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O PERDÃO
Jesus começa a Sua vida pública pregando a conversão. 0 perdão só pode ser concedido
por Deus, mas é preciso que alguém o aceite. A conversão é este acto do homem que
aceita a graça oferecida pelo Senhor. Não se trata de converter-se para obter,
automaticamente o perdão; este é uma graça e a conversão é o acolhimento desta graça.
Os profetas pregavam a conversão como caminho para o perdão. Foi esta a missão de
João Baptista e é também este um dos aspectos da missão de Jesus. “Esta geração é uma
geração perversa; pede um sinal, mas não lhe será dado nenhum sinal a não ser o de
Jonas”, declara em Lucas 11, 29: o sinal de Jonas é o chamamento à conversão. Marcos
resume deste modo a pregação inicial de Jesus: “Completou-se o tempo e o Reino de
Deus está perto: arrependei-vos e acreditai na Roa Nova" (Mc 1, 15). Esta conversão
é, portanto, a participação do homem no seu próprio perdão.
Nos evangelhos sinópticos diz-se, uma vez, que Jesus anunciou o perdão de Deus a um
pecador; Jesus declara ao paralítico que Lhe trazem para ser curado “Teus pecados te
são perdoados." É uma fórmula muito modesta e reservada; Jesus não diz "Eu te
perdoo os teus pecados," mas “os teus pecados te são perdoados,” isto é, 'Deus te
perdoa os teus pecados. Deus perdoa os pecados em Jesus Cristo. Por outro lado, o
perdão individual deste paralítico é o sinal do perdão universal, definitivo que será dado
no fim dos tempos. Assim como o milagre é sinal da salvação definitiva, o perdão que
Jesus dá, durante a vida terrena, é uma antecipação, uma prefiguração da salvação
universal.
Este é o único caso em que, segundo o evangelho de Marcos, Jesus concede o perdão
desta maneira. Lucas fala-nos doutros casos, mas, de qualquer modo, pouco numerosos.
E isto porque, segundo o pensamento cristão, o lugar autêntico do perdão é o mistério
pascal. É na ressurreição de Jesus que é anunciado o perdão a todos os homens, que todos
os homens são chamados ao perdão. Mas este perdão, outorgado na ressurreição de
Cristo, tira todas as suas consequências da parusia, do fim dos tempos. Com efeito,
mesmo depois da ressurreição, todos os homens são pecadores; estamos seguros de ter
sido perdoados, mas também estamos certos de sermos ainda pecadores. Só no fim dos
tempos o perdão será definitivo. Por isso, todos os actos de perdão de Jesus, durante a
Sua vida terrestre, não são mais que sinais, promessas do perdão definitivo.
Dentre todos os autores do Novo Testamento, Lucas é o que mais insiste na conversão,
no perdão já concedido por Jesus durante a Sua vida terrena. Vamos estudar os seis textos
principais em que Lucas nos fala deste assunto.
JOÃO BAPTISTA ANUNCIA O PERDÃO DE JESUS CRISTO
João Baptista não perdoa os pecados; antes, prega um baptismo de conversão em ordem
ao perdão dos pecados, perdão este que Deus iria outorgar-nos em Jesus Cristo. Lucas
segue o texto de Marcos, mas insiste mais que ele nesta ideia. Fixemos a nossa atenção
em dois textos.
0 “Benedictus” é, sem dúvida, na sua origem, um texto litúrgico da Igreja primitiva, que
celebra a salvação pascal em Jesus Cristo. Neste texto canta-se a salvação concedida à
1
Casa de David, para que possamos servir o Senhor em santidade e justiça. Neste hino, há
uma estrofe que define a missão de João Baptista: E tu, menino, serás chamado profeta
do Altíssimo; porque irás adiante do Senhor a preparar os Seus caminhos; "esta
fórmula designa o Baptista como profeta do Salvador, como novo Elias que deveria vir
anunciar o julgamento de Deus, como tinha dito o profeta Malaquias (3, 23-24); Tu irás
adiante do Senhor a preparar os Seus caminhos, para dar a conhecer ao Seu Povo a
Sua Salvação pela remissão dos pecados"(Lc 1, 76-77). João não confere o perdão dos
pecados, mas o conhecimento da salvação que será dada no perdão dos pecados. Ele é o
profeta do perdão, o último que vem antes deste perdão obtido em Jesus Cristo.
Segundo a anunciação a Zacarias (Lc 1, 17), João devia vir "para fazer volver os
corações dos pais a seus filhos"(ver Mal 3, 24). Esta é a finalidade do baptismo de
conversão que Lucas refere várias vezes nos Actos (13, 24; 19, 4).
No seu evangelho, Lucas insiste, sobretudo, na descrição desta conversão. Assim, João
Baptista pede aos seus ouvintes que produzam frutos de sincero arrependimento.'
Lucas pensa certamente nas diferentes maneiras de conversão que precisa em 3, 1014:"E as multidões perguntavam-Lhe. Que devemos, então, fazer? ... Em Lucas, este
vocabulário é próprio da linguagem da conversão. Paulo, no caminho de Damasco,
pergunta "Senhor, que quereis que eu faça?,' isto é, por que actos concretos vou eu
manifestar a minha conversão? João Baptista pormenoriza estes actos; ele reclama a
partilha fraterna dos bens: " Quem tem duas túnicas reparta com quem não tem
nenhuma, e quem tem mantimentos faça o mesmo." Prega também a justiça aos
soldados: , “Não exerçais violência sobre ninguém, não denuncieis injustamente e.
contentai-vos com o vosso soldo assim como aos colectores de impostos: "nem
violências nem injustiças”. Lucas preocupa-se muito com o realismo desta conversão. E
com o sentido da mesma: trata-se duma conversão com vista ao perdão dos pecados, que
prepara o acolhimento deste perdão. A função de João Baptista é preparar este perdão.
Jesus é quem concede este perdão, Em Lucas encontramo-nos perante dois textos em que
se diz isto explicitamente; em três outros textos não aparece a palavra mas o sentido
profundo é este. Todos estes textos, salvo o primeiro, são próprios de Lucas.
O PARALÍTICO PERDOADO - 5, 17-26
Esta cura do paralítico é narrada pelos três evangelhos sinópticos e constitui um dos
primeiros milagres de Jesus1.
