TEORIA DO RECONHECIMENTO, TEORIA DA DUPLA HERANÇA E A EPISTEMOLOGIA DA FILOSOFIA DA BIOLOGIA NO CONTEXTO DA MOBILIZAÇÃO SOCIOPOLÍTICA DE UMA COMUNIDADE QUILOMBOLA NA AMAZÔNIA MARAJOARA. Edson Rogério Nascimento Cruz (Brasil) Universidade Fedral do Pará - UFPA Resumo O trabalho ora apresentado parte do seguinte questionamento: Pode a sociologia compreender e explicar um fenômeno social em análise? Para dar conta desse desafio recorremos à teoria do reconhecimento e à teoria da dupla herança. A parte empírica foi assegurada pelos dados obtidos junto às comunidades quilombolas do arquipélago do Marajó, na Amazônia brasileira, que vivem um processo de luta por reconhecimento de direitos socioterritoriais. Esse é o contexto que envolve nossa pesquisa e os esforços até aqui empreendidos demonstraram como a chamada evolução da mente normativa dos seres humanos se faz notar no comportamento político dos atores sociais das comunidades evidenciadas. Palavras-chave: Cultura, teoria da dupla herança, teoria do reconhecimento. 1. Introdução Estabelecidas há mais tempo, as ciências naturais influenciaram as ciências sociais no momento em que essa última surgiu. Posteriormente, iniciaram-se discussões a respeito da especificidade de cada uma dessas duas áreas conhecimento científico. Para autores como Wilhelm Dilthey, as ciências naturais explicavam os fenômenos naturais, enquanto as ciências humanas compreendiam os aspectos individuais e sociais da vida dos seres humanos. Tal antinomia encontrou uma possibilidade de conciliação a partir de autores como Pierre Bourdieu ao defenderem a compatibilização entre explicação e compreensão dentro da análise social. Nesse sentido, o presente trabalho objetiva demonstrar como fatores culturais podem influenciar as mobilizações sociais por reconhecimento de direitos ao favorecer a interlocução entre ciências sociais e naturais. Pois o sistema de valores culturais remete a moralidade, tema comum à teoria do reconhecimento, de Axel Honneth, e à teoria da dupla herança, traçada por Peter Richerson e Robert Boyd. Daí acentuar-se a pertinência epistemológica da filosofia da biologia para os estudos sociais. Ou seja, o aspecto cultural, componente do comportamento político dos indivíduos, é tido sob uma dupla determinação, a social e a biológica. Metodologicamente, buscou-se desenvolver uma pesquisa bibliográfica cuja pertinência empírica será expressa – descritivamente – por intermédio da questão quilombola ilustrada aqui pela ação coletiva de uma comunidade da Amazônia marajoara objeto da pesquisa/dissertação intitulada Reconhecimento, identidade e direitos socioterritoriais: Aspectos da vida política de jovens em uma comunidade quilombola da Amazônia marajoara, em andamento. Longe de esgotar o assunto, o trabalho ora apresentado pretende provocar maiores reflexões sobre uma abordagem interdisciplinar que não envolva apenas as diferentes áreas das ciências humanas, mas também das ciências naturais, de modo a promover análises sociais mais robustas. 2. Ciências sociais e ciência naturais: Especificidade científica da sociologia, teoria da dupla herança e teoria do reconhecimento A presente seção tem por objetivo abordar, através de um apanhado bibliográfico, o processo de formação da especificidade científica da sociologia1 ao longo do tempo. Nesse sentido, partimos do entendimento de que a sociologia só se estabeleceu na era moderna, dentro de um contexto desencadeado por duas grandes revoluções, a Francesa e a Industrial. E que surgiu em um momento onde as Ciências Naturais e algumas das Ciências Sociais já estavam estabelecidas. Nossa argumentação irá orbitar em torno de três grandes nomes desta área do conhecimento, quais sejam: Émile Durkheim, Wilhelm Dilthey e Pierre Bourdieu. A escolha destes nomes justifica-se pelo caráter de ruptura que cada um representa em relação ao seu antecessor – no caso de Durkheim, rompimento em relação ao pensamento predominante que lhe antecedia – o que na prática, cada um destes episódios de ruptura, correspondeu