A Maturação do pensamento de Marx

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A Maturação do pensamento de Marx
Trabalho originalmente apresentado para a cadeira de Filosofia Geral FFLCH-USP.
por Miguel Duclós
Este trabalho trata de um período histórico-filosófico grande. Abordo aqui
desde algumas leituras marcantes para o Jovem Marx até o primeiro capítulo da
obra prima deste, O Capital, livro que é fruto uma vida inteira de estudos e
coroação de sua maturidade como pensador e teórico. Porém, nosso artigo não
tem a pretensão de tratar todos os conceitos fundamentais que foram
determinantes para a maturidade do pensamento marxiano, mas sim se limitar a
três conceitos específicos incluídos em três obras de Marx. Na primeira, Os
manuscritos Econômico - Filosóficos, de 1844, será destacado o conceito de
alienação, bem como o estilo ainda Feuerbachiano do autor. Na segunda, A
ideologia Alemã e nas Teses sobre Feuerbach, será destacado a ruptura de Marx
com sua consciência filosófica anterior, e sua formulação, junto com Engels, da
teoria que seria uma das designações do seu pensamento: o materialismo
histórico. No centro de tal teoria está o conceito de Ideologia, que será relacionado
com a explanação sobre o fetichismo da mercadoria no primeiro capítulo de O
Capital.
Feuerbach havia demonstrado, em A Essência do Cristianismo, a tese
escandalosa para a sociedade da época, que a essência da religião é a essência
do ânimo humano, e que a teologia pode ser explicada pela antropologia. Explica
o autor que as representações e segredos atribuídos a um Ser sobre-humano não
eram mais do que representações humanas naturais, e que aquilo que no
imaginário pairava no Céu, pode ser encontrado sem maiores dificuldades no solo
da Terra. Dessa forma, o homem transporia para o Céu o ideal de justiça,
bondade e virtude que não conseguia realizar na Terra. Colocaria num grau
universal e absoluto atributos e qualidades de si mesmo. Todos os Deuses não
seriam então, mais do que criações humanas. Feuerbach reconhece o sistema de
Hegel como uma teologia especulativa, e critica a Idéia absoluta, que seria
baseada na revelação e encarnação cristãs, ultrapassando assim o racional e se
tornando teologia. Coloca em seu lugar a noção de Ser genérico do homem. A
teologia, religião institucionalizada, é fonte de dogmas a abstrações metafísicas
que perdem a ligação com o real e palpável. Cada religião pretende ser a
detentora da verdade, e isso é motivo de fanatismo e intolerância com outras
formas de pensamento. A verdade acessível apenas a alguns (revelada pela fé),
sem critérios objetivos, torna fácil a manipulação de pequenos grupos sobre os
demais, por se tratar de algo que não pode ser demonstrado com base em
elementos sensíveis.
Feuerbach inicia A essência do Cristianismo dizendo que o homem difere do
animal por ter uma consciência no sentido estrito, ou seja, sua consciência “tem
por objeto o seu gênero, a sua essencialidade” 1. Essa consciência do homem
enquanto espécie, que é próprio deste por fazer parte de sua ciência, o difere do
animal. Do outro lado está a “consciência de si”. Afirma Feuerbach sobre ela: “A
consciência de Deus é a consciência de si do homem, o conhecimento de Deus é
o conhecimento de si homem. Pelo seu Deus conheces o homem e, vice-versa,
pelo homem conheces o seu Deus; é a mesma coisa.” 2
Essa idéia de que a natureza dos deuses difere na mesma proporção da
natureza dos povos não é nova. Feuerbach realmente desenvolve algumas frases
dos pensadores pré-socráticos, como sua frase de que o “ser é, o não ser não é”,
tomada emprestada de Parmênides e aplicada em um contexto mais profunda.
Xenófanes de Colofão, mestre de Parmênides, ficou famoso por ser um dos
primeiros filósofos a defender a unidade da divindade, o monoteísmo. Também
afirmava, como Feuerbach, que a natureza dos Deuses variava com a natureza de
quem os adorava. Vejamos os seguintes fragmento de Xenófanes: “Mas se mãos
tivessem os bois, os cavalos e os leões e pudessem com as mãos desenhar e
criar obras como os homens, os cavalos semelhantes aos cavalos, os bois
semelhantes aos bois, desenhariam as formas dos deuses e os corpos fariam tais
quais eles próprios têm”. E mais adiante: “os egípcios dizem que os deuses tem
nariz chato e são negros, os trácios, que eles tem olhos verdes e cabelos ruivos.”3
Por esses trechos, vê-se que, mesmo antes da ascendência do Deus cristão,
já havia uma crítica à antropomorfização dos Deuses. Para Feuerbach, uma
essência finita não pode ter a mais remota idéia de uma essência infinita. Também
Hegel afirma, em Introdução à História da Filosofia, que o homem não pode
conceber o que é o Infinito porque só pode empregar para isso categorias finitas.
