ele. Pensamos que, se
tivesse resistido, teria sido solto, obviamente, assim, se sua missão era
morrer na cruz, esse fato não deveria ocorrer, se ele se defendesse a sua
missão não teria sido cumprida.
A conclusão obtida nesse estudo é a seguinte: devemos, sim,
contestar todas as críticas e acusações que fazem ao Espiritismo, atitude
perfeitamente compatível com a de Jesus a quem devemos seguir
incondicionalmente.
Mas, para que não fiquemos adstritos apenas à nossa opinião
pessoal, vejamos o que o confrade Divaldo P. Franco, disse há tempos,
especificamente em 17/06/2001, quando, ao comparecer no programa
“Espiritismo Via Satélite”, pela Rede Visão, lhe fizemos esta pergunta:
Caro Divaldo, considerando que Kardec no Projeto 1868, sugere que entre
as atribuições da Comissão Central, a ser criada para coordenar o
movimento espírita, estaria a refutação dos ataques ao Espiritismo,
presumimos que os Espíritos Superiores concordaram com essa recomendação
de Kardec. Assim lhe perguntamos: será que hoje os Espíritos não
concordam com isso, ou seja, que não devemos refutar os ataques à
Doutrina Espírita, ou isso é coisa dos Espíritas? A sua resposta foi:
Naturalmente devemos refutar. Mas refutar numa linguagem nobre. O
difícil é encontrar as pessoas que possuam condições para enfrentar esses
debates sem descerem aos níveis infelizes dos agressores. A nossa
imprensa Espírita, na medida do possível, através de homens e mulheres
admiráveis, tem refutado as agressões que o Espiritismo vem sofrendo.
Ainda há pouco lemos aqui, na Internet, a Rede Visão refutando
agressões muito dolorosas, desonestas e não autenticas veiculadas por uma
revista protestante que a espalhou por todo o mundo. Espíritas de
diferentes países receberam essa revista, inclusive na Bélgica e na
Itália, na qual está exarado um ataque muito grosseiro à reencarnação,
sem qualquer fundamento, porque toda a documentação é adulterada e
direcionada e, no entanto, aqui a Rede Visão, através da Internet como
pode ser lida, está enfrentando. E o vem fazendo com muita assiduidade.
Nós devemos, sim, refutar todas as agressões à Doutrina nobre, mas nunca
descermos ao baixo nível dos nossos agressores.
Apenas a título de informação: o que Divaldo cita que leu na
Internet, são, por coincidência, textos de nossa autoria que estavam
publicados no site da Rede Visão.
O e-mail, do qual falamos no início, foi providencial e
sinceramente já agradecemos ao autor por nos tê-lo enviado, pois ele foi
motivo de estudo e reflexão de nossa parte. Se, antes, tínhamos alguma
dúvida em relação à defesa da Doutrina Espírita, embora saibamos que o
próprio Kardec não deixou por menos, fato que parece ser ignorado pela
maioria dos Espíritas, agora não temos mais, pois enganaram-se os que
pensam que Jesus ficou o tempo todo calado; e é por ele que nos
esforçamos, tentando seguir o seu exemplo.
Ecos do Passado - O paganismo no cristianismo
É muito interessante quando temos às mãos alguma literatura, na
qual encontramos informações sobre as religiões de antanho. Quem ainda
não ficou completamente cego pelo fanatismo, percebe uma relação muito
estreita entre alguns conceitos e determinadas práticas religiosas da
antiguidade com os da atualidade.
Vejamos, por exemplo, a cultura religiosa dos egípcios. Segundo as
Escrituras Sagradas, os hebreus ficaram em escravidão no Egito por
quatrocentos e trinta anos (Ex 12,40), o que nos leva, inevitavelmente, a
acreditar que, de uma forma ou de outra, acabaram por incorporar em sua
própria cultura parte da dos egípcios.
Apontaremos alguns pontos curiosos que, nos dias atuais, podemos,
perfeitamente, identificar como oriundos dessa cultura, que vieram a
fazer parte do cristianismo, nos rituais religiosos praticados na
atualidade. Seria, a nosso ver, por mais paradoxal que possa parecer, o
paganismo dentro do cristianismo.
Vejamos, então essas curiosidades:
1 - Procissão
Vemos periodicamente como uma prática religiosa o ritual das
procissões, que consiste em se percorrer um determinado trajeto, até um
local pré-determinado, carregando uma imagem religiosa num andor. Mas
qual é a origem desse ritual? Nas pesquisas que realizamos, tivemos
oportunidade de verificar que tal ritual era praticado pelos egípcios;
vejamos:
O rio Nilo está em festa. Barcas enfeitadas homenageiam Amon, o
deus dos mistérios e padroeiro dos navegantes. A população de Tebas, no
sul do Egito, aguarda ansiosa o faraó e os sacerdotes que carregam nos
ombros a imagem da divindade. Todos participam da Bela Festa do Vale, uma
das mais importantes festividades do Egito Antigo, realizada no Médio
Império (1975-1640 a.C.), no início do ano no calendário egípcio – ou
meados de julho na contagem ocidental. (...).
Antes da procissão, a estátua do deus passa por um ritual secreto.
O faraó e os sacerdotes visitam o templo de Amon. Eles cantam, tocam
instrumentos e queimam incenso para afastar qualquer energia negativa do
ambiente... A imagem é perfumada, vestida e maquiada e, depois, recebe
oferendas no templo de Karnak, o maior do mundo antigo.
Do templo, o deus sai dentro de um andor e é transportado num
barco. Durante a travessia as pessoas, em procissão, entoam cânticos e
hinos sagrados. (...) (FELIPPE, 2003, pp. 40-45).
Fato que também podemos comprovar em outra publicação, conforme se
segue:
Todos os anos, em meio a cantos, danças e celebrações, o faraó e os
sacerdotes de Amon lideravam uma procissão que conduzia uma estátua
dourada do deus celeste agonizante desde o santuário interno de Karnak
até uma barcaça no Nilo. Esta era então rebocada pela barca real até o
templo de Luxor. Enquanto os altos dignitários remavam cerimoniosamente a
barcaça rio acima, soldados e camponeses nas margens a puxavam de fato
com a ajuda de cabos. (GORE, 2002, pp. 8-35).
Podemos ainda verificar que esse ritual consta em algumas
narrativas bíblicas; vejamos:
1Rs 12,28-30: “Então Jeroboão teve a idéia de fazer dois bezerros de
ouro. E disse ao povo: ‘Vocês já foram demais a Jerusalém. Israel, aqui
está o seu Deus, aquele que tirou você da terra do Egito’. Colocou um dos
bezerros em Betel e instalou o outro em Dã. Isso foi causa de pecado. O
povo foi em procissão diante do bezerro até Dã”.
2Mc 6,5-7: “O próprio altar estava repleto de ofertas proibidas pela Lei.
Não se podia celebrar o sábado, nem as festas tradicionais, nem mesmo se
declarar judeu. Todo mês eram forçados a participar do banquete
sacrifical, que se realizava no dia do aniversário do rei. Quando
chegavam as festas de Dionísio, eram obrigados a participar da procissão
em honra a Dionísio, com ramos de hera na cabeça”.
Assim, fica evidenciado que o ritual da procissão é, realmente,
uma prática religiosa que os hebreus copiaram dos egípcios. O
cristianismo, por sua vez, manteve em seus rituais esse hábito do
judaísmo citada em Sl 118,27: “Javé é Deus: ele nos ilumina! Formem
procissão com ramos até os ângulos do altar”.
2 - Ressurreição da Carne
Apesar de ser um dogma aceito pela maioria das religiões cristãs
tradicionais, sua origem está intimamente ligada ao conceito que os
egípcios tinham a respeito do corpo físico depois da morte.
Os egípcios acreditavam que o corpo ressuscitaria magicamente do
outro lado da vida por meio de um ritual chamado de ‘abertura da boca’. O
sacerdote ou alguém da família tocava a boca do morto com um instrumento
de metal para que ele pudesse ter uma boa passagem para o outro mundo e
conseguisse pronunciar as palavras necessárias na hora do julgamento.
(FELIPPE, 2003, pp. 40-45).
Construídas com grandes blocos de pedra, as pirâmides nada mais
eram do que as escusas tumbas dos faraós. Foram erguidas para abrigar o
sarcófago do faraó até que sua alma voltasse ao corpo. O soberano supremo
era enterrado com móveis, jóias e outros objetos, pois naquela época se
acreditava que precisaria deles na outra vida. (A Magia do Egito nº 01,
s/d, pp. 6-17).
(...) Mas, para os egípcios, havia algo de maior significado que se
expressava na preservação de bens valiosos dos mortos e construções de
obras de estrutura física, que poderiam garantir uma outra vida além da
morte, de muita fortuna. Para eles, após o falecimento do corpo, o morto
de qualquer classe social teria uma existência semelhante à da Terra, mas
sem os problemas e as necessidades desta.
A morte, para os egípcios, tinha um especial interesse. Havia entre
eles uma crença absoluta no renascer dos mortos. Por isso, a preocupação
em preservar o cadáver e o desenvolvimento da técnica de mumificação. De
acordo com sua religião, a alma precisava de um corpo para morar por toda
a eternidade.
Se a vida poderia durar eternamente, desde que a alma encontrasse
no túmulo o corpo destinado a servir-lhe de morada, era preciso,
portanto, preservar suas características físicas. Essa necessidade
religiosa fez com que os egípcios desenvolvessem a técnica de
mumificação. (A Magia do Egito nº 01, s/d, pp. 46-50).
Assim, toda a crença dos egípcios estava centrada na possibilidade
da vida após a morte, na qual acreditavam precisar do corpo físico para
sobreviver, pois não tinham a menor consciência de que a nossa realidade
é sermos um ser espiritual. Razão pela qual não haverá a mínima
necessidade do corpo físico em uma dimensão completamente diversa da
nossa, como querem os teólogos, apesar de se dizerem espiritualistas.
Hoje em dia, aceitar que o corpo físico é que irá ressuscitar, é
fazer vistas grossas para as leis divinas, que, pelo processo da
decomposição, faz com que este corpo devolva à natureza os elementos que
dela tomou emprestado. Estes, por sua vez, irão formar novas substâncias.
3 - Juízo Final
Outra crença egípcia é a respeito do juízo final. Veja o que
encontramos sobre o assunto:
No mundo dos mortos, os egípcios eram julgados pelo deus Osíris e
seus 42 assessores. Diante de cada juiz, o defunto declarava não ter
passado por determinada infração. Seu coração era pesado numa balança.
‘Se pesasse mais que a pluma da justiça de Maat, a deusa da ordem
universal, o morto seria engolido por um monstro em forma de crocodilo,
leão e hipopótamo e teria, assim, uma morte definitiva, deixando por
completo de existir’. (...) (FELIPPE, 2003, pp. 40-45).
Tão logo falecia, a pessoa tinha de ser submetida a um julgamento
pelo chamado Tribunal dos Deuses, uma espécie de justiça divina,
presidido pelo deus Osíris.
Segundo o ritual, o morto prostrava-se diante das autoridades
celestiais e fazia uma espécie de confissão, na qual declarava que não
cometera más ações durante sua vida.
No centro, aparece o deus Anúbis, com cabeça de chacal, que faz a
pesagem na balança – no prato, à direita, aparece o coração do morto,
sede da consciência e onde estavam registradas suas ações na terra; no
prato esquerdo, há uma pena, símbolo de Maat, a deusa da verdade: á
direita, encontra-se Toth, que anota num papiro os resultados das
pesagens.
Se a pesagem constatar que o coração teve peso mais leve que a
verdade, isso significava que o espírito não estava proferindo uma
mentira quando afirmou que levou uma vida justa e respeitosa. Por isso, o
tribunal posicionava-se que o mesmo estava apto a conquistar a vida
eterna no paraíso. (A Magia do Egito nº 01, s/d, pp. 46-50).
O julgamento final era a prova de fogo para que a pessoa morta
alcançasse, finalmente, a vida eterna.
No julgamento final, o morto deveria provar que foi verdadeiro e
justo durante a vida, sem ter faltado com a verdade.
