A INTERDISCIPLINARIDADE E A ESTAÇÃO GERADORA Letícia Parente A solução de um problema é sempre transdisciplinar, tem que ser uma síntese que tenha a contribuição de todas as disciplinas, e que até eventualmente pode privilegiar a presença mais de uma do que de outra. Por exemplo; como fazer com que a população receba água potável? Para resolver esse problema nós vamos chamar o engenheiro sanitário, o biólogo, o químico, o físico, o geólogo, o geógrafo, o economista, o administrador. Vai-se criar uma equipe interdisciplinar para descrever o problema da água em todos os seus aspectos, a problemática da água vai ficar exaurida, bem descrita e bem nítida em todos os seus detalhes. Até agora, foi como um exercício de interdisciplinaridade para descrever o problema de como levar a água à população. Mas na busca da solução, vai se chegar à conclusão que, na superação do problema da água, vai se necessitar vontade política, enfim, as saídas técnicas já estão colocadas. Então aí, se o decisor vai começar a colocar água na favela, ou se vai tratar a água da favela, ou se vai colocar mais uma usina d’água para cidade do Rio de Janeiro, é a prática ou a teoria política que vai ficar importante e mais fundamental na resolução do problema da água do que propriamente a ciência do físico, do químico ou do geólogo. Nesta busca de solução vamos convocar as disciplinas com toda a contribuição que elas tragam, mas teremos que privilegiar determinadas áreas, para chegar a uma síntese. Estou chamando a solução do problema de síntese final. Este tratamento exposto, como exemplo de interdisciplinaridade, é apenas uma proposta para discussão. Bachelard tem frases maravilhosas a respeito do conceito de problema, em que ele mostra que o problema é o foco cientista, é o foco da atenção e preocupação do cientista, da cidade do cientista, é o problema que mobiliza a dinâmica de criação. E não é à toa que nós estamos chegando a um determinado tipo de ciência como a bioquímica, a computação etc. Iremos usar cada vez mais as manifestações do conhecimento científico, oriundas de novos problemas, que serão necessariamente interdisciplinares; acredito que seja difícil nós retornarmos àquelas fronteiras muito rígidas, de absoluta especialização. Inclusive, se nós formos verificar as teses de mestrado e doutorado neste país, atualmente, dificilmente vamos encontrar, hoje, alguma tese que seja monodisciplinar. Sobre as questões da Estação Geradora eu vou chover no molhado, porque é óbvio que essas estações não podem ser ligadas ao limite disciplinar. Por exemplo, vamos tomar a Estação Geradora que nós chamamos de “campo”. Em nosso trabalho, ela é observada, examinada e questionada sob vários ângulos. Voltando para trás, bem para trás, nos primórdios de classificação dos elementos, vamos encontrar a terra, a água, o ar e o fogo que tomaremos como ângulos de referência. Em torno do “campo” nós encontramos esses quatro “elementos”. Em torno da terra temos problemas de várias ordens, o problema da história, dos antecedentes locais, quem chegou ali primeiro, de onde é que vieram as pessoas, como aquilo pertenceu a quem... As questões econômicas, a forma de propriedade, os salários, o regime de trabalho, as questões culturais, que tipo de brincadeira, de folguedo, que tipo de alimentação, de religiosidade; a ligação da cultura com a economia, esta com a saúde, que é conseqüência das duas. Mas a terra tem um substrato físico que é o solo. Então, um recorte do estudo da terra seria a construção do solo, a vida, os animais, as plantas etc. Ainda poderíamos puxar o aspecto geológico da terra, chegar aos minérios, e daí partir para a indústria, artesanatos, mineração, produção de bens. Entre a terra e a água nós encontraríamos: lixo, esgoto, que são coisas que estão também presentes ali, naquela vinculação. Passando para água, teríamos o estudo de recursos hídricos, a preservação desses recursos, o tratamento, a utilização, as propriedades da água; ligando a água com a energia, teríamos as hidroelétricas, com imersões na área da eletricidade e da energia. Lá em cima no ar, nós teríamos o ciclo do gás carbônico, do oxigênio, do hidrogênio e a relação espaçotempo onde, por fim, nós chegaríamos. Se vamos localizar o “campo”, ou saber aonde nós estaríamos, olharíamos para o céu e veríamos as estrelas, e passa-se para as relações externas fora do ambiente da terra. Já se vai pensar nos movimentos do sol, as estações que estão fundamentalmente ligadas às safras, às culturas sazonais, ao rodízio das plantas e dos animais dentro do contexto da astronomia. Pode-se também puxar para o lado da energia todo o outro rendilhado da teia, onde estariam as formas de energia: mecânica, térmica, elétrica, química. Os fatores de energia: capacidade, intensidade. Também aí o sol como fonte de energia, e todos os recursos energéticos que venham através do sol: a biomassa, células solares etc. E puxando