Comecemos por algumas observações literárias. Estamos em presença duma narrativa de
milagres, mas claramente ao serviço duma doutrina: o milagre é sinal do perdão; a
finalidade do texto é mostrar que Jesus tem poder para perdoar os pecados. Muito se tem
falado acerca da origem do presente texto; pôs-se o problema de ele ter sido construído
em dois tempos: uma narrativa de milagres teria sido utilizada para ensinar a doutrina do
perdão. É possível. Os evangelhos nunca são fotografias ou atestados matemáticos
daquilo que Jesus fez. São, antes, redigidos à luz do mistério de Jesus na sua totalidade e
sempre compostos para ensinar. E nisto, eles são fiéis a Jesus.
O perdão aparece neste texto como algo acrescentado ao milagre propriamente dito; se
omitimos este aspecto, a narrativa mantém a sua perfeita unidade e compreensão; mas a
1
(1) Ver G. GAIDE, Le Paralytique pardonné et guéri, Mc 2, 1-12 em Assemblées du Seigneur, no 38,
1970, p. 79-88.
2
composição actual encontrada nos três sinópticos, é extremamente antiga, e é desta que
nos vamos ocupar imediatamente.
Na introdução (Lc 5, 17-19), Lucas coloca todos os elementos que vão entrar no texto: o
auditório, os doutores da Lei que vão ser utilizados para reagir à palavra de Jesus, o
próprio Jesus, que estava a ensinar (isto é normal numa narrativa de milagres: um milagre
é sempre feito para ensinar); e Lucas acrescenta que o poder do Senhor levava-o a
realizar curas isto é, que Jesus tem o poder de fazer milagres.
E eis que uns homens trazem, num catre, um paralítico. Procuram levá-lo à presença de
Jesus. Como há muita gente, sobem ao telhado e, através das telhas, desceram-no até
junto de Jesus. Vemos neste pormenor que Lucas é grego, pois na Palestina as casas não
têm telha.
Eis-nos agora perante a narrativa do perdão (v. 20ss). Assistimos a um fenómeno
classicamente bíblico de solidariedade: Jesus vê a fé do grupo, e, naturalmente, a do
paralítico mas também a dos homens que o trazem; é esta fé que os torna capazes de
receber o milagre como sinal de Deus. Esta fé inicial permite a actuação de Jesus. Vendo
a fé deles, disse-lhes: Homem, os teus pecados estão perdoados.”Homem”: Mt-Mc
escrevem “filho”; que é mais semítico." Os teus pecados estão perdoados ou são
perdoados: " um passivo que, na língua do tempo de Jesus, é geralmente uma maneira de
exprimir Deus em acção. Há mais exemplos: Bem-aventurados os que perdoam; eles
serão perdoados;' perdoados por Deus; 'o Filho do Homem vai ser entregue; não por
Judas, mas por Deus, para perdão dos nossos pecados. Aqui está um tema da dogmática
cristã primitiva. Este passivo é uma maneira de evitar a pronúncia do nome de Deus, por
respeito. Traduzindo na nossa língua, Jesus diz simplesmente "Deus te perdoa os teus
pecados."
O que significa isto no pensamento de Jesus? Que chegámos ao fim dos tempos, que já
chegou o Reino de Deus, tempo em que os pecados são perdoados. Todo o A.T. estava
orientado para este dia em que Deus perdoaria os pecados, dia da nova Aliança (Jer 31,
31ss). Para Jesus, declarar: "Os teus pecados estão perdoados o mesmo que dizer: "O
Reino de Deus já chegou:'
Já chegou... mas ainda não chegou totalmente! Temos que passar antes pela Páscoa, é
necessário chegar à Parusia para que este Reino se estabeleça definitivamente. Esta
salvação é escatológica, no fim dos tempos; e, no entanto, já está em acção, inteiramente
presente em Jesus. Estas duas dimensões são muito características do pensamento de
Jesus. Isto é especialmente verdade no que se refere ao perdão dos pecados. O Reino de
Deus é o perdão dos pecadores... e este perdão deixa-nos ainda pecadores; os nossos
pecados são perdoados... e, no entanto, continuaremos a ter necessidade de perdão. Este
paradoxo do Evangelho e da vida cristã repousa na certeza de que a salvação está em
Jesus Cristo, que ele está já em acção, mas que não terá pleno cumprimento, de modo
definitivo, irrevogável, senão no fim dos tempos. Este perdão de Deus só Jesus pode
evocá-lo, pois só Ele sabe que o Reino de Deus está presente em Si próprio.
Imediatamente escribas e fariseus começam a discutir: "Quem é Este que profere
blasfémias? Quem pode perdoar pecados senão só Deus?` Eles têm razão. O pecado é
uma ofensa feita a Deus - isto é, o núcleo tanto do Antigo como do Novo Testamento - só
Deus o pode perdoar. O seu erro está em recusar a análise da situação para encontrar
3
diante de si mesmos um enviado de Deus cuja missão é precisamente anunciar o perdão,
um enviado tal como nunca houve outro semelhante. É a primeira vez na história
religiosa da humanidade que um homem ousa dizer "Os teus pecados estão
perdoados”. No entanto, Jesus faz isso com grande humildade; Ele não diz: "Eu te
perdoo os teus pecados", mas, diante da fé dos que estão na Sua presença, Ele tem
consciência de ser a salvação enviada aos homens. Ultrapassando um pouco os limites do
texto em si e partindo do conjunto do Evangelho, podemos dizer que, para Jesus, o
perdão dos pecados é outorgado na Sua ressurreição, na Sua morte, no Seu sacrifício; o
perdão é dado no Seu mistério pascal. E aqui, Jesus antecipa-o; é uma espécie de anúncio,
de profecia, um sinal do que nos será concedido na Sua morte. Voltaremos sobre este
assunto.
"Jesus, penetrando-lhes os pensamentos, tomou a palavra e disse-lhes: Que estais a
pensar em vossos corações?" Poder-se-ia falar - e Lucas fá-lo frequentemente - da
penetração de Jesus que lê nos corações. Mas não é necessário multiplicar os milagres e a
reacção dos escribas deve ter sido suficientemente clara para se ler no seu semblante.
