1 - Unioeste

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A CONSTRUÇÃO DA EDUCAÇÃO ESPECIAL BRASILEIRA
ENQUANTO UMA POLÍTICA DE ESTADO E A CONTRIBUIÇÃO DA
ABORDAGEM SÓCIO PSICOLÓGICA PARA A EDUCAÇÃO ESCOLAR DAS
PESSOAS CEGAS E DE BAIXA VISÃO
WILHELM, Vandiana Borba1
TURECK, Lucia Terezinha Zanato 2
Introdução
O presente artigo tem por finalidade discorrer em linhas gerais sobre a trajetória
da educação escolar das pessoas com deficiência no Brasil, destacando a relevância
deste atendimento ter se configurado como uma política de Estado e corporificado uma
das modalidades educacionais, no caso, a Educação Especial. Busca-se também
problematizar algumas questões concernentes à denominada inclusão escolar, sendo que
o ponto nevrálgico do artigo é delinear o papel que a abordagem sócio psicológica,
cunhada por L. S. Vigotski, cumpre no que tange à escolarização das pessoas cegas e de
baixa visão, e o significado do conhecimento desta teoria por parte dos professores,
teoria esta que se encontra no bojo da Psicologia Histórico Cultural.
Por questões de dimensão do trabalho, a breve retrospectiva histórica restringirse-á a uma discussão conceitual dos três grandes modelos que edificaram os debates do
campo educacional, sendo eles o modelo da institucionalização, o da integração e o
atual modelo da inclusão.
Retomar essa trajetória histórica consagrada na literatura por grandes estudiosos
da área não significa incorrer no já sistematizado com exaustão na academia, mas tornase salutar para realçar que essa transição não se deu de forma linear, que os dois
1
Pedagoga da rede estadual de ensino do Estado do Paraná e professora da modalidade da Educação
Especial. Mestre em Educação pela UNIOESTE. E-mail: [email protected].
2
Pedagoga docente do Colegiado de Curso de Pedagogia da UNIOESTE, Mestre em Educação pela UEM
e doutora em Letras pela UFBA, coordenadora do PEE. E-mail: [email protected]
primeiros modelos não foram totalmente superados, havendo práticas e concepções que
os mantêm vivos no cenário da política educacional e que a inclusão escolar que emerge
no âmago das reformas neoliberais da década de 1990 não é tão somente uma ação
governamental, mas, também, resultado da luta histórica das pessoas com deficiência
por acesso à educação formal, via fundamental para a humanização.
Os modelos históricos de institucionalização e integração
Assinala-se que, segundo Bueno (1993), a institucionalização refere-se a uma
forma de atendimento iniciado ainda na Idade Média, por meio do confinamento
daqueles desviantes da norma, ou que não davam conta de prover sua subsistência, em
asilos e em outras instituições segregadoras, como os hospitais psiquiátricos. No
capitalismo, esse paradigma tem continuidade através da criação dos institutos para a
educação de cegos e surdos na Europa, a partir da segunda metade do século XVIII e
que foram disseminados para outros países.
No âmbito brasileiro destaca-se a criação do Imperial Instituto dos Meninos
Cegos, fundado no ano de 1854 (hoje, Instituto Benjamin Constant - IBC), localizado na
cidade do Rio de Janeiro, e no Estado do Paraná, o Instituto Paranaense de Instrução e
Trabalho para Cegos, datado de 1939 e que existe até os dias atuais com a denominação
de Instituto Paranaense de Cegos (IPC), além de outros.
Sobre este tocante, deve-se salientar que apesar destas instituições portarem o
timbre de locus para os processos de ensino e aprendizagem, por décadas a instrução
formal foi secundarizada e as escolas/institutos tornaram-se uma espécie de asilooficina, entretanto, constituíam-se na única possibilidade de acesso a alguma forma de
instrução escolar aos cegos pertencentes à classe trabalhadora.
Um século depois, por volta da década de 1960, o modelo da institucionalização
passou a ser objeto de críticas e estudos acadêmicos, pois estava baseado em "dados que
revelam sua inadequação e ineficiência para realizar aquilo a que seu discurso se propõe
a fazer: favorecer a preparação, ou a recuperação das pessoas com necessidades
educacionais especiais para a vida em sociedade" (BRASIL, 2000, p. 14).
