TERAPIA DE CASAL DA OUTRA ENCARNAÇÃO: REFLEXÕES A RESPEITO DE UMA EXPERIÊNCIA CLÍNICA MUITO ORIGINAL Gisela M. Pires Castanho “A vida é cheia de mistérios e quanto mais eu vivo, mais respeito esses mistérios.” Zerka T. Moreno Fui procurada para ser terapeuta de um casal que afirma ter se amado também em outra vida. Para eles, essa vivência é uma certeza e até compartilham de memórias de cenas ocorridas na vida anterior. Escrevo esse artigo porque, baseada numa postura não autocrática, levo em conta o conflito que o cliente traz e qual a sua solicitação. Além disso, qualquer cena trazida pelo casal é relevante para a dinâmica conjugal. Se vamos trabalhar um sonho, uma fantasia, uma cena acontecida em outra vida ou nesta, a sustentação teórica do trabalho dramático, além de toda a metodologia, está no conceito de realidade suplementar, que, em minha opinião, é um dos elementos mais centrais, curativos e instigantes do psicodrama: uma narrativa positiva, transformadora, construída durante a dramatização com o propósito de reparar feridas emocionais. Julia1 foi minha cliente por três anos. Raul, seu marido, às vezes era chamado para trabalharmos assuntos do casal ou para terapia de família, quando incluíamos os dois filhos. Depois de alguns meses que terminamos o processo de terapia individual, o casal solicitou uma sessão com o intuito de trabalhar um conflito não resolvido de sua vida passada. Fizemos uma sessão de 2 horas para a qual o pedido era manter o foco na vida anterior. Chegaram com a seguinte solicitação: “Estamos casados há 20 anos e fomos um casal também em outra vida. Fomos apaixonados, mas não éramos casados. Eu era uma judia francesa em poder de um oficial nazista sádico e ele era um comandante de campo de concentração. Queremos trabalhar com psicodrama uma cena que nos aconteceu na outra vida e que está nos fazendo muito mal atualmente. É a cena do momento em que nos despedimos: ele não impediu que eu fosse levada à Paris e isso resultou na nossa morte; estamos engasgados com isso até hoje. Eu não aceito que ele não tenha se posicionado para impedir que eu morresse. Nós 1 Por questões de sigilo, os nomes neste texto foram modificados. Quando utilizar os nomes Julia e Raul me referirei ao casal do presente e ao nomeá-los Francesa e Comandante, ao casal da outra vida. 1 poderíamos ter fugido para a Suíça, onde estaríamos seguros”. O conflito se originava numa cena ocorrida 20 anos antes do renascimento deles para a encarnação atual. Mesmo não tendo a reencarnação como um referencial, aceitei o pedido deles encarando-a como uma narrativa alternativa às minhas crenças pessoais e perfeitamente válida. Além disso, Moreno, como hassidista e estudioso de cabala, era “reencarnacionista” e eu sempre me interessei pelo assunto. Considerei o pedido bastante original, mas por que não levar em conta que a narrativa do cliente é verdadeira para ele? Quem garante que a tal encarnação anterior não tenha acontecido mesmo? A importância de se considerar verdade tudo o que é sentido como tal é fundamental para a validação existencial2 e para a confiança no terapeuta. O respeito às crenças do cliente é a base para que o vínculo terapêutico abra a possibilidade do indivíduo revisitar suas cenas de dor dando novas saídas para as situações nas quais antes houve aprisionamento da espontaneidade. Que seja um reviver da dor, mas agora diferenciando os sentimentos e as soluções para o conflito por meio da ação dramática. Moreno (2012, p. 134) dizia que “toda verdadeira segunda vez é uma liberação da primeira”. Procuro acompanhar o casal na construção da verdadeira segunda vez. Não precisamos nos ofender ou nos sentir provocados se o cliente acredita em gnomos, energias, elfos ou em outro Deus. Será que não sou eu a portadora de uma mente limitada por não me lembrar de minhas vidas passadas? Não seria eu a surda ao não conseguir ouvir os elfos quando estou na floresta? Julia traz uma história de vida com pai omisso e mãe ameaçadora e instável na infância. É a filha mais velha e sempre foi uma menina responsável e cuidadosa com os dois irmãos mais novos. Sentia que a mãe poderia “culpabilizar” os filhos por qualquer