ao início de uma nova perspectiva epistemológica dentro do pensamento social. É válido lembrar, entretanto, que não ignoramos o fato de que a busca de entendimento sobre o comportamento humano em coletividade tem sido uma constante desde os primórdios da humanidade. Como nos deixam perceber as elaborações religiosas e míticas, exemplos clássicos destas primeiras tentativas de entendimento sobre o meio social. Lembramos, também, daqueles esforços mais elaborados do pensamento social que mesmo não tendo status de ciência serviram de matriz pra esse tipo de conhecimento na área social. Deste período podemos destacar os trabalhos de Kautilya, de Aristóteles e de Ibn Kaldun, por exemplo. Contudo, foi somente no limiar da modernidade que o pensamento sociológico foi forjado e nas décadas seguintes desenvolvido. Segundo Lakatos & Marconi (2008), no século XVIII, nomes como Montesquieu, David Hume, Adam Smith, Jean-Jacques Rouseau; e mais, Charles Fourier, Saint Simon, Robert Owen, Pierre-Joseph Proudhon; por fim, Georg Wilhelm Friedrich Hegel, David Ricardo, Thomas Robert Mathus apresentaram “[...] obras de grande valor no campo da 1 Neste trabalho, embora busquemos abordar a especificidade científica da sociologia, nem sempre será este termo que aparecerá para designar esta área do conhecimento. Haverá oportunidade em que usaremos Ciências Humanas ou Ciências Sociais para contemplar este sentido. Algo necessário, pois em um determinado momento nos deteremos sobre a polarização Ciências Naturais/Ciências Humanas. Deste modo, acreditamos que não comprometeremos o entendimento de nossa argumentação, visto que o campo das Humidades abrange o ser humano enquanto indivíduo e enquanto ser social. política, economia e sociologia”. (Lakatos, 1990, p. 41). Além destes nomes, os autores destacam outros, os quais foram identificados como pioneiros do pensamento sociológico, são eles: Augusto Comte, Hebert Spencer e Karl Marx. Logo em seguida aparece a lista dos principais desenvolvedores da sociologia: Émile Durkheim, Ferdinand Tönnies, Gabriel Tarde, Georg Simmel, Max Weber, Vilfredo Pareto, Pitirim A. Sorokin, Talcolt Parson e Robert K. Merton.2 Não sendo nossa intenção explorar cada uma das contribuições destes pensadores, algo que nos desviaria do propósito demarcado inicialmente, a partir daqui vamos adotar Durkheim como referência na continuação de nossa exposição. Procedemos assim, pois Durkheim “[...] é considerado por muitos estudiosos o fundador da sociologia como ciência independente das demais Ciências Sociais”. (Lakatos & Marconi, 2008, p. 48). Antes de Durkheim o pensamento social tomou muita influência das ciências naturais, para se ter ideia, conforme Bottomore (1973), um dos elementos da sociologia moderna teria sido o “levantamento social”, o qual se baseava em duas fontes, primeiro, “[...] a crescente convicção de que os métodos das Ciências Naturais deviam e podiam ser estendidos ao estudo das questões humanas, que os fenômenos humanos podiam ser classificados e medidos”, o segundo “[...] foi a preocupação com a pobreza [...].” (p. 18). Exemplos desse período são os trabalhos de Condorcet, ao propor a chamada matemática social; e de Quételet, com sua física social. Bottomore continua, No século XVIII, as Ciências Sociais eram consideradas, em geral, segundo o modelo da física. No século XIX, a sociologia modelou-se pela Biologia. Isso se evidencia pela concepção amplamente difundida da sociedade como organismo, e pelas tentativas de formular leis gerais de evolução social. (Bottomore, 1973, p. 21). Este paradigma que aponta para a aproximação entre os métodos das Ciências Naturais e os das Ciências Humanas irá alcançar o pensamento de Durkheim. No estudo da vida social, uma das preocupações de Durkheim era avaliar qual método permitiria fazê-lo de maneira científica, superando as deficiências do senso comum. Conclui que ele deveria assemelhar-se ao adotado pelas ciências naturais, mas nem por isso ser o seu decalque, porque os fatos que a Sociologia examina pertencem