A religião cristã pretende a essência do homem infinita, mas para Feuerbach o
homem só pode ter consciência de tal essência se ela for razão, vontade e
pensar.
A consciência de si do homem vem pela consciência do objeto.
Feuerbach inicia assim sua busca de superação do subjetivo. O que nas antigas
religiões era considerado objetivo, hoje é apenas reflexo de idéias que só podem
ser sentidas por abstrações, pertencendo portanto ao interior do homem.
Feuerbach constata que a teologia se transformou em antropologia há muito
tempo.
Sua crítica às religiões pretende ser universal, buscando o que há de comum
a todas as religiões. Chega à conclusão de que o mundo transcendente e a
caracterização humana dos personagens divinos é comum nas religiões. Porém,
essa generalização é no mínimo complicada. Muitos povos não podiam separar o
sujeito do objeto, ou seja, o indivíduo nada mais era do que parte integrada do
ambiente, e não podia ser entendido fora do seu quadro social. A religião muitas
vezes não reconhece em sua idéia de divindade características humanas. Pois,
afinal, o homem é apenas uma parte do todo, e nesse caso Deus é identificado
com a totalidade da Natureza. Isso ocorre no panteísmo e em algumas religiões
indígenas e orientais. A natureza é entendida como um complexo sistema de
ambientes que existe independente da percepção humana. O egoísmo e a
vaidade são os responsáveis por representar a divindade como algo humano, e a
raça humana como herdeira da Terra. De fato, não é preciso ir muito longe para
concluir que a idéia do planeta existir para servir ao homem constitui equívoco
grave. O que Feuerbach fala é válido sobretudo para a religião judaico-cristã. No
Velho Testamento está escrito que Deus fez o homem à sua imagem e
semelhança, e no Novo Testamento é um homem que se faz Deus. Para
Feuerbach isto é uma inverção da relação sujeito-predicado. O homem cria um
sujeito infinito e atribui a ele a criação de si.
A teoria feuerbachiana causou profunda influência na filosofia do século XIX.
Os primeiros a se entusiasmarem com ela foram os jovens hegelianos, dentre eles
Marx, que trataremos adiante. Mas a noção materialista de humanismo ateu iria
alcançar um reflexo maior no século em que foi proclamada a morte de Deus.
Quem mais alto bradou sua morte foi Nietzsche, inicialmente em A Gaia Ciência, e
posteriormente em sua obra-prima, Assim Falava Zaratustra. Nietzsche engendra
uma crítica severa à moral cristã, que para ele é ascética e mortificadora da vida a moral dos escravos, que limita a Vontade de Potência. No lugar da metafísica,
Nietzsche propõe um apego aos valores da Terra, lugar onde o além-homem aquele que cria seus próprios valores - direcionaria sua vida e sua paixão. No
trecho adiante está uma passagem em que fica claro a relação entre o apego de
Nietzsche à filosofia terrena e o materialismo de Feuerbach que prega o mundo
sensível:
“Em outras eras, blasfemar contra Deus era o maior dos absurdos; porém
Deus morreu, e morreram com ele tais blasfêmias. Agora, o que causa mais
espanto é blasfemar da Terra, e ter em mira as entranhas do impenetrável e não a
razão da Terra.” 4 A título de curiosidade, vejamos o que Nietzsche fala em O
Crepúsculo dos Ídolos: “O homem seria tão somente um equívoco de Deus? Ou
então seria Deus apenas um equívoco do homem?”5 . Como se vê, o cerne do
pensamento nietzscheano encontra procedência em Feuerbach. Outros paralelos
podem ser traçados, como o da crítica ao plano transcendente, herança religiosa e
platônica:
“Este mundo, o eternamente imperfeito, pareceu-me um dia a imagem de
uma contradição eterna, e uma alegria inebriante para o seu imperfeito criador
(…) Ai, meus irmãos! Este Deus que eu criei era obra humana e humano delírio,
como
os
demais
deuses.
