PALESTRAS E MESAS REDONDAS Palavras para Saúde Ana Maria Machado Todo mundo sabe que a vida é muito frágil, uma chama tênue. Sujeita a ser apagada por qualquer brisa que sopre de mau jeito. Qualquer acidente ou doença nos lembra disso. Mas seria insuportável viver o tempo todo com a nítida lembrança dessa consciência. Então, embora sabendo, nos distraímos com outras coisas e vivemos a vida com prazer, aproveitando seus momentos variados, fabricando lembranças, sonhando possibilidades boas. Todo mundo sabe também que é horrível sentir dor. Mas como viver não dói o tempo todo, a gente toca para a frente e nem pensa nisso. A doença, porém, nos traz de chofre essas duas realidades: a consciência da mortalidade e a sensação da dor. Ou o medo – que , no fundo, é a mistura do eventual risco das duas coisas, em que não queremos nem pensar. Nesse momento, mais do que nunca, todos necessitamos de reforço emocional e afetivo, de uma armadura psicológica que ajude a agüentar o tranco. É aí que podemos ser muito amparados por coisas como o carinho, a amizade, um trabalho interessante, o convívio com a arte, alguma forma de espiritualidade, a percepção de fazermos parte da natureza. O ideal seria que muito antes e fora da doença já tivéssemos esses reforços, pois é muito difícil construí-los do nada, de um momento para outro, justamente numa hora de crise e carência. Do mesmo modo que fazer exercícios físicos ajuda a manter a saúde do corpo, os exercícios mentais e emocionais proporcionados por um convívio com a arte ao longo da vida contribuem para a saúde, entendida de modo mais amplo e integral, como qualidade de vida, e não apenas como a ausência de doenças. A arte está sempre nos oferecendo inesperadas possibilidades, potenciais saídas surpreendentes e alternativas para os labirintos em que nos encerramos. Se nos acostumarmos a explorálos e permitirmos que façam parte de nossa intimidade dentro do quotidiano, eles virão aflorar com naturalidade nos momentos de crise e necessidade. E quem não está acostumado a fazer em si esse espaço para abrigar as manifestações artísticas – seja em sua criação, seja em sua fruição – muitas vezes pode chegar a esse encontro exatamente no momento em que mais necessita, quando um problema de saúde expõe a própria vulnerabilidade. No entanto, nessas condições, o processo é mais difícil e muitas vezes necessita de solidariedade e apoio externo. Neste encontro, estamos reunindo muita gente que sabe disso por dentro, gente que se movimenta em seu dia-a-dia com as fronteiras onde se interpenetram os trabalhos com saúde e arte, com terapia e leitura, com a medicina e a narrativa ou poesia. Gente que tem muito a ensinar a todos nós. Sempre ouvi fascinada os relatos dessas experiências. Lembro, entre outros, o que acompanhei ao longo dos anos do que foi sendo desenvolvido, entre outros, pelo grupo de Rebeca Cerda no México, por Beatriz Quintela em Portugal e pela entusiasmada dedicação do pessoal do Hospital Jesus aqui no Rio, com a Biblioteca Viva, tendo à frente a nossa doutora Isabel Nunes. Em leituras, travei conhecimento com os trabalhos de Alida Gertsie em seus programas de Arte-Terapia na universidade de Hertfordshire na Inglaterra1, ou de Shaun McNiff com sua proposta de arte como medicamento, no Endicot College de Beverly, Massachusets. Menciono essas referências apenas como possível utilidade a quem quiser se informar. Mas, na verdade, não é disso que vou me ocupar diretamente nesta fala. Atendo-me ao tema proposto, que me convida a discutir Palavras e Saúde, preferi trazer à reflexão algumas considerações sobre a literatura – sobretudo poesia e narrativa – e sua ligação com o assunto que estamos discutindo. Com muito cuidado para evitar qualquer traço de charlatanismo, não vou me meter a falar do que não conheço. Por um lado, não pretendo me deter especificamente nas questões do estímulo à expressão e à criação, que tantos frutos tem dado em trabalhos terapêuticos concretos. Por outro, não tenho a pretensão de sugerir linhas de conduta para quem opera na outra ponta, estreitando o contato receptor dos pacientes com a literatura por meio de leitura direta para eles ou da facilitação de seu acesso à palavra escrita. Essas duas grandes vertentes estão aí, de pé, como um telhado de duas águas que nos abriga. Com certeza serão amplamente discutidas no encontro que agora inauguramos. Mas não é sobre elas que vou lançar meu foco. O que proponho abordar é outro aspecto da questão. Como escritora, há muito tempo, constatei que existe uma pergunta universal, que todas as platéias com que tive contato, em todas as latitudes, de todas as idades, imediatamente levantam quando têm a oportunidade de encontrar um autor. Se não for a primeira pergunta feita por qualquer público, é a segunda ou terceira. Tive que responder a isso em uma roda com velhos 1 Alida Gersie and Kancy King, Storymaking in Education and Therapy, Jessica Kingsley Publishers, Londres/ Estocolmo, 1990. numa aldeia sem eletricidade, no calor africano de Angola e, poucos meses depois, numa sala de aula com calefação, vendo a neve cair lá fora, entre crianças suecas. Em escolas públicas do interior de Mato Grosso, acessíveis por canoa, ou em pueblos indígenas no México, à sombra de um vulcão. Mas também em uma universidade inglesa ou em um seminário de especialistas em Osaka, no Japão. A pergunta pode