Esse movimento pela desinstitucionalização das pessoas com deficiência foi
abrindo espaço para a emergência do conceito de integração, o qual sumariamente
pressupunha a adequação individual ao contexto social a partir da preparação ou da
adaptação da pessoa com deficiência.
O fio condutor desse modelo educacional fundamentava-se no conceito de
normalização, sendo que no documento intitulado "Projeto Escola Viva, Visão
Histórica" (BRASIL, 2000), pode-se sintetizar a informação de que para introduzir a
pessoa com deficiência na sociedade, a pessoa necessitava adquirir as condições e os
padrões da vida cotidiana, no nível mais próximo possível do normal. Desse modo, os
serviços destinados a esse fim foram ofertados em escolas especiais, nas entidades
assistenciais e nos centros de reabilitação.
Nesse contexto, pondera-se que o modelo da integração, apesar de mais
evoluído, em última instância também desaguava na segregação, haja vista que se
atribuía a responsabilidade pela adaptação e pela inserção social ao indivíduo, sem que
questões mais amplas, tais como as barreiras de ordem arquitetônica e barreiras
atitudinais e outras formas de adaptações fossem pensadas no conjunto do processo de
integração social. Isso contribuiu para seu declínio na década de 1980, haja vista as
contundentes críticas frente a esta forma de inserção escolar parcial e condicionada ao
nível de adaptação do aluno, bem como a insuficiência de seus resultados frente à
avaliação de organismos internacionais, como a Organização das Nações Unidas para
Educação, Ciência e Cultura (UNESCO), e também das próprias pessoas com
deficiência, que, já organizadas em associações ou em outras instâncias de
representatividade, reivindicavam a plena participação social e o acesso a todos os
espaços da sociedade, dentre eles, a escola.
Deste panorama, sublinha-se o ano de 1973 como o marco no que tange à
educação das pessoas com deficiência, pois a escolarização desses sujeitos sai da
exclusividade da filantropia e passa para o plano governamental a partir da criação, por
intermédio do Decreto Federal n° 72.425, do Centro Nacional de Educação Especial
(CENESP), órgão responsável por promover, em todo o território nacional, a expansão e
a melhoria do atendimento educacional às pessoas com deficiência, com isto atribuindo
à educação especial um caráter de política de Estado.
A fermentação política dos anos de 1980 e 1990 gerou uma série de documentos
internacionais e legislações de âmbito nacional que podem ser encontrados sumariados
em produções acadêmicas, a exemplo de Borba (2007), Carvalho (2008), Carvalho
(2009), dentre outras, análises que corroboram para o entendimento crítico quanto à
construção do modelo que atualmente intitula-se inclusão educacional.
Também em produção da SEESP/MEC (BRASIL, 2000) pode-se obter a
informação de que a ideia da inclusão se contextualiza no bojo do que se denominou
paradigma de suportes, que não se restringe à intervenção junto ao indivíduo, mas,
também, na sociedade como um todo. Desse modo, com a oferta de diferentes tipos de
recursos a pessoa com deficiência teria condições de acessar os serviços
disponibilizados a toda a comunidade, contrapondo-se ao paradigma de serviços, que
corresponde ao modelo da integração.
A trilha da edificação da Política Nacional da Educação Especial na perspectiva da
educação inclusiva: um caminho de avanços a serem considerados e desafios a
serem superados
Do arsenal documental e legislativo que foram fundamentando a política de
inclusão educacional e cimentando um percurso marcado por intensos debates, destacase a Declaração oriunda da Conferência Mundial de Educação para Todos --"Satisfação
das necessidades básicas de aprendizagem", de 1990, em Jomtien, na Tailândia, cujo
teor centrou-se na defesa da universalização da Educação Básica e na erradicação do
analfabetismo, sendo que para atingir essas metas o acesso à escola por parte de grupos
marginalizados, dentre eles o das pessoas com deficiência, fez-se necessário, tanto é que
no Art. 3° consta a orientação para a escolarização das pessoas com deficiência.