surpresa que pudesse acontecer, então se sentia na obrigação de tentar controlar tudo o que fosse possível para não desestabilizar sua mãe. Por conta disso, Julia vivia ansiosa e atenta. Hoje é uma mulher de 45 anos, intuitiva, inteligente, mãe de dois jovens adultos, que exerce liderança na empresa em que trabalha e é reconhecida profissionalmente. Julia é, sem dúvida, uma mulher diferente do comum. Sobre sua intuição, desde cedo já falava coisas surpreendentes. Aos 8 anos, ao conhecer a moça que trabalhava como secretária no escritório de advocacia do pai (essa moça na época tinha 14 anos!), Julia perguntou: “Você que é a namorada do papai?” Essa moça cresceu, se tornou amante de seu pai e acabou se casando com ele, com quem teve dois filhos. Julia conta muitas histórias deste tipo e esses sentimentos somados à sensibilidade à flor da pele sempre a guiaram, mas nem sempre ela entendia o que “A ‘validação existencial’ presta uma homenagem ao fato de qualquer experiência poder ser reciprocamente satisfatória no momento de sua consumação, aqui e agora.” (Moreno, 1983, p. 231). Trata-se de validar a experiência do outro com quem você se relaciona, o que é a base do Encontro. 2 2 suas antenas captavam. Às vezes ficava perturbada com uma percepção e precisava da terapia para saber como lidar com sua angústia. Dramatizava, concretizava, dava voz ao problema, compreendia a situação e achava o que, para ela, era a melhor forma de lidar com a questão. Sabe que sofreu muito desamparo na infância e considera que nasceu nesta família na atual encarnação para poder resolver o desamparo que começou na vida anterior. “O desamparo da minha infância é algo maior, não começou aqui com essa mãe e esse pai.”, diz ela. Sendo céticos, não acreditando em reencarnação, podemos ver pelo lado oposto: o desamparo desta vida foi e é tão grande que ela precisa explicar como tendo começado antes, pois sente que não cabe em uma vida só. Para nosso propósito como psicoterapeutas não importa acreditar ou não em memória de vida passada, basta acreditar que o sofrimento do paciente precisa ser ouvido e cuidado. Julia e seu marido, Raul, compartilham lembranças de cenas e diálogos da outra vida e, qualquer que seja a explicação disso, nosso papel de psicoterapeuta inclui compreender e trabalhar a angústia e não tentar explicar o que não conhecemos. Eu já conhecia Raul das sessões vinculares que fizemos na época da terapia da Julia e já tínhamos trabalhado a necessidade de ele ser um pai mais firme com relação a limites e regras para os filhos em casa. Além disso, ele também queria ter mais reconhecimento no trabalho. Raul já havia contado sobre sua mãe extremamente dominadora e de como reagia diante do controle dela: na infância, aprendeu a ficar quieto, omisso, e nunca discordar dela, para não ser massacrado. Em sua casa, na infância, todos, inclusive seu pai, concordavam com ela e a obedeciam. A voz dela era a lei. Apesar do desconforto, ele não se sentiu capaz de enfrenta-la até se casar. Misturado aos conteúdos atuais (trabalho, família, mãe doente) e aos problemas da infância (desamparo, angústia, ansiedade), Julia sempre trouxe à terapia os fatos ocorridos em sua vida passada, durante a Segunda Guerra Mundial. Quando esteve aprisionada em um campo de concentração foi forçada a ser amante de um poderoso e sádico general alemão, a quem chamava de SS, e se apaixonou por um comandante de campo de concentração (Raul). Essa história se tornou um livro não publicado, mas escrito para que Julia pudesse se livrar da angústia intensa e difusa que a acompanhava. No processo de escrita, deu contorno às suas memórias da vida anterior e ao sofrimento que carregava: ter sido capturada, ter vivido sob estresse profundo e ter sido abandonada pela única pessoa que poderia salvá-la da exploração sexual e da morte. Julia trazia vividamente a memória e o sofrimento da encarnação anterior: vivera encarcerada e na eterna expectativa de que algo terrível fosse acontecer. Sofrera torturas, 3 apanhara e fora submetida a abuso sexual. Naquela vida, ela nunca sabia se o general chegaria amoroso ou sádico para encontrá-la. Ela sabia apenas que não tinha nenhum controle