vir formulada em termos adultos e letrados: “Como se desenvolve o processo de criação de um texto literário?” Mas também pode vir na linguagem bem simples das crianças. “De onde você tira idéia para inventar suas histórias?” A curiosidade é a mesma e é universal. Sinal de que a indagação assim levantada interessa a todo mundo, tem a ver com algo mais além de modismos passageiros ou traços culturais específicos de uma região. Achei que, se tentássemos aqui examinar esse processo mais de perto, poderíamos lançar um pouco de luz sobre as relações entre saúde e palavras. Começo lhes dizendo o que fui desenvolvendo como possível resposta a esta pergunta, ao longo da vida, quando ela me vem de crianças. Pergunto de volta : “E de onde você tirou a idéia para fazer essa pergunta? Do seu dedão do pé?” Os risos que se seguem nos lançam na primeira etapa da reflexão. “Não, tirou a idéia da cabeça, como todo mundo. Como as minhas histórias, como todas as histórias, como toda invenção, como toda a escrita. Todas as perguntas a gente tira da cabeça. E inventar histórias é só um jeito diferente de perguntar e sair experimentando possíveis respostas.” A partir daí, vendo que somos todos iguais, podemos ficar mais à vontade. O mistério é outro. É a forma admirável pela qual essas perguntas, respostas e idéias entram aí e como em cada cabeça se transformam em outra coisa, para depois saírem como idéias diferentes, para cada pessoa. E como, nesse processo, a literatura consegue essa feito incrível e misterioso: que mesmo saindo da cabeça de um único indivíduo, essas historias cheias de perguntas cheguem às cabeças e corações de tantas outras pessoas, às vezes até lhes dando a sensação de que são respostas e idéias especiais para cada uma delas, acertando no alvo de um destinatário único. Todos nós, leitores, conhecemos isso. É exatamente esse fenômeno que nos faz sermos apaixonados pela leitura – a possibilidade de um encontro com um autor que é nosso porta-voz, fala por nossos anseios e perplexidades, consegue verbalizar o que sentimos lá no fundo e não havíamos trazido à consciência de modo tão perfeito. Alguém que lança luz sobre um canto recôndito de nossa mente, que nunca mais será o mesmo após esse encontro. Então podemos passar a discutir os processos mentais. Os mecanismos cognitivos e expressivos. Como autora, posso tentar compartilhar então com os leitores a maneira como essas coisas se processam, na medida em que conseguimos ter alguma consciência delas, ao analisá-las com atenção. Tudo começa por uma percepção. Notamos algo no mundo em volta. Essa percepção – muitas vezes súbita, momentânea e inconsciente – no fundo é o repentino amadurecimento de uma soma de infinitas observações se somando, se multiplicando e interagindo no cotidiano. Uma fruta madura que cai de repente de um galho, com a brisa, mas levou um tempão até chegar àquele ponto, crescendo, ganhando corpo, juntando sumo, adquirindo peso. Marca a contribuição do presente, de um instante, um ponto da atualidade, na atuação constante do dia-a-dia sobre a mente (e vice-versa, da mente sobre o entorno a cada segundo da existência). O leigo às vezes só repara nessa centelha do momento e lhe dá o nome de inspiração, pensando nela como uma luzinha que se acende, súbita, com uma idéia. Mas se quisermos usar essa palavra, talvez seja muito mais útil pensar numa inspiração como parte da respiração – permanente, constante, marca de vida, momento anterior e posterior à expiração, permanente pulsação entre aproveitar o oxigênio que vai ser energia e expelir o veneno do gás carbônico – que o ambiente vegetal em volta, por sua vez, vai inspirar e devolver como oxigênio após a fotossíntese. Para dentro, para fora. Dois movimentos indissociáveis. Toda inspiração tem sua expiração correspondente. De certo modo, tudo que inspira um artista também o faz expirar um pouco. Constatação fisiológica e metafórica. A percepção, é pois, o primeiro movimento que desencadeia o processo da criação literária. E falo especificamente da literatura porque é o que nos ocupa, mas também porque outras artes, que têm um repertório de instrumentos, ferramentas e mecanismos próprios, menos compartilhados com uma atividade cotidiana como é a fala, podem com igual força brotar de uma manipulação da própria técnica, do exercício: o músico que alterna uma seqüência de intervalos ao dedilhar e descobre uma frase musical, o pintor que aproxima certas cores na palheta, o desenhista cuja mão risca traços prenhes no meio de um simples esboço, o dançarino que desenvolve um movimento inesperado a partir da justaposição de exercícios que fazia mecanicamente... Como o processo de exercício diário do escritor é de outro tipo, inteiramente diluído num cotidiano igual ao de todo mundo, em que expressão e comunicação se confundem, é preciso desenvolver um tipo especial de atenção, para não perder esses momentos deflagradores que em geral surgem no meio do dia-a-dia, e não de preferência num tempo conscientemente dedicado ao exercício para a criação, como muitas vezes é o caso com outras artes. Era a isso que Roland Barthes se referia ao dizer que o escritor padece de uma estranha doença – ele vê a linguagem. De qualquer modo, essa percepção marca o momento pelo qual o presente se manifesta e contribui para a criação literária. Mas temos uma noção de tempo mais espessa do que apenas