Filosofia para todos os gostos

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Filosofia para todos os gostos
Por onde começar? Siga os passos para entrar no mundo e nas idéias dos principais
pensadores do Ocidente
A filosofia é menos difícil do que se imagina. Se parece difícil, é por uma razão
simples: ela é um gênero à parte. Conhecê-la é aprender a ler de um modo
diferente. Ela tem pontos comuns com a ciência e com a literatura, mas se
distingue de ambas. Como a ciência, ela procede com rigor e costuma ter, no
horizonte, uma idéia de verdade. Mas a ciência se atualiza sempre e descarta seu
passado. A filosofia não. Como a arte ou a literatura, ela preserva seu passado
como um patrimônio irrenunciável.
Esta é uma primeira dica para o interessado em filosofia. Se você quiser conhecer
literatura, deve começar por uma obra ou por uma história literária? É claro que
pelas obras_romances, contos. O mesmo vale para a filosofia. Por isso, embora
existam hoje muitas introduções à filosofia ou a filósofos específicos, o melhor é
mergulhar diretamente nos autores e em seus livros.
Nos últimos 20 anos, aumentou muito a demanda por filosofia. Quem diria que, em
1968, quando "la definitiva noche se abría sobre Latinoamérica", a filosofia viria a
ser sucesso de público? Nos colégios, aposentava-se a escrita em favor das provas
com cruzinhas. A filosofia era acusada de perigosa, pelas ditaduras, ou de inútil,
pela tecnocracia. Mas isso mudou. A edição de filosofia está em franca expansão.
Por isso, até eu, que critico a ênfase excessiva que os cursos de filosofia dão aos
autores (em detrimento das questões propriamente filosóficas), recomendo
começar por eles. Filosofar é caminhar_por isso, é tão interessante o caminhante
solitário de Jean-Jacques Rousseau (1712-1778)_veja adiante. O maior erro de
quem quiser conhecer filosofia será acreditar que cada conceito tem um sentido
exato, e um só. O leitor verá que cada autor lhe dá um significado diferente! E esse
significado só cabe no pensamento desse autor. Assim, os dicionários de filosofia
são úteis, mas não demais. Nenhum deles substitui a frequentação direta de uma
obra.
Um exemplo: ética e moral. Qual é a diferença? Uns, porque "mores", em latim,
significa "costumes", dizem que a moral é conformista, exprimindo os costumes de
um grupo, e a ética (do grego "ethos", "caráter") seria a escolha que cada um faz,
livre e responsavelmente, de sua vida. Outros trocam o sentido dessas mesmas
palavras. Conclusão: o importante não é pontificar que moral e ética significam tal
ou qual coisa, mas saber que há dois sentidos opostos, que podem receber nomes
distintos, é crucial.
Não tenha medo do jargão filosófico. Toda disciplina tem seu rigor próprio, e na
filosofia ele é decisivo. Mas penso que ela só adota jargão bem técnico ao ser
ministrada nas universidades_o que acontece no fim da Idade Média, com a
escolástica, e, modernamente, desde Emmanuel Kant (1724-1804). Ela então se
torna mais difícil ao leigo, mas, retirando esses 500 anos mais técnicos, restam
pelo menos dois milênios de filosofia feita, em larga medida, para um público nãoacadêmico.
Filósofo, diz a etimologia, é o amigo do saber (do grego "filia", "amizade", e "sofia",
"saber"). A filosofia começa, na Grécia do século 6º a.C., sob o signo da modéstia.
O Oriente conhecia a figura do sábio; ora, os gregos repudiavam a pretensão a
serem sábios, isto é, proprietários do saber. Eles eram apenas (apenas?) amigos do
conhecimento. Não queriam ser donos da verdade.