Jesus vai dar-lhes um sinal visível. Afirmara um paralítico: "Os teus pecados estão
perdoados está certo, mas é algo que não se vê; mas se se acrescenta: Levanta-te e anda,
ver-se-á claramente o resultado. "Pois bem, para que saibais que o Filho do Homem
tem na terra, o poder de perdoar pecados, ordeno-te - disse ao paralítico - levantate, pega na tua enxerga e vai para tua casa. No mesmo instante.. "Para que
saibais”...: a narrativa de milagres está, pois, em função duma intervenção muito mais
importante: o perdão dos pecados.
Há aqui uma progressividade na formulação. Ao princípio Jesus dizia: Os teus pecados
estão perdoados, isto é, Deus perdoa-te; agora Jesus apresenta isto como um poder
pessoal: é a afirmação solene de que o Filho do Homem tem este poder. Podemos ver
aqui uma elaboração da tradição. A primeira afirmação é muito mais
conforme com a maneira de Jesus: Ele anuncia a salvação em nome de Deus; nunca se
coloca no centro da cena. É provável que a segunda formulação tenha recebido a forma
definitiva da fé pascal, pois o perdão dos pecados prega-se unicamente em Cristo
ressuscitado. Há aqui uma interpretação dos primeiros cristãos, interpretação esta difícil
de conceber antes da Páscoa.
" No mesmo instante ergueu-se à vista deles...” 0 assombro, o temor apodera-se de
todos os assistentes, este temor que significa, na Bíblia, o reconhecimento duma acção
divina. E diziam? "Hoje vimos maravilhas, "paradoxa": é um termo tipicamente grego
que encontramos em todas as narrativas gregas de milagres e designa algo contrário ao
normal, contra o pensamento e opiniões correntes.
O perdão do paralítico é um texto comum aos três sinópticos. É provável que o mesmo
tenha sido um pouco elaborado na tradição pascal; mas na sua origem existe, certamente,
uma tradição comum: a recordação duque Jesus, na Sua vida terrestre, anunciou o perdão
actual dos pecados. É o único caso comum aos três sinópticos. Temos 25 ou 30 narrativas
de milagres, mas muito poucas narrativas de perdão, o que é significativo. Milagres
também os tinham feito os profetas ou até alguns contemporâneos de Jesus; mas nenhum
deles tinha ousado dizer a alguém: “Os teus pecados estão perdoados”: O perdão dos
pecados não é dado senão no mistério pascal, na Igreja.
Vamos seguidamente ler os textos próprios de Lucas.
4
A PECADORA - 7, 36-50
Lucas é o único que nos transmite a maravilhosa narrativa da pecadora arrependida. Que
razões o levaram a apresentá-la no presente contexto? Ele acaba de nos falar de João
Baptista (um texto comum a Mateus): a pergunta de João a Jesus. “És Tu o que está
para vir?”-, a definição que Cristo faz do papel de João e, finalmente, o juízo de Jesus
sobre a Sua geração que O recusa tanto a Ele como a João Baptista. –“A quem, pois,
compararei os homens desta geração? - exclama – “A quem são semelhantes?”
Assemelham-se aos garotos que, sentados na praça, se interpelam uns aos outros
dizendo: Tocámos flauta para vós e não dançastes! Entoámos lamentações e não
chorastes!
Veio João Baptista, que não come pão nem bebe vinho, e dizeis: Está possesso do
demónio! Veio o Filho do Homem, que come e bebe, e dizeis: Aí está um glutão e
bebedor de vinho, amigo de publicamos e pecadores!"
Jesus solidariza-se com João Baptista contra esta geração que recusa os profetas seja qual
for o seu estilo, tanto ascético como normal. Interessa constatar que Jesus - - morto na
cruz depois duma vida de privações - é apresentado aqui como alguém que não pratica a
ascese.
Jesus acaba de se definir como o amigo dos publicanos e pecadores e de se apresentar
como o verdadeiro profeta esperado. A chegada da mulher pecadora e a recusa dos
fariseus aparecem seguidamente a titulo de ilustração. Lucas deve ter encontrado esta
história na tradição, mas coloca-a nesta altura para ilustrar a palavra de Jesus e o Seu
comportamento em relação aos pecadores.
Esta narrativa apresenta algumas dificuldades já clássicas 2. Estamos perante uma
composição de dois trechos: o da chegada da mulher e o da parábola contada por Jesus; à
primeira vista parece que não se conjugam muito bem.
Um fariseu convida Jesus para comer. Lucas dá-nos conta de três convites deste género;
tem o cuidado de nos mostrar que havia fariseus simpáticos. Fm Mateus estes aparecem
sempre como inimigos. Em Lucas, às vezes também o são - e o fariseu desta história vai
criticar Jesus - mas ele convida-o para a sua mesa, o que constitui um gesto de comunhão,
de aliança. Esta simpatia de Lucas pelos fariseus corresponde, sem dúvida, a um facto
histórico: sendo os fariseus a maior parte dos judeus, seria curioso que entre todos os que
seguiam Jesus não houvesse nenhum fariseu. Isto explica-se, igualmente pela situação de
Lucas: pertence ao ambiente paulino e Paulo sempre se mostrou orgulhoso de ser fariseu;
o convívio com seu mestre incutiu-lhe a preocupação de mostrar alguns fariseus
simpáticos. Mateus, ao contrário, escreve o evangelho num ambiente onde é necessário
lutar contra os fariseus. Isto explica a diferença dos comportamentos dos dois
evangelistas.
(2) Ver E. CHARPENTIER, Le Prophète, ami des pécheurs, Lc 7, 36 - 8, 3, em Assemblées du Seigneur, n.° 42, 1970,
p. 80-94).
2
5
Jesus entrou, portanto, na casa do fariseu e reclinou-se no leito (naquele tempo comia-se
recostado, nas refeições mais solenes). E eis que chega esta mulher, conhecida como
pecadora em toda a cidade. A sua atitude é realmente excepcional, a começar pelo facto
de aparecer naquelas circunstâncias. Todos a conheciam (talvez por terem pecado com
ela: sucede sempre que os mais ferozes a condenar uma pecadora são sempre os que se
aproveitaram dela). Ela aí está, humilhada, banhada em lágrimas. O texto não nos fornece
nenhuma descrição psicológica, mas a sua atitude é certamente um sinal de
arrependimento: é em Jesus que ela compreende o seu pecado, é em Jesus que ela
compreende o amor de Deus e é a Jesus que ela vem para manifestar tal arrependimento,
numa manifestação pública perante toda a aldeia reunida. Com este gesto ela está a
realizar algo de extraordinário. Que ela traga perfume, não é nada extraordinário neste
país, mas ordinariamente ele é derramado na cabeça; derramando-o nos pés de Jesus, ela
manifesta que não é digna de fazê-lo normalmente. Depois seca-os com os seus cabelos:
isto nunca se faz e constitui um sinal extraordinário de amor e humildade. Ficando atrás
de Jesus, proclama a sua indignidade.