o presente. Temos passado e sabemos que o temos. Individual, pessoal, mas também coletivo, histórico. Aí entra em cena o segundo movimento fundamental para a criação literária – o da memória. O das lembranças que cada um de nós tem e o da história que cada um de nós traz, feita do que os outros já nos contaram oralmente e nos deixaram de herança por meio da palavra escrita e das construções culturais em geral. Ao mesmo tempo, a memória desse passado nos incita e nos serve de modelo. Um escritor não tem que inventar a escrita a cada nova obra. Existe o alfabeto, existe uma tradição literária, existe toda a história da literatura, que ao mesmo tempo pesa e norteia, obriga a ser diferente e estabelece paradigmas. Um autor é também leitor, vive as duas pontas do diálogo, sabe do que gosta e não gosta nos textos lidos, intui suas afinidades e famílias, rejeita suas idiossincrasias. Tudo indica que, quanto mais leitor, melhores condições terá para ser bom escritor. E, como cidadão, sabe também onde se situa em sua história e sua cultura, como se posiciona diante da sociedade onde vive. Como indivíduo, conhece sua própria história, tangenciou a de outros, percebe o que quer guardar, o que não consegue descartar mesmo que queira. Em uma palavra, está inteiramente imerso em memória. Crescente a cada minuto que passa, com as novas impressões que retém. Um manancial inesgotável. Também essa vertente contribui para o processo mental de dar idéias e estimular a criação. Memória e observação constituem, pois, dois poderosíssimos componentes do mecanismo mental que leva a criar. Para completar a trança, falta mais uma. A vertente que não nos rodeia no presente nem é herdada do passado, mas a que aponta para o futuro. Tão importante que Ligia Fagundes Telles a destaca mais do que a observação, ao chamar seu belo livro de “Invenção e memória.” Porque no fundo é isso mesmo, invenção. Ou imaginação. Um vice-versa da memória. Lembranças do futuro. Que pode ser ou não ser. Mas porque pode, tem poder. Ou seja, toda a força dessa possibilidade, dessa latência pulsante. É o terreno onde se manifestam os sonhos, os desejos, os medos. O desespero e a esperança. O que ainda não aconteceu e pode até não acontecer, mas poderia... Poder puro, total, incubado. Indomável, incontrolável. Criador por excelência, ao sugar a percepção e a memória para instalar o universo do não-vivido, do jamais experimentado, e fundar as alternativas fecundas movidas pelo desejo, virtualmente guardadas dentro de cada um à espera do sol que as acenda, aqueça e ilumine. E ainda perguntam, como no verso de Drummond “Trouxeste a chave?” Constatados esses três tempos da criação, tecida na percepção do presente, na memória do passado e na imaginação de uma possibilidade futura, em geral paro por aí na resposta aos leitores curiosos diante da criação literária. Passo para outra pergunta. Para este auditório, porém, quero prosseguir um pouco mais. Para entender o funcionamento desse mecanismo e sua importância para o desenvolvimento humano e a saúde das pessoas individualmente, permito-me recorrer a Sigmund Freud. Desculpem-me se detalho muito a explicação que ele dá, mas considero que vale a pena acompanhar de perto o raciocínio do pai da psicanálise. Ele sempre foi fascinado pela criação artística, como um dos grandes mistérios do inconsciente, ao lado do trabalho dos sonhos. Interpretou detalhadamente e analisou a obra de artistas como Leonardo da Vinci, Michelangelo, Shakespeare, Goethe, Jensen, Ibsen, Dostoievsky, Schiller e muitos outros. Suas observações o levaram a formular uma hipótese brilhante sobre o papel fundamental que a literatura exerce para a espécie humana. Para Freud, os primeiros traços de imaginação criativa aparecem na infância e se expressam por meio de jogos e brincadeiras. Brincar é uma necessidade fundamental da criança, e a atividade preferida entre todas, aquele que permite criar um universo próprio, rearrumando os elementos do mundo de uma maneira nova, que cause prazer. E isso é muito sério, brincar é coisa séria, “O oposto da brincadeira não é ser sério, mas ser real”, nos diz ele. Porque a criança distingue perfeitamente seu mundo de brincadeira, imaginário, de mentirinha, faz-de-conta, por oposição a tudo aquilo que constitui a realidade. Sabe que existem vínculos entre eles, mas sabe muito bem que não são a mesma coisa. Seu mundo imaginário é investido de uma grande intensidade emocional, mas é claramente separado da realidade. Para Freud, todas essas brincadeiras de crianças são determinadas por um único desejo, que as ajuda em sua formação – o de crescer, ser grande. Um desejo natural, socialmente aceito, e que não é necessário esconder. Por meio da brincadeira, a criança alivia a carga pesada que a vida lhe impõe e pode se divertir e ter prazer. À medida que as pessoas crescem, porém, já não se entregam da mesma forma a esse prazer de brincar. Acontece, porém, que a coisa mais difícil que existe para a mente humana é desistir de um prazer já experimentado. Freud diz que ninguém o consegue, apenas fazemos uma troca. Em vez de uma renúncia, fazemos uma substituição. Assim, a criança que deixa de brincar se transforma em um adulto que devaneia ou fantasia. Mas esconde essas fantasias dos outros, se envergonha delas, as considera seu tesouro mais íntimo que não pode ser mostrado – talvez até por achar