1. Comecemos, então, descartando os livros que pretendem possuir o saber, em
vez de ensinar-nos a ser seus amigos. Muitas introduções à filosofia, infelizmente,
expõem uma visão do mundo de seu autor, juntando de tudo_de Paulo Coelho a
Martin Heidegger (1889-1976)_para comprová-la. As intenções educativas podem
ser boas, mas não são obras de filosofia. Outras introduções (olhe bem o sumário
antes de comprar) ficam distinguindo teses e escolas, o que resulta em algo
abstrato, pesado e, a esta altura, inútil. O melhor ingresso na filosofia é ir direto a
algumas obras particularmente fortes_e que não exijam formação na área para
serem lidas. Se já souber quem lhe interessa, vá direto ao item 3.
2. Há outra possibilidade: começar por uma introdução mais ampla, mas que anime
o leitor. Quando fiz o curso que se chamava clássico, minha professora recomendou
"Fundamentos de Filosofia", de Manuel Garcia Morente (Lições Preliminares, 324
págs., R$ 40), do qual tenho boa recordação. Esse livro talvez não resista às
exigências mais técnicas de hoje, mas suas maiores qualidades são justamente seu
caráter oral e seu entusiasmo pela filosofia. É uma obra de divulgação redigida por
quem conhece o assunto. Pode dar a quem nada sabe de filosofia um mapa geral e
leve dos autores. Mais fácil de encontrar, "O Mundo de Sofia" (Companhia das
Letras, 560 págs., R$ 39,50), best-seller de Jostein Gaarder, ajudou muitos a se
enamorarem pelo tema. O bom dessas obras é que auxiliam o leitor a identificar o
segundo passo: que filósofo quer ler. Depois disso, mergulhe no autor de sua
preferência.
3. Dou algumas sugestões. Pode ser um diálogo de Platão (427-347 a.C.), como "O
Banquete" (Difel, 188 págs., R$ 30,50), em que Sócrates discute o amor com
Aristófanes e outros contemporâneos. Ou, quem sabe, algumas obras de JeanJacques Rousseau, como o "Emílio ou da Educação" (Martins Fontes, 714 págs., R$
45), o manifesto do que hoje chamamos de educação, "Os Devaneios do
Caminhante Solitário" (UnB, 136 págs., R$ 15), pungente na dor de um pensador
que se sente repudiado por todos, "As Confissões" (Relógio d'Água, 2 vols., 654
págs., R$ 70,78), obra que funda a idéia moderna de verdade como sinceridade,
conferindo, assim, valor à intimidade. (Nesse caso, leia também "O Declínio do
Homem Público", de Richard Sennett_Companhia das Letras, 448 págs., R$ 46).
4. A filosofia política geralmente é mais acessível do que a teoria do ser (conhecida
por ontologia) e do que a teoria do conhecimento. Recomendo "O Príncipe", de
Nicolau Maquiavel (1469-1527), na edição da Martins Fontes (218 págs., R$
15,40), somado à introdução de Isaiah Berlin à edição da Ediouro (256 págs., R$
20,20)_infelizmente, a tradução desta última editora tem muitos erros.
"A Utopia", de Thomas Morus (1478-1535), tem duas boas edições: uma pela
Martins Fontes e outra pela Abril (ambas esgotadas). De Rousseau, veja o
"Discurso sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade entre os Homens"
(Martins Fontes, 330 págs., R$ 34,50). Ou ainda, de Spinoza (1632-1677), o
"Tratado Teológico-Político" (Imprensa Nacional de Lisboa, esgotado). Muitas obras
também estão disponíveis na coleção "Os Pensadores" (Nova Cultural, R$ 14,90
cada volume), lançada nos anos 70 e, desde então, reeditada com mudanças e
(infelizmente) reduções.
Mais perto de nós, o "Dezoito Brumário de Louis Bonaparte" (Centauro, 149 págs.,
R$ 20), de Karl Marx (1818-1883), a "Introdução à Psicanálise" (Delta, esgotado),
de Sigmund Freud (1856-1939), e a "Genealogia da Moral" (Companhia das Letras,
179 págs., R$ 29,50), de Friedrich Nietzsche (1844-1900), ensinam o leitor a
suspeitar das aparências_o que é talvez a melhor lição filosófica.