Era homem, apenas um fragmento de homem e de mim. Esse fantasma
surgia das minhas próprias cinzas e da minha própria chama, e realmente nunca
veio do outro mundo” 6
Como se vê, filósofos das mais diversas áreas de atuação se aproveitaram
das veredas abertas pela crítica de Feuerbach à religião e à teologia. Mas tal
alcance não o livrou de críticas, como por exemplo a dos religiosos, que sugeriram
um outro título para o seu livro: “A essência do Anti-Cristianismo” e a do pensador
anarquista Max Stirner, que fazia parte da esquerda hegeliana. Stirner -criador de
um individualismo radical que fundamenta a liberdade- ataca Feuerbach dizendo
que este substituíra meramente a palavra Deus pela palavra homem. Dessa
forma, Feuerbach rezaria pelo homem. Segundo Stirner, ele não teria deixado de
ser hegeliano, porque apenas transpôs o ideal teológico e divino por uma noção
abstrata
de
humanidade.
Mas Feuerbach teve influência ativa nos hegelianos de esquerda. Engels
escreveria, mais tarde, que todos os neo-hegelianos foram feuerbachianos.
Dentre eles estava Marx, que de inicio adotou alguns conceitos e terminologia de
Feuerbach. No primeiro manuscrito de 1844, Marx trata da questão da alienação.
Tal termo fazia parte do vocabulário de Feuerbach, para quem a religião era uma
alienação, pois, colocando sua essência e sua humanidade num Ser fora de si
próprio, no mundo invertido da divindade, o homem vira um ser que não se
pertence. Esse é o aspecto religioso da alienação que Feuerbach usa. O homem
adora os ídolos que projeta. O próprio Marx afirma que, quanto mais se atribui a
Deus,
menos
sobra
para
o
homem
.7
O termo alienação foi usado também por Hegel, fazendo parte da dialética,
pois o homem aparecia em cada etapa da dialética como distinto do que era
antes. Althusser observa que Marx aplicou a teoria da alienação de Feuerbach à
política e a economia. 8 Para Althusser, Marx “esposou” a terminologia e a
problemática de Feuerbach durante as suas obras de juventude.9 Por isso, o
impacto das obras de 1845, no momento em que rompe com Feuerbach seria
muito grande.
Para Marx, a alienação religiosa seria gerada pela alienação econômica. Tal
estado é, para Marx, resultado da realização de o trabalho aparecer como a
desrealização do trabalhador. O objeto produzido pelo trabalhador aparece como
estranho e independente a ele. As mercadorias existem para suprir necessidades.
O sistema capitalista transforma o trabalhador e o trabalho em mercadorias, ao
privar o trabalhador dos objetos que produz. Quanto mais ele produz, menos pode
possuir. Essas apropriação do objeto pelos possuidores da propriedade, se realiza
como alienação do trabalhador. Este, ao pôr sua vida na produção de objetos que
não lhe pertencem, perde a posse desta.
Como afirma Marx, “a alienação do trabalhador no seu produto significa não
só que o trabalho se transforma em objeto, assume uma existência externa, mas
que existe independentemente, fora dele e a ele estranho, e se torna um poder
autônomo em oposição com ele”.10
Marx critica a economia política de então esconder a verdadeira relação entre
o empregado e o empregador. O Estado submete os trabalhadores a seus
próprios interesses. O trabalhador ganha um salário que não consegue comprar
os produtos que ele próprio produziu. Ele produz coisas para os ricos, mas pouco
sobra para ele. Esta é a contradição básica do sistema capitalista na época de
Marx. O empregado aparece então apenas como instrumento para o bem estar
dos possuidores.
Marx, dialeticamente, oferece um quadro de inversões para as atividades dos
trabalhadores: quanto mais produz, menos possui, quanto mais civilizado é o
produto feito por ele, tanto mais bárbaro ele se mostra. Nas fábricas as limitações
a que o empregado é submetido, como os movimentos repetitivos, as jornadas de
trabalho sobre-humanas, o baixo salário, a repressão e outras, apenas evidenciam
seu caráter apenas funcional. Ele não transforma mais a natureza para fazer
coisas que estão relacionadas a ele, ou que vão beneficiá-lo diretamente. Sua
atividade apenas vai garantir que não morra de fome, pois o salário mínimo é a
soma das condições mínimas de subsistência (alimentação e moradia).
A alienação para Marx ocorre não na relação do trabalhador com o produto
de seus trabalhos, mas também na própria atividade produtiva. Ou seja, o trabalho
não pertence à natureza do trabalhador, mas sim é condição para que esse
sobreviva minimamente, sendo obrigado a se adequar à condições de trabalho
acima descritas. Por esse fato, ele apenas se esgota, e não se realiza na plenitude
de suas capacidades mentais e físicas. Como afirma Marx, o trabalho “não
constitui a satisfação de uma necessidade, mas apenas um meio de satisfazer
outras necessidades”. 11 Estas outras necessidades geralmente se reduzem à
prioridades mínimas, como alimentação, moradia. O meio para satisfazê-las é o
dinheiro, um valor que não existe naturalmente, mas é abstraído e convencionado.