sobre o que aconteceria e não tinha como escapar da situação. Após dramatizar as situações da guerra fizemos muitas vezes o paralelo entre o general SS e sua mãe emocionalmente instável, e também o paralelo com seu pai ausente. Quando dramatizávamos as situações de sua infância desamparada na encarnação atual, falávamos também do profundo desamparo causado pelo general alemão da encarnação anterior. Para mim, as duas narrativas sempre foram semelhantes, como uma metáfora, e Julia aceitava a relação entre elas. Sabia que, ao dramatizar uma época, estava também curando a ferida da outra vida. Fazíamos essa dança entre as encarnações com naturalidade, relacionando as duas narrativas: uma fluía para a outra, pois os sentimentos eram os mesmos. No processo terapêutico, dramatizamos a relação de Julia com a mãe, com o abusador, as soluções possíveis, as respostas que poderiam ser dadas à situação de sofrimento imenso e, inicialmente, tão sem saída. Nas dramatizações ela aprendeu a dizer “não!” com firmeza. Julia tomou o papel das pessoas que poderiam ajudar a resgatar sua autoestima e fomos reparando as feridas das duas histórias: a atual e a ocorrida no início da década de 1940, que culminou na sua morte, em 1942. Com o recurso da realidade suplementar resgatamos o pai amoroso e cuidador que a Francesa teve na década de 1930, antes de ser aprisionada, para que pudesse ser um fio de esperança e afeto no deserto do sofrimento em que vivia como judia francesa em poder de um oficial nazista. Resgatamos outra figura masculina amorosa e forte que fez parte de sua vida atual – um padrinho – para que pudesse ser um pai substituto. Criamos também uma mãe psicodramática acolhedora e carinhosa. As dramatizações foram resultando em uma Julia mais segura e mais tranquila. Ela passou a reagir melhor às pressões no trabalho, quando sentia que o desespero tomava conta dela e que não havia saída. Podemos encaixar Julia e Raul em algum perfil de personalidade e acharmos que isso explica alguma coisa. Mas o que isso nos resolve? Em que esse rótulo os ajuda? Os rótulos e diagnósticos nos dão a ilusão de que conhecemos as pessoas. Precisamos nos abrir para a experiência e deixar que as pessoas se revelem, pois aí veremos a riqueza daquela singularidade se relacionando com a riqueza da singularidade do parceiro e também com a singularidade do terapeuta. Foi com esse pensamento que resolvi recebe-los para a sessão de terapia de casal da vida anterior com uma queixa determinada e com uma cena previamente escolhida: a cena da despedida dos amantes. A CENA 4 CONSULTA DO DIA 6/7/2012 - VERSÃO DA PSICOTERAPEUTA No campo de concentração, o Comandante e a Francesa estão se separando. Coloco Raul no papel do Comandante e faço uma entrevista para aquecê-lo para o papel. Ele descreve o local onde está e afirma que está vestindo uniforme militar e que essa roupa lhe dá força e segurança por fazer parte de uma organização maior, que resolve o que deve ser resolvido. Por outro lado, o uniforme o impede de pensar com sua própria cabeça. Submisso ao partido, ele só deve obedecer a ordens. Há muita angústia e sofrimento. Eles sabem que morrerão em seguida. Ele está arrependido de sua decisão de entregá-la ao SS e ela está desesperada. Proponho, nesse ponto, que ele pode ousar fazer diferente do que foi feito. Ele, então, resolve agir para mudar o destino dos dois. Há uma ânsia em ambos por viver psicodramaticamente essa cena que poderá mudar os registros afetivos e trazer alívio emocional. Estão presos na angústia por muito tempo e querem muito fazer algo transformador. Ele diz querer mudar a decisão que tomou de entregar a Francesa para o SS. Proponho que comece conversando com ela. Julia toma seu papel e ele explica que vai enfrentar o SS, se comprometendo a protegê-la. Dramatizamos o enfrentamento com o SS, cena em que ambos dizem tudo o que está engasgado, ocorre a luta corporal para conquistar a liberdade, a morte do SS e a fuga do casal para um local protegido na Suíça. O Comandante rasga, então, seu uniforme, e passa a usar roupas confortáveis. Ao final ele percebe que seu poder não estava no uniforme que usava, mas em suas decisões. Peço