Ainda nesse panorama, cabe assinalar outro documento internacional que foi
traduzido no Brasil e teve grande repercussão, inclusive sendo referenciado em
documentos de âmbito nacional e do Estado do Paraná, sendo ele a Declaração de
Salamanca "Sobre Princípios, Política e Prática em Educação Especial", resultante de
assembleia organizada pelo governo de Salamanca, Espanha, com cooperação da
UNESCO, entre 7 e 10 de junho de 1994, na qual se reafirmou o compromisso com a
"Educação para Todos", de Jomtien, reconhecendo a necessidade e a urgência em
providenciar educação para as crianças, os jovens e os adultos com necessidades
educacionais especiais.
Vale registrar que embora essa Declaração esteja no rol de documentos da área
da Educação Especial, ela se remeteu a um público bem heterogêneo que se encontrava
fora da escola. Entretanto, há que se reconhecer que o grupo ao qual se atribuiu grande
ênfase é o das pessoas com deficiência, podendo ser este um dos motivos que levaram à
interpretação de que Salamanca trata especificamente da inclusão educacional deste
segmento social.
Neste quesito, Bueno (2008) vem problematizar acerca da tradução deste
documento no Brasil, pois, segundo o autor, na versão original do espanhol consta o
termo integração, sendo que na primeira tradução para o português feita pela
Coordenadoria Nacional para a Integração da Pessoa Portadora de Deficiência
(CORDE) existe a fidedignidade. Entretanto, na reedição do documento, que foi
disponibilizado em versão eletrônica no site do mesmo órgão, consta o conceito de
inclusão em lugar de integração, sendo este um dos fatores que podem ter influenciado
para que a Declaração de Salamanca fosse tomada como marco no que tange à política
de inclusão educacional.
Conforme Wilhelm (2010),
A diferença na tradução do conteúdo da Declaração não é apenas uma
questão técnica, mas, sim, conceitual. Deixa transparecer que a
inclusão educacional é uma política inovadora, quando, na verdade,
conforme já exposto, alunos com deficiência já estudavam em escolas
regulares antes da década de 1990, em um número pequeno, todavia,
incontestável. Outrossim, o conceito de inclusão escolar veiculado
nessa tradução da Declaração de Salamanca serviu como motor de
difusão do conceito, mobilizou debates, gerou pressões para que o
Estado desse respostas e, de certa forma, impulsionou a matrícula de
pessoas com deficiência em classes comuns do ensino regular
(WILHELM, 2010, p. 115).
Problematizando ainda o conceito inclusão, deve-se ponderar que no calor dos
debates muitas vezes deixa-se transparecer que esse conceito é uma originalidade da
década de 1990, como parte intrínseca das reformas neoliberais.
É verdade que o conceito de inclusão educacional corporifica-se nesse chão
histórico e pode ser explicado com maiores determinações no bojo desta conjuntura, até
mesmo porque os processos históricos não podem ser interpretados por si mesmos e
nem analisados como sendo restritos ao âmbito educacional, haja vista que as reformas
da base material, de forma mediatizada, produzem alterações no campo educacional,
sendo possível apreender esse movimento ao analisar as reformas educacionais em
articulação à conjuntura maior.
Sobre a temática da inclusão e sua expressão na forma de política educacional
Garcia (2004) contribui para o entendimento acima ressaltando que:
[..] não podemos afirmar que a ideia de inclusão seja recente entre os
educadores deste país. Recente é a versão atualizada do termo e o
desencadear de um movimento educacional que, assim como os
anteriores, propõe o novo como condição necessária de adequação da
escola às exigências mais recentes e sempre renovadas do mundo
globalizado (GARCIA, 2004, p. 43).
Ante ao exposto, destaca-se que estes recortes de pesquisa foram aqui
apresentados para reforçar o entendimento de que a política de inclusão educacional, a
qual aqui se defende como meio de acesso aos conteúdos científicos e humanização das
pessoas com deficiência visual, não foi um projeto interventor do Banco Mundial ou
uma proposta maquiavélica do Estado burguês. É, sim, o resultado da correlação de
forças e do tencionamento político, de um lado, das pessoas com deficiência, familiares
e professores comprometidos com esta causa; de outro, dos responsáveis pela
concretização do trabalho educativo, reivindicando melhores condições pedagógicas, a
exemplo da efetivação do conteúdo legal exigido por ambas as partes, e neste polo, o
Estado que pressionado, precisa dar respostas para manter a coesão social, atendendo
parcialmente às diversas demandas, uma vez que o Estado também é de classes, mas
ideologicamente, sustenta a máxima de atuar em nome do bem comum.