ao reino social e têm peculiaridades que os distinguem dos fenômenos da natureza. Tal método deveria ser estritamente sociológico. Com base nele, os cientistas sociais investigariam possíveis relações de causa e efeito e regularidades com vistas à descoberta de leis e mesmo de “regras de ação para o futuro”, observando fenômenos rigorosamente definidos. (Quintanero, 2002, pp. 72-73) A passagem supracitada deixa nítido que Durkheim vislumbrava a concretização de um método próprio da sociologia, ainda que ele se espelhasse na metodologia das ciências naturais. Ora, não podemos negligenciar a influência que o organicismo3 de Albert Schäffle teve sobre seu pensamento. Todavia, tanto Schäffle quanto Durkheim não viram naquela analogia metodológica 2 3 Embora devamos reconhecer que muitos outros contribuíram para a formação e desenvolvimento da sociologia, e do pensamento social como um todo, os nomes mencionados acima são os que comumente aparecem na literatura especializada. Em linhas gerais, Organicismo se refere à teoria que analisava a sociedade como se ela fora um organismo vivo. É comumente associado ao pensamento positivista. nada mais que uma “metáfora”. Segundo Durkheim, uma das contribuições mais importantes de Schäffle para o pensamento social consiste no facto de esse autor ter definido um modelo de análise morfológica muito útil dos principais componentes estruturais de diferentes formas de sociedades. Ao fazê-lo, Schäffle utiliza largamente as analogias orgânicas, comparando as várias partes da sociedade aos órgãos e tecidos do corpo. Esse processo é, segundo Durkheim, perfeitamente válido, pois Schäffle não pretende deduzir directamente as propriedades da organização social das da vida orgânica. Pelo contrário, Schäffle insiste em que o recurso a conceitos biológicos não passa de uma “metáfora” que contribui para facilitar a análise sociológica. (Giddens, 2005, p. 111) O próprio Durkheim (1999), em Da Divisão do Trabalho Social, após tratar da distinção entre as solidariedades sociais, conduz a esse entendimento ao escrever: “A mesma lei [que rege a solidariedade mecânica e a solidariedade orgânica] preside o desenvolvimento biológico.” (p. 175). Não por acaso o tópico correspondente a este trecho se intitula Analogia entre esse desenvolvimento dos tipos sociais e dos tipos orgânicos no reino animal. Pois bem, como colocado em linhas anteriores, tomamos Durkheim como referência inicial nesta nossa breve jornada pela trajetória de formação da especificidade científica da sociologia por ele ser tido como o primeiro a criar uma metodologia própria para esta área do conhecimento. Isso não implica dizer que suas proposições não tenham sido contestadas. E é sobre esta questão que trataremos agora. Deste modo, anunciamos que o autor escolhido para ilustrar esta etapa do nosso trabalho será Wilhelm Dilthey. Dilthey é um titã que resiste à completa absorção dos estudos humanos em uma abordagem unificada pelos princípios do positivismo. Ele diz não a isto, sustenta a especificidade dos estudos científicos e filosóficos do humano, destacando que as humanas compreendem (verstehen) e as ciências naturais explicam (erklären). (Franco, 2012, p. 15) Percebe-se de imediato que Dilthey defende a não incorporação das Ciências Humanas pelas Ciências da Natureza. Porém, isso não significa que ele faça campanha para afastamento das duas. Ele sai em defesa da relação entre ambas, resguardando o fato de que “[...] os estudos humanos usam também outros métodos e chegam a resultados diferentes”. (Bottomore, 1973, p. 57). Para Dilthey a compreensão significa entender sentidos. “Isto porque somente o humano faz sentido para o homem.” ( Machado Neto & Machado Neto, 1983, p. 4). Além disso, no pensamento diltheyano, [...] a metodologia das ciências naturais exerceria um efeito negativo sobre as outras, isso porque, por valer-se de compreensões hipotéticas (ou ainda, “hipostasiadas”), as ciências naturais posicionariam os objetos das ciências humanas tal como fazem com os objetos da