que só ele as tem. Com freqüência, são manifestações de desejos reprimidos e seus derivados, que só conseguem se expressar de forma muito distorcida. Sejam eles desejos eróticos ou de ambição. Se essas fantasias se tornam superpoderosas e excessivamente abundantes, estabelecem as condições ideais para que se instale uma neurose ou psicose – diz Freud. Constituem as precursoras mentais imediatas da maioria dos sintomas de que seus pacientes se queixavam e foram um dos atalhos que ele confessou ter utilizado para estudar a patologia. Mas ele lembra também que há um caminho em que elas não ficam trancadas dentro de um indivíduo, girando sobre si mesmas – é quando elas são vivenciadas por um escritor criativo, capaz de artificialmente separar seu ego, por meio de uma autoobservação, em vários egos parciais e, em conseqüência, personificar os conflitos correntes de sua própria vida mental como se estivessem acontecendo em vários heróis distintos. E, às vezes até, deixando um desses funcionar como espectador que assiste ao desenrolar das situações e comenta as ações e sofrimentos dos outros, Freud se desculpa se o mecanismo que descreve para essa criação parece muito complexo. Quando o descreveu por primeira vez, era muito inovador, uma ruptura. Porque com certeza todos nos reconheceremos no que ele descreve: Uma forte experiência no presente desperta num escritor criativo uma lembrança de uma experiência anterior (freqüentemente na infância) da qual agora se engendra um desejo que vai se realizar na obra criativa. Essa obra em si exibe vestígios da ocasião provocadora presente , mas também da velha lembrança. Se quisermos uma imagem, podemos ver esse processo como uma faísca no presente que se alimenta de um combustível passado e acende uma obra futura… Desse modo, um texto criativo, como um devaneio, é a continuação e a substituição daquilo que na infância era uma brincadeira, fundamental para o equilíbrio da mente humana. Mas só isso ainda não basta como explicação do processo. Se fosse só isso, não haveria diferença entre literatura ou arte e um devaneio ou uma fantasia. Resta um aspecto crucial nas palavras de Freud: examinar “por que meios o escritor criativo obtém em nós os efeitos emocionais que são despertados por suas criações”. Com essa observação, ele deixa para trás a discussão da fantasia e envereda pela questão dos efeitos poéticos. Se uma pessoa que não é artista deixasse de esconder suas fantasias e resolvesse comunicá-las a nós, não conseguiria nos dar prazer com suas revelações. Tais fantasias, quando as conhecemos, nos repelem ou, pelo menos, nos deixam indiferentes. Mas quando um autor criativo nos apresenta seus jogos ou nos conta o que nos inclinamos a tomar como seus devaneios pessoais, nós o recebemos como uma experiência que nos causa muito prazer, e que provavelmente nasce de muitas fontes confluentes. Como ele consegue isso é seu segredo mais íntimo. Trata-se de sua ars poetica essencial, que está na técnica com que consegue superar nosso sentimento de repulsa, que sem dúvida está ligado às barreiras que se erguem entre um ego e os outros. (…) O escritor suaviza o efeito de seus devaneios egotistas por meio de alterações e disfarces e, ao mesmo tempo, nos seduz com uma oferenda de prazer puramente formal – isto é, estética – na maneira pela qual nos apresenta suas fantasias. É um bônus de prazer, diz ele, uma forma de gozo gratuito que vem de presente, para permitir que fontes psíquicas mais profundas possam liberar um prazer muito maior. Essa é a função do prazer estético que nos dá a literatura, segundo Freud: liberar as tensões da mente para que sejamos capazes de fruir nossos próprios devaneios e fantasias sem auto-recriminações ou vergonha. Um papel fundamental para garantir a saúde emocional de cada um. Todos temos direito à literatura, portanto. Não apenas porque uma sociedade precisa de ter pessoas educadas para que progrida e cresça. Não é apenas uma questão de educação. É uma questão de saúde básica. Sem a literatura, caminhamos para uma sociedade doente. Absolutamente convencida disso, venho cada vez mais dedicando meus esforços à defesa desse direito. Recuso-me a ver a arte como um luxo elitista. Pelo contrário acho elitista é a pretensão de manter sua fruição reservada a uns poucos sofisticados e privilegiados, muitas vezes por meio de discursos superficiais, com freqüência até repletos de clichês politicamente corretos e demagogicamente sedutores na superfície, mas no fundo dolorosamente equivocados. Como insinuar que “esses livros de literatura não têm nada a ver com a realidade das pessoas.” De minha parte, considero a arte – e, por inclusão, a literatura – uma necessidade vital do ser humano e não aceito desculpas para que a população seja dela alijada. Nessa perspectiva, não engulo que certos equívocos que conduzem ao desrespeito a esse direito sejam desculpados de forma condescendente, apenas como mal-entendidos bem intencionados ou erros políticos. Vejo-os, antes, como fruto de uma atitude antiética, fruto de um egocentrismo tão voltado para si mesmo que não reconhece a urgência do outro. Com isso, nega à população a oportunidade de ter acesso a veredas interiores capazes de ajudar a transcender a insatisfação existencial inerente a toda a condição humana. Como todos nós aqui sabemos muito bem, é isso o que a literatura pode fazer por