Se a pessoa não passasse pelo julgamento final, estaria condenada a
uma espécie de coma perpétuo, ou seja, teria então uma segunda morte
porque, agora, o acesso à eternidade estaria vedado. (A Magia do Egito nº
01, s/d, pp. 6-17).
É interessante essa maneira que percebiam o julgamento final de um
indivíduo. Os cristãos adotaram esse juízo final, apesar de,
contraditoriamente, dizerem que seremos julgados também logo após nossa
morte. Haveria então dois julgamentos? Qual seria a utilidade deles? Quem
fosse para o inferno no primeiro, poderia sair quando do segundo?
4 – Um ser gerado por um deus
Encontramos no conceito religioso dos cristãos, a concepção de
Jesus ocorrida por obra do Espírito Santo. Interessante que se isso
ocorreu, Jesus deixa de ser descendente de Davi, contrariando as
profecias a esse respeito. Mas, aqui, mais uma vez, percebemos que os
egípcios também acreditavam na possibilidade de um deus fecundar uma
mulher, leiamos: “Tamanha suntuosidade, tornou ImHotep uma figura célebre
em todo Egito – depois de sua morte, ganhou status de um deus. Passou a
ser considerado filho Ptah, o deus supremo de Mênfis, que teria fecundado
uma mulher mortal”. (A Magia do Egito nº 01, s/d, pp. 36-45).
Essa crença igualmente era compartilhada pelos gregos; senão
vejamos: “Filho de Zeus e de uma mulher mortal, Alcmena, Heracles foi o
maior e mais popular herói de toda a Grécia Antiga, embora a lenda tenha
tido origem estritamente peloponésica” (Deuses Gregos nº 01, s/d, pp. 3340).
Não devemos nos esquecer que os gregos também exerceram domínio
sobre os judeus.
5 - Natal
Vejamos o que encontramos a respeito do dia que dizem ser o do
nascimento de Jesus:
Quanto ao 25 de dezembro, ele só foi adotado por volta de 330 d.C.
Nessa data, ocorria em Roma a festa pagã do Solis Invictus, o Sol
Invencível. Comemorado logo após o solstício de inverno – quando o
percurso aparente do Sol ocupa sua posição mais baixa no firmamento -, o
festival homenageava o reinício do deslocamento da trajetória solar para
o alto do céu, de onde os raios da estrela voltaram a aquecer
generosamente a Terra. Frustrados na tentativa de acabar com a festa, os
cristãos resolveram apropriar-se dela. (ARANTES, 2003, pp. 12-21).
Esse fato não é do conhecimento da maioria dos cristãos; talvez
somente os líderes religiosos saibam disso. É sabido que vários
acontecimentos do passado longínquo se perderam, não chegando aos nossos
dias, e os que chegam podem, por interesses, não terem sido relatados
como exatamente acontecidos.
6 - Mediador
A crença em que os líderes religiosos são os mediadores entre Deus
e os homens não deixa de ser também uma crença egípcia; só que, ao invés
dos líderes religiosos, o próprio Faraó era o mediador, conforme podemos
comprovar: “O Faraó era visto pela população como um deus vivo, trazido à
Terra para ser o mediador entre o céu e os homens. (...)” (FELIPPE, 2003,
pp. 40-45).
É o que vemos, em toda a Bíblia, na figura dos profetas, no Antigo
Testamento e de Jesus, no Novo Testamento. A partir de sua morte essa
intermediação, entre Deus e a humanidade, passa a ser feita pelos
sacerdotes, pastores, etc.
7 - Culto aos Mortos
A prática de se cultuar o faraó depois de sua morte, foi
assimilada por alguns cristãos na forma de culto aos santos. Vejamos:
“Normalmente, um faraó era cultuado somente após a morte, mas muitos
soberanos utilizaram a religiosidade como instrumento de propaganda e
conseguiram se tornar objeto de culto ainda em vida”. (FELIPPE, 2003, pp.
40-45).
Dessa prática e da do culto a vários deuses, acabou a primeira
sendo reforçada, ou seja, a do culto aos santos, que passou a responder
por vários tipos de atividades relacionadas ao comportamento humano.
Vejamos o item a seguir.
8 - Vários deuses
(...) No princípio, do oceano primordial, auto-gerado, aparece Rá.
Ele expele, de sua boca, Seb (o deus Ar) e Tefnut (Umidade). Deles nasce
Geb (Terra) e Nut (Céu), pais de quatro filhos: Osíris, Íris e Seth e
Néfits. Depois deles, surgem todas as outras divindades que, ao todo,
somam mais de 2 mil. (...) (FELIPPE, 2003, pp. 40-45).
A religião egípcia caracterizava-se, dessa maneira, como politeísta
– quer dizer, aquela em que existem vários deuses. Do mesmo modo que a
maioria das sociedades primitivas, o Egito tinha um panteão de deuses
muito vasto. Era praticamente um deus para cada um dos muitos aspectos da
vida cotidiana. (A Magia do Egito nº 02, s/d, pp. 18-23).
Esse emaranhado de deuses, com suas atribuições, também acabaram
dando origem às inúmeras atribuições que relacionaram a cada um dos
santos. Vejamos, então alguns exemplos:
Deuses Egípcios:
Anúbis - Deus dos embalsamadores e da mumificação;
Atum - Criador dos deuses, do homem e da ordem divina;
Bastet - Deusa do lar, do fogo e das grávidas;
Bes - Deus da música, dança e da família. Protetor das mulheres
grávidas;
Geb - Deus da terra, guia dos mortos para o além;
Hathor - Deusa das mulheres, do amor e da música;
Imhotep - Patrono dos escribas, curador, sábio e mágico;
Ísis - Guardiã, deusa da mágica;
Khonsu - Deus da lua;
Maat - Deusa da ordem, das leis, da justiça e da verdade;
Min - Deus da fertilidade masculina, patrono do deserto oriental;
Montu - Deus da guerra.
(Qual é o assunto? nº 02, s/d, pp. 4-6).
No Catolicismo:
Cosme e Damião, padroeiros dos médicos e protetores dos gêmeos e
das crianças;
São Brás, protetor dos que sofrem de engasgos ou doenças de
garganta;
Santo Antônio, padroeiro dos pobres e casamenteiro;
São Cristóvão, protetor dos viajantes e motoristas;
São Francisco de Sales, padroeiro dos escritores;
São Judas Tadeu, advogado das causas desesperadas;
Santa Bárbara, invoca-se esta para se proteger das tempestades e
trovões;
Santa Cecília, padroeira da música;
Santa Inês, padroeira da castidade e das adolescentes;
Santa Luzia, protetora da visão.
Poderíamos acrescentar que tanto os gregos como os romanos também
possuíam vários deuses e, da mesma maneira, cada um deles tinha uma
atribuição própria. Assim, não percebemos nenhuma diferença entre os
deuses da Antigüidade e os santos de hoje.
9 - Trindade
Outro item que fazia parte da cultura religiosa dos egípcios, e do
qual era mesmo de se esperar a sua incorporação na cultura religiosa dos
judeus, é a Trindade. Entretanto, não sabemos por que razão essa só
passou a ser admitida posteriormente no cristianismo a partir do século
IV da era cristã. Leiamos:
Os deuses costumavam ser divididos em grupos, geralmente em tríades
compostas por duas divindades adultas e uma jovem. Assim, por exemplo,
existe a tríade de Tebas, que compreende Amon-Rá, Mut e Khons, divindades
dos três principais templos de Karnak. (A Magia do Egito nº 5, s/d, pp.
14-21).
Além disso, podemos acrescentar que todos os povos, que dominaram
os judeus, tinham três deuses, como base de sua cultura religiosa.
Duas coisas mais merecem destaque, embora não pertencentes à
cultura egípcia: uma é a origem de Satã e a outra a dos Dez Mandamentos;
é o que veremos a seguir.
10 – Satã
Vejamos:
Sob a influência das doutrinas de Zaratustra, os judeus começaram a
crer na existência dum espírito que procurava desfazer a obra de Jeová. E
a esse adversário deram o nome de Satã.
Passaram a odiá-lo e temê-lo, e no ano 331 convenceram-se de que
Satã andava pela terra. (VAN LOON, 1951, p. 122).
Assim, da cultura persa, que possuía o deus do bem (Ahura-Mazda) e
o do mal (Ahriman), tiraram o ser denominado Satã correspondendo a esse
último.
11 - Leis Morais
Informam-nos que “Os babilônicos desenvolveram as leis morais mais
tarde incorporadas por Moisés nos Dez Mandamentos e que ainda hoje
constituem os alicerces do cristianismo”. (VAN LOON, 1951, p. 103). Essa
informação, que nos parece muitíssimo interessante, nos dá notícia de que
até mesmo os Dez Mandamentos não se trata de coisa original, pois, como
estamos constatando, foram também copiados de outra cultura. Para nós tem
sentido, uma vez que Deus nunca estabeleceria um mandamento só para
homens como o “não cobiçar a mulher do próximo” (Ex 20,17); portanto,
estamos diante de um preceito absolutamente machista; obviamente, reflexo
cultural da sociedade daquela época.
Ficamos a pensar: e se fizermos um levantamento completo, o que
mais acharíamos para acrescentar a essa nossa pequena lista? Por que será
que o homem ainda mantém em suas práticas coisas absolutamente
ultrapassadas pelo tempo? Umas são realizadas sobre o pretexto de estarem
na Bíblia, no pressuposto de que tudo que ali contém é absolutamente
verdadeiro. Mentes abertas têm colocado em cheque esse pensamento,
fazendo com que muitas pessoas possam ver além do véu. Há provas de que
muitas coisas que ali estão são fruto de lendas, mitologias, outras não
sustentadas pela ciência; enfim, uma verdadeira miscelânea! Essas mentes
abertas, de que estamos falando, são as pessoas que aplicam integralmente
uma recomendação que deveria servir para todos: “Examinem tudo e fiquem
com o que é bom” (1Ts 5,21).
Por outro lado, vemos como uma necessidade urgente de se aplicar
essa análise ao Espiritismo como um alerta para que, nós, os espíritas,
não venhamos a desfigurá-lo, trazendo para dentro de nossas casas
espíritas determinadas práticas que nada têm a ver com os princípios
ditados pelos Espíritos Superiores a Kardec. Pois, infelizmente, estamos
vendo que muitos companheiros, embora agindo de boa vontade, mas sem
nenhum respaldo doutrinário, desejam implantar, em nosso meio, práticas
totalmente desvinculadas do que poderíamos chamar de verdadeira essência
do Espiritismo, tais como: terapia de vidas passadas, cromoterapia, uso
de cristais, roupas especiais, etc. Não que estejamos condenando-as e aos
que as praticam, entendemos que, apesar da eficácia de algumas, não devem
ser realizadas em qualquer instituição espírita, pois podem levar as
pessoas a buscarem tais técnicas a fim de se livrarem de seus problemas,
esquecidos de que o mais importante é a reforma íntima e a prática do
bem.
Ressurreição da Carne?
Não é de hoje que este assunto é encarado, pelos fiéis das
inúmeras correntes religiosas cristãs, como uma coisa líquida e certa.
Entretanto, a ciência vem afirmar que o nosso corpo físico, no processo
de sua decomposição, restitui à natureza os elementos - carbono,
hidrogênio, azoto, oxigênio, etc. - de quem tomou emprestado.
Este é mais um dos muitos motivos pelo qual não se concilia a
Ciência com a religião; mas numa análise mais profunda, sem preconceito e
nem dogmatismo, vimos que, biblicamente falando, a ressurreição nunca foi
a da carne, como se apregoa por aí.
Parece-nos que, pela análise de algumas passagens bíblicas, o que
encontramos foi justamente o contrário. Vejamos:
Mt 22,30: “De fato, na ressurreição, os homens e as mulheres não se
casarão, pois serão como os anjos do céu”.
Todos nós acreditamos que, indiscutivelmente, os anjos não possuem
corpo físico. Logo quando Jesus afirma que na ressurreição os homens e
mulheres serão como os anjos do céu e que, por isso não se casarão, Ele
nos remete à questão da ressurreição espiritual.
Jo 4,24: “Deus é Espírito...”