Mas o que significa ler Marx ou Freud pela filosofia, e não pela economia ou pela
psicanálise? Há uma diferença. Significa suspender um pouco a referência de cada
um deles a casos concretos ou empíricos (por exemplo, a sociedade brasileira de
hoje ou a paciente histérica) e viajar dentro da consistência de seu pensamento.
Um exercício: procure entender tudo à luz do que o autor diz. Se possível, faça isso
com dois autores, quase simultaneamente. Tente compreender a opressão, no
Brasil de hoje, como Marx a entenderia (razões de classe) e como Freud o faria
(questões de psique). Veja que cada sistema é consistente internamente. E fique
muito preocupado com isso: veja que, partindo de certas premissas, explica-se, se
não tudo, quase tudo. Isso poderá levá-lo ao ceticismo, que é uma posição
filosófica hoje muito respeitada, com suas origens na Antiguidade.
5. Aqui você pode começar a ler com alguma ajuda. Para isso, há uma série de
pequenas introduções em formato de livro. Destaco uma obra-prima, o "Pascal",
que Gérard Lebrun publicou pela Brasiliense 20 anos atrás e está esgotado. Cobre
da editora que o reedite, pela coleção "Encanto Radical", que tinha um "Walter
Benjamin" de Jeanne-Marie Gagnebin e um "Nietzsche" de Scarlett Marton. Mas
passe longe da coleção "Filósofos em 90 Minutos", de Paul Strathen. Dica: quando
alguém der importância demais à biografia ou ao contexto histórico, desconfie. O
"Foucault em 90 Minutos", por exemplo, fala mais da homossexualidade (assumida
e notória) do filósofo do que de suas idéias. Esqueça.
A série de introduções a filósofos da Cambridge University Press, traduzida pela
Editora da Unesp (R$ 8 cada volume), é boa, bem como a coleção "Filosofia Passoa-Passo", escrita por professores brasileiros para a Jorge Zahar (R$ 14,90 cada
volume). Contudo, nem sempre esses livros escapam ao jargão técnico. Dê uma
olhada neles antes de comprá-los, para ver se lhe interessam mesmo. "Montaigne",
de Marcelo Coelho, (Publifolha, 89 págs., R$ 11,50) é bom.
6. Deixei para este item as histórias mais técnicas da filosofia. Minha
recomendação: use-as como livros de referência, como dicionários. Não comece por
elas, a não ser que deseje estudar filosofia a fundo. Para o leitor interessado, elas
ajudam a dar o quadro do autor e de suas idéias. Podem ser mais úteis do que as
introduções a autores específicos.
Talvez a primeira a indicar seja "Convite à Filosofia", de Marilena Chaui (Ática, 440
págs., R$ 49,90). No Brasil, ela e Adauto Novaes foram pioneiros na difusão da
filosofia para um público leigo, interessado em questionar a experiência política e
cultural. Chaui está escrevendo a série "Introdução à História da Filosofia", da qual
já saiu o primeiro volume, dedicado à Grécia antiga ("Dos Pré-Socráticos a
Aristóteles", Companhia das Letras, 560 págs., R$ 42).
Também podem valer a pena o "Dicionário de Filosofia", de Nicola Abbagnano
(Martins Fontes, 1.026 págs., R$ 89), ou "História da Filosofia", que Emile Bréhier
escreveu sozinho nos anos 30 (Mestre Jou, esgotado)_o melhor para o resumo das
idéias dos pensadores, ainda que ignore a história e a cultura. Se quiser conhecer a
filosofia sem divorciá-la de seu tempo, leia a "História da Filosofia", organizada por
François Châtelet nos anos 70 (Zahar, esgotado).