qualquer indivíduo – e tem feito pelos séculos afora. Impossível compactuar com mecanismos destinados a impedir esse encontro, que devia ser garantido na alegria e na pobreza, na alegria e na dor, na saúde e na doença. Para sempre. __________ Ana Maria Machado é escritora e membro da Academia Brasileira de Letras. Detentora de inúmeros prêmios, dentre eles o Hans Christian Andersen, a mais importante láurea em literatura para crianças e jovens, concedida pelo International Board on Books for Young People – IBBY – é autora, dentre outras obras, de Bisa Bia Bisa Bel, De Olho nas Penas, Do Outro Lado Tem Segredos, Menina Bonita com Laço de Fita, Os Canteiros de Saturno. Palavras e Saúde no Contexto da Relação Médico-Paciente e seu Desafio na Formação Médica Comentário sobre a palestra “Palavras e Saúde” de Ana Maria Machado Alicia Navarro de Souza Não posso iniciar um comentário às palavras de Ana Maria Machado sem me referir à sua ars poetica essencial que, tocando ao frágil herói que existe em cada um de nós, o convoca, a partir do efeito poético de suas palavras, a não perder a oportunidade de sair em defesa do que há de humano em cada um de nós, particularmente de nosso desamparo. Quem se aventura na experiência de sofrimento inerente à doença, ao risco de perda da saúde e da vida, ao limite da morte, se defronta com o desamparo inevitável da condição humana. De imediato, buscamos lidar com esse desamparo pelo alívio do sofrimento. O conhecimento surge logo em cena, como um Deus protético a nos salvar. E não raro aparecem graves e grandes problemas quando descobrimos que o conhecimento não é todo-poderoso, o sujeito que o produz, ou dele lança mão, tampouco o é, e o desamparo, a angústia da incerteza são raramente suportáveis. Não é preciso ser médico, estudante de medicina ou profissional da área da saúde para saber de que experiência de desamparo, angústia, frustração e sofrimento estamos falando. Mas, sem dúvida, os profissionais que buscam conhecimento e exercem seu ofício nesse campo da saúde se defrontam, cotidianamente, com a experiência de significar a promessa de cura, muitas vezes insustentável, inserida nesse cenário de exigências impossíveis. Não creio que seja preciso muito argumentar para dizer o quanto pacientes e profissionais da saúde podem se beneficiar da palavra poética. No entanto, o lugar da literatura, como em geral das ciências humanas e sociais, na formação e na prática dos profissionais de saúde, é muito complexo. Gostaria de contar um pouco desta história, contextualizando a resposta que me é possível diante da convocação solidária que me despertou o efeito poético das palavras de Ana Maria, falando do meu lugar de médica, psicanalista e professora, que há 25 anos exerce o desafio de ensinar a relação médicopaciente, objeto do campo conhecido por Psicologia Médica. Não é necessário ser psicanalista para apreciar o valor das palavras na relação entre as pessoas e, particularmente, na relação médico-paciente. Esta relação que se dá a partir do encontro entre alguém que experimenta um sofrimento, e que não pode dar conta dele apenas com seus próprios recursos, mesmo que ele não saiba disso, e um outro que detém um saber, que o coloca em posição de poder ajudar a quem está sofrendo, portanto uma relação marcada por uma assimetria intrínseca. Do encontro do desamparo com o saber nasce a possibilidade de relação entre dois sujeitos com múltiplas determinações. Da parte do paciente, ele detém um saber sobre sua experiência de doença, que sofre determinações de sua história de vida singular e de sua posição como sujeito social. Da parte do médico ou estudante, ele detém um saber sobre a doença, uma experiência de tratar de pessoas doentes, uma biografia e uma inserção na cultura como profissional e, de forma mais ampla, como sujeito social. Esta relação é portanto um campo intersubjetivo que possibilitará a construção de narrativas sobre o sofrimento, a doença em questão. A psiquiatria é a única especialidade médica onde falar e escutar é explicitamente considerado terapêutico. Isto se deve à influência da psicanálise, que nos fala da “cura pela palavra”, a palavra realizando-se como ato na transferência, referindose à psicoterapia como a mais antiga forma de terapêutica em medicina. Como nos disse Freud: As palavras, originalmente, eram mágicas e até os dias atuais conservaram muito do seu antigo poder mágico. Por meio de palavras uma pessoa pode tornar outra jubilosamente feliz ou levá-la ao desespero, por palavras o professor veicula seu conhecimento aos alunos, por palavras o orador conquista seus ouvintes para si e influencia o julgamento e as decisões deles. Palavras suscitam afetos e são, de modo geral, o meio de mútua influência entre os homens. Assim, não depreciaremos o uso das palavras na psicoterapia... (Freud, [1916 [1915]] 1976, p.29-30). No entanto, já na medicina clássica, as palavras do paciente eram algo que o médico buscava separar da essência das doenças, e na medicina moderna, com a racionalidade anatomoclínica (Foucault, 1977), as palavras têm progressivamente se tornado uma expressão pouco eficaz ou um frágil reflexo da linguagem dos órgãos e tecidos e suas alterações patológicas, portanto pouco valorizadas pelo médico na sua investigação sobre a doença. Também Freud apontou com clareza o abismo entre as operações de conhecimento na medicina