Aqui temos um paradoxo, pois a nós, segundo a crença dogmática,
caberia viver no plano espiritual na mesma condição de vida que tínhamos
aqui no plano físico, enquanto Deus, nesse mesmo plano para o qual
iremos, vive puramente na condição espiritual. Absurdo teológico,
incompatível com a lógica, pois o plano espiritual está para o corpo
espiritual, como o plano terreno está para o corpo físico.
Para a manutenção da vida do nosso invólucro carnal é necessário,
dentre inúmeras coisas, oxigênio, água e alimentação. Será que haverá
necessidade de tudo isso no lugar para onde dizem que iremos após a
morte? O pior é que todas essas coisas deverão existir tanto no céu
quanto no inferno, já que muitos correm o risco de terem como destino o
lago de fogo. Quem sabe um milagre resolva essa questão?...
Jo 6,63: “... o espírito é que dá vida, a carne de nada serve”.
Será que os teólogos nunca leram essa passagem? Se a carne de nada
serve, então qual a sua utilidade no plano espiritual?
Lc 16,19-23: “Havia um homem rico que se vestia de púrpura e linho fino,
e dava banquete todos os dias. E um pobre, chamado Lázaro, cheio de
feridas, que estava caído à porta do rico... Aconteceu que o pobre
morreu, e os anjos o levaram para junto de Abraão. Morreu também o rico,
e foi enterrado. No inferno, em meio aos tormentos, o rico levantou os
olhos, e viu de longe Abraão, com Lázaro a seu lado”.
Considerando-se que o rico foi enterrado, pode-se concluir que foi
isso o que ocorreu também a Lázaro. Tendo acontecido isso, forçosamente
somos obrigados a aceitar que esses dois personagens não foram em seus
corpos físicos para o outro lado da vida, já que se encontravam, conforme
a narrativa, na condição de espíritos.
Lc 23,43: “Jesus respondeu: ‘Eu lhe garanto: hoje mesmo você estará
comigo no Paraíso’".
Se essa afirmativa atribuída a Jesus for verdadeira, então a
condição em que o “bom ladrão” transportou-se ao “paraíso” foi na
condição espiritual, pois seu corpo deve, segundo o costume da época, ter
servido de repasto aos urubus, já que os corpos dos executados, nessas
condições, ficavam expostos para impressionar os transeuntes.
Lc 23,46: “Pai, em tuas mãos entrego o meu Espírito”.
Acaso Jesus tivesse dito, pelo menos, “Pai, em tuas mãos entregome”, poderia haver alguma dúvida quanto ao fato. Entretanto, Ele entrega
o seu espírito, já que sabia que a carne de nada serve, conforme já
houvera afirmado.
1Cor 15,44-50: “... é semeado corpo animal, mas ressuscita corpo
espiritual. Se existe um corpo animal, também existe um corpo
espiritual,... a carne e o sangue não poderão herdar o reino de Deus”.
Paulo, sempre usado para sustentar algumas interpretações de
conveniência, é quem também podemos usar para contestar, por mais uma
vez, a crença na ressurreição da carne. Observe que o apóstolo dos
gentios diz taxativamente que ressuscita o corpo espiritual e arremata,
como que para não deixar dúvidas, dizendo que o corpo físico não pode
herdar o reino de Deus.
Esses textos, aqui relacionados, são suficientes para
reconhecermos que iremos ressuscitar no corpo espiritual e não no corpo
físico, como ainda é aceito e defendido por muitos.
Mas alguém poderia objetar dizendo que Jesus teria ressuscitado em
corpo físico, fato que confirmaria a ressurreição da carne.
Pelos relatos bíblicos Jesus foi crucificado às nove horas da
manhã. Parece-nos tempo insuficiente para que, já às primeiras horas do
dia, ocorresse primeiro a reunião do Sinédrio, depois, em relação a
Jesus, sua prisão, as torturas que sofreu, sua condução a Pilatos, a
Herodes, e a Pilatos novamente, para que caminhasse até o Gólgota
carregando a cruz, deixando-nos em dúvida quanto aos fatos descritos como
ocorridos.
Uma coisa que poucos sabem é que a morte por crucificação não era
imediata; levava-se, segundo alguns estudiosos, de dois a três dias,
outros estendem esse tempo a até cinco dias. Como não quebraram seus
ossos, o que faziam para apressar a morte do condenado, e considerando o
tempo entre a crucificação e morte foi de apenas seis horas, resta-nos a
dúvida, por não termos elementos seguros para acreditar no relatado.
É tão evidente que o tempo foi curto que até Pilatos, quando foram
reclamar-lhe o corpo, se surpreende de que Jesus já havia morrido (Mc
15,44).
Como o dogmatismo não manda mais ninguém para a fogueira, querendo
demonstrar previamente como os ímpios irão arder no fogo do inferno,
pensadores têm surgido questionando até mesmo a veracidade dos próprios
textos bíblicos, quanto à realidade da morte de Jesus na cruz. Essas
dificuldades que acabamos de colocar, podem nos remeter a essa hipótese.
Para se ver, por exemplo, que os relatos não são tão mais
inquestionáveis assim, transcrevemos, do capítulo “JESUS NÃO MORREU NA
CRUZ” constante do livro A Sociedade Secreta de Jesus, o seguinte trecho:
Ao raiar do dia, no sábado, vendo o sepulcro aberto e tendo o corpo
de Jesus sumido, os guardas, com medo de Pilatos, vão até os sacerdotes
saduceus e contam-lhes a história do desaparecimento do corpo de Jesus.
No que os sacerdotes saduceus tranqüilizam os guardas e garantem que,
caso a história chegue aos ouvidos de Pilatos, eles (os sacerdotes) iriam
convencer Pilatos a não punir os guardas, deixando-os em paz, pois era
sabido que os discípulos de Jesus iriam mesmo tentar roubar o corpo.
Esta história está parcialmente contada em Mateus (28:11-15)
Entretanto, como o cadáver de Jesus jamais apareceu e isto desmoronaria a
tese da ressurreição, pois ninguém ressuscita sem morrer e para morrer
tem que haver um cadáver; este corpo de Jesus morto jamais apareceu. E
Mateus, novamente, conta exatamente esta história do roubo do corpo, mas
depois diz que é mentira.
Para os próprios cristãos, segundo evidências claras na Bíblia,
Jesus não morreu na cruz. Senão vejamos:
João (20:11-17) - Dois essênios de branco (confundidos como anjos)
são vistos no sepulcro e Jesus – depois de "morto" - diz para Madalena,
dentro do sepulcro, que ainda não havia morrido.
“Jesus disse-lhe: - Não Me detenhas porque ainda não subi para Meu
Pai ".
Lucas (24:4-5) - Dois essênios de branco, resplandecentes, estão no
sepulcro vazio e falam para Madalena, Joana e Maria mãe de Tiago: - “Por
que buscais entre os mortos Aquele que vive?"
Mateus (28:3) - Um essênio, vestido de branco, estava no sepulcro e
fala às mulheres sobre o desaparecimento do corpo de Jesus. (Aqui uma
questão simples: Se Jesus tivesse morrido (matéria) e ressuscitado
(espírito)... onde foi parar o corpo? Tinha de haver um corpo. Tinha de
haver a matéria).
Marcos (16:5) - Um jovem essênio, vestido de branco, guardava o
túmulo de Jesus e fala com Madalena, Salomé e Maria Mãe de Tiago. - Aqui
sai Joana e entra Salomé, mas tudo bem - (Novamente a mesma questão
simples: Se Jesus tivesse morrido e ressuscitado... onde foi parar o
corpo?)
João (20:5-7) - Pedro entra no sepulcro e encontra ataduras de
curativos e ligaduras espalhadas por toda parte. (Se Jesus havia morrido
na cruz... por que colocaram ataduras, remédios, ungüentos e ligaduras
num "morto", como as que Pedro encontrou no sepulcro? Coloca-se atadura e
remédio em morto?)
Lucas (24:36-43) - Diante do espanto dos discípulos que imaginavam
estar vendo um espírito, Jesus confessa aos discípulos, com todas as
palavras que Ele não havia morrido na cruz. E para provar que era Ele
mesmo, Jesus diz: - "Vede as Minhas mãos e os Meus pés?; Sou Eu mesmo!".
E para provar que não era espírito e sim carne, complementa:- "Apalpai-me
e olhai que um espírito não tem carne, nem ossos, como verificais que eu
tenho!"
E para encerrar de vez a discussão sobre espírito e matéria, Jesus
pede comida aos discípulos ainda assombrados: - "Tendes aí alguma coisa
que se coma?". Deram-lhe então uma posta de peixe assado e, tomando-a,
comeu diante deles".
Pode um relato ser mais claro? Ou seja, nem mesmo os cristãos, mais
cegamente fiéis seguidores da Bíblia, podem acreditar na morte de Jesus
na cruz, pois o relato de Lucas (24:26-43) é claro demais, cristalino
demais, insofismável, resistente até ao mais insano dos exegetas de
bicicleta. Jesus diz claramente que não havia morrido na cruz ("não
ascendi ao pai"), que não era espírito e sim carne (e para provar que não
era espírito e sim carne, complementa: Apalpa-me e olhai que espírito não
tem carne nem ossos como verificais que eu tenho") e para finalizar Jesus
pede comida e bebida, e de fato come peixe assado e bebe com os
discípulos. (MACHADO, 2004, pp. 297-300).
Argumentos que não encontramos meios de como rebatê-los; ainda
mais pelo fato de encontrarmos essa mesma informação em outra fonte.
Vejamos:
Quando se refere à crucificação, o Alcorão diz o seguinte: ‘Eles
não o mataram, não o crucificaram, mas isso lhes pareceu (Alcorão 4,156).
... Certos muçulmanos do Paquistão... para eles, Jesus foi de fato
pregado à cruz, mas, quando o retiraram de lá, Ele ainda vivia. Então,
livre da cruz, ele se curou e partiu para a Índia. (GUIDUCCI, s/d, p.
29).
Tudo isso de certa forma poderia vir a corroborar o que está
escrito em At 1,3: “Foi aos apóstolos que Jesus, com numerosas provas, se
mostrou vivo depois da sua paixão: durante quarenta dias depois apareceu
a eles,...”. Lucas, “... após fazer um estudo cuidadoso de tudo o que
aconteceu desde o princípio,...” (Lc 1,3), afirma que Jesus se mostrou
vivo, o que confirmaria aquilo que encontramos em outras fontes. É aqui
que ficamos em dúvida, pois, se Jesus se apresentou fisicamente, então a
tese, que apresentamos para uma reflexão, de que ele na verdade não
morreu na cruz, seria uma possibilidade que deveria ser mais bem
analisada.
Todavia, alguém dirá: "Como é que os mortos ressuscitam? Com que
corpo voltarão?" Insensato! Aquilo que você semeia não volta à vida, a
não ser que morra. E o que você semeia não é o corpo da futura planta que
deve nascer, mas simples grão de trigo ou de qualquer outra espécie. A
seguir, Deus lhe dá corpo como quer: ele dá a cada uma das sementes o
corpo que lhe é próprio. Nenhuma carne é igual às outras: a carne dos
homens é de um tipo, a dos animais é de outro, e de outro a dos pássaros
e de outro ainda a dos peixes. Há corpos celestes e há corpos terrestres.
O brilho dos celestes, porém, é diferente do brilho dos terrestres. Uma
coisa é o brilho do sol, outra o brilho da lua, e outra o brilho das
estrelas. E até de estrela para estrela há diferença de brilho. O mesmo
acontece com a ressurreição dos mortos: o corpo é semeado corruptível,
mas ressuscita incorruptível; é semeado desprezível, mas ressuscita
glorioso; é semeado na fraqueza, mas ressuscita cheio de força; é semeado
corpo animal, mas ressuscita corpo espiritual. Se existe um corpo animal,
também existe um corpo espiritual.
Calma, não somos nós que está dizendo isso; é Paulo, o de Tarso
(1Cor 15,35-44). Sua afirmação da existência do corpo espiritual é de
tamanha clareza que não deveria deixar margem a dúvidas, nem tampouco o
surgimento de interpretações equivocadas.
