X Colóquio do LEPSI – 2014 – Crianças públicas, adultos privados Escuta psicanalítica em grupo de professoras de creche pública Autor: Isael de Jesus Sena i RESUMO O presente trabalho relata uma intervenção, com um grupo de professoras de uma creche, realizada em um Centro de Referência de Assistência Social – CRAS. Na operacionalização, o grupo reunia-se a cada quinze dias e os encontros eram orientados por leituras de textos que articulam a relação entre psicanálise e educação, criando abertura para discussão e reflexão diante do mal-estar vivenciado pelas educadoras na tarefa de proteger as crianças. Palavras-chave: Assistência Social, Creche, Grupos, Professores, Crianças Da assistência social à proteção da infância A Constituição Federal de 1988, através da Lei Orgânica de Assistência Social (LOAS) – Lei n° 8.742, legitimou e reconheceu os direitos sócio-assistenciais. Esse fato contribuiu com a formação do acesso universalizado e a assistência social passou a constituir parte da responsabilidade pública no âmbito da Seguridade Social. Em 2004, a Política Nacional de Assistência Social (PNAS) aprovou e estabeleceu as bases do Sistema Único de Assistência Social (SUAS). A partir desse marco, foi definida a proteção social básica e especial que esta política deve assegurar: efetivar a segurança de rendimento, autonomia, acolhida e o convívio social em que estão envolvidas as famílias e a comunidade (JACCOUD, HADJAB & ROCHET, 2009). O objetivo do Centro de Referência em Assistência Social, doravante CRAS, por meio de sua equipe de referência – psicólogos, assistentes sociais e pedagogos, visa trabalhar na prevenção de ocorrências de situações de vulnerabilidade e riscos sociais nos territórios. Esse caráter preventivo, protetivo e proativo se efetiva a partir do desenvolvimento de potencialidade e aquisições, com enfoque no fortalecimento de vínculos familiares e comunitários e promovendo a ampliação do acesso aos direitos de cidadania (Brasil, 2009). Para compreensão do papel social do CRAS, cumpre esclarecer o que se considera por situações de vulnerabilidade. A vulnerabilidade “[...] designa em sua origem, grupos ou indivíduos fragilizados, jurídica ou politicamente, na promoção, proteção ou garantia de seus direitos de cidadania” (AYRES et al, 2003, p. 118). Para Abramovay et al (2002), a vulnerabilidade social traz um lado perverso, pois torna escassa a disponibilidade de recursos materiais ou simbólicos, tanto a indivíduos como a grupos que estão excluídos da sociedade. O fato de não ter acesso a determinados serviços, tais como: a educação de qualidade, garantia de trabalho, saúde, condições de lazer e cultura, diminui as chances das pessoas aproveitarem oportunidades oferecidas pelo Estado, pelos mercados e a sociedade, como condições favorecedoras da ascensão social. Desse modo, a vulnerabilidade está associada à mobilidade social. Isso pressupõe que indivíduos em situação de desvantagem deparem-se com dificuldades para se movimentarem nas estruturas sociais e econômicas. O CRAS, como dispositivo de proteção à família, foi instituído para dar visibilidade aos grupos desprivilegiados do ponto de vista social. Duas problemáticas estão implicadas nessa tarefa. Primeiro, promover cidadania; segundo, considerando os princípios e orientações dessa estratégia, trabalhar com ações cujo foco está na prevenção. Ao considerar os territórios como espaços problemáticos, vulneráveis, violentos e suas famílias em situação de desigualdade social, surgem estratégias “sofisticadas” de controle. O CRAS assume como fatores identitários dois pilares do SUAS: a matricialidade sociofamiliar e a territorialização. A família, nesse modelo de atendimento, é vista como espaço contraditório marcado por tensões, conflitos, desigualdades e até mesmo violência. Ao ser eleita como objeto dessa política pública, a família é concebida a partir de seu contexto sociocultural e econômico, levando em consideração a sua composição, seus diferentes arranjos, os conflitos e desigualdades vivenciados por ela. Pensar a política voltada para as famílias significa tecer uma rede de proteção social básica a partir da compreensão dos determinantes familiares de uma situação de vulnerabilidade social e buscar a superação dessa situação (BRASIL, 2009). Analisada de outro ângulo, essa lógica de proteção, no contexto da assistência social, segundo Hillesheim & Cruz (2013), é uma das novas estratégias médico-psicológicas e sociais preventivas, e a prevenção moderna visa ser, sobretudo, rastreadora dos riscos. Assim, prevenir é vigiar, ou seja, verificar antecipadamente o surgimento de acontecimentos indesejáveis naquelas populações definidas como portadoras de risco. O que está em jogo nesses enunciados acerca das famílias e de sua proteção é a forma como eles são regidos entre si para constituir um conjunto de proposições aceitáveis