Análise do conto “A última folha” de O. Henry Lígia Lorandi Ferreira

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Análise do conto “A última folha” de O. Henry
Lígia Lorandi Ferreira Carneiro
Orientadoras: Alicia Navarro de Souza e Nilma
Lacerda Gonçalves
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Disciplina: Reflexões sobre a prática médica Literatura e Medicina
Turma: M7
DRE: 103094588
Rio de Janeiro, 10 de julho de 2006
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Parte I - Análise do conto
A história se passa numa colônia de artistas pobres em Washington. Sue e
Johnsy são jovens que se tornaram amigas próximas e há meses moram juntas,
dividindo o mesmo estúdio de pintura. Ao chegar o inverno, o frio traz a pneumonia
consigo à colônia e Johnsy fica gravemente enferma. O médico chamado para tratar do
caso traça um prognóstico desfavorável: “Tem uma possibilidade de se salvar em,
digamos, dez. E essa possibilidade consiste no desejo de viver.”
A partir daí, o conflito se estabelece quando Johnsy desapega-se da vida. Após
dias contando as folhas de uma hera que subia pelas paredes da casa vizinha, única
visão que tinha da janela ao lado da cama, atrela sua vida às folhas cada vez mais
escassas da planta: “Quando a última cair, partirei.”
A reação de Sue ao “decreto de morte” auto-imposto é ambígua. Para Johnsy,
diz não acreditar, “Nunca ouvi uma bobagem tão grande! – bradou Sue. – Que relação
pode haver entre as folhas de uma hera e a tua doença?” Entretanto, embora
racionalmente não estabeleça vínculo entre folhas e a vida, pede para Johnsy não olhar
para a janela. Ao conversar com Behrman, um velho pintor amigo das duas, expressa a
mesma preocupação de que “leve e frágil como uma folha, ela pudesse tombar quando
o seu fraco apego pela vida se extinguisse por completo.”
Behrman, o protetor das duas moças, por sua vez, reage de forma semelhante à
idéia, negando-a verbalmente: “Não acredito que uma pessoa morra só porque uma
insignificante folha caiu da planta!”, porém temendo sua realização.
A folha está presa à hera como a vida presente no corpo. Há uma referência
implícita à passagem inexorável do tempo quando as folhas se destacam lentamente
dos galhos. Johnsy atrela sua vida a uma folha como uma forma de significar sua
existência, já desprovida de significado, conseqüentemente re-significando sua própria
morte. Ao profetizar sua partida junto com a da folha vemos uma tentativa de “controlar”
a situação, apropriar-se da morte para lidar melhor com o imponderável mergulho no
escuro.
O que está em questão na alegoria da permanência da última folha durante a
geada, é a própria sobrevivência, o triunfo da saúde sobre a doença e da própria vida
sobre a morte. Seus amigos, Sue e Behrman, preocupam-se com a permanência da
última folha não porque ela efetivamente traga junto a morte de Johnsy, mas porque
quando ela fosse levada pelo vento estaria extinto o último laço de apego ao mundo.
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Todos sabem intuitivamente que a batalha só pode ser ganha se a própria Johnsy
quiser viver, mas ela mesma, com febre, “aceita” a morte: “Estou cansada de esperar e
pensar. Quero abandonar o apego a tudo e flutuar no espaço como uma daquelas
folhas transportadas pelo vento”.
Esse tipo de reação à doença, de aceitação da morte, nos casos de doentes
terminais pode facilitar a convivência com o inevitável desfecho, mas se há
possibilidades de cura, prejudica o tratamento, como explica o doutor: “A tendência que
determinadas pessoas manifestam em tomar partido da agência funerária contribui para
que toda a farmacopéia se assemelhe a uma adega de vinhos azedos. A sua amiga
persuadiu-se de que não se curará.” O reconhecimento disso pelo próprio médico
mobiliza Sue a tentar de tudo para que a amiga volte a se interessar pela vida.
O velho Behrman resolve o conflito. Quando só restava uma folha na hera e o
vento soprava com força durante a noite, no lugar onde estava a remanescente folha de
hera ele pinta uma nova, assegurando a permanência da esperança. Como em tantas
ocasiões, pode-se observar o penhor da vida, Behrman oferece sua pintura, sua
derradeira obra-prima, para que Johnsy possa viver. A vida de um velho pela de uma
jovem, a obra que Behrman sonhou pintar a vida inteira para que Johnsy volte a sonhar
a pintar a baía de Nápoles. Personificada em um ancião com dedos gelados, a
Pneumonia perde uma vítima em troca de outra, o velho Behrman é encontrado
inconsciente e encharcado no dia da geada forte e morre poucos dias depois no
hospital.
Parte II - Comentando Calvino
O estudo da Ciência impõe uma série de restrições, exige método, ordem,
protocolos a serem seguidos, raciocínios claros, demonstrações reproduzíveis em
qualquer parte do mundo, etc. Nos genuínos locais de produção de conhecimento há
espaço para especulações e momentos criativos que podem render descobertas
interessantes, mas sempre submetidas anteriormente ao rigoroso crivo do método
científico. A Literatura, por sua vez, trabalha no campo ficcional, sem compromisso com
uma suposta verdade, portanto mais livre para recriar a realidade. Em comum entre a
Ciência e a Literatura está a linguagem, postulado básico de comunicação. O texto
científico pode parecer bem diferente do texto literário em muitos aspectos, em sua
finalidade, formato e recursos utilizados, mas também se constitui numa narrativa. A
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narrativa científica é um discurso fundado numa visão de mundo capaz de lidar com
alguns dos problemas atuais, mas incapaz, como todas as outras tentativas de explicar
o mundo, sejam religiosas ou filosóficas, de abarcar toda a questão.
A leitura de textos literários fornece uma possibilidade única de ver uma situação
sobre diferentes perspectivas, visão essa com potencial de efetivamente mudar nossa
imagem do mundo. Para um médico, por exemplo, observar de fora junto com o
narrador a posição de outros médicos, de paciente e até de cadáver necessariamente o
faz refletir sobre sua prática. Numa profissão que lida com pessoas na situação em que
sua integridade física está ameaçada, a percepção do outro torna-se peça-chave da
atuação médica. Para essa compreensão, contribuem significativamente experiências
vividas ou tiradas do campo ficcional, já que nenhum tratado de Medicina por mais
comprido que fosse daria conta das infinitas possibilidades de reações humanas.
Na Faculdade de Medicina sobra espaço para as discussões sobre Ciência e
falta abertura para qualquer outra visão. Ao expandir a área de interesse para incluir a
Literatura um enorme salto poderia ser dado. Calvino inverte os papéis no trecho citado,
buscando na Ciência alimento para suas visões quando a Literatura não basta para
garantir que não está apenas perseguindo sonhos. Com essa sutil troca de palavras,
nos aponta um caminho a ser seguido. A Ciência beneficia-se de visões e a Literatura
pode despertar muitos sonhos.
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