natureza, interpretando-os como dados em sua mera aparência e duração. Desse modo, as ciências naturais (positivas) exerceriam uma ação “abstrativa” sobre o conhecimento acerca do humano. Tal ação seria decorrente da lida hipotético-positiva das ciências naturais, e tal lida oferece o risco de descaracterização da experiência humana na pauta das ciências que dela se ocupa. (Kahlmeyer-Mertens, 2012, p. 223) Diante do exposto, não fica difícil perceber a diferença entre o pensamento Dilthey e o de Durkheim em relação aos marcadores teórico-metodológicos das Ciências Sociais e/ou Humanas. É neste momento que outro expoente dessa discussão entra em cena. Trata-se de Pierre Bourdieu. Bourdieu segue um caminho relativamente oposto ao de Dilthey. Enquanto este era favorável ao distanciamento entre Ciências Humanas e Ciências Naturais, aquele veio sustentar a conciliação entre as duas. Quer dizer, Bourdieu está entre os partidários da compatibilização entre explicação e compreensão dentro da análise social. Como o próprio autor francês assevera: “Contra a velha distinção diltheyana, é preciso ser dito que compreender e explicar são a mesma coisa.” (Bourdieu, 2008, p. 700). Este trabalho visa demonstrar que ciências humanas e ciências naturais não estão necessariamente apartadas quando o assunto é análise social. Se Bourdieu afirma que compreender e explicar são a mesma coisa, acreditamos, antes disso, que elas podem ser combinadas. Uma das maneiras de tornar tal proposta viável é voltar a tenção para a forma como a coevolução gene-cultura influencia o comportmento humano. É nesse momento que a filosofia da biologia4 desponta como ótimo recurso de pesquisa, principalmente se tomarmos como parâmetro uma de suas vertentes, a teoria da dupla herança empregada por Robert Boyd e Peter Richerson. A respeito do pensamento desses autores, Karla Chediak diz o seguinte: Os antropólogos Robert Boyd e Peter Richerson, que se dedicam ao estudo da evolução humana, acreditam que o que ocorre é uma co-evolução humana gene-cultura, em que a cultura não está sob o controle do gene, pois ambos interagem. Embora a cultura não seja exclusividade da espécie humana, o seu caráter cumulativo é uma especificidade da nossa espécie. (Chediak, 2008, pp. 54-55) Nota-se com a citação acima que o pensamento de Boyd e Richerson compreende que cultura e genética são fatores interdependentes no processo evolutivo do comportamento humano. Sendo que tal evolução se difere da evolução de outras espécies de animais, justamente por carregarmos traços de uma herança genética e outra cultural. Nas palavras dos próprios autores: “The use of socially learned information (culture) is central to human adaptations. We investigate the hypothesis that the process of cultural evolution has played an active, leading role in the evolution of genes.” (Boyd; Henrich; Richerson, 2010, p. 1) É nesse sentido que Abrantes e Almeida (2012) demonstram como a teoria da dupla herança defende a ideia de que a cultura influenciou a constituição e evolução da mente humana, derivandose dela o nosso senso moral e normativo. É a partir desse ponto que pretendemos seguir daqui em diante. Abrantes e Almeida (2012) partindo do pressuposto de que somos capazes de agir conforme 4 “A filosofia da biologia, vista como uma subárea da filosofia da ciência, só se constituiu e se tornou (relativamente) autônoma nas últimas décadas do século XX, sobretudo nos países anglo-saxônicos. Podemos assinalar os anos de 1970 como o marco. Nessa década, alguns filósofos da ciência passaram a dedicar-se, especificamente, a uma reflexão sobre a biologia (embora sua formação ainda tivesse como referência a tradição formalista e reconstrutivista do empirismo lógico, por mais abalada que estivesse pelas críticas que lhe foram feitas e se intensificaram nos anos de 1950 e 1960). (Abrantes, 2011, p. 11) normas devido a regulação de instituições típicas da sociedade humana – tais como, direito, religião e moral – tomam a teoria da dupla herança para destacar a preponderância