mais por aí, nós vamos chegar ao fogo que está presente nas queimadas, nas casas. Passaríamos à combustão, ao controle de fogo (porque acontecem as queimadas?), à preservação das matas, questões ligadas ao calor e à temperatura. Tudo entra de roldão nessa Estação Geradora. Finalmente, a vida, manifestada através das trocas, das transformações e dos desdobramentos, está presente em todo local que se vasculhe dentro deste tema. Dificilmente, nós vamos marcar aí alguma coisa que não seja interdisciplinar. Vamos para um contexto menor, vamos para um recorte chamado “água”, aí também dificilmente vamos escapar à interdisciplinaridade. Então, se por exemplo, pegarmos as propriedades da água, ponto de ebulição, calor específico, chamaríamos a físico-química; se olharmos para a utilização da água como solvente, na lavoura, atendendo aos hábitos higiênicos, como alimentos; ou se pensamos como fonte de energia, de lazer com a natação, o surf e windsurf, nossa “árvore” de assuntos se estenderia sem fim. A água embora de vasto uso industrial, não perde seu aspecto mítico. Dentro da cultura brasileira é um dos elementos mais religiosos presentes na igreja católica, ou outras religiões e crenças. A maioria dos rituais no Brasil está envolvida com a água. Ontem eu disse a mim mesma: “Não sei por que quando eu paro para pensar um assunto de estudo, a primeira palavra que eu escrevo é água". Alguém disse: “E porque você é baiana!”. Temos, do ponto de vista cultural, místico e mítico, uma ligação com a água que é fortíssima. Aliás, essa é também uma característica da América, do novo mundo. Ë freqüente, em filmes americanos, aparecer uma pessoa tomando banho, ao passo que em filmes europeus não há essa coisa de banheiro ou alguém tomando banho. No Brasil, há sempre alguém no restaurante ou na cama, mas com americanos há sempre alguém no banheiro. As qualidades da água pura, potável, poluída; a pureza; a água medicinal, a água mineral para bebida. Alguma coisa ligada às origens, nas fontes, nascentes, rios, lagos, mar e chuvas. E ainda a chuva, que é uma coisa profundamente ligada, também, a nossa cultura, de norte a sul do país, onde se vive em torno da seca e da inundação. E haja vista que um dos melhores projetos de ensino de ciências para o primeiro grau, que vem sendo feito no Brasil, da Marta Pernambuco, no Rio Grande do Norte, escolheu como primeiro tema de trabalho a água. Explorando, ainda, o quadro da “Estação Geradora”, na região dos conceitos entre o ar e a água, situamos a umidade relativa e absoluta, que é uma coisa dificílima das pessoas entenderem, mas que é necessária, até para se conservar uma lata de biscoito. As questões do mofo, das pragas, também estão ligadas à umidade. Finalmente, a parte do tratamento da água, a estocagem e a distribuição que no fundo está ligada a princípios importantes como gravidade. Então, não há quase nada que seja só de uma disciplina, e a estação geradora nos permite conviver com a interdisciplinaridade e com o quotidiano de qualquer um de nós, mas, sobretudo, do professor e do aluno. Contudo, ninguém vai achar que vai resolver esse problema com facilidade. É complicado lidar com a formação primária, a formação secundária, a formação universitária, pois toda ela é fragmentada, particularizada, especializada. Os químicos, dos Departamentos universitários de Química, se encrespam quando nós dizemos que no 1º grau, de 5a a 8a, não se pode tripartir o professor de ciências no de Química, Física e Biologia. Tem que ser um professor que embora oriundo da Química, da Física ou da Biologia, se proponha a interdisciplinarizar para poder tratar da árvore. Pois o aluno vê árvore, ele não vê a Biologia, a Química, e nem a Física da árvore, ele vê a árvore, sobretudo a criança do 1º grau. Então, é um absurdo nós forçarmos essa segmentação. Porque aí nós estamos servindo falsamente às ciências e estamos desservindo certamente à criança. Aliás, a própria ciência está aclamando por sair dessas gavetas, e já saiu há muito tempo. Só que as pessoas não se deram conta que não estão mais naquela posição. Quem não se deu conta está morto. Letícia Tarquínio de Souza Parente foi mestra em educação pelo IESAE-FGV, livre-docente em Química pela UFRJ, professora de Química da PUC_RIO e presidiu o Centro de Ciências do estado do Rio de Janeiro (CECIERJ) até o final do 1º semestre de 1991. Publicou, em 1990, Bachelard e a química: no ensino e na pesquisa, pela editora da Universidade Federal do Ceará. Este texto foi preparado para ser discutido com professoras primárias que participavam do projeto de formação em ciências oferecido pelo CECIERJ, no início dos anos 1990. Trata da “estação geradora”, uma espécie de tema/síntese disparador de uma série de problemas, questões, assuntos, conhecimentos, objetos de estudo que se abrem para que diferentes campos do conhecimento ou disciplinas possam contribuir para esclarecê-los, aprofundá-los.