O trabalhador vendeu seu tempo, seu sentimento, sua força, suas aspirações pelo
dinheiro, e na posse de algum, pode trocá-lo por qualquer tipo de mercadoria,
inclusive pelas que ajudou a produzir. Este trabalho alienado é um processo de
mortificação, em que homem exerce uma atividade cansativa que não condiz com
sua aspiração de indivíduo opinante, de cidadão livre, ou mesmo de animal, que
tem emoções, orgulho, instinto, prioridades físicas. Marx afirma que o trabalhador
só consegue ser livre nas funções animais, como beber, procriar, comer, mas nas
atividades humanas se vê reduzido a animal. Mas estas funções animais primárias
estão implicadas com o sistema social a ponto de perderem seu sentido original.
O homem, ao modificar sua animalidade e sua humanidade, subordinado-a a
um sistema social de valores e limitações, modifica-se, perde sua essência. E as
esperanças humanas são então projetadas em um além, num Ser Divino, perfeito,
de valores eternos. Esta alienação religiosa, subordinada à alienação econômicopolítica, leva o homem à incapacidade de reconhecer sua humanidade em si
mesmo, porque seu Deus é definido por tudo aquilo que ele mesmo não possui,
ou que perdeu.
Marx, depois de reconhecer dois aspectos do trabalho alienado - a relação do
trabalhador com o produto de seu trabalho, e a relação do trabalhado ao ato de
produção, a auto-alienação - fala de uma terceira determinação do trabalho
alienado, que parte das outras duas. Marx, usando de um vocabulário
feurbachiano sobre Ser genérico, afirma que os dois primeiros tipos de alienação
alienam o homem enquanto espécie. A atividade produtiva se transformou em
social. Os meios de sobrevivência do homem estão condicionados pelas leis de
mercado e do trabalho. Dessa forma, a vida genérica do homem serve de meio
para a vida individual, pois a atividade produtiva é o único modo de continuar
existindo fisicamente. Marx então faz uma comparação entre o homem e o
animal, que lembra muito a Introdução da Essência do Cristianismo. Ele afirma o
animal é a sua própria atividade, não se distingue dela.12 Enquanto o homem
possui uma “atividade vital consciente”, pois submete sua atividade vital à vontade
e à consciência. Feuerbach, como já observamos, afirmava que a diferença
principal entre o homem e o animal é que o homem tem consciência no sentido
estrito, que tem como objeto o seu gênero, a sua espécie.13
Marx continua sua argumentação observando que, se o animal também
produz, o homem reproduz toda a natureza, enquanto o animal apenas se
reproduz a si. É interessante notar que Marx, embora esteja tratando de uma
questão já exposta por outros autores, consegue aprofundar as questões, usando
um vocabulário ainda hegeliano, ainda feuerbachiano. Isso acontece, porque
naquele momento, Marx transformava sua consciência filosófica em economia
política. Os Manuscritos tem esse duplo caráter, o filosófico e o econômico.
Segundo Althusser, os encontros anteriores de Marx com a economia política
tratavam apenas de algumas questões e efeitos relacionados com a política
econômica. 14 Marx encara, nos Manuscritos, a Economia Política de verdade,
formulando teorias que tratam dela como um todo, procurando seus fundamentos.
No início dos Manuscritos, Marx afirma que a Economia Política de então parte do
fato da propriedade privada sem o explicar. A propriedade privada era
pressuposto, por isso os economistas não a haviam problematizado como
deviam. Nos Manuscritos, são levantados diversos conceitos e problemas que
aparecerão mais tarde em O Capital. Marx analisa a economia política burguesa a
partir de um conceito chave, o de trabalho alienado.
O
homem,
ao
reproduzir-se
fisicamente
na
natureza
através da
transformação da mesma pelo trabalho, reflete a si próprio no mundo objetivo.