Discordando daqueles que defendem que o Estado faz concessões à classe
trabalhadora, pondera-se que os avanços que as pessoas com deficiência visual tiveram
no campo educacional, são considerados como conquistas, como resultado de lutas e de
enfrentamentos políticos, extremamente significativos, embora se reconheça a
existência de muitas lacunas que ainda precisam ser superadas.
A política educacional, em particular a da Educação Especial, é parte
constituinte das políticas sociais, e nesta direção, menciona-se Vieira (1992) para
reforçar o posicionamento acima realçado, ou seja, o de que
[...] a política social aparece no capitalismo construída a partir das
mobilizações operárias sucedidas ao longo das primeiras revoluções
industriais. A política social, compreendida como estratégia
governamental de intervenção nas relações sociais, unicamente pôde
existir com o surgimento dos movimentos populares do século XIX
(VIEIRA, 1992, p. 19).
Nessa perspectiva, o direito à educação das pessoas com deficiência, que se
expressa na política de Educação Especial, conforme já destacado anteriormente,
também está permeado pelas históricas reivindicações do acesso à escola, e não somente
das ações governamentais.
Nesse movimento, assinalam-se alguns dos dispositivos legais e documentos
nacionais que asseguram o acesso à educação escolar por parte das pessoas com
deficiência, a exemplo da Constituição Federal de 1988, em seu Artigo 208, Inciso III; o
documento Política Nacional de Educação Especial, de 1994, que ainda trazia o
conceito de integração; a LDBEN n° 9394, de 1996, que reserva o Capítulo V à
modalidade da Educação Especial; a Resolução CNE/CEB n° 2, de 2001, que institui as
Diretrizes Nacionais para a Educação Especial na Educação Básica, sendo que foi a
primeira vez que legalmente faz-se referência ao conceito de inclusão, ainda carecendo
de maiores definições.
Nesse encadeamento, menciona-se o Parecer CNE/CEB n° 17, datado de julho
de 2001, que fundamenta a Resolução nº 2, expressando a divergência de princípios
entre o conceito da integração e o da inclusão, ao defender que, em lugar de o aluno
ajustar-se aos padrões de normalidade para aprender, é a escola que deve tomar como
seu o desafio de ajustar-se para atender à diversidade dos alunos.
Como não é objetivo discutir o conteúdo legal dos documentos, mas, sim,
demonstrar em linhas gerais a trilha com que se consolidou a educação especial
brasileira enquanto uma política de Estado, dando destaque para o modelo vigente,
denominado de inclusão, somente pontua-se a existência de uma diversidade de
legislações que garantem o acesso à educação escolar, sendo que no âmago dessa
contextualização, não se pode deixar de mencionar outras ações que foram dando os
novos contornos dessa modalidade educacional.
Nesse sentido, faz-se referência ao "Programa Educação Inclusiva: direito à
diversidade", que teve início no ano de 2003 tendo por objetivo contribuir na política de
construção de escolas inclusivas em todo o país. Por meio desse programa, em parceria
com os municípios, realizou-se a capacitação dos gestores e dos educadores da rede
pública de ensino, trazendo em sua política a implantação, em nível nacional, das salas
de recursos multifuncionais (SRM), que começaram a ser instituídas a partir do ano de
2005, visando disponibilizar e ampliar o atendimento educacional especializado, salas
estas que possuem uma organização e programa distintos das já existentes.
Ainda segundo Wilhelm (2010),
[...] em janeiro de 2008 é publicada a "Política Nacional da Educação
Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva", estando em
consonância com o Parecer CNE/CEB n° 13, homologado pelo
Ministro da Educação, Fernando Haddad, em 23 de setembro de 2009,
que trata das diretrizes operacionais para o atendimento educacional
especializado para os alunos com deficiência, transtornos globais do
desenvolvimento e altas habilidades ou superdotação matriculados em
classes regulares e no atendimento educacional especializado (AEE),
sendo este Parecer que fundamenta a Resolução n° 4, de 2 de outubro
de 2009, a qual institui Diretrizes Operacionais para o AEE na
Educação Básica -Modalidade Educação Especial (WILHELM, 2010,
p. 129).