que ele sinta e localize no seu corpo o seu poder de comandar e que, a partir de agora, ele se comprometa a usar sua capacidade de decisão sempre que necessário, se posicionando sempre, inclusive nas próximas encarnações. Ele fecha os olhos, apruma o corpo e respira fundo, concordando. A Francesa fica aliviada, diz que sente a certeza de que nunca mais estará em perigo como esteve. Abraçam-se afetuosamente. Raul fica bem, mas Julia ainda não está satisfeita: “É quase isso”, diz. Para ela a cena não está completa. Ela pergunta a Raul se ele se lembra do que a Francesa fazia que o deixava bem. Ele responde que era a forma como ela se entregava a ele quando estavam juntos. Eles revivem essa postura corporal de entrega, onde ele, apesar de forte e poderoso, não faria mal a ela. Ela se aconchega nele, ele se apruma como um homem poderoso, inspira e cresce. Ela se encolhe e se aninha no peito dele. Respiram fundo e peço que registrem dentro de si essa sensação de proteção e amor. Nessa cena, não sei a qual encarnação se referem, se esta ou a anterior, mas isso não tem importância, eles precisam viver e registrar a possibilidade de se 5 ampararem mutuamente, necessitam se apossar da força e da capacidade de lutar contra as adversidades, de não se deixarem massacrar por fatores externos. Ficam alguns minutos nessa posição e depois se olham apaixonados. Ao final da sessão a emoção era grande e não cabiam muitos comentários. Pedi que escrevessem o que viveram na dramatização. A história trágica acontecida em 1940 já estava escrita por Julia. Mais adiante reproduzo os relatos que me enviaram, com os títulos que escolheram. Na sessão com o casal a divisão entre as duas narrativas é tênue, às vezes não sei de que encarnação estão falando, mas sei que estão falando de um sentimento que vivem hoje, que os faz sofrer hoje e que nas duas vidas as cenas são as mesmas: dominação e profundo desamparo. É na reparação dessa dor que foco o trabalho dramático. CONSULTA DO DIA 6/7/2012 (VERSÃO DA JULIA) Tema: Relação Francesa/Comandante e bloqueios atuais Assim que entrei na sala da psicóloga, senti uma dor forte do lado esquerdo do rosto. A dor não passava e eu não sabia o que essa dor significava. Raul explicou que ele achava que não conseguia se posicionar na vida, como não tinha também conseguido se posicionar com a psicóloga anterior dele, com quem não se deu bem. Ele disse que achava que foi esse o motivo de ter deixado a Francesa ir embora com o SS. Gisela propôs, então, que Raul se colocasse no lugar do Comandante e eu no lugar da Francesa. Era para o Raul fazer de conta que ele tinha agido de forma diferente na Segunda Guerra, que ele dissesse para a Francesa que não ia devolvê-la pra o SS. Ele fez isso e disse que gostava muito dela e que eles iriam fugir para a Suíça, mas eu não conseguia me sentir feliz, nem falar nada. Fiquei apenas observando o que estava acontecendo. Algo parecia errado. Então Gisela perguntou o que a Francesa estava sentindo e eu disse que sentia que o problema não estava resolvido. Então nós nos sentamos e eu fiz uma pergunta ao Comandante (ele tinha dito no início da consulta que a Francesa o acalmava quando ele estava no campo): “Como a Francesa fazia para acalmá-lo, qual era o “poder” que ela tinha sobre ele?” [Algumas vezes durante a 6 dramatização, falei da Francesa como se ela não fosse eu e a Gisela me disse para falar em primeira pessoa.] Então o Comandante disse que ela tinha uma atitude submissa e a psicóloga pediu que eu mostrasse isso com o corpo, o que não consegui fazer bem. Ela pediu, então, que trocássemos de papel, que o Comandante fosse a Francesa e mostrasse com o corpo. Ele mostrou que a Francesa agia como se dissesse que ela era pequena, frágil, que não representava perigo para ele e eu fiquei feliz com isso porque era exatamente o que ela fazia. Fiquei feliz por ele ter consciência do que aconteceu na Segunda Guerra. A psicóloga disse que o que a Francesa “dizia” com isso era que, embora ele fosse um poderoso comandante de campo de concentração, ele no fundo era bom porque ela podia se entregar para ele pois sabia que ele não faria mal a ela. Eu fiquei bem feliz porque era