Sua individualidade é refletida pela obra que ele mesmo criou. Como já dissemos,
a atividade produtiva é social, ou seja, pertence à vida genérica do homem, que ao
representar-se, representa também a humanidade. O trabalho alienado tira do
homem o fruto de sua produção, tirando assim, ao mesmo tempo, a sua vida
genérica. Para Marx, o homem só era capaz de realizar suas forças intelectuais e
físicas interagindo com o ambiente. O homem depende da natureza para crescer e
conseguir sustento. Sua consciência não pode ser fechada, subjetiva, mas sim ser
moldada pela realidade natural e social. O trabalho alienado transforma o homem
estranho a si mesmo e ao ambiente onde vive. Segundo a concepção etimológica,
alienatus é aquele que não se pertence, aquele que pertence a outro. O homem,
alienado-se no seu trabalho, na sua vida genérica, aliena-se também dos outros
homens. Marx continua dizendo que o ser estranho a quem pertence o trabalho
alienado tem de ser algo real, objetivo. Dessa forma, não é nem à natureza nem
aos deuses que ele pertence, mas sim ao próprio homem. O produto do trabalho
pertence a alguém distinto do trabalhador, ou seja o capitalista. O trabalho é
sofrimento para alguns, enquanto suas condições o afastam de si e da natureza,
mas é fruto de gozo para aquele que desfruta dos produtos.
Portanto, a propriedade privada é fruto do trabalho alienado. A propriedade
privada, para Marx, é conseqüência e causa do trabalho alienado, da mesma
forma que o salário também é conseqüência deste. Marx chegou ao conceito de
trabalho alienado a partir da economia política, que “tudo atribui 15 à propriedade
privada” e nada ao trabalho. Ela apenas formulou as leis do trabalho alienado, e
não denunciou o seu caráter hostil à natureza humana, escravizador, que
transforma o homem em um instrumento da riqueza de outros. Marx, depois de
explicitar as implicações do trabalho alienado, parte para a explicação da
propriedade privada.
Essa importância que Marx dá às condições materiais da transformação
humana, esta aplicação da economia à filosofia levariam Marx a romper com o
idealismo da esquerda hegeliana. A famosa afirmação de Marx, no Manifesto
Comunista, de que a história de toda sociedade até hoje tem sido a história da luta
de classes, está ligado à maturidade de seu pensamento que encontra marco
definitivo no ano de 1845, com a publicação de A Ideologia Alemã, em co-autoria
com seu amigo, Engels. Neste livro estão lançados a base do materialismo
histórico e do materialismo dialético, que ficaram sendo conhecidos como uma
designação da teoria marxista, apesar de Marx não usar exatamente estas
expressões, mas sim “concepção materialista da história”. Nas teses sobre
Feuerbach, Marx dirige àquele que havia sido seu inspirador, como já vimos,
críticas duras. O centro dessa crítica é fundamentado pela economia, pela
atividade humana produtiva, pela política. O motor da história não pode ser, de
modo algum, as idéias ou as teorias, mas sim a atividade humana objetiva - o
trabalho.
Os filósofos sempre separaram o mundo intelectivo do mundo cotidiano, prosaico.
De fato, há essa diferença entre o ócio e o negócio. O cultivo do espírito,
necessário para as atividades intelectuais, não se realiza com o trabalho
obrigatório. Os filósofos, muitas vezes propuseram uma linha de ação prática,
como Bacon e Descartes, mas a filosofia, na contemporaneidade, perdeu muito
espaço para a ciência, às vezes ocupando até um papel adjunto, de
fundamentação da ciência. Isto se deve sobretudo à aplicação prática da ciência.
A ciência é o saber racional do mundo, mas suas descobertas tem valor prático
sobretudo por direcionar melhor a transformação da natureza em produtos
utilizáveis pelo homem.
Marx critica os filósofos por desprezarem a praxis e se preocuparem apenas
com a teoria. A praxis estava sendo entendida até então como uma atividade suja
e mundana, e não estava sendo respeitado seu caráter revolucionário. Marx ataca
Feuerbach por limitar sua crítica da auto-alienação ao terreno religioso, divino. O
fundamento terreno que projeta nas nuvens um reino autônomo deve ser
explicado pela decadência e contradições presentes no próprio processo evolutivo
terreno. Por isso, a realidade terrena deve ser revolucionada. O fato de que as
relações sociais são todas práticas e sensíveis leva à revelação que o indivíduo
abstrato, sozinho, é apenas social. A XI tese adquire importância como crítica à
filosofia, especialmente ao Idealismo alemão, que representavam o mundo
invertido, do invisível colocado acima do sensível, da idéia colocada acima da
matéria.
Marx critica, em Sobre a Questão Judaica, esta inversão. Vejamos este
famoso
trecho:
“O fundamento da crítica religiosa é o seguinte: o homem faz a religião, a
religião não faz o homem (…). O homem é o mundo do homem, o Estado, a
sociedade. (…) Portanto, a luta contra a religião é indiretamente a luta contra
aquele mundo cujo aroma espiritual é a religião. A religião é o suspiro da criatura
oprimida, o sentimento de um mundo perverso, e a alma das circunstâncias
desalmadas. É o ópio do povo”. 16
Nas teses sobre Feuerbach, Marx afirma que o sentimento religioso é um
produto social relacionado a uma forma determinada de sociedade. Para ele, a
fonte da deficiência religiosa deveria ser buscada na deficiência do próprio Estado.