Mas isso ainda não é tudo, pois, quando, um pouco mais à frente,
ele arremata a sua argumentação, a coisa fica ainda mais clara; veja: “Eu
lhes digo, irmãos, que a carne e o sangue não podem receber em herança o
Reino de Deus, nem a corrupção herdar a incorruptibilidade”. (1Cor
15,50).
Há uma passagem muito elucidativa em que os saduceus, que
afirmavam não existir ressurreição, perguntaram a Jesus sobre a situação
de uma mulher que havia se casado com sete irmãos (para cumprir a lei do
Levirato); queriam saber, quando da ressurreição, de qual dos sete ela
seria mulher; ao que Jesus responde: “De fato, na ressurreição, os homens
e as mulheres não se casarão, pois serão como os anjos do céu” (Mt
22,30). Ora, todos nós aceitamos que os anjos são seres espirituais; daí,
se seremos iguais a eles, então, conseqüentemente, também seremos seres
espirituais, condição em que ressuscitaremos. A afirmação de “seres
espirituais” implica necessariamente na existência de um corpo
espiritual.
Na seqüência, ainda afirma Jesus: “Quanto à ressurreição dos
mortos, não lestes o que Deus vos declarou: ‘Eu sou o Deus de Abraão, o
Deus de Isaac e o Deus de Jacó?’ Ora, ele não é Deus de mortos, mas sim
de vivos” (Mt 22,32-33). Veja bem; se Deus é Deus de vivos, e os aqui
citados foram Abraão, Isaac e Jacó, que já haviam morrido, concluímos que
eles viviam na condição espiritual. Os que acham que a ressurreição será
no final dos tempos, devem ficar desconcertados diante dessa passagem,
pois, apesar do final dos tempos ainda não ter chegado, Jesus sugere que
esses três personagens já estavam ressurretos e, portanto, vivos.
A visão de Pedro sobre a morte e ressurreição de Cristo, também
não deixa margem à ressurreição da carne. Segundo ele, o que aconteceu
foi que Jesus “... Morto na carne, foi vivificado no espírito, no qual
foi também pregar aos espíritos em prisão,” (1Pe 3,18-19).
Assim, diante disso e de tudo o que já colocamos anteriormente,
como ainda advogar a ressurreição da carne? Ela, a ressurreição da carne,
falando à maneira do gosto de muitos teólogos, não possui respaldo
bíblico.
Terminamos o estudo sobre esse assunto, esperando contribuir para
o esclarecimento dessa questão; mas, obviamente, não passa por nossa
cabeça a unanimidade em relação ao que expomos, já que muitas pessoas,
infelizmente, possuem a mente fechada para qualquer coisa que vá de
encontro ao seu pensamento original, mesmo sendo este completamente
contraditório. Pior ainda são os adeptos do: “creio, ainda que absurdo!”.
Percebemos, em algumas pessoas, um certo medo de questionar o que
a teologia tradicional lhes passou: isso é fruto de um terrorismo
religioso, pois quem está com a verdade não teme absolutamente nada.
Entretanto, os que são frágeis na convicção e os que sabem que suas
idéias não são realmente verdadeiras, farão de tudo para contestar aquilo
que possa contrariar seus interesses. Mas devemos lembrar Jesus que
dizia: “conhecereis a verdade e a verdade vos libertará” (Jo 8,32).
Encerramos, ressaltando que: “... onde se acha o Espírito do
Senhor aí existe a liberdade” (2Cor 3,17), do que é fácil concluir que,
onde não há liberdade, o Espírito do Senhor não se encontra.
Ressurreição ou Reencarnação?
Recebemos um pedido de um leitor para desenvolvermos um estudo
sobre o tema acima. É o que tentaremos fazer. Por ser assunto ligado
especialmente às crenças religiosas, nos leva a buscar a Bíblia como
fonte de pesquisa.
Is 26,19: “Os teus mortos e também o meu cadáver viverão e ressuscitarão;
despertai e exultai, os que habitais no pó, porque o teu orvalho será
como o orvalho das ervas, e a terra lançará de si os mortos”.
Dn 12,1-2: “E naquele tempo se levantará Miguel, o grande príncipe, que
se levanta a favor dos filhos do teu povo, e haverá um tempo de angústia,
qual nunca houve, desde que houve nação até àquele tempo; mas naquele
tempo livrar-se-á o teu povo, todo aquele que for achado escrito no
livro. E muitos dos que dormem no pó da terra ressuscitarão, uns para
vida eterna, e outros para vergonha e desprezo eterno”.
Os 6,1-2: “Vinde, e tornemos ao Senhor, porque ele despedaçou, e nos
sarará; feriu, e nos atará a ferida. Depois de dois dias nos dará a vida;
ao terceiro dia nos ressuscitará, e viveremos diante dele”.
Podemos constatar que, desde a antiguidade, já se acreditava que
um dia iremos ressuscitar. Entretanto, essa idéia não era muito nítida
quanto a sua abrangência e nem quanto à época em que ocorrerá a nossa
ressurreição.
Daniel, por exemplo, disse que muitos dos que dormem
ressuscitarão. Será que estaria querendo dizer que a ressurreição não
seria para todos? Disse mais: que uns para a vida eterna e outros para a
vergonha e desprezo eterno. Não devemos atribuir a Deus sentimento de
desprezo, ainda mais eterno, pois onde ficaria sua misericórdia, que
também é eterna? Poderíamos, sim, ver aí apenas um simbolismo: os que
irão para a vida eterna são os Espíritos que não necessitam mais da
reencarnação, ao passo que os que irão para a vergonha e desprezo eterno,
são os que ainda permanecerão presos ao ciclo das reencarnações
sucessivas, até que um dia atinjam as mesmas condições dos primeiros.
Devemos entender que esse ciclo é eterno enquanto dure, já que o termo
eterno, neste caso, significa um período de longa duração.
Oséias já nos traz a idéia de uma ressurreição próxima ao da nossa
passagem para o mundo espiritual, para vivermos eternamente diante de
Deus. Diferente de Daniel, não faz qualquer tipo de exclusão, como,
também, não disse de nenhuma condenação eterna. De sua fala podemos
concluir que todos receberemos o “prêmio”, muito embora não sendo tão
imediato esse estar “vivendo diante Dele”, mas, sim, quando nos tornarmos
Espíritos puros, não necessitando mais reencarnar.
Mt 14,1-2: “Por aquela mesma época, o tetrarca Herodes ouviu falar de
Jesus. E disse aos seus cortesãos: 'É João Batista que ressuscitou. É por
isso que ele faz tantos milagres'”.
Mt 16,13-14: “Chegando ao território de Cesaréia de Felipe, Jesus
perguntou a seus discípulos: 'No dizer do povo, quem é o Filho do homem?'
Responderam: 'Uns dizem que é João Batista; outros, Elias; outros,
Jeremias ou um dos profetas'”.
Temos, agora, uma das idéias que faziam da ressurreição; nessa
circunstância é o que denominamos de reencarnação. Se pensavam que Jesus
poderia ser João Batista, Elias, Jeremias ou um dos profetas, é porque,
sem sombra de dúvidas, acreditavam que alguém morto poderia voltar em
outro corpo; não há como fugir dessa verdade! Entretanto, neste caso
específico, Jesus só não poderia ser João Batista reencarnado, pois eles
viveram na mesma época.
Mt 11,14: “E, se quereis compreender, é ele o Elias que devia voltar”.
É uma afirmação positiva de Jesus. Ao falar que João Batista era o
Elias, Jesus diz em outras palavras, e numa expressão mais simples, que
João Batista era o Elias reencarnado. A expressão “devia voltar” pode-se
muito bem entender que estaria querendo dizer “devia ressuscitar”.
Mt 28,5-6: “Mas, o anjo disse às mulheres: 'Não temais! Sei que procurais
a Jesus que foi crucificado. Não está aqui: ressuscitou, como disse'”.
Comprovação evangélica de que a ressurreição, como voltar à
condição de espírito, existe e ninguém contesta tal possibilidade. Seria
uma outra idéia que tinham a respeito da ressurreição.
Já que a ressurreição aqui narrada não se trata da dita
ressurreição do final dos tempos, podemos concluir, sem medo de errar,
que, naquela época, acreditavam em dois tipos de ressurreição. Hoje
compreendemos estes dois tipos da seguinte forma: uma, de imediato,
quando, pela morte do nosso corpo físico, voltamos à condição de
Espírito; outra, no final dos tempos, quando, finalmente sairmos do ciclo
da reencarnação tornando-nos espíritos puros.
Mt 9,18-19.23-26: “Falava ele ainda, quando se apresentou um chefe de
sinagoga. Prostrou-se diante dele e lhe disse: 'Senhor, minha filha acaba
de morrer: Mas vem, impõe-lhe as mãos e ela vivera'. Jesus levantou-se e
o foi seguindo com seus discípulos. Chegando à casa do chefe da sinagoga,
viu Jesus os tocadores de flauta e uma multidão alvoroçada. Disse-lhes:
'Retirai-vos, porque a menina não está morta; ela dorme'. Eles, porém,
zombaram dele. Tendo saído a multidão, ele entrou, tomou a menina pela
mão e ela levantou-se. Esta notícia espalhou-se por toda a região”.
Lc 7,11-16: “No dia seguinte dirigiu-se Jesus a uma cidade chamada Naim.
Iam com ele diversos discípulos e muito povo. Ao chegar perto da porta da
cidade, eis que levavam um defunto a ser sepultado, filho único de uma
viúva; acompanhava-a muita gente da cidade. Vendo-a o Senhor, movido de
compaixão para com ela, disse-lhe: 'Não chores!' E aproximou-se, tocou no
esquife, e os que o levavam, pararam. Disse Jesus: 'Moço, eu te ordeno,
levanta-te'. Sentou-se o que estivera morto e começou a falar, e Jesus
entregou-o à sua mãe”.
Estes dois casos de ressurreição poderiam muito bem ser idênticos
aos que ainda acontecem nos dias de hoje. Apesar de todo o avanço da
Medicina do Século XX, ela também se engana. Veja o que foi registrado
pelo Jornal “O Estado de Minas” na coluna “Um dia no Mundo”:
Em 01.11.94 – Título: Ex-defunto
“Uma religiosa budista de 71 anos provocou pânico entre os sacerdotes
presentes em seu enterro, quando acordou em meio a seu próprio funeral,
depois de ter parado de respirar durante 24 horas, informou ontem uma
fonte de Bangcoc. A ex-defunta foi levada então para um hospital e estava
bem viva e em boa saúde, segundo declarou um médico, explicando que a
religiosa sofrera um ataque de diabetes e perdido os sentidos (mas nada
disse sobre o fato de ele ter parado de respirar)”.
Em 18.04.96 – Título: Ressurreição
“A britânica Maureen Jones, 59 anos, foi oficialmente declarada morta por
um médico depois de sofrer um ataque de diabetes. Momentos depois,
cumprindo função de rotina, policiais examinaram o corpo e, mexendo em
suas pernas, a ressuscitaram. Este foi o segundo caso deste tipo neste
ano na Grã-Bretanha. Em janeiro, a mulher de um fazendeiro, Daphne Banks,
61 anos, foi encontrada viva dentro de um necrotério, na região central
do país, depois que um médico a declarou morta. Mais tarde, Daphne disse
que estava tentando se matar”.
Se nos dias atuais ainda acontece isso, imagine antigamente,
quando a Medicina não conhecia tais fenômenos. Era, ou não era, para têlos como milagre? Observemos que, no caso da filha de Jairo, Jesus chegou
a dizer “a menina não está morta; ela dorme”; assim, houve, na verdade,
uma cura, não uma ressurreição propriamente dita.