O fariseu pensa com os seus botões "Se este homem fosse profeta saberia quem e de
que espécie é a mulher que lhe está a tocar, porque é uma pecadora! Jesus goza,
portanto, da fama de profeta. Mas os fariseus dizem entre si: "se fosse verdade, Ele não
permitiria que ela fizesse o que está a fazer... Jesus adivinha as reacções de Simão e
conta-lhe uma história: “Um prestamista tinha dois devedores: um devia-lhe
quinhentos denários e o outro cinquenta. Não tendo eles com que pagar, perdoou
aos dois. Qual deles o amará mais? Simão respondeu: "Aquele a quem perdoou
mais, creio eu!" Jesus disse-lhe: Julgaste bem?”
Todos nós, perante Cristo, somos devedores insolventes. Por isso Jesus situa
imediatamente depois o problema no campo do amor. O problema é: Qual deles amará
mais? Por isso, vai imediatamente sublinhar no seu comentário que o gesto da pecadora é
um gesto de amor. Mas é preciso acentuar - e isto é imprescindível para compreender a
frase seguinte - que o amor é a consequência do perdão e não a causa do mesmo. Quem
amará mais? Aquele a quem mais se perdoou. Primeiro existe o perdão. Portanto, não
podemos aceitar a tradução: "Foi-lhe perdoado muito porque amou muito". A parábola
diz precisamente o contrário: ela amou muito porque muito lhe foi perdoado.
Jesus vai comentar a parábola, voltando-se para a mulher. Até este momento deixou-a à
vontade, obrigando-a a ir até ao fim do seu arrependimento, do seu testemunho. "Vês
esta mulher? Entrei em tua casa e não Me deste água para os pés (gesto habitual de
hospitalidade); ela, porém, banhou-me os pés com as suas lágrimas e enxugou-os com
os seus cabelos.” Não se trata necessariamente aqui duma repreensão feita a Simão: estes
gestos de hospitalidade, faziam-se nos grandes banquetes e, provavelmente, não era este
o caso. Jesus está de passagem, convidado depois da pregação. "Não é uma reprimenda,
parece dizer-lhe Jesus: Que tu não o tenhas feito, não importa; mas ela fê-lo... Por isso, os
seus muitos pecados estão perdoados". A tradução correcta seria: "isso se nota no facto de
ter amado muito". Com efeito, segundo a parábola, não é o amor que é primeiro, senão o
perdão. Não foi o amor desta mulher que comprou o perdão. E a graça do perdão que
constitui a fonte do amor.
Uma vez mais, Jesus não afirma: "Eu te perdoo", mas "Os teus pecados estão
perdoados': Em certo modo, Jesus limita-se a constatar o perdão de Deus. Mas este
perdão é outorgado na Sua presença. Ele foi o sinal graças ao qual esta mulher se
converteu. Foi Ele quem revelou uma pureza, uma justiça e um amor tais que, perante
6
eles, esta mulher se sentiu pecadora e encontrou confiança suficiente para vir ter com
Jesus. Ela não teria vindo chorar sobre os pés do fariseu. Em Jesus, ela sente-se
compreendida e respeitada.
A explicação de todo o texto encontra-se na parábola: aquele a quem muito se perdoa,
muito ama. Esta é a ideia fundamental: o amor de Deus revelado em Jesus Cristo.
E, como sucedeu aquando da cura do paralítico, os fariseus interrogam-se: "Quem é este
que até perdoa os pecados?' Jesus diz à mulher: “Salvou-te a tua fé: Vai em paz”.
Trata-se da fé pela qual ela reconheceu os seus pecados, da fé que lhe permitiu aceitar o
perdão; e talvez seja isto o que mais custa ao pecador. Efectivamente, custa-nos acreditar
que somos amados. O grande perigo da nossa vida é o desespero, a humilhação do nosso
pecado e a vergonha de continuamente cairmos nas mesmas faltas. A nossa salvação, a
fé, está em acreditar que somos amados, apesar do nosso pecado.
Vamos ler agora alguns textos em que a palavra perdão não aparece expressamente, mas
nos quais aparece esta realidade.
A ALEGRIA DE DEUS: três parábolas - Lc 15
Estas três parábolas são introduzidas por uma cena na qual se esboça claramente o tema
do perdão. "Aproximavam-se d'Ele todos os publicanos e pecadores para O ouvirem.
E os fariseus e os escribas murmuravam entre si, dizendo: "Este acolhe os pecadores
e come com eles". Encontramo-nos, uma vez mais, perante o tema da comunhão, na
refeição, com os pecadores. Lucas continua: "Propôs-lhes, então, esta parábola...
Estamos dentro do contexto de acolhimento que Jesus faz aos pecadores. Isto não
significa que Jesus lhes anuncie imediatamente o perdão. Os pecadores começam por vir
escutar este Profeta; e aqui está já uma certa procura de Deus. Mas estarão já plenamente
convertidos? O perdão é-lhes dado definitivamente? Não. Mas o ensino de Jesus está
orientado para o termo deste encontro e para o perdão que, nele, lhes será concedido.
Nestas três parábolas: uma ovelha, uma moeda e um filho, que se perdem e, finalmente,
são encontrados, há uma profunda reflexão sobre o mistério da conversão e do perdão.3
As três parábolas apresentam uma construção literária digna de menção: terminam todas
com a alegria de encontrar o que estava perdido: o pastor que volta carregando a ovelha
aos ombros, junta todos os amigos e vizinhos para lhes dizer: Alegrai-vos comigo,
porque achei a minha ovelha perdida;" a mulher que tinha perdido a dracma, convoca
as amigas e vizinhas: "Alegrai-vos comigo, porque encontrei a dracma perdida; "o
pai do filho pródigo diz duas vezes; "Tínhamos de fazer uma festa e alegrar-nos,
porque este teu irmão estava morto e reviveu; estava perdido e encontrou-se.