Exposto este percurso e tendo atingido o momento histórico atual que revela a
consolidação da política de inclusão educacional, busca-se a partir de então o
delineamento de alguns aspectos da abordagem teórica cunhada por Vigotski (1997) de
sócio psicológica, com a finalidade de assinalar as significativas contribuições que esta
teoria científica e progressista cumpre no processo social das pessoas cegas e de baixa
visão, bem como no da educação escolar em específico.
A abordagem sócio psicológica como parte constituinte da Psicologia
Histórico Cultural: um alicerce para a humanização das pessoas cegas e de baixa
visão
A título de embasamento teórico, pensa-se ser relevante destacar que o
envolvimento de Vigotski com os estudos relacionados à educação das pessoas com
defeitos orgânicos3 teve motivação em suas atividades de docente de conteúdos ligados
à psicologia e literatura em um curso de formação de professores em Gomel, Rússia,
professores estes que traziam indagações quanto à aprendizagem escolar desses sujeitos.
Em consonância com Barroco (2007) vale salientar que no contexto histórico e
cultural da Rússia pós-revolucionária, as pessoas com defeitos foram pensadas no
conjunto das ações do Estado, a exemplo do objetivo em alfabetizar toda a população,
indiscriminadamente.
Foi no ano de 1924 que Vigotski recebeu notoriedade sendo convidado para
trabalhar no Instituto de Psicologia de Moscou, onde assumiu a direção do
Departamento de Educação das crianças cegas, surdas-mudas e com retardo mental4.
Nesse bojo, cabe salientar que a Psicologia Histórico-Cultural, sistematizada por
Vigotski e colaboradores tais como Alexis N. Leontiev (1904-1979) e Alexander R.
Luria (1902-1977), cumpre um papel de suma importância para os processos de ensino
e aprendizagem em geral. Em particular, o Tomo V das Obras Completas de Vigotski
intitulado "Fundamentos de Defectologia" (1997), traz um artigo específico com o nome
3
Para Vigotski (1997), o conceito de defeito não é utilizado de uma maneira pejorativa. Em seus estudos,
o defeito foi classificado como primário e secundário, sendo o primário o defeito propriamente dito, é o
orgânico, podendo ser de ordem física, sensorial ou mental; o secundário são as consequências sociais
que resultam do defeito no meio social. Portanto, defeito e deficiência não são sinônimos. A deficiência
pode ser de diferentes graus, dependendo do resultado da supercompensação, cerne da abordagem sócio
psicológica.
4
Essas terminologias eram utilizadas de forma generalizada, não só na União Soviética. Fiel às
referências, as mesmas foram mantidas, todavia na atualidade seu emprego é incorreto.
"A criança cega", o qual discute o que ocorre com a personalidade do indivíduo ao ser
acometido pelo defeito na visão, enfatizando que "a cegueira não é, portanto, somente
um defeito, uma debilidade, senão também, em certo sentido, uma fonte de
manifestação das capacidades, uma força (por estranho e paradoxal que seja!)"
(VIGOTSKI, 1997, p. 74).
Esta citação expressa em partes a grandiosidade dos escritos vigotskianos sobre
a cegueira. Superando a concepção conservadora de que a perda da visão transforma os
sujeitos em seres debilitados, ou na terminologia vigente da sociedade capitalista, em
pessoas inválidas, a partir de suas pesquisas e estudos de nossa parte, permite a
inferência de que muitas limitações acarretadas pela cegueira no meio social podem ser
vencidas, mas que todavia, este processo não se dá de forma espontânea e natural,
requerendo todo um trabalho de conscientização, de estímulos, de um trabalho
pedagógico direcionado, enfim, elementos estes que colocam para a família e a escola
um papel determinante, sem com isto desconsiderar o contexto social no qual estamos
inseridos, pois de forma mediatizada, as condições materiais de existência influenciam a
vida de todos os indivíduos.