Esta deficiência deveria ser suprimida com a tomada de consciência do homem
como um ser espécie, num coletivismo que mudava o homem individual, abstrato.
Daí advém a divisão da sociedade em classes sociais. Marx lembra que o homem
não é apenas um produto das condições materiais, pois a interação com a
natureza possui um aspecto criativo e subjetivo. As circunstâncias são feitas pelos
homens, e o próprio educador deve ser educado. Mas sua crítica ao idealismo é
cortante, como se vê no Prefácio à Economia Política, onde Marx diz: “O processo
de vida material condiciona o processo de vida social, política e individual em
geral. Não é a consciência dos homens que lhes determina o ser, mas pelo
contrário, é o seu ser social que lhes determina a consciência.”17
E em A
ideologia Alemã afirma que não é a consciência que determina a vida, mas sim a
vida que determina a consciência. 18
O termo ideologia foi criado por Destutt de Tracy, que fazia parte de um
grupo chama de ideólogos franceses. Nesse grupo constam também nomes como
Cabanis, Volney, Garat, Daunou. A ideologia é a ciência que tem por objeto de
estudo as idéias, suas origens,
formação e relação com os signos.
Posteriormente, em um sentido mais amplo passou a significar um sistema de
idéias que refletem uma visão de mundo e orientam uma ação política. Marx,
como fez com o conceito de alienação, toma o termo num sentido próprio, dandolhe conotação pejorativa.
Marx inicia A ideologia Alemã ironizando os pensadores recentes hegelianos
por acharem que uma revolução no plano do pensamento foi mais importante que
a Revolução Francesa. A Alemanha estava atrasada em relação aos outros países
da Europa, como a França e a Inglaterra. A Inglaterra era
o pais mais
industrializado, e foi em sua vivência na França que Marx se tornou
verdadeiramente um comunista. A Alemanha sofreu um processo de unificação
tardio com Bismarck, e nela ainda estavam presentes certos elementos feudais.
Para Marx, a filosofia alemã estava ainda nitidamente ligada ao sistema hegeliano,
de forma que toda a crítica que se empreendeu ao hegelianismo não a tornava
independente e superadora de Hegel. Esta crítica é dirigida especialmente a
Feuerbach, Bruno Bauer e Max Stirner. Apesar das frases destes pensadores que
supostamente abalaram o mundo, Marx denuncia seu caráter conservador. Para
Marx, a chave estava na conexão entre a filosofia alemã e a realidade alemã.
A mudança do modo de produção artesanal, feudal, para o modo de
produção capitalista acarretou uma série de exigências dos novos grupos
comerciais, como por exemplo a livre competição econômica. Os valores
entendidos como representações da realidade ignoravam a base de toda
ideologia, a existência no plano material, sendo entendidos como válidos para
toda a humanidade, quando na verdade eram pertencentes apenas a uma classe
determinada, geralmente a dominante.
O grau de avanço de um país, portanto, é determinado pelas relações de
trabalho e pelas formas de produção. Marx aplica então esta concepção à história,
afirmando que cada nova fase da divisão de trabalho acarreta uma mudança nas
relações entre os indivíduos. Assim, inicia uma teoria da história, onde o homem
ativo - aquele que produz as condições materiais de existência- teria evoluído em
diferentes estágios, desde os tempos de caçador-coletor. Apresenta três formas
de propriedade: a tribal, a comunal e a estamental. A quarta forma de propriedade
estaria ainda acontecendo: a propriedade burguesa. Como observa no Manifesto
Comunista, a burguesia revolucionou totalmente a economia e as formas de
produção, gerando um novo tipo de mercadoria industrial. A burguesia teria
acabado com antigas tradições da cultura popular, de formas de relacionamento.
Marx inclusive chega a afirmar que a burguesia transformou as relações familiares
em relações monetárias.
Com a Revolução Industrial e a produção em escala, os países mais adiantados
conseguiram acumular uma riqueza jamais vista. O homem, ao satisfazer suas
primeiras necessidades, chega inevitavelmente a novas necessidades. Para
satisfazer suas novas necessidades, precisava transformar os meios de produção,
que
estariam
constantemente
se
revolucionando.