Jo 11,1-44: “Ora, estava enfermo um homem chamado Lázaro, de Betânia,
aldeia de Maria e de sua irmã Marta. E Maria, cujo irmão Lázaro se achava
enfermo, era a mesma que ungiu o Senhor com bálsamo, e lhe enxugou os pés
com os seus cabelos. Mandaram, pois, as irmãs dizer a Jesus: 'Senhor, eis
que está enfermo aquele que tu amas'. Jesus, porém, ao ouvir isto, disse:
“Esta enfermidade não é para a morte, mas para glória de Deus, para que o
Filho de Deus seja glorificado por ela”. Ora, Jesus amava a Marta, e a
sua irmã, e a Lázaro. Quando, pois, ouviu que estava enfermo, ficou ainda
dois dias no lugar onde se achava. Depois disto, disse a seus discípulos:
'Vamos outra vez para Judéia'. Disseram-lhe eles: 'Rabi, ainda agora os
judeus procuravam apedrejar-te, e voltas para lá?' Respondeu Jesus: 'Não
são doze as horas do dia? Se alguém andar de dia, não tropeça, porque vê
a luz deste mundo; mas se andar de noite, tropeça, porque nele não há
luz'. E, tendo assim falado, acrescentou: 'Lázaro, o nosso amigo, dorme,
mas vou despertá-lo do sono'. Disseram-lhe, pois, os discípulos: 'Senhor,
se dorme, ficará bom'. Mas Jesus falara da sua morte; eles, porém,
entenderam que falava do repouso do sono. Então Jesus lhes disse
claramente: 'Lázaro morreu; e, por vossa causa, folgo de que eu lá não
estivesse, para que creiais; mas vamos ter com ele'. Disse, pois, Tomé,
chamado Dídimo, aos seus condiscípulos: 'Vamos nós também, para morrermos
com ele'. Chegando, pois Jesus encontrou-o já com quatro dias de
sepultura. Ora, Betânia distava de Jerusalém cerca de quinze estádios. E
muitos dos judeus tinham vindo visitar Marta e Maria, para as consolar
acerca de seu irmão. Marta, pois, ao saber que Jesus chegava, saiu-lhe ao
encontro; Maria, porém, ficou sentada em casa. Disse, pois, Marta a
Jesus: 'Senhor, se tivesses estado aqui, meu irmão não teria morrido. E
mesmo agora sei que tudo quanto pedires a Deus, Deus to concederá'.
Respondeu-lhe Jesus: 'Teu irmão há de ressurgir'. Disse-lhe Marta: 'Sei
que ele há de ressurgir na ressurreição, no último dia'. Declarou-lhe
Jesus: 'Eu sou a ressurreição e a vida; quem crê em mim, ainda que morra,
viverá; e todo aquele que vive, e crê em mim, jamais morrerá. Crês isto?'
Respondeu-lhe Marta: 'Sim, Senhor, eu creio que tu és o Cristo, o Filho
de Deus, que havia de vir ao mundo'. Dito isto, retirou-se e foi chamar
em segredo a Maria, sua irmã, e lhe disse: 'O Mestre está aí, e te
chama'. Ela, ouvindo isto, levantou-se depressa, e foi ter com ele. Pois
Jesus ainda não havia entrado na aldeia, mas estava no lugar onde Marta o
encontrara. Então os judeus que estavam com Maria em casa e a consolavam,
vendo-a levantar-se apressadamente e sair, seguiram-na, pensando que ia
ao sepulcro para chorar ali. Tendo, pois, Maria chegado ao lugar onde
Jesus estava, e vendo-o, lançou-se-lhe aos pés e disse: 'Senhor, se tu
estivesses aqui, meu irmão não teria morrido'. Jesus, pois, quando a viu
chorar, e chorarem também os judeus que com ela vinham, comoveu-se em
espírito, e perturbou-se. E perguntou: 'Onde o puseste?' Responderam-lhe:
'Senhor, vem e vê'. Jesus chorou. Disseram então os judeus: 'Vede como o
amava'. Mas alguns deles disseram: 'Não podia ele, que abriu os olhos ao
cego, fazer também que este não morresse?' Jesus, pois, comovendo-se
outra vez, profundamente, foi ao sepulcro; era uma gruta, e tinha uma
pedra posta sobre ela. Disse Jesus: 'Tirai a pedra'. Marta, irmã do
defunto, disse-lhe: 'Senhor, já cheira mal, porque está morto há quase
quatro dias'. Respondeu-lhe Jesus: 'Não te disse que, se creres, verás a
glória de Deus?' Tiraram então a pedra. E Jesus, levantando os olhos ao
céu, disse: 'Pai, graças te dou, porque me ouviste. Eu sabia que sempre
me ouves; mas por causa da multidão que está em redor é que assim falei,
para que eles creiam que tu me enviaste'. E, tendo dito isso, clamou em
alta voz: 'Lázaro, vem para fora!' Saiu o que estivera morto, ligados os
pés e as mãos com faixas, e o seu rosto envolto num lenço. Disse-lhes
Jesus: 'Desligai-o e deixai-o ir'”.
Se Jesus disse: “esta enfermidade não é para a morte” reafirmando,
por essa outra, que “Lázaro, nosso amigo, dorme, mas vou despertá-lo do
sono” essas duas afirmativas, estariam em contradição com a seguinte:
“Então Jesus lhes disse claramente: Lázaro morreu”. Como não aceitamos
que Jesus tenha se contradito, preferimos acreditar que houve uma
interpolação ao texto original, para reforçar a idéia da ressurreição da
carne, coisa que Jesus nunca ensinou, já que falava da ressurreição
espiritual. Paulo confirma isso ao dizer: “Irmãos, garanto o seguinte: a
carne e o sangue não podem herdar o reino de Deus, nem o que é
destrutível herdar a indestrutibilidade” (1Cor 15,50).
Mt 22,23-32: “Naquele mesmo dia, os saduceus, que negavam a ressurreição,
interrogaram-no: 'Mestre, Moisés disse: Se um homem morrer sem filhos,
seu irmão case-se com a sua viúva, e dê-lhe assim uma posteridade. Ora,
havia entre nós sete irmãos: o primeiro casou-se e morreu. Como não tinha
filhos, deixou sua mulher ao seu irmão. O mesmo sucedeu ao segundo,
depois ao terceiro, até ao sétimo. Por sua vez, depois deles todos,
morreu também a mulher. Na ressurreição, de qual dos sete será a mulher,
uma vez que todos a tiveram?' Respondeu-lhes Jesus: 'Errais, não
compreendendo as Escrituras nem o poder de Deus. Na ressurreição, os
homens não terão mulheres, nem as mulheres maridos: mas serão como os
anjos de Deus no céu. Quanto à ressurreição dos mortos, não lestes o que
Deus vos disse: 'Eu sou o Deus de Abraão, o Deus de Isaac e o Deus de
Jacó. Ora, ele não é o Deus dos mortos, mas Deus dos vivos'”.
Nessa passagem Jesus nos traz a idéia de que a ressurreição é
mesmo a espiritual. É pensamento comum, principalmente nas religiões
dogmáticas, que iremos ressuscitar de corpo e alma no final dos tempos.
Isso não condiz com aquele ensinamento de Jesus.
Aliás, perguntamos: se os homens não terão mulheres, nem as
mulheres maridos, qual a necessidade de ressuscitarmos neste mesmo corpo
físico? Não seremos como os anjos do céu? E já que se diz que “anjo não
tem sexo”, então qual seria a utilidade do corpo físico no plano
espiritual? Se nós seremos iguais aos anjos do céu não é por que os anjos
já foram homens? Se Deus, na criação, criou também os anjos, como
poderemos distinguir o anjo que foi criado, do que foi um homem?
Anjos, para nós Espíritas, nada mais são que Espíritos Puros, ou
seja, espíritos humanos que evoluíram, os que não mais necessitam
reencarnar; são os que “vivem diante Dele”.
E, para concluir nosso estudo, perguntamos: qual das duas
hipóteses – ressurreição do corpo ou ressurreição do espírito - estaria
mais próxima do reconhecimento da Ciência? Mas, antes de respondermos,
teremos que ter em mente: tudo o que a ciência descobriu ou vier a
descobrir sobre as leis que regulam qualquer tipo de fenômeno, coisa ou
situação, ela nada mais faz do que comprovar as leis divinas, já que tudo
que existe no Universo é obra de Deus.
A ciência diz que nosso corpo é composto principalmente de
oxigênio, hidrogênio, azoto e carbono, que se combinaram para formá-lo;
mas, uma vez morrendo e se decompondo, esses elementos vão para novas
combinações, formar novos corpos minerais, vegetais e animais (aqui
incluindo o homem). Assim, não haverá a mínima possibilidade de voltarmos
ao mesmo corpo que tínhamos quando vivos.
Está em plena expansão a TVP – Terapia de Vidas Passadas. Ainda
não se pode dizer que é uma ciência; mas, mais cedo do que muitos pensam,
será considerada como tal. Bom; a TVP é um processo que, por hipnose ou
relaxamento profundo, o terapeuta utiliza para levar o indivíduo retornar
mentalmente às suas vidas passadas, buscando nelas as causas
determinantes dos atuais problemas do referido indivíduo. Cada vez mais
encontramos médicos, psiquiatras e psicólogos lançando mão deste recurso
terapêutico para cura de seus pacientes. Embora não seja uma de suas
metas provar a reencarnação, fatalmente chegarão a isso.
Além da TVP, encontramos também pesquisas sendo realizadas com
métodos científicos buscando a comprovação dos fatos relatados por
crianças que se lembraram espontaneamente de uma vida anterior.
Por outro lado, se entendermos ressuscitar como fazer voltar à
vida; reviver; ressurgir, como consta do Aurélio, e considerando o que se
diz popularmente de ressurreição da carne ou, algumas vezes, de
ressurreição na carne, podemos perceber duas situações para que isso
ocorra. A ressurreição na carne significando voltar a viver em um novo
corpo, ou seja, o que nós denominamos de reencarnação. Já ressurreição da
carne, seria a saída definitiva do Espírito do ciclo da ressurreição na
carne, para viver sua plena vida de Espírito imortal, isto é, deixando o
ciclo das reencarnações sucessivas.
Inferno ou Purgatório?
É comum vermos as expressões: “a Bíblia diz”, “a Bíblia fala”,
“porque está na Bíblia”, “a Bíblia emprega a palavra tal em tal sentido”,
etc., como se ela fosse de fato um ser vivo com capacidade de pensar e
até de se expressar. Não entendem alguns teólogos, principalmente os
dogmáticos, que na verdade foram os autores bíblicos que pensaram e se
expressaram, e ao longo do tempo, foi ela, por força da afirmativa de ser
“a palavra de Deus”, adquirindo essa vida própria.
Se tivermos mente aberta, para analisar seu conteúdo, veremos que
existem várias passagens que não podem, de forma alguma, ser atribuídas a
Deus. Isso, por outro lado, colocaria em cheque a questão de ser ela
somente a palavra de Deus. Ora, como tudo que faz parte de rituais
religiosos, em todos os tempos e lugares, assume o caráter sagrado, e
considerando que a leitura da Bíblia, desde o advento do judaísmo, faz
parte do seu ritual, a Bíblia, para o cristão, por ser lida no ritual da
missa, também adquiriu o caráter sagrado, passando, por isso, a ter o
nome de Bíblia Sagrada, como a conhecemos hoje.
Devemos, para extrair a verdade que ela contém, analisar os
fatores culturais e os de época que, de maneira irrefutável,
influenciaram os autores bíblicos. Sabemos que muitas pessoas não admitem
essas coisas, mas não podemos compactuar com a ignorância, e deixar as
coisas como estão. Assim, para mantê-la intocável em sua essência,
devemos mostrar que determinadas coisas nela citadas foram mudando de
sentido (ou significado) com o passar dos tempos.
De uma maneira geral, para uma pessoa, parece ser muito mais fácil
acreditar em algo, mesmo que ele não exista, do que mudar o seu
pensamento a respeito de alguma coisa em que ela já acredita. Assim, com
certeza, o que iremos colocar não será ouvido por muitos. E talvez
sejamos execrados por outros, além daqueles que irão nos mandar “arder no
mármore do inferno”. Mas, nada disso nos fará silenciar diante do que
nossa consciência nos diz para fazer, já que buscamos “a verdade que
liberta”, não a que querem a todo custo nos impor. Achamos isso uma
afronta à nossa inteligência, pois agem como se ninguém, a não ser eles,
tivesse capacidade de pensar.