Há aqui um estribilho: o texto está cortado quatro vezes pela alegria de encontrar o que
estava perdido. Existe igualmente uma progressão: não é pura casualidade que tenhamos
uma ovelha entre cem, uma dracma entre dez, e um filho entre dois; tornar a encontrar
um filho é infinitamente mais importante que reencontrar uma ovelha entre um rebanho
de cem.
,
3
Ver J. DUPONT, Le Fils Prodigue, Lc 15, 1-3; 11-32 em Assemblées du Seigneur, no 17, 1969, p. 64-72.
7
Depois das duas primeiras parábolas, há também um versículo de explicação; para a
ovelha perdida- "Haverá mais alegria no Céu por um só pecador que se arrepende do
que por noventa e nove justos que não necessitam de arrependimento;" e para a
dracma: Assim, digo-vos, há alegria entre os anjos de Deus por um só pecador que se
arrepende. A ideia central do texto é bem clara: trata-se da alegria da conversão. A
alegria vem do perdão e a conversão é como que a consequência, o resultado do perdão.
Os fariseus não entram nesta óptica e, por isso, criticam Este acolhe os pecadores." Jesus
diz-lhes: "Compreendei a alegria de Deus, a alegria que Deus tem em acolher, em
perdoar!". A alegria é mais importante que a conversão. De igual modo, a pecadora
amava porque tinha sido perdoada. É sempre Deus que começa.
Sublinhemos ainda um contraste interessante que existe entre as duas primeiras parábolas
e a terceira. As três têm como objectivo a volta do pecador, mas consideram-na a partir
de dois pontos de vista diferentes e complementares. A ovelha e a dracma são seres
materiais ou sem consciência: é necessário ir procurá-los. É uma imagem da missão de
Jesus: Deus envia-O à procura do pecador; é sempre Ele que tem a iniciativa. Falamos da
"conversão do pecador", mas o pecador não se converte se Jesus não o vai procurar.
Sozinho, o pecador não poderia sair da sua triste situação.
A parábola do acolhimento do Pai - é Ele a personagem principal - apresenta o aspecto
inverso: o pai não faz nada, deixa partir o filho. Isto não significa falta de amor, mas
simplesmente respeito pela sua liberdade. E o filho parte para fazer as suas experiências;
cedo, porém, descobre que os amigos conquistados com o seu dinheiro não duram mais
do que este. Descobre a fome, a solidão da fome. Descobre, igualmente, o próprio pai, de
uma maneira um tanto sórdida: pela fome que o prende ao estômago. E é ele que se
levanta para voltar. O pai, por sua vez, sobe ao telhado, prescruta o horizonte; não manda
ninguém procurar o filho, não o traz à força: espera-o. E, quando ele chega, o pai põe-se a
correr ao encontro do filho, manda trazer roupa e calçado e ordena que matem o vitelo
gordo... Não há nenhuma palavra acerca do passado do seu filho; nem sequer o deixa terminar a confissão. As duas primeiras parábolas são de busca; a terceira é de conversão,
de regresso.
Jesus coloca, assim, frente a frente, as duas liberdades que entram no processo do perdão:
a procura do Pai que vai ao encontro do pecador e a procura do pecador que vai ao
encontro do acolhimento oferecido pelo pai. Dois aspectos complementares do perdão: no
perdão, como na conversão, como na fé, trata-se sempre do encontro das duas liberdades.
O perdão não é algo de humilhante, não rebusca o passado. É antes respeito mútuo,
encontro de duas liberdades.
ZAQUEU - 19, 1-10
A história de Zaqueu é igualmente própria de Lucas. A grande subida a Jerusalém está a
chegar ao seu termo. Jesus acaba de curar um cego e atravessa Jericó. Zaqueu tem
vontade do O ver.
Zaqueu tem má fama na sua cidade. É chefe de publicanos ou cobradores de impostos.
No tempo de Cristo estes eram particularmente mal vistos por duas razões: recolhiam
impostos para os ocupantes romanos, isto é, para os inimigos que, além disso, eram
pagãos; havia a impressão de que o dinheiro que eram obrigados a dar seria aplicado no
culto dos ídolos. E, ainda se os cobradores fossem romanos... mas eram judeus,
"colaboradores"! Por outro lado, tinham fama, - e com razão, a maior parte das vezes - de
8
não ser honestos. Este sistema de impostos era, mais ou menos o que, em determinado
tempo da história, existiu noutros países: o cobrador devia entregar ao Estado uma
quantia fixa; para a conseguir, cobrava-a dos particulares. E, era muito raro que cobrasse
uma quantia inferior àquela que devia entregar!... Por isso mesmo, é que os publicanos
eram odiados. Ora, Zaqueu era nada menos que "chefe de publicanos"!
Procurava ver Jesus. Interesse? Curiosidade? Jesus tem fama de profeta e de
taumaturgo; o interesse de Zaqueu pode estar aliado a uma certa inquietação religiosa,
como parece mostrar a continuação da narrativa. Ele quer ver Jesus mas é pequeno: corre,
então, à frente de todos, e sobe a uma árvore... ele, chefe de publicanos! Jesus levanta os
olhos e diz-lhe: "Zaqueu, desce depressa, pois tenho de ficar em tua casa. "Aqui
Jesus chama-o pelo seu nome e decide alojar-se na sua casa. Lucas pretende, talvez,
ressaltar a profunda intuição de Jesus. Zaqueu desce apressadamente e recebe-O em sua
casa, cheio de alegria. Toda a gente murmura: há tantos judeus exemplares em Jericó... e
ir alojar-se na casa dum pecador...
Zaqueu, de pé, diante de toda a gente, diz ao Senhor (reparemos na palavra Senhor; Lucas
utiliza este termo porque se trata de algo importante em que Jesus vai exercer todo o seu
poder): “Vou dar metade dos meus bens aos pobres, e, se defraudei alguém em
qualquer coisa, devolver-lhe-ei quatro vezes mais." Não há considerações sobre o
passado, nem lamentações sobre a sua indignidade ou sobre os pecados cometidos: há
unicamente a inteligência do amor: "vou dar metade dos meus bens aos pobres,
devolverei quatro vezes mais. E Jesus declara aos assistentes "Veio hoje a salvação a esta
casa, por este ser também filho de Abraão; pois o Filho do Homem veio procurar e salvar
o que estava perdido. 'Não aparece neste texto a palavra "perdão", mas sim "salvação". 0
perdão é um dos elementos essenciais da salvação.