7. Uma novidade: está sendo preparada a edição em CD-ROM da importante
"Dialética para Principiantes" (Editora Unisinos, 247 págs., R$ 25), de Carlos
Roberto Cirne Lima. Vi a versão beta dessa obra, que se chamará "Dialética para
Todos", e, para não exagerar, é uma maravilha, toda ilustrada pela artista plástica
Maria Tomaselli. Vale conferir.
8. Tentemos agora alguns filósofos de mais difícil leitura. Se você se apaixonar
pelas "Meditações Metafísicas" (Martins Fontes, 155 págs., R$ 22,50), de René
Descartes (1596-1650), estará provada a sua disposição para ler filosofia. Não é
fácil, mas é impressionante. Nesse caso, aventure-se também por "Poética", de
Aristóteles (384-322 a.C.)_procure o livro do autor na coleção "Os Pensadores"_,
por "Temor e Tremor" (Ediouro, 130 págs., R$ 11,90), de Soren Kierkegaard
(1813-1855), e por alguns livros de Maurice Merleau-Ponty (1908-1961). À medida
que se interessar mais, precisará usar as introduções específicas ou gerais de que
falei anteriormente.
9. E a internet? Ela ajuda a encontrar os clássicos da filosofia que já são de domínio
público, mas não os textos de filósofos do século 20 ou de comentadores.
Infelizmente, como as traduções confiáveis em português são, na maioria,
recentes, é raro achar boas edições em nossa língua na rede. Serve para o texto no
original ou traduções em inglês e em espanhol.
10. Sendo meu assunto a filosofia política, gostaria de recomendar o que ela teve
de melhor no século 20. O italiano Norberto Bobbio tem vários bons livros, entre os
quais "Direita e Esquerda" (Unesp, 190 págs., R$ 22) e "O Futuro da Democracia"
(Paz e Terra, 208 págs., R$ 26,50). De Hannah Arendt, "A Condição Humana"
(Forense Universitária, 352 págs., R$ 46,80) e "As Origens do Totalitarismo"
(Companhia das Letras, 568 págs., R$ 52). Isaiah Berlin escreveu "Quatro Ensaios
sobre a Liberdade" (UnB, esgotado). Não perca também "A Invenção Democrática",
de Claude Lefort (Brasiliense, esgotado) e "O Desentendimento", de Jacques
Rancière (Editora 34, 144 págs., R$ 23).
11. Para terminar, há a aplicação da filosofia ao conhecimento de nossa cultura. Os
filósofos atuais não falam só de filosofia, eles discutem nossa sociedade. Adauto
Novaes, nos últimos 20 anos, organizou uma dúzia de livros, sempre incluindo um
terço ou metade de professores de filosofia debatendo nossa experiência cultural.
Destaco "Os Sentidos da Paixão" (Companhia das Letras, 528 págs., R$ 52) e "A
Crise da Razão" (Companhia das Letras, 568 págs., R$ 50).
Alguns colegas procuram usar a filosofia para pensar o Brasil: Ernildo Stein, com
"Órfãos de Utopia - A Melancolia da Esquerda" (Editora UFRGS, 108 págs., R$ 12),
Marilena Chaui, com "Brasil: Mito Fundador e Sociedade Autoritária" (Fundação
Perseu Abramo, 104 págs., R$ 20), Gerd Bornheim, com "O Conceito de
Descobrimento", Editora Uerj, 86 págs., R$ 10), e Luis Sérgio Coelho de Sampaio,
com "Filosofia da Cultura Brasil: Luxo ou Originalidade" (Ágora da Ilha, 378 págs.,
R$ 30). Essa pode ser também uma porta de entrada_ou de saída.
Renato Janine Ribeiro, 53, é professor titular de ética e filosofia política na USP e
autor de "A Sociedade contra o Social" (Companhia das Letras), entre outros
títulos. Ter lido Nietzsche aos 17 anos mudou sua vida talvez menos do que achou
na época, mas mudou.
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