Os cinco primeiros livros da Bíblia formam o Pentateuco. O
Pentateuco é uma palavra grega que significa “cinco livros”. Antigamente
foram atribuídos a Moisés. Hoje em dia, não mais, porque entre eles se
relata a morte de Moisés. Compõe-se dos seguintes livros: Gênesis, Êxodo,
Números, Levítico e Deuteronômio. A este último é que os judeus chamavam
“a Lei”, já que nele se encontravam os mandamentos e os estatutos de
Deus.
O primeiro mandamento Divino aos homens, com a sua conseqüente
penalidade, nós vamos encontrá-lo em:
Gn 2,16-17: “E Javé Deus ordenou ao homem: ‘Você pode comer de todas as
árvores do jardim. Mas não pode comer da árvore do conhecimento do bem e
do mal, porque no dia em que dela comer, com certeza morrerá’”.
Assim, a pena para a desobediência ao mandamento seria a morte.
Relaciona-se, pois, a uma situação presente, e não para futura.
Mas, estranhamente, é o que se supõe, as penas impostas, são dadas
ao primeiro casal humano, foram:
- mulher: parir com dor, ter paixão que a arrastaria para o marido
(graças a Deus!), e que seria dominada por ele;
- homem: ter que trabalhar até o “suor do rosto”, para tirar da terra os
produtos dos quais deveria alimentar-se, e voltar ao pó, ou seja, morrer.
Devemos observar que todos os castigos impostos estão relacionados
à sua vivência diária, nada de vida após a morte.
Embora não tenha ainda estabelecido que seria uma desobediência
matar alguém, Deus exige explicação de Caim sobre a morte de seu irmão
Abel, e acaba por penalizá-lo. Dizendo a Caim que o solo não lhe daria
mais o seu produto, mesmo que o cultivasse, e que seria errante e perdido
pelo mundo. Continua tudo relacionado com a vida presente.
O homem cumprindo o “crescei e multiplicai-vos” (Gn 1,22) foi
povoando a Terra. E não sabemos por que, a certa altura, Deus viu que a
maldade do homem crescia na Terra, e que todo o projeto do coração do ser
humano era sempre mau. Arrepende-se de tê-lo criado, e resolve eliminá-lo
da face da Terra. Assim, escolhe entre os homens um justo, chamado Noé, e
o orienta a construir uma arca, pois iria salvá-lo e à sua família da
catástrofe que se iria iniciar com o dilúvio. A maldade do homem trouxelhe o castigo da morte.
Depois do dilúvio, Deus dita a Noé um mandamento: “Não comer os
animais com o sangue” (Gn 9,4), sem estabelecer a penalidade para quem
não o cumprisse.
Deus faz uma aliança com Abraão: Se ele considerasse o seu Deus,
lhe daria uma descendência numerosa, como as “estrelas do céu”.
Estabelece a circuncisão, como sinal dessa aliança perpétua. Diz ter
escolhido Abraão, para que ele instrua seus filhos, sua casa e seus
sucessores, a fim de se manterem no caminho de Javé, praticando a justiça
e o direito.
Deus diz a Abraão que o clamor contra Sodoma e Gomorra era muito
grande, e o pecado de seus habitantes era muito grave. Ora, até o
presente momento, Deus não havia definido o que era pecado ou não, assim
não poderia culpar a ninguém de estar pecando, não é mesmo? Para atender
a esse clamor, resolve destruir as duas cidades, salvando apenas Ló,
sobrinho de Abraão. Para isso “Javé fez chover do céu enxofre e fogo
sobre Sodoma e Gomorra, destruindo essas cidades e toda a planície,... e
viu a fumaça subir da terra como fumaça de uma fornalha” (Gn 19,24-28).
Passa-se o tempo. Estamos agora no Deserto de Sur, após a saída do
povo hebreu da escravidão no Egito. Apesar de ainda não ter estabelecido
nenhuma Lei para ser cumprida, Deus estranhamente diz: “Se você obedecer
a Javé seu Deus, praticando o que Ele aprova, ouvindo seus mandamentos e
observando todas as leis, eu não mandarei sobre você nenhuma das
enfermidades que mandei sobre os egípcios”. (Ex 15,26). A pena para a
desobediência seriam as enfermidades, ou seja, coisas, também, para uma
vida terrena.
Moisés exercia a função de uma espécie de Juiz nas questões em que
o povo o procurava, para que resolvesse. Pela narrativa, era o único que
conhecia os estatutos e as Leis de Deus, muito embora, até aquele
momento, não ficamos sabendo como Deus os tinha passado a ele. Somente
após três meses no deserto, diante do Monte Sinai, é que Deus aparece a
Moisés, e lhe entrega as tábuas com os Dez Mandamentos. Nessa ocasião,
Moisés, apresenta ao povo várias outras normas de conduta, dizendo ser
por ordem de Javé, muitas das quais a morte era a pena a ser aplicada ao
infrator, contrariando a determinação de “não matarás”, contidas nas duas
Tábuas que acabara de receber, as quais ainda deveriam estar debaixo de
seu braço.
Entre essas normas, encontramos: “quem trabalhar no dia de sábado
será réu de morte” (Ex 35,2). A grande questão é saber se essa pena
realmente procede de Deus. Veja que uma falta tão insignificante não
poderia, por bom senso, ter uma pena tão grande como essa. Por isso, não
a vemos como Divina, mas como uma necessidade de época, ou seja, Moisés,
para implantar o culto a um Deus único, impôs essa medida extrema para
atingir seu objetivo. Fizeram o mesmo na implantação do Cristianismo,
quando, “a ferro e fogo”, o queriam impor a todos os seres humanos,
através das Cruzadas e da Inquisição, ambas de triste memória, como atos
de extrema barbárie, praticados pela humanidade, só comparáveis com os da
2ª Guerra Mundial.
Moisés sobe, pela segunda vez, ao monte, e como estava demorando,
o povo resolve fazer um bezerro de ouro, e passa a adorá-lo como o deus
de Israel. Atitude que fez Deus inflamar-se em sua ira, ordenando a
Moisés: “Cada um coloque a espada na cintura. Passem e repassem o
acampamento, de porta a porta, matando até mesmo o seu irmão, companheiro
e parente” (Ex 32,27). Morrendo, naquele dia, três mil homens. Talvez
Deus tenha se esquecido do “não matarás” (Ex 20,13), e até aqui não se
tinha estabelecido nenhuma penalidade para quem não cumprissem os
Mandamentos.
Encontramos, sim, rituais que deveriam ser feitos para expiação
dos pecados. Estabeleceu-se que se alguém transgredisse, sem querer,
algum dos Mandamentos de Javé, fazendo uma coisa proibida, deveria
oferecer animais, sem defeito, em sacrifício pelo pecado; se fosse um
sacerdote, deveria imolar, pela violação cometida, um bezerro, animal
grande; se fosse a comunidade, deveria ser oferecido um bezerro, animal
grande, se fosse um chefe, um bode; se fosse um homem do povo, uma cabra,
e estabeleceu-se, ainda que: “... O sacerdote fará, assim, o rito pelo
pecado desse homem, e este ficará perdoado” (Lv 4,31). Depois, são
ditadas outras normas para casos especiais e sacrifícios de reparação.
Diz, ainda, quais são os animais puros e impuros, da purificação depois
do parto, sobre as doenças de pele, a lei sobre o leproso, a lei da
purificação do leproso, impurezas sexuais.
Estabeleceu-se, ainda, o dia do grande perdão, no qual deveria ser
oferecido o bode do sacrifício pelo pecado do povo, e cujo ritual
consistia:
Lv 16,21-22: “Colocará as duas mãos sobre a cabeça do bode e confessará
sobre ele todas as culpas, transgressões e pecados dos filhos de Israel.
Depois de colocar tudo sobre a cabeça do bode, mandará o animal para o
deserto. Assim, o bode levará sobre si, para uma região deserta, todas as
culpas deles...”.
Completando: “Esta será uma lei perpétua para vocês: uma vez por
ano será feita a expiação por todos os pecados dos filhos de Israel” (Lv
16,34). O que será que ocorreu com esse mandamento, já que, apesar de ser
uma lei perpétua, não vemos ninguém o cumprindo? Observemos que
transferiram a Jesus a função desse “bode”, ou melhor, “cordeiro
expiatório”.
Mais à frente é dito: “... Não comam o sangue de nenhuma espécie
de ser vivo, pois o sangue é a vida de todo ser vivo e quem o comer será
exterminado” (Lv 17,14). Como ninguém cumpre esse mandamento, não seria o
caso de se obedecer a essa ordem divina, exterminando todos os que o
contrariam?
Estamos agora em Levítico, capítulo 26, onde Deus fala das bênçãos
e maldições, como conseqüência do cumprimento ou não dos seus Estatutos e
suas normas. É o momento em que se estabelecem as penalidades para a
desobediência.
Vejamos, primeiramente, quais seriam as bênçãos:
Lv 26,3-12: “Se vocês seguirem meus estatutos, guardarem meus mandamentos
e os colocarem em prática, eu darei a vocês a chuva no tempo certo. Então
a terra dará seus produtos e a árvore do campo seus frutos. A debulha se
estenderá até a colheita da uva, e esta chegará até a semeadura. Vocês
comerão até ficar saciados e habitarão tranqüilos no país de vocês. Eu
farei reinar a paz no país e vocês dormirão sem alarmes de guerra. Farei
desaparecer do país as feras, e a espada não passará pelo país. Vocês
perseguirão os inimigos, e eles cairão diante de vocês ao fio da espada.
Cinco de vocês perseguirão cem, e cem de vocês perseguirão dez mil, e os
inimigos cairão diante de vocês ao fio da espada. Eu me voltarei para
vocês e os farei crescer e se multiplicar, mantendo com vocês a minha
aliança. E vocês comerão colheitas armazenadas e terão que jogar fora a
colheita antiga, para poderem guardar a nova. Colocarei a minha morada no
meio de vocês e nunca mais os rejeitarei. Eu caminharei com vocês. Serei
o Deus de vocês, e vocês serão o meu povo”.
O que podemos tirar dessas bênçãos não é o céu que as religiões
dizem ser o destino dos que seguem fielmente a Deus. Todas essas
recompensas prometidas estão relacionadas a uma vida terrena, não a uma
vida futura no céu. Ou será que estamos interpretando erradamente essa
passagem? Quem sabe se pelas maldições não poderíamos esclarecer isso? E,
se aí, nas entrelinhas, não estaria a questão da existência de várias
vidas?
Mas, vamos às maldições:
Lv 26,14-44: “Mas se vocês não me obedecerem e não colocarem em prática
todos esses mandamentos, se vocês rejeitarem meus estatutos e desprezarem
minhas normas, não pondo em prática meus mandamentos e rompendo minha
aliança, então eu os tratarei do seguinte modo: mandarei contra vocês o
terror, a fraqueza e a febre, que embaçam os olhos e consomem a vida.
Vocês espalharão as sementes em vão, pois o inimigo de vocês é que as
comerá. Eu me voltarei contra vocês, e vocês serão derrotados pelos
inimigos. Seus adversários os dominarão. E vocês fugirão sem que ninguém
os persiga. Apesar de tudo isso, se vocês ainda não me obedecerem, eu
lhes darei uma lição sete vezes maior, por causa de seus pecados.
Quebrarei a teimosia orgulhosa de vocês, fazendo com que o céu seja como
ferro, e a terra de vocês como bronze. Vocês consumirão inutilmente suas
energias, pois a terra não dará colheita, e as árvores do campo não
produzirão frutos. Se vocês ainda se opuserem a mim e não me obedecerem,
eu os castigarei sete vezes mais, por causa de seus pecados. Mandarei as
feras do campo contra vocês. Elas deixarão vocês sem filhos, reduzirão
seu gado e dizimarão vocês, a ponto de lhes deixar desertos os caminhos.
E, apesar desses castigos, se vocês ainda não se corrigirem e continuarem
a se opor a mim, eu também continuarei a ficar contra vocês, e os
castigarei sete vezes mais, por causa de seus pecados. Mandarei contra
vocês a espada vingadora da minha aliança. E quando vocês se refugiarem
em suas cidades, eu mandarei a peste, e vocês terão de se entregar aos
inimigos. Quando eu cortar de vocês o sustento de pão, dez mulheres irão
assar o seu pão no mesmo forno, e darão a vocês o pão racionado, e vocês
comerão, mas não ficarão saciados. E, apesar disso tudo, se vocês ainda
não me derem ouvidos e continuarem a se opor a mim, eu ficarei furioso
contra vocês, e os castigarei sete vezes mais, por causa de seus pecados.