Encontramo-nos perante uma narrativa de conversão. Zaqueu sentiu um chamamento, o
desejo de ver Jesus; ele é cativado por Jesus e o seguimento do texto vai mostrar que não
se trata duma simples curiosidade, como a do velho Herodes durante a Paixão; neste
desejo indefenido está um germe de arrependimento mais ou menos consciente; em todo
o caso, há em Zaqueu uma profunda generosidade. O seu desejo não só é saciado, mas
amplamente superado por Jesus: Zaqueu queria somente ver; Jesus decide ficar em sua
casa antes que ele tenha dito ou pedido qualquer coisa. Esta cena é semelhante à da
chegada à aldeia em que a Sua simples presença atraiu a mulher pecadora; Ele não lhe
disse: "Tu és uma pecadora"; a única coisa que aconteceu foi a Sua presença, a Sua
presença transcendente, no Seu acolhimento e amor. No presente texto, vai ainda mais
longe: Jesus toma a iniciativa de chamar Zaqueu, de o convidar. Não é esta a nossa
maneira jurídica de tratar os pecadores, é a maneira de Deus.
O HOJE DA SALVAÇÃO
A palavra "hoje" ocupa um lugar importante no evangelho de Lucas. Quase todas as
vezes em que aparece a palavra "salvação", aparece também a palavra "hoje": Veio hoje
a salvação a esta casa...
Lucas lê sempre a Escritura na dimensão de presente, o que é para ele uma maneira de
actualizar. Não podemos ler o Evangelho como se de um objecto de arqueologia se
tratasse. É certo que a história nos fornece um certo número de elementos para melhor
compreensão, mas a fé, a leitura da Escritura na fé, significa escutar Deus que nos diz:
"hoje...". Deus não se situa nem no passado nem no futuro. Chama-nos hoje e hoje nos
salva.
9
Compreendemos porque Lucas 0 trata por Senhor; na realidade, o que Ele faz é
verdadeiramente um gesto de Senhor. Como no caso do paralítico, aparece também aqui
o tema do "Filho do Homem" O Filho do Homem tem o poder de perdoar os pecados (ao
paralítico); O Filho do Homem veio procurar e salvar o que estava perdido Encontramonos, talvez, perante um eco da famosa imagem do profeta Ezequiel (34, 16): o bom pastor
que busca a ovelha perdida. É este um dos temas que melhor exprime a ideia de perdão.
E, como aqui não se trata duma parábola, mas da atitude real dum homem, Zaqueu, do
seu chamamento, do seu assombro, da sua decisão, Jesus pode tirar todas as
consequências da graça que encarna: Ele é o Senhor, o Filho do Homem, Ele veio
procurar e salvar o que estava perdido.4
0 BOM LADRÃO - 23, 35-40
0 episódio do bom ladrão é um dos mais ricos em pormenores sobre o tema do perdão.
Todo o seu sentido se desprende do contexto em que está situado. Jesus está pregado na
cruz e os sumos sacerdotes e escribas riem-se d'Ele. Segundo Marcos e Mateus, eles
gritam: "Salvou os outros e não pode salvar-se a Si mesmo! Esse Messias, o Rei de
Israel, desça agora da cruz, para nós vermos e acreditarmos'(Mc). 0 texto de Lucas é
um pouco diferente "Salvou os outros; salve-Se a Si mesmo, se é o Messias de Deus. o
Eleito "Não diz: "que Ele desça e acreditaremos", mas ambos os textos estão impregnados de atroz ironia.
Se compararmos o texto de Lucas ao de Marcos, notaremos que Lucas inverteu a ordem
do material. Fica-nos a impressão de que Lucas pretendeu reunir aqui todos os
pormenores que recordam a realeza de Jesus.5 (5). Os chefes dizem: "... Se Ele é o
Messias de Deus, o Eleito..`(- o Rei Messias) (v. 35); os soldados, que só aparecerão
mais tarde em Mt-Mc, também se riem d' Ele: "Se és o rei dos judeus, salva-Te a Ti
mesmo!" (v. 36-37). "E por cima d'Ele havia uma inscrição: Este é o rei dos judeus"(v.
38). Assim, proclama-se três vezes o título real de Jesus e três vezes se repete a saudação:
Salva-Te a Ti mesmo; na terceira vez é um dos malfeitores crucificados com Ele que 0
insulta "Salva-Te a Ti mesmo e a nós também". Temos aqui, portanto, uma forte insistência na realeza de Jesus (como objecto de irrisão) e na provocação à salvação. Mt-Mc
ficam-se por aqui; mas Lucas acrescenta o episódio do bom ladrão.
Esta narrativa está em perfeita consonância com a precedente: o ladrão confessa a realeza
de Jesus da qual todos se riem: Jesus, lembra-Te de mim quando estiveres no Teu reino."
Esta proclamação é fruto da fé, fé que lhe merece a salvação. A salvação de que se riam
os outros era uma salvação temporal, caduca, descer da cruz; Jesus anuncia ao bom
ladrão uma salvação mais profunda: "Hoje estarás Comigo no Paraíso".
0 ladrão é o tipo exacto daquele que se converte. Ele é um pecador que confessa o seu
pecado e aceita o respectivo castigo: Quanto a nós - diz ele ao outro ladrão - fez-se
4
(Ver A. M. COCAGNAC, Zachée, l'Église et la maison des pécheurs, Lc 9, 1-10 em Assemblées du Seigneur, n.° 62, 1970, p 81-91.
5
Ver A. GEORGE, La royauté de Jésus selon l'évangile de Luc em Sciences Eclesiastiques, 1962, p. 57-70.
A. GEORGE, La seigneurie de Jésus dans les évangiles synoptiques em Lumière et Vie, n° 57, 1962, p. 2242.
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justiça, pois recebemos o castigo que as nossas acções mereciam. Proclama a inocência
de Jesus e, quando todos zombam de Jesus, ele proclama a Sua realeza: "Jesus, lembra-Te
de mim quando estiveres no Teu Reino."