Este processo de superação transita pelo que Vigotski denominou de
supercompensação, ou seja, a forma com que a personalidade reage frente aos conflitos
derivados do defeito orgânico na visão. Nas palavras do soviético:
Ao entrar em contato com o meio externo, surge o conflito provocado
pela falta de correspondência do órgão, a função deficiente, com suas
tarefas, o que conduz a que exista uma possibilidade elevada para a
morbidade e a mortalidade. Este conflito origina grandes
possibilidades e estímulos para a supercompensação. O defeito se
converte, desta maneira, no ponto de partida e na força motriz
principal do desenvolvimento psíquico da personalidade. Se a luta
conclui com a vitória para o organismo, então não somente são
vencidas as dificuldades originadas pelo defeito, senão que o
organismo se eleva, em seu próprio desenvolvimento, a um nível
superior, criando do defeito uma capacidade; da debilidade, a força; da
menos-valia a supervalia (VIGOTSKI, 1997, p. 78).
A citação acima reforça a não naturalidade dos processos compensatórios, haja
vista que estes são movidos pelos conflitos, e da percepção (a ser impelida e
apreendida) da pessoa com defeito na visão em sentir a necessidade para reagir frente
aos mesmos, o que resultará em graus maiores ou menores de dificuldades para a vida
em sociedade, dado que nem todas as pessoas conseguem realizar com êxito tal
processo, justamente por sermos produtos da nossa história de vida, das oportunidades
que esta sociedade seletiva nos coloca, do contexto familiar, do grupo social com o qual
convivemos, dentre outros fatores que estão a nos determinar enquanto indivíduos, ou
como escreve Vigotski (1997):
Sem dúvida, uma saída feliz não é solução única, ou inclusive o
resultado mais frequente da luta pela superação do defeito. Seria
ingênuo pensar que qualquer enfermidade termina de um modo
exitoso, e que todo defeito se transforma felizmente em um talento.
Qualquer tipo de luta tem duas saídas, portanto a segunda saída é o
fracasso da supercompensação, a vitória total do sentimento de
debilidade, o caráter associal da conduta, da criação de posições
defensivas a partir de sua debilidade, sua transformação em
instrumentos, o objetivo fictício da existência, em essência, a loucura,
a impossibilidade de a personalidade ter uma vida psíquica normal; é a
evasão na enfermidade, a neurose. Entre estes dois polos encontra-se
uma diversidade enorme e inesgotável de diferentes graus do êxito e o
revés, do talento e da neurose, desde os mínimos aos máximos
(VIGOTSKI, 1997, p. 78).
Estes pilares que fundamentam o artigo "A criança cega" alicerçam-se na
abordagem cunhada por Vigotski de sócio psicológica, sendo que sua primazia está em
se contrapor à denominada concepção mística que, estando fundamentada em
superstições, limitava e limita o desenvolvimento das pessoas com defeito uma vez que
esta concepção não esta totalmente superada.
Esta abordagem também se contrapôs a outra concepção denominada de
biológica-ingênua, ou teoria da substituição dos órgãos dos sentidos, perspectiva teórica
que embora mais evoluída por trazer para o plano da ciência a explicação das origens e
causas dos defeitos orgânicos, equivocava-se ao postular que a perda da visão, por
exemplo, seria compensada pelo maior desenvolvimento dos outros órgãos dos sentidos,
questão que não corresponde à realidade, mas que, entretanto, esta muito impregnada
em nossa sociedade, inclusive no campo educacional, justo pela falta de compreensão
dos estudos de Vigotski e da ausência deste aporte teórico-metodológico nos cursos de
formação de professores.
Vigotski ao distanciar-se de outras correntes explicativas que percebiam a
criança com defeito somente do ponto de vista biológico, foi capaz de sistematizar uma
abordagem que não se ativesse somente às debilidades, às limitações que o defeito pode
acarretar no meio social, mas, sim, uma abordagem que vislumbrasse no defeito da
visão a dialética da concreticidade humana.
É nessa contraditoriedade que se encontra a base científica do defeito na visão, a
valorização do acesso ao conhecimento científico, feito para o qual o aprender a ler e a
escrever é fundamental, podendo-se identificar tal defesa na passagem onde registra-se
"Um ponto do sistema braile tem feito mais pelos cegos que milhares de filantropos; a
possibilidade de ler e de escrever tem resultado ser mais importante que o "sexto
sentido" e a agudeza do tato e da audição" (VIGOTSKI, 1997, p. 77).