cientificamente. Foucault (2013) é levado a afirmar que, por conseqüência, estas proposições tornam-se procedimentos científicos que adquirem um efeito de poder. Os discursos são ditos, permanecem ditos e estão, ainda, por serem ditos. Nesse campo da assistência social, lugar de minha atuação, contexto de crescente preocupação em assegurar à família o acolhimento, o acesso às políticas públicas e aos programas socioassistenciais, busca-se, ademais, como promover a cidadania e direitos às famílias e seu acesso à transferência de renda. Nesse último aspecto, o responsável pela criança e/ou pelo adolescente deve acompanhar sua freqüência escolar e, tratando-se de criança, deve-se, também, levá-la às Unidades Básicas de Saúde para realizar o controle nutricional, vacina, entre outros. Essas soluções acompanham princípios e orientações de políticas sociais. O descumprimento dessas condicionalidades são motivos para que a equipe de referência acione a família, porquanto se sabe que: Nossa modernidade preconiza antes de tudo o bem e o bem-estar; os direitos do filho nascem com o dever dos pais e da sociedade de assegurar o bem da geração seguinte. Segurança, proteção, prevenção, assistência, tais são as palavras-mestras do discurso social sobre a família (JULIEN, 2000, p. 23). É esse o modelo de assistência social em um CRAS, na Região Metropolitana de Salvador, serviço para o qual são direcionadas essas problemáticas, instituição onde também são encaminhadas crianças e adolescentes com dificuldades no processo de escolarização. Embora o foco do trabalho não esteja centrado em um setting tradicional, ainda assim privilegiou-se a oferta de uma escuta qualificada diante de cada caso, pois no atendimento do psicólogo, se a frequência escolar é parte das condicionalidades para manter a transferência de renda, então o não cumprimento dela, por motivos diversos, deve ser objeto de olhar e escuta pelo profissional. Em um desses encaminhamentos de uma criança que apresentava queixa escolar, a coordenadora pedagógica e a gestora de uma creche pública solicitaram uma palestra para ensinar às professoras como lidarem com as crianças hiperativas. A demanda foi assim formulada: “Por favor, venha fazer uma palestra rápida, para nos ajudar a aprender a lidar com as crianças que são hiperativas e orientar aos pais”. Esse apelo para o rápido atendimento não poderia deixar de ser escutado, problematizado, uma vez que as crianças ditas hiperativas denunciavam um mal-estar, bem como as professoras estavam submetidas a buscar soluções instantâneas dentro de uma lógica do déficit da formação e a busca da competência por meio da orientação através de uma especialista “psi”. Considerando essa demanda e partindo de um lugar de suposto saber, vale notar que: Os especialistas encarregados de reeducar terapeuticamente a família dão-se conta de que a desestruturação familiar é um fato social, mas raramente percebem que as terapêuticas educativas são componentes ativos na fabricação deste fato. Presos a ideologia do cientificismo, acreditam na isenção política de suas práticas profissionais. Por esta razão, jamais procuram rever as matrizes sociais da ciência que orienta os postulados teóricos e técnicos destas práticas. Pelo contrário, permanecem atados ao “cientificismo”. Redobram as medidas de controle terapêutico [...]. O problema começa quando percebemos que a lucidez científica as terapêuticas dirigidas às famílias escondem, muitas vezes, uma grave miopia política (COSTA, 2004. p.18). Desse modo, o modelo de vigilância em relação aos cuidados que a família deve prestar às crianças e o discurso acerca de sua “desestruturação”, de acordo com Hillesheim & Cruz (2013), não se inscrevem nas técnicas disciplinares tradicionais. Na atualidade, as novas políticas preventivas são dirigidas, em um primeiro momento, não ao indivíduo, mas aos fatores (de risco) e correlações estatísticas, desconstruindo o sujeito concreto da intervenção e recompondo-o a partir de uma combinação sistemática de todos os agrupamentos suscetíveis de produzir risco. A partir desse questionamento apontado por Costa (2004), das observações levantadas por Hillesheim & Cruz (2013), e da demanda “rápida” encaminhada pela coordenadora e a gestora da creche, endereçada ao discurso “psi”, foi possível criar uma proposta na contramão da solução instantânea. O dispositivo de leitura, reflexão e escuta em grupo, a partir de temáticas que envolviam a infância, seus responsáveis, as vicissitudes enfrentadas pelas professoras diante da tarefa de lidar com crianças hiperativas e pais “ausentes”, foi o caminho possível para produzir novas significações, tendo como horizonte a advertência de Freud (1925) sobre o impossível da educação. Kupfer (1989) ressalta a afirmação de Freud e nos acrescenta que essa declaração não é paralisante, nem, tampouco, diminui o mérito da