e na psicanálise: o ver e o escutar. Na formação médica os senhores estão acostumados a ver coisas. Vêem uma preparação anatômica, o precipitado de uma reação química, a contração de um músculo em conseqüência da estimulação de seus nervos. Depois, pacientes são demonstrados perante os sentidos dos senhores: os sintomas de suas doenças, as conseqüências dos processos patológicos e, mesmo, em muitos casos, o agente da doença isolado. [...] Na psicanálise, ai de nós, tudo é diferente. Nada acontece em um tratamento psicanalítico além de um intercâmbio de palavras entre o paciente e o analista (ver Freud, [1916 [1915]] 1976, p.28-29). Evidentemente, os saberes emergem, se difundem e se instituem em maior ou menor grau, na medida em que respondem a certas demandas que se ordenam no espaço social, determinando mudanças significativas nas práticas sociais nesse cenário sempre dinâmico. Após a II Guerra Mundial, com as novas concepções de cidadania e saúde, passando a saúde a ser um direito de todos e um dever do Estado, a questão da promoção da saúde e bem-estar social emerge com maior destaque. Surge, nessa época, a Organização Mundial da Saúde, que não define a saúde negativamente, mas a define muito além da “vida no silêncio dos órgãos” (Leriche apud Canguilhem, 1978, p.67), numa concepção muito mais ambiciosa: “A saúde é um estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não consiste somente em uma ausência de doença ou enfermidade” (OMS). Na década de 1950, a função psicoterápica na relação médico-paciente ou o poder terapêutico das palavras reconhecido por Freud ganha maior difusão entre os médicos, com o trabalho pioneiro do psicanalista húngaro Michael Balint, em resposta à demanda social constituída por clínicos gerais ingleses, que apontavam a insuficiência da formação médica com relação à grande demanda de doentes funcionais. Balint, considerando que “a droga mais freqüentemente utilizada na clínica geral era o próprio médico”, parte para uma proposta interdisciplinar de estudo da “farmacologia da substância médico,” empreendendo uma investigação-treinamento das possibilidades de aplicação da teoria psicanalítica no campo dinâmico da relação médico-paciente. Com o objetivo de estudar e desenvolver a função psicoterápica dos clínicos gerais em sua relação com seus pacientes – no interjogo das “ofertas” dos pacientes e das “respostas” dos médicos – Balint centrava-se na contratransferência dos médicos, ou seja, no “modo como o médico utiliza sua personalidade, suas convicções, seus conhecimentos, seus padrões habituais de reação, etc.” (Balint, 1975, p.255). Nas décadas de 1950 e 1960, nas escolas médicas americanas, psiquiatras de orientação psicanalítica e cientistas sociais pesquisavam e ensinavam o interjogo dinâmico dos fatores psicológicos, sociais, culturais e biológicos na saúde e na doença e no cuidado aos pacientes. São também desse período os estudos clássicos sobre o processo de socialização através do qual estudantes de medicina se transformam em médicos, assim como estudos críticos sobre o hospital como organização social e sua repercussão nas relações entre profissionais de saúde, pacientes e familiares, com ênfase no poder médico e a conseqüente desumanização, assujeitamento ou objetificação do doente implicada em seu exercício. No Brasil, a disciplina de Psicologia Médica dedicada ao ensino da relação médico-paciente foi introduzida pelo Prof. Danilo Perestrello, psiquiatra e psicanalista que, de forma pioneira, ainda nos anos 1950, na Faculdade de Medicina da UFRJ, institucionalizou este desafio. A Psicologia Médica, tendo como objeto o campo dinâmico da relação médicopaciente, é uma prática interdisciplinar institucionalizada, na qual se encontra permanentemente colocado o desafio de se manter em tensão o saber sobre a doença e o saber sobre a relação com o doente, o que só é possível quando, na clínica, o médico ou o estudante vivencia a experiência de incompletude do modelo médico ao exercer a função médica no caso singular. Tem que haver a dúvida, a experiência de incompletude em relação ao saber médico, para que se crie um espaço para um outro saber. Na década de 1980, a difusão da psicanálise na cultura, a organização do trabalho médico e as práticas em um hospital universitário, para citar apenas alguns determinantes da função socialmente construída do médico, assim como do psicanalista, possibilitavam uma maior valorização da experiência vivida pelo paciente e seu médico no lidar com adoecimento, assim como um maior diálogo entre médicos e psicanalistas em instituições médicas. A experiência cotidiana, quer nas enfermarias clínicas, quer na sala de aula, foi se transformando ao longo desses anos. Até um passado não muito remoto poderíamos dizer que, predominantemente, a função médica tinha seu sentido na resposta ao sofrimento de um doente, o que indicava algo para além do valor da eficácia de um saber sobre as doenças. Sabemos que a prática clínica implica um sofrimento que requer alguma estruturação defensiva por parte dos médicos. Sabemos também que algumas pessoas podem, por razões de sua estrutura defensiva, ser capazes de uma eficiente negação do sofrimento do paciente. Podemos ainda supor, no ato médico, uma realização restrita à aplicação de um conhecimento sobre a doença, com a obtenção de resultados no nível estritamente biológico