exatamente isso o que acontecia. A partir daí, a psicóloga passou a trabalhar o poder do Comandante e do Raul e acabou perguntando onde estava o poder dele. Ele disse que ora no peito, ora na garganta e ora na cabeça. Ela disse que havia um rompimento de comunicação de energia: ora o poder estava no coração (emoção) e ora na cabeça (razão) e que ambos precisavam estar conectados (coração e cabeça / emoção e razão) para que o poder pudesse se expressar de forma equilibrada. Eu fiquei feliz porque era esse equilíbrio que eu gostaria que fosse construído. TRABALHO COM PSICODRAMA DIA 6/7/12 (VERSÃO DO RAUL) Foram trabalhadas emoções ligadas a uma vida passada na Segunda Guerra Mundial. Eu, comandante do exército nazista, deixei a Francesa ir embora com o SS. Não confrontei a autoridade nas figuras do Estado, da disciplina militar e da sociedade nazista. Não escolhi por mim mesmo, obedeci. Não tomei posição em relação à ida da Francesa para Paris. Em um primeiro momento me vi preso ao juramento de lealdade ao partido e ao exército. Não me posicionei. Não consegui analisar a situação dentro do que seria melhor fazer, para ela e para mim. Estava cego. Quando finalmente me posicionei e escolhi o que seria melhor para mim fui atrás dela, mas fui morto por isso. Os sentimentos que eu trouxe desta vida passada foram: 7 O não posicionamento contra um poder superior (ou autoridade). Me posicionar será minha morte. Minha mãe me “mata” cada vez que eu sou eu mesmo. Para me defender me anulo completamente. Sigo o que é esperado. Não analisar as situações e não me posicionar. Não demonstrar meus sentimentos, principalmente a quem mais amo. Não trazer meus sentimentos para o consciente. Ter uma divisão entre o sentir e o pensar. Durante a cena eu falei para a Francesa que estava sofrendo muito por ter provocado um grande sofrimento para ela. Tive uma sensação de arrependimento muito grande. Percebi que hoje tento agradá-la de todas as formas e achava que não me posicionar seria uma forma de não perdê-la. Reconheci que não me posicionei contra o exército, o partido, a posição social, em 1942. Me senti mais forte quando encenamos que eu, o comandante, saí do campo e levei a francesa comigo para um lugar seguro fora da guerra. Quando abandonei o que me aprisionava, me tornei mais seguro. Senti que poderia protegê-la. Quando rejeitei o exército e o partido me libertando deles senti que poderia viver sem alguém me policiando e ditando regras para a minha vida. Tirei o uniforme do exército que significa uma masculinidade forte, mas reprimida, e vesti o uniforme de uma masculinidade livre. Estou juntando o coração com a mente, o sentir com o analisar. A imagem que me passa na mente hoje é a de um elmo de estanho, o sentir e o pensar dentro de um mesmo lugar protegido onde só eu controlo e não tem interferência negativa externa. Considerações finais É interessante notar como no relato deles os papéis atuais e os papéis da vida passada se entrelaçam como em uma só vida. O que pensam e sentem sobre uma encarnação, vale para a outra. Os acontecimentos estão num continuum onde eles fluem livremente, relacionando os fatos e associando as emoções entre as cenas das diversas vidas. A primeira parte da dramatização atendeu a uma necessidade forte de reparação do Raul: resgatar seu poder de decisão sufocado pelo exército na encarnação anterior e pela mãe 8 nesta. A segunda parte foi a mais importante para Julia: se sentir amparada e segura pelo Comandante, na encarnação anterior, e por Raul, nesta. O mais importante de tudo é “navegar” com o cliente na sua realidade interior. Não cabem perguntas para entender racionalmente o que aconteceu exatamente em outra vida. O que precisam é que seu registro emocional interno seja aceito e trabalhado. Assim como não caberia perguntar para um paciente que dramatiza algo da sua primeira infância quantas horas sua mãe trabalhava ao dia, checando aspectos concretos e objetivos, não senti que seria pertinente confrontar eventuais discrepâncias das narrativas. Qualquer discussão racional dos dados nos afasta da emoção relatada, e é ela o que mais nos importa. Terapeutas de vidas passadas (Pincherle et al., 