Educação. Ao contrário, aponta os limites da ação educativa, esclarecendo ao educador que seu instrumento de ação não é tão poderoso como supunha. A demanda da creche, por uma instrução de como lidar com crianças hiperativas, revelou como é impossível manter todas as crianças no ritmo da aprendizagem. Aqueles que “destoam” do grupo desafiam as professoras a questionar-se sobre as formas de controlar a criança e, ao mesmo tempo, a apontar hipóteses, como problemas familiares, na tentativa de compor um nexo causal para as diferentes formas sintomáticas das crianças relacionarem-se com o espaço da creche e entre si. Julien (2000) lança uma questão que oferece algumas pistas sobre esses entraves. O autor questiona: Se é verdade que toda criança nasce na fragilidade e no desamparo de não poder ‘se virar’ por si mesma, todo ser humano não retorna à infância diante na iminência do perigo? As pessoas à volta da criança têm, portanto, o dever de saber o que lhe falta para poder a isso responder sem demora (JULIEN, 200, p. 24). O que a psicanálise pode oferecer à educação? Lajonquière (2010) ajuda a tecer caminhos em busca de respostas. Para ele: “A psicanálise possibilita pensar as vicissitudes próprias da emergência de um sujeito do desejo – operante em toda a educação e reverso do indivíduo da pedagogia” (p. 85 – grifo do autor). A gestora da creche, ao recorrer ao “psi” do CRAS, supõe que a demanda escolar também deveria ser escutada, tanto pela via do encaminhamento, como através de uma palestra, como tinha lançado o convite. Guarido (2010) aponta para o fato de que o valor do cientificismo tende a validar uma nova autoridade na maneira de educar a criança. Os professores, então, buscam apropriar-se do discurso médico-psicológico no cotidiano escolar, tanto diante de uma suspeita de um diagnóstico, como na tentativa de encontrar estratégias, por meio dos discursos dos especialistas, para lidar com as demandas na educação. Segundo Lasta et al. (2012), esses sujeitos vêm sendo forjados por esses discursos, que, por sua vez, produzem novos modos de subjetivação na atualidade e, por esse motivo, deve-se questionar quais compromissos vêm sendo vinculados à atuação do “psi” no CRAS. A respeito desta última pergunta, entende-se que: [...] o social, que invade o domínio do político, avança de agora em diante sobre o território familiar. De fato, cada vez mais, os representantes da sociedade intervêm na relação entre pais e filhos [...] O terceiro social vem hoje cada vez mais interferir no processo dessa transmissão intergeracional. São o pediatra, a assistente materna, a assistente social ou o professor, ás vezes o psicólogo ou o juiz que, em nome da lei do bem-estar, esclarecem os pais sobre suas competências e seu julgamento. Pouco a pouco, o saber do perito se arroga um poder sobre a criança de tal modo que a lei do bem-estar se transmite à geração seguinte não mais apenas pelo familiar, mas pelo social. (JULIEN, 2000, p. 25). Entre as vias do social, através de uma demanda escolar, a presença da psicanálise travestida em leituras de textos e em questionamentos sobre os limites da ação educativa e do sentimento de impotência das professoras, instaurou um novo olhar e significações sobre as crianças nomeadas de hiperativas. Embora essa intervenção a partir do grupo e no grupo não seja objeto da política social, surgiu diante da demanda institucional da creche e de um posicionamento do desejo do analista. Não se tratava de analisar professoras, tampouco as crianças e seus responsáveis, mas de se apoiar em uma escuta analítica, considerando a educação como um discurso social a ser escutado. Nesse entendimento, pode-se afirmar que uma “escuta” dos atores implicados no ato pedagógico, realizada na escola, tendo como referencial a psicanálise, pode ampliar a compreensão sobre a dimensão subjetiva desse ato, levando também a um entendimento novo sobre os elementos que estruturam a ação educativa, no estágio contemporâneo da modernidade (Soares, 1999). E, como não se dispõe de uma fórmula, reitera-se a observação feita por Kupfer (2007, p. 125): “Quando o educador opera a serviço de um sujeito, abandona técnicas de adestramento e adaptação, renuncia à preocupação excessiva com métodos de ensino e com os conteúdos estritos, absolutos, fechados e inquestionáveis”. Parafraseando a autora, deve-se pensar uma educação que leve em consideração o sujeito em seus diferentes contextos sociais e experiências de vida. REFERÊNCIAS ABRAMOVAY, M. et al. Juventude, violência e vulnerabilidade social na América Latina: desafios para políticas públicas. Brasília: UNESCO, BID, 2002. AYRES, J. 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São Paulo: Vozes, 2012. p. 52-65 i Psicólogo. Mestrando em Psicologia pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Professor da curso de psicologia da UNIME – Lauro de Freitas.