Jesus está agonizante, pregado na cruz, nu, humilhado, rejeitado, insultado, depois de ter
fracassado na Sua Missão, e eis que um moribundo fala a este Moribundo da sua
majestade real. É uma fé extraordinária!...
Jesus poderia dizer-lhe: “A tua fé te salvou." É praticamente isto que Ele lhe declara:
"Em verdade te digo: Hoje estarás Comigo no Paraíso" Vem-nos ao pensamento o
admirável comentário de Bossuet: "Hoje - que rapidez! - Comigo - que companhia! - no
Paraíso - que descanso!" Discute-se, por vezes, acerca do significado deste "Hoje" da
salvação (simbolizada pelo Paraíso). Trata-se provavelmente duma participação imediata
no "Paraíso", no lugar dos justos, segundo a mentalidade judaica. Com efeito, o "hoje" de
Lucas é muitas vezes o "hoje da salvação": Hoje entrou a salvação nesta casa, hoje
nasceu-vos um Salvador, hoje cumpriu-se esta Escritura. Mas não podemos excluir
uma outra possibilidade: o Paraíso poderia designar o lugar onde se espera a ressurreição
(como se diz em certo número de textos judaicos), pois Lucas reafirma muitas vezes que
Jesus ressuscitou ao terceiro dia e este "Hoje" é sexta-feira. Jesus pretenderia, portanto,
dizer: "Hoje tu estarás Comigo na morada provisória dos mortos". É difícil escolher:
tratar-se-á da salvação provisória, até que chegue a ressurreição? ou será já a participação
na ressurreição de Jesus? Em qualquer dos casos é reafirmado ao ladrão que ele estará
com Jesus. E quem está com Jesus nunca mais se separará d'Ele. Estar com Jesus,
significa o Perdão, a salvação. Jesus anuncia a salvação para "hoje" a este homem que
aceita o seu castigo, a este homem que acaba de exprimir esta fé extraordinária na Sua
realeza.
E não é por acaso que esta cena admirável de perdão se situa no alto do Calvário. A mais
antiga tradição cristã afirma que nós somos perdoados na morte de Jesus Cristo. Este acto
do Senhor Jesus, no mais profundo da Sua humilhação, no momento da Sua agonia e da
morte na cruz, é o sinal mais maravilhoso que Ele nos poderia dar da salvação: aí, mais
que em qualquer outro lugar, Ele é o "Senhor".
O SENTIDO DO PERDÃO
Acabámos de ler os principais textos nos quais, de modo explicito ou implícito, Lucas
nos apresenta o perdão como uma das formas mais importantes da salvação. Se
quisermos analisar o sentido do perdão em Lucas, temos que seguir a linha do tema
através das três etapas da salvação: o tempo de Jesus, o tempo da Igreja e a escatologia
(ou fim dos tempos).
1. O tempo de Jesus
Durante a Sua missão terrestre, Jesus anuncia o perdão de Deus: Os teus pecados estão
perdoados, diz Ele ao paralítico e à mulher pecadora; Veio hoje a salvação a esta casa,
isto é, Deus deu-te a Sua salvação; hoje estarás Comigo no Paraíso: "Hoje Deus te
receberá Comigo no Paraíso".
Nestes textos Jesus anuncia o perdão de Deus; só Deus pode perdoar os pecados. Mas
encontramos também dois textos nos quais o perdão está ligado a um acto do Filho do
Homem:" 0 Filho do Homem tem na terra o poder de perdoar pecados, declara Ele
ao paralítico. E a Zaqueu: "O Filho do Homem veio procurar e salvar o que estava
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perdido; aqui não é Deus que perdoa; Jesus outorga o perdão por um poder pessoal; o
Filho do Homem está encarregado por missão divina, do perdão e da salvação de Deus.
Isso corresponde de modo especial ao tempo da Páscoa, pois é na Páscoa que Jesus é
investido definitivamente de todos os Seus poderes. Durante a Sua vida terrestre, a parte
de Jesus no perdão é de o anunciar, de o significar pela Sua presença:“O Reino de Deus
está perto”. Jesus é a presença do Reino, como muito bem o sublinhou R.
Schnackenburg.6
A atitude e comportamento do pecador representam um papel muito importante no
perdão: eles constituem a conversão. Geralmente não se pronuncia o termo como tal mas
é isso que significa o gesto da pecadora, de Zaqueu ou do bom ladrão. O perdão é a graça
por excelência, mas a soberana liberdade de Deus deve ser acolhida pela plena liberdade
do homem. A gratuidade da acção de Deus é significada de variadas maneiras; nos
episódios do paralítico, ela aparece na iniciativa de Jesus: o infeliz vem procurar a cura e
Jesus declara-lhe: “Os teus pecados estão perdoados;” ele não pedia tanto! No caso da
pecadora, o que primeiro aparece é a sua atitude e comportamento, a sua humilhação, o
seu amor. Mas a função da parábola dos dois devedores vem explicar-nos a verdadeira
perspectiva: Ela ama muito porque muito lhe foi perdoado; a parábola restitui o primado
à graça. A iniciativa de Deus em Jesus Cristo é particularmente sublinhada rio caso de
Zaqueu: este quer ver Jesus mas é Jesus que o chama. E, porque se sente amado,
perdoado, é que ele ama, por sua vez. Em todas estas narrativas a
liberdade de Deus e a liberdade do homem entram simetricamente em jogo. Mas Lucas
insiste: é Deus que tem a iniciativa.
Estes perdões ainda não passam de sinais: os seus destinatários são somente alguns
indivíduos isolados; ora bem, o que nós queremos é a salvação de todos os homens, e este
perdão, como antes dizíamos, é real mas limitado, localizado, temporário. É verosímil
que a pecadora e Zaqueu tenham continuado a pecar depois do encontro com Jesus. E nós
sabemos por experiência que, mesmo depois de perdoados, continuamos a pecar. Este
perdão do tempo de Jesus não é mais que o sinal do perdão total, definitivo e universal
que esperamos do Senhor. Só na salvação pascal é que o perdão pode ser oferecido a
todos os homens.