É função da escola não só a mediação dos processos para a aquisição da leitura e
da escrita, mas todo um trabalho pedagógico que caminhe na direção de possibilitar a
apropriação dos conteúdos científicos presentes no currículo escolar, apropriações estas
que representam humanização.
Nessa direção, quer-se ressaltar a importância do conhecimento desta abordagem
pois à medida em que os professores entenderem que os alunos cegos ou de baixa visão
inclusos na escola comum não são somente seres dotados de limitações, mas, sim,
sujeitos com plenas capacidades para aprender e se desenvolver, tanto quanto os demais
alunos não cegos, a muralha entre a mediação do conhecimento e do acesso ao mesmo
começará a desfazer-se. Outra contribuição de âmbito específico, é o significado que os
postulados da abordagem sócio psicológica produzem na existência dos sujeitos com
defeito na visão, pois o entendimento de que a cegueira pode ser também uma fonte de
estímulos e de capacidades e de que é possível superar o sentimento de menos valia
rumo à conquista de um maior desenvolvimento movido pelas aprendizagens dirigidas,
resulta em um "poder" psíquico de ordem incalculável.
Considerações finais
Sublinha-se, portanto, que a abordagem sócio psicológica não pode ser
compreendida descolada da teoria que a alicerça, ou seja, a Psicologia HistóricoCultural, uma vez que é esta teoria que explica que o indivíduo não nasce humano, mas
se humaniza por meio das relações sociais que estabelece com outros homens e pela
história e cultura acumuladas, opondo-se à ideia de que a criança ao nascer traz consigo
aptidões, reforçando o princípio de que o que a criança possui é a capacidade de
aprender, desenvolver-se e formar novas capacidades, realçando a importância da
estimulação e do desenvolvimento das funções psicológicas superiores, a exemplo da
linguagem, do pensamento, da atenção voluntária, da memória mediada e da percepção,
pois são estes processos superiores que permitem a apreensão da realidade e dos
conhecimentos científicos.
Neste aspecto reside o papel preponderante da educação escolar como
impulsionador da aprendizagem e do desenvolvimento do ser humano, e aqui em
particular, do papel dos professores do AEE como também tendo sua parcela de
responsabilidade no que tange à humanização e o consequente impelimento das funções
psicológicas superiores.
Isto posto, respalda-se em Duarte (2013) para finalizar este artigo destacando
que a efetivação dos princípios vigotskianos somente podem concretizar-se por
intermédio de uma pedagogia que convirja com seus fundamentos, isto é, “entre a
psicologia histórico-cultural e a prática educativa, sempre existe a mediação de uma
teoria pedagógica. A psicologia histórico-cultural não é e não pode ser uma pedagogia,
o que ela pode ser é um dos fundamentos de uma pedagogia” (DUARTE, 2013, p. 19).
Nesse sentido, a pedagogia que se fundamenta no mesmo aporte teórico em que
Vigotski alicerçou seus estudos, isto é, no materialismo histórico dialético, é a
Pedagogia Histórico Crítica, pedagogia que valoriza a mediação do conhecimento
científico, da escola como via de acesso a estes conhecimentos indispensáveis para a
humanização e do papel relevante que o professor cumpre em tal processo.
E sobre o acesso à educação escolar, em contexto comum, por parte dos alunos
cegos e de baixa visão, respaldamo-nos em Vigotski (1997), para defender que
a educação de crianças deficientes não se diferencia da educação das
crianças normais, que os primeiros podem assimilar os conhecimentos
e desenvolver habilidades de maneira semelhante aos demais. Não
obstante, é imprescindível investigar e utilizar métodos,
procedimentos e técnicas específicas para alcançar esse
desenvolvimento (VIGOTSKI, 1997, p. 84).
Daí a importância da oferta dos serviços especializados nas SRM na Área da
Deficiência Visual, da concretização de um dos atributos do professor do AEE que é a
itinerância, pois o apoio deve ser disponibilizado também ao professor do ensino
comum que trabalha com este alunado, a garantia do material didático-pedagógico
adaptado, a exemplo do livro didático, e sobretudo a mudança de concepção acerca da
educação escolar destes sujeitos.
Referências
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(Dissertação) Mestrado em Educação, Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em
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