Vocês comerão a carne de seus filhos e a carne de suas filhas. Eu
destruirei seus lugares altos, destroçarei seus altares de incenso,
jogarei seus cadáveres sobre os cadáveres de seus ídolos, e rejeitarei
vocês. Devastarei suas cidades, destruirei seus santuários e não
aspirarei o perfume do incenso de vocês. Devastarei o país de vocês, e os
inimigos que o ocuparem ficarão horrorizados. Quanto a vocês, eu os
espalharei no meio das nações e os perseguirei com a espada
desembainhada. Seus campos ficarão desertos e suas cidades em ruínas.
Então a terra desfrutará de seus próprios sábados, durante todos os dias
em que estiver desolada, enquanto vocês estiverem na terra dos inimigos.
Então a terra descansará e desfrutará de seus próprios sábados. E durante
todos os dias em que estiver desolada, ela descansará o descanso do
sábado que vocês não lhe deram enquanto nela habitavam. Quanto aos seus
sobreviventes, farei com que se acovardem na terra dos inimigos; ficarão
assustados com o barulho das folhas que voam, fugirão como se fosse da
espada, e cairão sem que ninguém os persiga. Tropeçarão uns nos outros,
como se estivessem diante da espada, sem que ninguém os persiga. Vocês
não poderão resistir aos inimigos, perecerão entre as nações, e a terra
dos inimigos devorará vocês. Aqueles de vocês que sobreviverem
apodrecerão no país inimigo, por causa da sua própria culpa e da culpa de
seus pais. Confessarão a própria culta e a culpa de seus pais, a culpa de
terem sido infiéis e de se oporem a mim. Eu também me oporei a eles e os
conduzirei ao país de seus inimigos, para ver se eu dobro o coração
incircunciso deles, e para ver se eles fazem penitência de sua culpa.
Então eu me lembrarei da minha aliança com Jacó, da aliança com Isaac, da
aliança com Abraão, e me lembrarei do país. No entanto, eles terão que
abandonar o país, e este poderá então desfrutar de seus sábados, enquanto
permanecer desolado com a ausência deles. Farão penitência pela culpa de
terem rejeitado meus mandamentos e desprezado minhas leis. Apesar de
tudo, quanto eles estiverem no país inimigo, eu não os rejeitarei, nem os
desprezarei até o ponto de exterminá-los e de romper minha aliança com
eles...”.
Mesmo em relação às penalidades, os castigos são sempre
relacionados com a vida aqui na terra, ou seja, na vida presente. Apesar
das penas serem extremamente rigorosas, nada de inferno para ninguém. E é
até importante ressaltar que, se Deus dá vários castigos cada vez maiores
(a expressão “sete vezes mais” foi utilizada por quatro vezes), é porque
espera a recuperação do infrator, por mais tardia que seja. E, ao final,
diz que “não os rejeitarei, nem os desprezarei até o ponto de exterminálos”, ou seja, mesmo que errem muito, Deus ainda possui uma enorme
comiseração para com os infratores. Excluindo, portanto, qualquer idéia
de penas eternas. É o que podemos deduzir de Ez 33,11: “... Não sinto
nenhum prazer com a morte do injusto. O que eu quero é que ele mude de
comportamento e viva”.
Seguindo, vamos parar em Deuteronômio, capítulo 25, onde
encontramos algo novo, pois até aqui nada merece destaque, e algumas
narrativas são repetições de outras que constam dos livros anteriores.
Vejamos a passagem:
Dt 25,1-3: “Quando houver demanda entre dois homens e forem à justiça,
eles serão julgados, absolvendo-se o inocente e condenando-se o culpado.
Se o culpado merecer açoites, o juiz o fará deitar-se no chão e mandará
açoitá-lo em sua presença, com número de açoites proporcional à culpa.
Podem açoitá-lo até quarenta vezes, não mais; isso para não acontecer que
a ferida se torne grave, caso seja açoitado mais vezes, e seu irmão fique
marcado diante de você”.
Merecem comentários:
- “absolvendo-se o inocente”: isto significa que não se deve
condenar um inocente.
- “condenando-se o culpado”: por questão de justiça o culpado
deverá ser condenado.
- “se o culpado merecer açoites”: sinal que pode haver situação
especial em que o culpado não mereça receber um castigo, uma repreensão
poderia, talvez, ser-lhe mais útil.
- “o juiz... mandará açoitá-lo em sua presença”: a presença
pessoal do Juiz indica a necessidade de se ter certeza do cumprimento da
pena, se o culpado a merecer.
- “com número de açoites proporcional à culpa”: sendo o castigo
proporcional à culpa, significa que não poderá haver pena igual para
todos os tipos de infração à lei.
- “podem açoitá-lo até quarenta vezes, não mais”: significa,
incontestavelmente, que tudo tem um limite, que a pena não poderá ser
eterna.
Íamos passando, mas em Dt 24,16, existe algo que, também, merece
ser comentado. Diz lá: “Os pais não serão mortos pela culpa dos filhos,
nem os filhos pela culpa dos pais. Cada um será executado por causa do
seu próprio crime”. Isso acaba, de uma vez por todas, com essa absurda
idéia de que ainda estamos pagando pelo pecado de Adão e Eva, já que o
castigo está indo além do culpado, e que, de certa forma, está se
perpetuando a pena imposta ao “primeiro casal”, uma vez que todas as
pessoas, que vierem depois deles, continuarão indefinidamente pagando
pela desobediência deles.
Vejamos agora alguma coisa sobre o profeta Isaías, já que o usamno para justificar o inferno eterno.
Na visão que Isaías teve a respeito de Judá e Jerusalém,
encontramos o seguinte:
Is 1,16-20: “Lavem-se, purifiquem-se, tirem da minha vista as maldades
que vocês praticam. Parem de fazer o mal, aprendam a fazer o bem: busquem
o direito, socorram o oprimido, façam justiça ao órfão, defendam a causa
da viúva. Então venham e discutiremos – diz Javé. Ainda que seus pecados
sejam vermelhos como púrpura, ficarão brancos como a neve; ainda que
sejam vermelhos como escarlate, ficarão como a lã. Se vocês estiverem
dispostos a obedecer, comerão os frutos da terra; mas, se vocês recusam e
se revoltam, serão devorados pela espada. Assim fala a boca de Javé”.
Para estar de bem com Deus, é necessária a prática do amor ao
próximo, atendendo-o em todas as suas necessidades. Como recompensa, Ele
promete uma vida terrena boa, se não, a morte, que aqui nada mais é que
estar sem Deus. Outro ponto importante é que sempre usará de misericórdia
para os nossos erros, já que Ele é um Pai amoroso.
Mais à frente, lemos: “Se absolvermos o malvado, ele nunca aprende
a justiça; sobre a terra ele distorce as coisas direitas e não vê a
grandeza de Javé” (Is 26,10).A idéia central da passagem vai de encontro
ao simples perdão, como pensam alguns, já que se diz ser necessário
“castigar” o culpado, para que ele, efetivamente, possa aprender a
justiça.
Queremos lhe mostrar como é grande a dificuldade com a qual sempre
nos deparamos, quando estudamos a Bíblia. Cada tradutor coloca o termo
que lhe convém, isso, muitas vezes, quando não muda o sentido do texto,
fazendo com que o leitor, menos avisado, o interprete fora do significado
original, levando-o, portanto, a uma conclusão errada.
Verifiquemos a passagem de Is 38,10, como exemplo, que é um caso
típico disso:
1 – Bíblia Anotada: “Eu disse: Em pleno vigor de meus dias hei de
entrar nas portas do além; roubado estou do resto dos meus anos”.
Nota no rodapé: sepultura. Lit., Sheol, aqui equivalente à morte,
i.e., na morte o indivíduo fica separado dos vivos que podem louvar a
Deus.
2 – Bíblia Ave Maria: “Eu dizia: ‘É necessário, pois, que eu me
vá, no apogeu da minha vida. Serei encerrado por detrás das portas da
habitação dos mortos, durante os anos que me restariam viver”.
3 – Bíblia Barsa: “Eu disse: Na metade de meus dias irei para as
portas do inferno. Busquei o resto de meus anos”.
Nota no rodapé: Inferno: propriamente, Sheol, a residência dos
mortos.
4 – Bíblia Pastoral: “Eu dizia: ‘Bem no meio da minha vida, eu me
vou; pelo resto dos meus anos, ficarei postado à porta da mansão dos
mortos”.
5 – Bíblia Vozes: “Eu disse: No melhor de meus dias devo partir.
Sou trazido às portas do xeol pelo resto de meus anos”.
Nota no rodapé: O Xeol, ou morada dos mortos, no tempo de Isaías
era visto como um local de semi-vida, separado de Deus e onde louvá-lo
era impossível (Sl 6,6; 30,10; 38,13; 88,11-13).
6 – Bíblia Shammah (em Bytes): “Eu disse: No cessar de meus dias
ir-me-ei às portas da sepultura; já estou privado do restante dos meus
anos”.
Observemos que as expressões “do além”, “habitação dos mortos”,
“inferno”, “mansão dos mortos”, “xeol” e “sepultura”, são todas elas
repetidas em Ecl 9,10, respectivamente em cada uma dessas Bíblias. E,
pelo contexto, de ambas as passagens, deveriam ter o mesmo significado.
Entretanto, não é o que vemos sendo usado, principalmente, para a palavra
“inferno”, que adquiriu status de um lugar somente para os maus.
Inclusive, notamos que a Bíblia protestante é que mais usa essa palavra.
O que podemos confirmar pelas informações contidas nelas, nas
explicações e em notas no rodapé:
“Habitação dos mortos: expressão freqüente que traduz o vocábulo
hebraico Cheol. Os antigos hebreus não tinham, da vida futura, uma idéia
tão clara como nós. Para eles, a alma separada do corpo permanecia num
lugar obscuro, de tristeza e esquecimento, em que o destino dos bons era
confundido com o dos maus. Donde a necessidade de uma retribuição
terrestre para os atos humanos”. (Bíblia Sagrada Ave Maria, p. 660).
“Os hebreus concebiam o cheol como imensa caverna subterrânea,
tenebrosa, aonde acreditavam fossem as almas para passar uma vida amorfa,
sem consolação, esquecidas de todos e esquecidas elas mesmas”. (Bíblia
Sagrada Paulinas, p. 587).
“Para o autor (Eclesiastes), como para os seus contemporâneos,
todos os homens vão, depois da morte, para um único lugar, o cheol, ou a
região dos mortos. A existência nesse lugar é descrita como uma
existência sem consolações, nas trevas, sem felicidade alguma, onde
nenhuma relação mais se tem com o que acontece na terra”. (Bíblia Sagrada
Ave Maria, p. 33).
Ressaltamos, para melhor localizar a época desse pensamento, que o
livro Eclesiastes foi escrito entre os anos 190 a 180, a.C. Ele relata as
condições sociais do período dos Ptolomeus (323-145 a.C.).
Outro fato curioso é a variação da seguinte expressão: “em pleno
vigor dos meus dias”, “no apogeu de minha vida”, “na metade dos meus
dias”, “no meio de minha vida”, “no melhor dos meus dias” e, finalmente,
a última “no cessar dos meus dias” que foge completamente ao sentido do
texto, já que a idéia de “cessar” quer significar final da vida, enquanto
que, pelo contexto, quer dizer o período em que se está no seu auge.
Seguindo:
Is 66,14-16.24: “... A mão de Javé se manifestará para os seus servos,
mas se indignará contra seus inimigos. Porque Javé vem com fogo, e seus
carros parecem furacão, para desabafar sua ira com ardor e sua ameaça com
chamas de fogo. É com fogo que Javé fará justiça sobre toda a terra, e
com sua espada ameaça o mundo todo: são muitas as vítimas que ele faz. Ao
sair, eles verão os cadáveres daqueles que se revoltaram contra mim,
porque o verme que os corrói não morre jamais e o fogo que os consome
jamais se apaga...”.