da cultura na evolução da psicologia humana. Essa concepção foi originalmente apresentada por Robert Boyd (2012) da seguinte maneira: I hypothesize that this new social world, created by rapid cultural adaptation, led to the genetic evolution of new, derived social instincts. Cultural evolution created large cooperative groups. Such environments favored the evolution of a suite of new social instincts suited to life in such groups including a psychology which “expects” life to be structured by moral norms, and that is designed to learn and internalize such norms. (Boyd, 2012, p. 4) Um dos pontos sobre esse assunto tratado por Abrantes e Almeida (2012) envolve a chamada comunidade moral e os marcadores simbólicos. Eles chamam atenção para o modo como a evolução da psicologia inata tornou os indivíduos cada vez mais capazes de identificar os marcadores simbólicos do grupo a que pertenciam. Conforme Boyd e Richerson essa é uma capacidade própria da psicologia dos seres humanos. Além disso, essa dinâmica de identificação dos marcadores simbólicos revela como se formam as comunidades morais. Uma comunidade moral é um grupo social culturalmente composto por normas morais cujo sentimento de pertença é indicado pelos denominados marcadores simbólicos, ou seja, pelos símbolos que caracterizam o grupo. É desse modo que as marcações simbólicas possibilitam a formação da identidade de seus integrantes. “Essa rede simbólica de variantes culturais está na origem dos sistemas normativos humanos, como o direito, a religião e a moral.” (Abrantes & Almeida, 2012, p. 23) Tal concepção não está distante da realidade de comunidades quilombolas do arquipélago do Marajó, na Amazônia brasileira, visto que elas são dotadas de um sistema normativo particular. Cardoso (2010) e Cardoso, Schmitz e Mota (2011) tratam desses sistemas normativos como constituição local e práticas jurídicas locais, respectivamente. O cerne de tais entendimentos é o ordenamento territorial segundo os valores locais. As práticas jurídicas locais “são frutos de entrelaçamentos de várias ordens jurídicas constitutivas do mundo social e de interpretações que os sujeitos produzem a partir da confluência destas várias ordens, objetivando definir suas relações sociais, sejam internas à comunidade, com o Estado ou com outros grupos sociais com os quais mantêm relações”. (Cardoso, Schmitz, Mota, 2011, p. 3) A constituição local, por sua vez, traz no termo constituição um entendimento que valoriza de um modo pleno […] as noções intrínsecas de direito local e seu ordenamento, os quais foram construídos para organizar o território e as relações sociais. A literatura antropológica sobre comunidades quilombolas, seja fruto de pesquisas periciais ou acadêmicas strictu sensu, fornece pistas sobre a complexidade dos ordenamentos jurídicos próprios a cada grupo quilombola pelo Brasil […]. (Cardoso, 2010, p. 16) Pautado nisso, Cardoso (2010) coloca como as comunidades quilombolas do Marajó estão empenhadas em reaver territórios perdidos ao longo dos tempos. Conforme indica Cardoso (2008) a comunidade de Mangueiras foi “o foco de dispersão” que deu início as demais comunidades de descendentes daqueles sujeitos que foram escravizados na região do Marajó no passado. Originalmente a pesquisa do autor partiu da comunidade de Bairro Alto, mas, a título de exemplo, podemos também lembrar do ocorrido na comunidade de Caldeirão, outra comunidade quilombola marajoara, que – conforme dados obtidos – vive um processo recente de adensamento demográfico causado pelo estabelecimento de novos habitantes vindos de fora da comunidade; algo que nos permitiu comparar como os moradores nativos tendem a ordenar o território de acordo com suas normas ancestrais, geralmente pautadas no parentesco, e como os novos moradores se estabelecem desconsiderando tais normas. Este contraste nos auxilia aqui na percepção da disposição tradicional das comunidades quilombolas em seus territórios. Nesse sentindo, Cardoso (2010) demonstra como o confronto por direitos