e corporal, pois, evidentemente, o exercício de um saber traz alguma realização narcísica. Mas tudo isso não é suficiente e acreditamos ser necessário considerar a presença de um determinismo de outra ordem, que opera no discurso e no exercício da prática social da medicina, ao buscarmos compreender como as palavras do paciente têm sido cada vez mais desvalorizadas, sendo o paciente progressivamente silenciado, de forma a tornar-se, para o médico, uma existência quase virtual. Em nosso país, a partir dos textos de Muniz e Chazan (1992), Eizirik (1994), Zaidhaft (1997) e Souza (2001a), professores de Psicologia Médica de três instituições públicas de ensino médico de nosso país, poderíamos dizer que há uma crise nesse campo onde o professor se confronta com os alunos quase cooptados por um pragmatismo, que exclui qualquer outro valor que não o da eficácia da ação e desconsidera o valor de verdade no discurso, como desconsidera o valor da palavra. Nos últimos tempos, o desenvolvimento tecnológico tem permitido uma instrumentalização do ato médico que, associada à ilusão muito presente em certos meios pragmatistas e positivistas de que os fatos falam por si sós, acarretam uma desvalorização mais intensa da atividade de interpretação dos sujeitos implicados na prática clínica. A oposição subjetivo/objetivo é tomada como uma oposição exclusiva, e o campo da prática médica é reduzido a um conjunto de relações necessárias, de tal forma que o singular, o contingente, o histórico, apesar de estarem sempre a instigar, não encontram facilmente um espaço de reflexão. Na última década, identificamos na literatura médica a valorização da narrativa na discussão de aspectos éticos e epistemológicos do método clínico e sua transmissão na formação médica. A importância da narrativa na literatura médica atual faz-se possível em função da tensão estruturante doente/doença inerente à prática médica (Souza, 2001 b). Greenhalgh (1999) nos introduz na medicina baseada na narrativa, enfatizando como o método clínico no caso individual refere-se à interpretação contextualizada de uma história e a evidências pertinentes. As “verdades” estabelecidas pela observação empírica de populações em ensaios controlados randomizados e estudos de cohorte não podem ser mecanicamente aplicados a pacientes individuais. A medicina baseada na narrativa, postula esta autora, deve complementar a medicina baseada em evidência pois, no caso particular, as evidências são sempre parte de uma história construída, portanto, uma interpretação, a partir de diversos elementos, inclusive elementos contextuais. Este importante trabalho, publicado no conhecido periódico British Medical Journal, onde Greenhalgh desenvolve sua compreensão sobre o que seja o raciocínio clínico e suas múltiplas determinações, ilustrada através de um caso clínico, entre outros aspectos, pode contribuir para discutir o estatuto ambíguo dado às palavras dos pacientes na prática e formação médicas. Ao mesmo tempo em que os estudantes ouvem de seus mestres “escutem o seu paciente ... escutar o paciente é fundamental ... o paciente está lhes dando o diagnóstico”, percebem também a atitude cética que desconfia das informações dadas pelo paciente, diminuindo o valor de seu relato, de suas palavras. Os alunos algumas vezes chegam a “corrigir” ou a “serem corrigidos” por seus instrutores quanto ao conteúdo da queixa principal, único espaço “oficial” ou institucionalmente alocado às palavras do doente na anamnese. A narrativa é a arena em que médicos e pacientes discutem os significados da doença e seu tratamento na vida do doente, portanto o diagnóstico, o prognóstico e a terapêutica com implicações na tão atual problemática de adesão a tratamento. Como nos dizem Clark e Mishler (2001), “contar a história não é importante somente para o paciente; é essencial para a eficácia com que os médicos podem realizar suas tarefas clínicas”. A centralidade da narrativa no trabalho médico tem propiciado importantes contribuições de professores de literatura para a medicina. A ética narrativa vem ganhando maior relevância na medida em que cresce a insatisfação com a ética baseada em princípios – autonomia, beneficência/não-maleficência e justiça – que, de modo analítico, aplica estes princípios universais a casos particulares visando à solução de dilemas éticos. A ética narrativa, partindo do caso particular, considera os princípios da ética médica analítica como valores ideais inerentes ao contexto cultural do caso, e não como princípios absolutos a serem aplicados. Como nos diz Jones (1999): Na sua forma ideal, a ética narrativa reconhece a primazia da estória do paciente, mas encoraja que sejam ouvidas as múltiplas vozes com suas múltiplas estórias de todas as pessoas cuja vida estará de algum modo implicada pela resolução do caso. Paciente, médico, família, enfermagem, amigos, assistente social, por exemplo, podem compartilhar suas estórias num coro dialógico que pode oferecer a melhor chance de respeitar todas as pessoas envolvidas no caso. Por fim, identificamos na literatura médica um movimento pedagógico que nos parece próximo da Psicologia Médica como a compreendemos. Em 1994, cerca de um terço das escolas médicas dos Estados Unidos tinham em seus currículos cursos de Literatura e Medicina, a maioria sendo oferecida nos anos pré-clínicos, como parte do currículo