É dessa passagem que as correntes religiosas buscam sustentar o
“inferno eterno”, entretanto, se bem observamos, é apenas uma figura de
linguagem, sendo, portanto, um simbolismo, não uma coisa objetiva.
Na realidade “este inferno foi localizado no vale de Hinon, a
Geena, lugar maldito, profanado outrora pelo culto de Moloc, deus dos
mortos, tornado em seguida desaguadouro e ossuário, onde eram jogados,
sem sepultura, os corpos dos apóstatas”. (Bíblia Sagrada Ave Maria, p.
1031).
Explicam-nos:
“Geena. (do hebr. Gê-hinnon, vila de Hinnon). Conhecido também por
‘Vale de Josafá’ está situado ao sul de Jerusalém e era considerado lugar
maldito por causa dos sacrifícios de crianças que ali fizeram ao ídolo
Moloc (ou Tofet) ao qual chegaram a construir um templo. O santo rei
Josias, na restauração que fez de Israel destruiu o templo e transformou
o lugar em depósito de lixo. Por óbvios motivos de higiene, aí mantinham
os judeus um fogo permanentemente aceso. Com o tempo, passou naturalmente
esta palavra a ser empregada como sinônimo de maldição e Jesus usou-a
para designar o Inferno”. (Dicionário Bíblico Universal, p. 102).
Busquemos a passagem de Mc 9,43: “Se tua mão for para ti ocasião
de perda, corta. Melhor te será entrares na vida aleijado do que com duas
mãos ires para o inferno, o fogo que não se apaga”. Várias traduções, ao
invés de inferno colocam geena. Só que o significado de geena não é o
inferno que os teólogos dizem. Podemos confirmar isso na explicação dada
nesta passagem de Marcos constante da Bíblia Vozes: “Para o “inferno”,
literalmente, para a “geena”, isto é, o vale a ocidente de Jerusalém,
lixeira da cidade, onde um fogo permanente queimava os detritos, e vermes
fervilhavam na podridão”. (p. 1225). Sendo, portanto, de sentido
completamente diferente do que querem dar.
E, quanto à questão do significado de fogo, devemos entender:
“O fogo que fulmina a imaginação dos israelitas é fogo do trovão,
admirado por sua dupla eficácia: o raio destruidor e a tempestade, fonte
de chuva benfeitora. Considerado pelos semitas como o símbolo de sua
divindade, o fogo se torna sinal de Javé, cenário necessário de suas
manifestações, símbolo de sua presença”. (Dicionário Bíblico Universal,
p. 304).
O fogo é considerado um elemento purificador, como bem podemos ver
pela seguinte passagem:
Ez 24,9-13: “Por isso, assim diz o Senhor Javé: Ai da cidade sanguinária!
Eu também vou fazer uma grande fogueira. ...Coloque a panela vazia em
cima das brasas, para que esquente até o ferro ficar vermelho, para que a
sujeira se derreta e a ferrugem desapareça. Por mais que alguém se
esforce, nem com o fogo a ferrugem se descola. A devassidão é a sua
sujeira; eu quis purificar você, mas você não se deixou purificar. Por
isso, você não será purificada de sua sujeira enquanto eu não derramar
sobre você a minha ira”.
Vejamos a palavra eternidade:
“Em parte alguma da Bíblia se encontra a idéia de uma eternidade
que seria imobilidade perfeita, ‘fora do tempo’. Mas a palavra hebraica
olam para o AT e sua tradução grega aiôn para os LXX e o NT designam um
período completo, determinado, apesar da incerteza de sua duração. Porque
a palavra hebraica olam visa o que está oculto, secreto, cujo começo e
fim são ignorados: o que é indefinido ou indeterminável. ... O “fogo” é
chamado “eterno” porque é misterioso e faz parte da “duração que vem”.
(Dicionário Bíblico Universal, p. 263).
Assim, a expressão “fogo eterno” poderia, dentro da perspectiva de
que “... a misericórdia triunfa sobre o juízo” (Tg 2,13), ser entendida
como um período de purificação, do qual não se sabe o fim, nada mais que
isso. Podemos comprovar usando a passagem Sl 103,8-9: “O Senhor é
misericordioso e compassivo; longânimo e assaz benigno. Não repreende
perpetuamente, nem conserva para sempre a sua ira”.
Chegamos a uma interessante conclusão: que apesar da palavra
inferno constar da Bíblia, não o podemos aceitar, a não ser no sentido de
“um longo tempo de purificação”, o que se confunde com o conceito de
purgatório, que somos forçados a aceitar, mesmo não constando da Bíblia,
já que alguém poderia alegar isso.
Kardec, analisando essa questão, diz:
O princípio do purgatório está, pois, fundado na eqüidade, porque,
comparado à justiça humana, é a detenção temporária ao lado da condenação
à perpetuidade. O que se pensar de um país que não tivesse senão a pena
de morte para os crimes e os mais simples delitos? Sem o purgatório, não
há para as almas senão duas alternativas extremas: a felicidade absoluta
ou o suplício eterno. Nessa hipótese, em que se tornam as almas culpadas
somente por faltas leves? Ou elas participam da felicidade dos eleitos
sem serem perfeitas, ou sofrem o castigo dos maiores criminosos sem terem
feito muito mal, o que não seria nem justo nem racional. (...)
O purgatório não é, pois, uma idéia vaga e incerta; é uma realidade
material que vemos, tocamos e experimentamos; está nos mundos de
expiação, e a Terra é um desses mundos; os homens nela expiam seu passado
e seu presente em proveito de seu futuro. Mas, contrariamente à idéia que
deles se faz, depende de cada um abreviar ou prolongar a sua estada,
segundo o grau de adiantamento e de depuração, que tenha alcançado pelo
seu trabalho sobre si mesmo, deles se sai, não porque se terminou seu
tempo ou por méritos de outrem, mas pelo fato de seu próprio mérito,
segundo estas palavras de Cristo: ‘A cada um segundo as suas obras’,
palavras que resumem toda a justiça de Deus. (KARDEC, O Céu e o Inferno,
1993, pp. 54-56).
Devemos ressaltar a idéia de Orígenes, escritor e teólogo cristão
do século III, que ensinava que a finalidade desse castigo era
purgatorial e proporcional à culpa dos indivíduos. Com o tempo, o efeito
purificador chegaria a todos (cfe. Enciclopédia Encarta).
Achamos que a mudança de sentido se deve, principalmente, à
influência cultural dos povos que dominaram os hebreus. Veja o que lemos
no livro A História da Bíblia:
“Durante a longa residência na Pérsia, os judeus travaram
conhecimento com um novo sistema religioso. Os persas seguiam um grande
mestre de nome Zaratustra, ou Zoroastro”.
“Zaratustra considerava a vida como uma eterna luta entre o Bem e o
Mal. O deus do Bem, Ormuzd, estava sempre em guerra com o deus do Mal e
da ignorância – Ariman. Ora, isto era uma idéia nova para maior parte dos
judeus”.
“Até então haviam eles reconhecido a um senhor único, ao qual deram
o nome de Jeová. Quando as coisas corriam mal, quando eles eram
derrotados nas batalhas ou assolados por moléstias, invariavelmente
atribuíam o desastre à falta de devoção do povo. A idéia de que o pecado
proviesse da interferência dum espírito do mal, nunca lhes ocorrera. A
própria serpente no Paraíso parecia-lhes menos culpada que Adão e Eva, os
quais conscientemente haviam desobedecido à vontade divina”.
“Sob a influência das doutrinas de Zaratustra, os judeus começaram
a crer na existência dum espírito que procurava desfazer a obra de Jeová.
E a esse adversário deram o nome de Satã”.
“Passaram a odiá-lo e temê-lo, e no ano 331 convenceram-se de que
Satã andava pela terra”. (VAN LOON, 1981, p. 122).
Podemos completar com as informações da Enciclopédia Encarta a
respeito do Zoroastrismo:
“Religião fundada na antiga Pérsia por Zoroastro. Os zoroástricos,
chamados parsis, são numerosos na Índia. A pregação de sua doutrina se
conserva nos Gathas métricos (salmos), que formam parte da escritura
sagrada do Avesta”.
“Os dogmas dos Gathas consistem em um culto monoteísta de Ahura
Mazda (o “Senhor da sabedoria”) e em um dualismo ético que contrapõe a
Verdade (Asha) e a Mentira (Druj). Tudo o que é bom se apóia nas
emanações de Ahura Mazda: Spenta Maineu (o Espírito benfeitor); todo o
mal é causado por seu irmão gêmeo, Angra Maineu (o Espírito diabólico).
Após a morte, a alma de cada pessoa será julgada na “Ponte da
discriminação”, quem seguiu a Verdade chegará ao paraíso; os partidários
da Mentira cairão no inferno”.
Isso tem muito a ver com o nosso tema, pois acabamos de destronar
o “pai da mentira”, que tanto horror causa aos adeptos das religiões
dogmáticas, pois dizem que ele irá arrastá-los para o fogo do inferno.
Concluindo nosso estudo vamos refletir: “Se vocês, que são maus,
sabem dar coisas boas a seus filhos, quanto mais o Pai de vocês que está
no céu dará coisas boas aos que lhe pedirem” (Mt 7,11) e com absoluta
certeza o inferno eterno é coisa má.
E além do mais, se “o Pai que está no céu não quer que nenhum
desses pequeninos se perca” (Mt 18,14), isso indica que irá acontecer,
pois tudo o que Deus quer, de fato acontece, com absoluta certeza.
Acaba aqui o que muitas vezes é utilizado como instrumento de
pressão para exigir o dízimo de pobres coitados, que com medo de irem
para o inferno eterno pagam a qualquer preço seu lugarzinho no céu.
Jesus ao dizer: “daí não sairá, enquanto não pagar até o último
centavo” (Mt 5,26) e “O patrão indignou-se, e mandou entregar esse
empregado aos torturadores, até que pagasse toda a sua dívida” (Mt 18,34)
deixa claro que até pagar a dívida ou o último centavo seria o tempo em
que o devedor ficaria preso ou entregue aos torturadores, não mais que
isso, abolindo, portanto, a idéia do inferno eterno.
As religiões dogmáticas, ao invés de desenvolverem em seus
adeptos a idéia de um Deus de amor, para que cada um passe a
verdadeiramente amá-Lo, e assim deixem de praticar o mal espontaneamente.
Contudo, confundem-nos com ameaças do inferno, num sentido incompatível
com a bondade de Deus para conosco, deixando seus fiéis em dúvidas sobre
o que mesmo seguir. Usam de uma psicologia negativa, querendo que Deus
seja TEMIDO. Isso é puro TERRORISMO RELIGIOSO.
Os milagres existem?
Vamos fazer uma leitura dinâmica na Bíblia para ver se nela
encontramos algo em que possamos nos apoiar para responder a essa
pergunta.
O primeiro milagre que nos surge na Bíblia, é Deus criando, do
nada, a Terra e o Universo num período fantástico de seis dias. Ora, hoje
a ciência vem provar que esses dias são, na realidade, períodos de
bilhões e bilhões de anos, e não, como até há pouco tempo ainda se
pensava, serem dias de apenas 24 horas.
A criação do homem não deixa também de ser um fenômeno milagroso,
já que Deus faz com que um monte de barro se transforme num ser humano.
Entretanto, não vemos grandes diferenças entre nós e os animais,
porquanto, os elementos que compõem nosso corpo físico são os mesmos que
formam o corpo deles, inclusive, os nossos órgãos, com as suas
respectivas funções, são muito semelhantes nesses dois seres. Tanta
analogia assim, por questão de lógica, só pode existir se eles tiverem a
mesma origem, ou seja, se surgissem duma mesma maneira. Não entendemos
porque ainda se diz que o homem foi criado diferente. Bom; a verdade é
que a narrativa bíblica deve ser tomada no sentido simbólico, qual seja,
a de que o corpo humano se formou dos elementos que já existiam na
natureza, da mesma forma que o corpo dos animais.
Arrependido de ter criado o homem - como se fosse possível - Deus
re
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