socioterritoriais “[...] parece estar baseado no sentimento de (in) justiça em razão da exploração de seus antepassados como escravos, da expropriação de seus territórios e da situação de invisibilidade que ainda sofrem” (p. 16). O autor continua ao asseverar que O sentimento de (in) justiça presente nas comunidades quilombolas tem íntima relação com o que Geertz (1997) denominou de ―sensibilidade jurídica local”, ou seja, o sentimento de justiça próprio a cada sociedade, no caso das comunidades quilombolas, o sentimento de (in) justiça, que se caracteriza pelo rompimento do ordenamento jurídico local de que são vítimas por agentes externos ao grupo. (p. 16 – Grifo do autor) Esta análise, em certo sentido, aproxima-se dos princípios da luta pelo reconhecimento de direitos ao chamar a atenção para a reação de uma coletividade ante uma situação de desrespeito aos seus direitos que não estão sendo garantidos pelo Estado. Quer dizer, o desrespeito e/ou sentimento de injustiça no âmbito legal existe ao comprovar-se um caso de privação de direitos. “As reações provocadas pelo sentimento de injustiça devem ser vistas como o estopim par excellence da luta por reconhecimento.” (Saavedra & Sobottka, 2008, p. 15). Para Honneth, a esfera legal – ou do direito – é apenas uma das esferas do reconhecimento, existindo, além dela, outras duas: a do amor, ou esfera íntima, e a da solidariedade, ou esfera da estima social. Resumidamente, a teoria honnethiana do reconhecimento adota três formas de reconhecimento possíveis: o amor, o direito, e a solidariedade. Para essas três formas de reconhecimento correspondem, respectivamente, três formas de desrespeito: a violação, a privação de direitos e a degradação. O dano proveniente de experiências desrespeitosas é sanado quando há o reconhecimento. Para sanar os danos causados pela violação, o reconhecimento vem na forma de autoconfiança; para sanar os danos causados pela privação de direitos, o reconhecimento vem na forma de autorrespeito; para sanar os danos causados pela degradação, o reconhecimento vem na forma de autoestima. Pois bem, considerando o exposto nas linhas antecedentes, sugerimos que a identidade fundamentada nos marcadores simbólicos que constituem uma comunidade moral e a capacidade humana de assimilar as normas morais/jurídicas e agir de acordo com elas, frutos da evolução da mente normativa segundo o pensamento de Boyd e Richerson, permitem o diálogo entre a teoria da dupla herança e a teoria do reconhecimento. Pois é a identidade coletiva dos membros de uma comunidade que a partir de seus marcadores simbólicos assume a função de instrumento político de destaque na luta por reconhecimento de direitos travada pelos indivíduos quando se sentem injustiçados, sentimento esse explicado pela evolução da mente normativa. Diante disso, defendemos que de certa forma a teoria da dupla herança ao se ocupar da cultura humana complementa a teoria do reconhecimento porque elas em conjunto propiciam um novo enfoque à compreensão e explicação para o comportamento político dos seres humanos. Isso potencialmente enriquece as pesquisas sociais. Ora, se, por um lado, Honneth fala de desrespeito e da necessidade de uma semântica coletiva capaz de interpretar o desapontamento individual como algo que atinge a coletividade; por outro, a teoria da dupla herança vai em busca da evolução do comportamento humano por intermédio da coevolução gene-cultura. Portanto, a relevância da interação dessas duas teorias emerge do fato de elas buscarem contemplar ainda mais a complexidade do convívio social humano. Para ficar em um exemplo, vamos lembrar o caso do suposto consenso sobre a teoria dos movimento sociais na atualidade. Heribert Schmitz (2014) defende a existência de um certo consenso daquilo que se entende por movimentos sociais. Tal consenso é expresso em sua definição de Teoria Contemporânea Predominante dos Movimentos Sociais (TCPMS), uma conjunção teórica envolvendo a Teoria do Processo Político e a Teoria do Novos Movimentos Sociais, nela “[...] os