obrigatório ou como módulo eletivo, em geral, integrando o ensino de medical humanities (humanidades médicas) que contempla estudos em filosofia, história, direito, religião, etc. (Charon e cols., 1995). Em 1998, o ensino de Literatura e Medicina já havia se expandido para 74% (93/125) das escolas médicas americanas (Association of American Medical College’s Curriculum Directory 1998/1999 apud Charon, 2000), indicando claramente sua importância institucional no ensino médico. Com o estudo da literatura pretende-se desenvolver a “competência narrativa”, aumentar a tolerância à incerteza da prática clínica e propiciar a atenção empática a pacientes. Por competência narrativa os autores definem a capacidade de adotar outras perspectivas, de seguir o encadeamento de histórias complexas, por vezes caóticas, tolerar ambigüidade e reconhecer os múltiplos, freqüentemente contraditórios, significados dos acontecimentos vivenciados pelas pessoas. Participam do ensino doutores em literatura e doutores em medicina, fortemente interessados na contribuição da literatura à prática clínica, sendo esse trabalho conjunto, na opinião dos autores, a estratégia ideal para todas as iniciativas no ensino das humanidades no curso médico (Hunter e cols, 1995). Os autores consideram como um dos elementos mais importantes, ausente nos cursos de graduação de literatura, assim como nas outras disciplinas do curso médico, a exploração explícita das associações e respostas emocionais dos leitores suscitadas pela leitura de textos literários. A partir do texto, propicia-se que os estudantes discutam percepções, crenças e valores. Greenhalgh e Hurwitz (1998) recomendam vários textos literários e indicam uma base de dados em Literatura e Medicina mantida pela New York University School of Medicine, cujo endereço fornecem: http://endeavor.med.nyu.edu/lit-med (Cf. pp.273-278). Os autores, em geral, enfatizam fatores que contribuem atualmente para uma prática médica impessoal, entre eles, a especialização e a “tecnologização” da medicina, o mercado de trabalho e a revolução da informática, para sugerirem contextualmente a emergência da narrativa na prática médica com um valor de humanização. Entre nós, em 1987, Zaidhaft (1990) e Spitz introduziram o uso de textos literários na avaliação dos alunos na disciplina de Psicologia Médica. Selecionaram textos das obras A morte de Ivan Ilitch de Leon Tolstoi e Uma morte muito suave de Simone de Beauvoir, que nos falam da experiência do adoecimento, da proximidade ou da antecipação da morte e das relações vividas entre enfermo, familiares e médicos. Analisando a experiência pedagógica, os professores sublinham a originalidade, a criatividade nas respostas dos alunos, que não teriam se limitado a escrever “simplesmente o que imaginaram que o professor gostaria de ler”. Tendo em mente seu auditório, Zaidhaft explicita “as questões inevitáveis: o que tudo isso tem a ver com medicina? Filmes, romances, respostas originais?” Ele nos responde que a possibilidade de narrativas sobre como os médicos são vistos por pacientes e seus familiares e como as decisões médicas repercutem na vida das pessoas teriam o objetivo de contribuir para a reflexão crítica dos alunos sobre sua prática e de preservar a sensibilidade, a capacidade de perceber a si próprios e a seus pacientes como seres humanos (Cf. Zaidhaft, 1990, 143-149). Certa vez, uma aluna do 3º ano do curso médico, num trabalho sobre sua experiência ao tratar de um paciente terminal, escreveu ao seu professor da disciplina de Psicologia Médica: E vou dizer também que ando um pouco triste e, em parte, é devido à falta de ficção na minha medicina, construída ultimamente apenas com livros técnicos; e que esta falta me é tão grave quanto a falta de sódio ou potássio num organismo, e que, além de querer para mim, quero aumentar a carga circulante dessa delicadeza em algumas pessoas, as que sei possuírem receptores centrais e periféricos para estas partículas inofensivas. Ao apreciarmos o que vem sendo desenvolvido por médicos e professores de literatura, nos campos por eles cunhados de medicina baseada na narrativa, ética narrativa e literatura e medicina, precisamos ter em perspectiva o poder das palavras e as palavras do poder, cuja dialética é sempre presente na constante problemática da hierarquização de valores na prática e formação médicas. É preciso dar voz. Voz aos pacientes, aos estudantes, aos escritores, aos médicos, enfim a tantos anônimos ou famosos que, num coro dialógico, possam viver, cuidar, adoecer e amparar no morrer, pois afinal “Todo mundo sabe que a vida é muito frágil, uma chama tênue. Sujeita a ser apagada por qualquer brisa que sopre de mau jeito”, como nos disse com suas palavras poéticas Ana Maria Machado. Referências bibliográficas BALINT, Michael. O médico, seu paciente e a doença. Rio de Janeiro, Atheneu, 1975. CANGUILHEM, Georges. O normal e o patológico. Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1978. CHARON, Rita. et al. Literature and medicine: contributions to clinical practice. Annals of Internal Medicine 122(8):599-606, 1995. CHARON, Rita. Literature and medicine: origins and destinies. Academic Medicine 75(1):23-27, 2000. CLARK, Jack A. & MISHLER, Elliot G. Prestando atenção às histórias dos pacientes: o reenquadre da tarefa clínica [1992]. 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