A questão se houve ou não um corte no pensamento do Marx maduro para o
jovem Marx é respondida pelo próprio com sua afirmação de que ajustara suas
contas com o a consciência filosófica de outrora. Iniciar a Ideologia alemão com a
crítica aos jovens hegelianos, grupo ao qual fez parte, marca seu avanço em
direção a uma visão própria. Como mostramos, seu vocabulário, e sua própria
consciência de si anteriores eram feuerbachianos ou inspirados em outras
filosofia. Foi cm sua análise do sistema capitalista e seu apego à Economia
Política que Marx traçou profundamente seu marco na história. O socialismo, ao
qual só aderiu tardiamente, adquiriu com ele status científico. É na relação de O
Capital com as outras obras que podemos identificar este rompimento de
pensamento. Resta perguntar se foi um corte político ou epistemológico. Louis
Althusser foi criticado por estabelecer “fases” para Marx, desde sua juventude
como romântico em Bonn até o intelectual máximo da esquerda. Althusser afirma,
em Análise Crítica da Teoria Marxista, que houve uma “cesura epistemológica”
situada na Ideologia alemã. Nesta obra estão novos conceitos em profusão, que
ainda seriam desenvolvidos e que mostram sem nenhuma duvida que Marx
passou a fazer uma nova teoria da história, e uma teoria da ciência. Porém, como
em toda transição, sempre encontramos elementos antigos ainda não totalmente
superados nas novas realizações. Marx não chegou ao estilo claro e ao mesmo
tempo erudito de
O capital do nada, mas evoluindo de si mesmo, e
arregimentando cada vez mais a filosofia, a ciência, a economia para transformálas.
O Primeiro capítulo de O Capital é destinado à análise da mercadoria. A
mercadoria é um objeto que satisfaz as necessidades dos homens, e distingue-se
por qualidade e quantidade. Uma mercadoria pode ter valor de troca e valor de
uso. O valor de uso é real, imediato, determinado pela utilidade. As mercadorias
com esse valor diferenciam-se pela qualidade. O valor de troca pode apenas ser
diferenciado pela quantidade, pois produtos iguais tem o mesmo valor. Dessa
forma x mercadorias a eqüivalem a y mercadorias b. A quantidade de trabalho
empregados nestas mercadorias estabelecem o valor de troca entre elas. Mas a
relação entre as mercadorias, entre os produtos, não existe por si só. É a
convenção social quem determina o valor de uma mercadoria em relação a outra.
Pois foi relacionando-se socialmente que o homem logrou produzi-la. No
capitalismo, esta base social da mercadoria aparece como encoberta. A igualdade
do esforço humano de produção (trabalho) fica disfarçada sob a igualdade dos
produtos como valores. A mercadoria tem características sociais, na medida em
que os homens trabalham uns para os outros. O homem que consegue se manter
sozinho foi superado desde a aparição da primeira sociedade, a tribal. Na primeira
forma de interação social, a família, já está implícito a dependência dos membros
de um grupo entre si. Um ferreiro que só mexe com ferro necessita de pão. E o
padeiro que só mexe com pão necessita de ferro. Esta característica da produção
foi levado ao máximo no sistema capitalista, onde o trabalho é especializado e há
padrões universais para o intercâmbio de trabalhos e de mercadoria, como o valor
do ouro e do dinheiro.
O mistério da mercadoria consiste no encobrimento das características
sociais dos produtos do trabalho humano, que aparecem como características
materiais e pertencentes ao próprio objeto. Em última análise, o valor de uma
coisa é atribuído pelo sujeito. Uma muleta não teria muito valor para atleta
saudável, mas seria indispensável para um manco. Um produto nada mais é do
que a natureza transformada. Uma muleta é madeira transformada, medida,
trabalhada. Mas não deixa de ser mera madeira, se olhada objetivamente. No
entanto, esta mesma madeira é transformada em mercadoria. O homem, um ser
físico estabelece uma relação com a madeira, outra coisa física. Mas o valor da
madeira enquanto mercadoria nada tem de físico. Ou como afirma Marx, “Uma
relação social definida, estabelecida entre os homens, assume a forma
fantasmagórica de uma relação entre as coisas.”19 A isto Marx chama de
fetichismo da mercadoria. As coisas, tomadas num ponto objetivo, tem apenas
existência material. É no plano físico onde acontecem as coisas, o trabalho, a
transformação. No entanto, é o homem que, abstraindo e convencionado com
outros homens através da linguagem, transforma o objeto em uma mercadoria de
valor pessoal, subjetivo. E com a troca de mercadoria, estabelece-se um outro tipo
de valor.
Os trabalhos pessoais e privados pertencem ao todo do trabalho social, e é a
relação social entre os indivíduos que cria a relação entre os trabalhos. Os
homens, inconscientemente, igualam os diferentes tipos de trabalho e produtos
numa qualidade comum do trabalho humano. Dessa forma, o valor de uma
mercadoria é um signo social, que precisa ser decodificado por padrões
comportamentais comuns para se efetivarem como valorosos em um sentido
específico.