movimentos sociais são vistos como uma interação de certa duração de uma rede de grupos e organizações que pretendem, por meio de protesto, realizar ou impedir mudanças sociais”. (p. 1). Por isso ele, Schimtz, adota a definição de movimento social elaborada por Rucht (1994), segundo a qual Um movimento social é um sistema de ação de redes compostos de grupos e organizações com uma certa duração amparado por uma identidade coletiva que pretendem realizar, evitar ou desfazer uma mudança social por meio de protesto – se necessário até pelo uso da força. (Rucht, 1994, pp. 76-77 apud Schimtz, 2014?, p. 2) A informação que por ora nos interessa reter das discussões envolvendo essa atualização teórica e conceitual sobre os movimentos sociais é o caráter datado atribuído à problemática. Para Schmitz (2014), o conceito de movimentos sociais apresentado por Rucht limita sua aplicação a um contexto histórico, a modernidade; ou seja, compreende aquele fenômeno como produto dessa época (p. 3). Esse ponto é interessante pois nos permite discorrer acerca da antecedência da teoria do reconhecimento em relação as teorias sobre os movimentos sociais quando aplicadas aos estudos a respeito das comunidades quilombolas. Embora os quilombos do passado não se confundam com as comunidades quilombolas contemporâneas, as duas representações estão historicamente vinculadas. A mobilização quilombola gira em torno da terra, quer dizer, as comunidades quilombolas buscam o reconhecimento de direitos, sobretudo, os territoriais. Para tanto, além da historicidade e da territorialidade, já mencionadas, elas frequentemente acionam outros elementos como, por exemplo, a identidade e a etnicidade. São essas características que fazem da teoria do reconhecimento um recurso privilegiado para estudar a atuação política dessas comunidades. Como nosso parâmetro são as teorias dos movimentos sociais, datadas da modernidade e desprovidas da possibilidade de recuo a períodos mais longínquos, e considerando que as comunidades quilombolas estão ligadas simbólica e historicamente aos quilombos do período escravista. A eventual necessidade de um pesquisador voltar no tempo para examinar os quilombos históricos e a repercussão do período escravista no Brasil hodiernamente, por exemplo, se apresenta como o primeiro obstáculo para a utilização das teorias dos movimentos sociais dentro desse contexto. Outros empecilhos são observados por Regiane Lucas de Oliveira Garcêz (2014). Baseada no pensamento de Axel Honneth, a autora afirma que a teoria do reconhecimento avança em dois pontos pouco explorados pela teoria dos movimentos sociais. “Primeiro, busca nas experiências de desrespeito a explicação sobre porque os movimentos surgem. Segundo, a partir da noção de semântica coletiva fornece elementos para explicar como tais ações coletivas se tornam possíveis.” (p. 7). Logo, a teoria honnethiana permite chegar onde as teorias dos movimentos sociais não chegam. Ela alcança os fatores que motivam os indivíduos a agirem coletivamente, fatores que vão para além das motivações racionalmente calculadas e que, portanto, condizem com os elementos culturais e/ou valorativos do comportamento humano. Conforme propõe Honneth, o reconhecimento é elemento vital para os sujeitos. Lutar por ele não é uma questão de cálculo, mas de necessidade. Luta-se por autorrealização. Se, para isso, for preciso lançar mão de táticas e estratégias, nada os impede. Mas conectar experiências e instituir uma semântica coletiva seria o primeiro passo. Assim, a Teoria do Reconhecimento lança luz à compreensão sobre como os movimentos sociais se fazem possíveis sem recorrer a explicações racionalistas. Sem a construção do sentido de uma coletividade, sem a compreensão do algo em comum que liga os sujeitos, o engajamento e a ação inexistem. (Garcêz, 2014, p. 17) Como já foi visto anteriormente, essa é a tônica do pensamento de Honneth, o desrespeito motiva a ação logo após a formação de uma identidade. Vejamos algumas de suas palavras que vêm ao encontro