1990) buscam obter resultados práticos e não discutir com o sujeito a reencarnação ou a realidade de suas memórias. Na terapia de vidas passadas a cena é vista e relatada através de transe hipnótico e não há ação dramática; o terapeuta faz sugestões para que o cliente descarregue as emoções, perceba que o problema pertence à outra encarnação e não ao aqui e agora, e passe a ver o problema de outra forma. No psicodrama, um dos conceitos mais inovadores de Moreno é o de “realidade suplementar”. Considero-o a alma do psicodrama. É a realidade criada no contexto psicodramático, no qual é possível mudar os registros vividos com base no reviver o conflitodrama diferenciando na ação a sua resolução. Segundo Moreno (1999, p. 104), [...] Pode-se bem dizer que o psicodrama enriquece o paciente com uma experiência nova e alargada da realidade, uma “realidade suplementar” pluridimensional, um ganho que ressarce, pelo menos em parte, o sacrifício que ele teve que fazer durante o trabalho de produção dramática. Moreno (2006) fala de três realidades: 1. A “infrarrealidade”, que é a realidade contada pelo paciente sobre sua vida cotidiana e eventos do passado na consulta psicoterapêutica; 2. A “realidade da vida presente”, que é vivida na consulta no aqui e agora com o cliente; e 3. O autor propõe o conceito de “realidade suplementar” para explicar uma dimensão intangível da vida intra e extrapsíquica que pode ser resgatada para ser incorporada no registro emocional e perceptual do indivíduo que vivencia o psicodrama. “É uma realidade que já lhe pertencia, mas que não tinha tomado posse. Seria uma realidade a mais.” (idem, p. 24). Fonseca, na “Apresentação à edição brasileira” do livro citado escreve que 9 “O protagonista acrescenta um ‘valor’ de realidade excedente, um plus que já lhe pertencia, mas em relação ao qual não tinha tomado posse. Seria uma realidade adicionada, uma realidade a mais, uma mais-realidade.” (ibidem, p. 56) Uma das técnicas mais populares para viver a realidade suplementar é a inversão de papéis, na qual cada um desempenha o papel do parceiro e vive no contexto dramático a realidade do outro, tentando se apropriar dos sentimentos dele, da perspectiva de quem está tentando ser realmente o outro, vivenciando seus comportamentos, entrando no seu modo de pensar e sentir. Essa experiência na terapia de casal permite que cada um se aproprie mais profundamente da compreensão do que vive o parceiro. Eu nunca pensei que encontraria alguém com tanta certeza sobre sua vida passada, nem com tanta memória de fatos e de diálogos ocorridos em uma encarnação anterior. No caso desse casal, a riqueza de detalhes é espantosa e eles compartilham a memória das cenas ocorridas. Ambos sabem o que viveram juntos e acreditam que estão na encarnação presente para resgatar o que não pôde ser vivido então. Confesso que, antes de Julia, eu não dava muita atenção para o assunto da reencarnação, mas ela soube me mostrar que se o tema é verdadeiro para sua essência, quem sou eu para questionar? E o que importa questionar? A sua certeza me fez questionar algumas das minhas verdades. Termino com uma frase de Zerka T. Moreno (2001, p. 13) afirmando que “o psicodrama é o teatro do perdão. Trata-se do lugar onde se pode encontrar o amor e a aceitação pelo que consideramos ser os piores aspectos de nós mesmos”. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS MARTÍN, E. G. Psicologia do encontro: J. L. Moreno. São Paulo: Ágora, 1996. p. 108-11. MORENO, J. L. “Existencialismo, Daseinsanálise (Análise Existencial) e Psicodrama com Ênfase Especial sobre a ‘Validação Existencial’”. In: MORENO, J. L. Fundamentos do psicodrama. São Paulo: Summus, 1983. p. 221-42. ____________. Psicoterapia de grupo e psicodrama. Campinas: Livro Pleno, 1999. ____________. O teatro da espontaneidade. São Paulo: Ágora/Daimon, 2012. 10 MORENO, J. L.; MORENO, Z. T. Psicodrama: terapia de ação e princípios da prática. São Paulo: Daimon, 2006. MORENO, Z. T.; BLOMKVIST, L .D.; RUTZEL,T. A realidade suplementar e a arte de curar. São Paulo: Ágora, 2001. PINCHERLE et al. Terapia de vida passada: uma abordagem profunda do inconsciente. São Paulo: Summus, 1990. 11