O interessante é notar a relação do conceito de mercadoria com a diferença
clássica da filosofia entre a coisa-em-si e a coisa-para-si. Esta distinção
problematizada por Kant na forma de aporia, levada ao máximo no Idealismo e
colocada sob outra perspectiva pelo Absoluto hegeliano, é um problema filosófico
diretamente ligado aos autores que mais influenciaram Marx. Este, por sua vez,
aplica-o aos valores do mercado e da economia, sem largar mão de sua posição
materialista. Marx, afinal, não nega que as coisas adquirem um valor apenas na
perspectiva do sujeito, mas submete esta perspectiva à relações definidas entre
os membros do corpo social. Não é o indivíduo sozinho que, em sua percepção
estabelece relações determinantes para o modo de se ver a realidade, mas sim as
relações sociais entendidas com base em coisas materiais, existentes além da
existência individual.
Notas
1.FEUERBACH, Ludwig, A essência do Cristianismo, página 9. Editora Fundação
Calouste Gulbenkian. Tradução de Serrão, Adriana Veríssimo. Lisboa, Portugal.
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2.Idem,
página
22.
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3. XENÓFANES de Colofão, Tapeçarias, V, 110 e Tapeçarias, VII, 22, in PréSocráticos, página 70. Coleção Os Pensadores. Tradução de Padro, Anna L. A.
de
.
Editora
Nova
Cultural.
São
Paulo,
1996.
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4. NIETZSCHE, Friedrich, Assim Falava Zaratustra, página 10. Tradução de
Fonseca, Eduardo Nunes. Coleção Ciências Sociais e Filosofia. Editora Hemus.
São
Paulo,
SP.
5. NIETZSCHE, Friedrich, Crepúsculo dos Ídolos, página 10. Tradução de
Pugliesi, Márcio e Bini, Edson. Editora Hemus. São Paulo, SP, 1984. Voltar
6.
NIETZSCHE,
Friedrich,
Assim
Falava
Zaratustra,
página
26.
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7.MARX, Karl, Manuscritos Económico-Filosóficos., página 159. Tradução de
Morão,
Artur.
Editora
Edições
70.
Lisboa,
Portugal.
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8. ALTHUSSER, Louis, Análise crítica da teoria marxista, página 36. Tradução de
Lindoso,
Dirceu.
Zahar
Editores,
Rio
de
Janeiro,
1967.
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9. O mesmo autor sugere uma classificação para a obra de Marx, que teria
“fases”:
1840-1844
Obras
da
Juventude
1845 - Obras da cesura epistemológica - Marx rompe com Feuerbach e Hegel e
funda
sua
própria
18451857
10. MARX,
1857
-
Karl,
doutrina,
-
1883
-
Manuscritos
o
materialismo
Obras
obras
histórico.
da
de
maturação
maturidade
Económicos-Filosóficos,
página
160.
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Voltar
11.Idem,
página
162.
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12. Idem,
página
164.
Voltar
13.
Ver
nota
1.
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14. ALTHUSSER, Louis, Análise crítica da teoria marxista, página 136. Voltar
15.MARX,
Karl.
Manuscritos
Económicos-Filosóficos,
página
169.
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16. MARX, Karl, Sobre a Questão Judaica. apud McLELLAN, David, As Idéias de
Marx, página 40. Tradução de Neto, Aldo Bocchini. Editora Cultrix. São
Paulo,1977.
17.
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Idem,
página
50.
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18. MARX, Karl, A Ideologia Alemã, página 37. Tradução de Bruni, José Carlos e
Nogueira, Marco Aurélio. Livraria e Editora Ciências Humanas. São Paulo, 1982.
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19. MARX, Karl, O Capital, página 81. Tradução de Sant´Anna, Reginaldo. Difel
Editorial S.A. São Paulo, 1982. Voltar
BIBLIOGRAFIA
Além da bibliografia citada nas notas, usou-se ainda:
1. GIANNOTTI, José Arthur. Notas sobre a categoria “modo de produção” para
uso e abuso dos sociólogos in Filosofia Miúda e demais aventuras. Editora
Brasiliene, 1985.
2. JAPIASSU, Hilton e MARCONDES, Danilo. Dicionário Básico de Filosofia. Jorge
Zahar Editor. Rio de Janeiro, 1990.
3. LALANDE, André. Vocabulário Técnico e Crítico da Filosofia. Diversos
tradutores. Editora Martins Fontes. São Paulo, 1996.
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