dessa colocação. Sentimentos de lesão [...] só podem tornar-se a base motivacional de resistência coletiva quando o sujeito é capaz de articulá-los num quadro de interpretação intersubjetiva que os comprova como típicos de um grupo inteiro, nesse sentido, o surgimento de movimentos sociais depende da existência de uma semântica coletiva que permite interpretar as experiências de desapontamento pessoal como algo que afeta não só o eu individual mas também um círculo de muitos outros sujeitos. (Honneth, 2003, p. 258) É importante frisar que essa anterioridade da teoria do reconhecimento tracejada por nós não significa a rejeição da teoria dos movimentos sociais para os estudos sobre as comunidades quilombolas. Ela apenas tem uma certa primazia por permitir o acesso a determinados aspectos subjetivos da ação humana que vão para além do cálculo e da racionalidade, tais como as experiências de desrespeito e a formação da semântica coletiva. Dependendo da opção do pesquisador, poderemos verificar esse fato em estudos de ordem diacrônica, por exemplo. Nesse sentido, podemos dizer que a teoria da dupla herança avança por um campo onde a teoria do reconhecimento efetivamente ainda não percorreu mas que, em nosso entendimento, não lhe é indiferente: a evolução da mente normativa e sua relação com comportamento humano. Desse modo, podemos inferir que a abordagem cultural da questão quilombola na Amazônia marajoara familiariza a teoria de Boyd e Richerson com a teoria de Honneth ao passo que as distancia da teoria da escolha racional, por exemplo. Por fim, vejamos o trecho a seguir, “[...] os teóricos da escolha racional introduzem a noção de 'convicção racional' sem levar em conta inteiramente que o contexto cultural no qual as pessoas se encontram afeta o que elas consideram ser ou não uma convicção fundada na razão”. (Baert, 1997, p. 9). 3. Considerações finais O presente trabalho debruçou-se sobre a debate envolvendo compreensão e explicação em domínio da análise social. Após um breve apanhado histórico acerca desta área do conhecimento, demonstramos que tal pretensão e viável. Para tanto, recorremos à aproximação entre a teoria do reconhecimento de Axel Honneth e a teoria da dupla herança de Robert Boyd e Peter Richerson com posterior aplicação delas em um caso concreto, a atuação política das comunidades quilombolas da Amazônia marajoara. Apesar de providencial, essa exposição considerou o grande desafio de desenvolver tal discussão. Como assevera Almeida (2013), A teoria social tem rejeitado, nas últimas décadas, as abordagens teóricas que pretendam explicar o comportamento humano a partir da biologia. Foram várias as razões para que isso ocorresse. Entre elas, destaca-se a circunstância de que muitas das teorias biológicas não atribuem à cultura um papel relevante para explicar o comportamento humano. (p. 245) Para efeito de análises sociais mais encorpadas, acreditamos ser necessário seguir promovendo a interação entre as abordagens da teoria social e as de outras áreas do conhecimento, como aquelas das ciências naturais. A propósito, não foi por acaso que Marcel Mauss (2003) em Sociologia e antropologia destacou: “Quer estudemos fatos especiais ou fatos gerais, no fundo é sempre com o homem completo que lidamos” (p. 237). Referências Bibliográficas Abrantes, Paulo Cesar. Filosofia da biologia. (2011).Porto Alegre: Artmed. Abrantes, Paulo César Coelho; ALMEIDA, Fábio Portela Lopes de. (2012). A TEORIA DA DUPLA HERANÇA E A EVOLUÇÃO DA MORALIDADE. Disponível em: <https://periodicos.ufsc.br/index.php/principia/article/view/1808-1711.2012v16n1p1>. Almeida, Fábio Portela Lopes de. (2013). AS ORIGENS EVOLUTIVAS DA COOPERAÇÃO HUMANA E SUAS IMPLICAÇÕES PARA ATEORIA DO DIREITO. Disponível em: <http://direitosp.fgv.br/sites/direitosp.fgv.br/files/artigo-Edicao-revista/09-rev17_243-268__fabio_portela_lopes_de_almeida.pdf>. Baert, P.. (1997). ALGUMAS LIMITAÇÕES DAS EXPLICAÇÕES DA ESCOLHA RACIONAL NA CIÊNCIA POLÍTICA E NA SOCIOLOGIA. 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