2. O perdão pascal
A mensagem de Cristo ressuscitado, na tarde de Páscoa, é muito característica em Lucas:
Assim está escrito que o Messias havia de sofrer e ressuscitar dentre os mortos ao terceiro
dia, que havia de ser pregado, em Seu nome, o arrependimento e a remissão dos pecados
a todas as nações` (Lc 24, 46-47). No dia de Páscoa todos os homens podem ser
chamados ao arrependimento e a receber, assim, o perdão dos pecados, dado em Jesus
Cristo. "Convertei-vos e peça cada um o Baptismo em nome de Jesus Cristo, para a
remissão dos seus pecados; tal vai ser a constante pregação dos Apóstolos.7 Ao perdãosinal do tempo de Jesus, sucede a pregação universal da salvação.
Este perdão é sempre perdão de Deus, concedido em Jesus Cristo: e é porque Ele
ressuscitou Jesus Cristo, que o Seu perdão nos é concedido (Lc 24, 47; Act 2, 38; 5, 31).
6
7
R. SCHNACKENSURG, Régne et Royaume de Dieu, Ed. de l'Orante, 1965, 326 p.
Act 2, 38; 3,19; 5, 31; 10, 43; 13, 38; 26,18.
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Este perdão pregado agora a todas as nações, comporta sempre uma exigência de
conversão. Fala-se dela frequentemente nos Actos, assim como da fé e do baptismo: a fé
como força interior da conversão e o baptismo como sinal oficial da mesma.
Por duas vezes, Lucas diz-nos que a conversão é dom de Deus: Foi a Ele que Deus
elevou... a fim de conceder a Israel o arrependimento e a remissão dos pecados (Act
5, 31); e, depois da conversão do romano Cornélio, os judeus de Jerusalém exclamam:
Deus também concedeu aos pagãos o arrependimento que conduz à vida (Act 11,
18). A conversão é a participação do homem no perdão, mas mesmo esta participação do
homem é um dom.8
Deste modo, em Lucas, a conversão é, numa primeira etapa, outorgada a título de sinal a
alguns indivíduos durante a vida de Jesus; a partir da Páscoa, ela é pregada a todas as
nações e institucionalizada no baptismo e na fé; mas, finalmente, virá o perdão
escatológico.
3. O perdão escatológico
Mesmo integrados na Igreja, mesmo depois de baptizados no Espírito Santo continuamos
a ser pecadores; a oração que Jesus nos deixou comporta sempre o Perdoai-nos as
nossas ofensas; a nossa situação de pecadores. Significado durante a vida terrestre de
Jesus, proclamado pela Igreja a todas as nações na mensagem pascal, este perdão
universal, definitivo, com todas as suas consequências, esperamo-lo no Reino de Deus.
Ele é a nova Aliança, a paz definitiva, a salvação, é o dia em que conhecerei
exactamente como sou conhecido (1 Cor 13, 12). A fragilidade do nosso tempo será
definitivamente ultrapassada.
O JULGAMENTO ESCATOLÓGICO
Aquilo a que geralmente chamamos juízo final não é mais do que a constatação pessoal
daquilo que cada um é na realidade, do descobrimento da verdade dos seres.
Quando será? "Hoje", agora. João insiste muito neste ponto: aquele que acredita em
Mim - repete Jesus sem cessar - já passou para a vida, não há julgamento para ele, nem
condenação. A minha vida actual constitui a matéria do meu julgamento. Este
julgamento é a verdade, a constatação da realização ou da sabotagem dos seres em
relação com a sua liberdade. O julgamento não se situa num futuro; é o olhar que Deus
me dirige agora.
Falar do juízo escatológico é falar da revelação aos outros. A obra de Deus só se
realizará quando todos os homens se salvem, já que o homem não pode salvar-se
sozinho. Eu não posso salvar-me sem os outros homens, sem aqueles de que sou
responsável: os pais sem os filhos, o Papa sem a Igreja...
Como poderia Jesus estar na glória, enquanto os homens estão no inferno? Foi para eles
precisamente que Ele veio, por eles morreu; pode salvar-se sem eles? O juízo
escatológico significa que só pode haver salvação total. O homem só se salva quando a
8
Ver J. DUPONT, La Conversion dans les Actes des Apôtres, em Lumière et Vie, n.° 49, 1960, p. 48-70.
13
humanidade inteira se realiza, quando o mistério histórico da Igreja atinge o seu termo.
A salvação é a realização do povo de Deus na sua totalidade.
Toda a gente se salva?
Não nos consta que Jesus tenha falado neste assunto, mas podemos pensar que sim.
Jesus fala muitas vezes no inferno, não para afirmar que há pessoas lá dentro, mas para
dizer que o mesmo constitui um perigo para qualquer homem. Jesus coloca-nos perante
este risco. Deus fez o homem livre; temos que aceitar o risco da liberdade. Por isso, Ele
admite que digamos não e, por nossa parte, constatamos todos os dias que este risco
existe.
Como Jesus Cristo, também o apóstolo, homem responsável pela salvação dos seus
irmãos -, e todos temos a responsabilidade da salvação dos nossos irmãos - não pode
deixar de sentir-se angustiado perante este risco da liberdade. Por isso, Jesus e os santos
falaram tantas vezes acerca do inferno. Mas para falar, com verdade, do inferno é
preciso ser puro; apresentá-lo como a vingança de Deus, é zombar de Deus: em Huis
Clos diz-se: "O inferno são os outros': Não, o inferno é a minha solidão. Se,
efectivamente, durante a vida não sei abrir-me aos outros, se me fecho no meu
desespero, acurralado no meu circulo estreito e frio, não me realizarei. Só o dom aos
outros é fonte de realização pessoal.
Compreendemos, assim, a angústia de Jesus e dos santos ao verem tantos homens que
dissipam inutilmente a sua vida, que não querem dar-se, que não sabem amar, que se
aferram a coisas sem importância, que vivem na dependência de coisas indignas deles
próprios Quando aqueles falam do inferno não é para destruir, mas para lembrar que
toda a liberdade está continuamente em risco de descarrilamento, de sabotagem e que,
mais ou menos, há sempre algo disso.
No inferno só haverá, provavelmente, teólogos!... Como pensar que, durante a sua vida,
os homens tiveram consciência e luz suficientes para arriscar o seu destino eterno? Há
tão poucos homens que tiveram consciência real de que eram amados! Concedamos a
Deus a honra de ser bom, melhor que nós próprios. Tenhamos a delicadeza de não nos
aproximarmos d'Ele por medo.
Nós acreditamos que Deus criou todos os homens para a salvação que Ele dá a cada um
o que lhe é indispensável para salvar-se.
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