FILOSOFIA PARA CRIANÇAS: QUAL PRÁTICA DE ENSINO? Leila Gerlach Riger – UERJ UM COMEÇO... A Filosofia que esteve por muito tempo – tempo do cronos -, afastada das crianças e que após 1960, com Matthew Lipman, foi apresentada para as crianças, agora – tempo do aión -, está entre e com as crianças. As crianças brasileiras tiveram acesso ao programa “Filosofia para Crianças” em 1980. O programa é feito de uma reconstrução, no formato de novelas, da história da Filosofia, nas quais as personagens envolvidas são geralmente crianças, e de manuais para os professores-mediadores conduzirem os diálogos. As crianças se reúnem em círculo, o que Lipman nomeia de Comunidade de Investigação (C.I.); promovem a leitura de acordo com a dinâmica pré-estabelecida e na seqüência iniciam a discussão a partir do que mais lhes chamou a atenção no capítulo lido. Não há uma obrigatoriedade de temas mesmo que o manual do professor traga as idéias principais dos capítulos. Essa estrutura básica garantiria que as crianças desenvolvam as habilidades cognitivas de investigação, organização da informação, tradução e raciocínio. Com o programa de “Filosofia para Crianças” Lipman persegue um ideal de educação democrática e o pensar de “ordem superior”, mas deixa claro: é apenas uma proposta de como deveria ser uma educação filosófica. Parece que finalmente Wittgenstein se fez ouvir: “A filosofia não é uma doutrina, mas uma atividade”. Ou seja, a Filosofia, (que faz por merecer ser escrita com letra maiúscula), não é um conjunto de princípios que servem de base a um sistema seja ele qual for, e, se assim fosse, as crianças não se interessariam por ela, tal como acontece onde ela é tratada como disciplina com conteúdo a cumprir. Assim os “professores” de Filosofia passam a ter mais liberdade para serem parte do grupo pensante, investigadores e não alguém que informa, repassa conhecimento. Podem agir como amantes apaixonados, e ter a Filosofia como o objeto de desejo - que lhes foge a cada aproximação. Partindo da idéia de que não é possível ensinar Filosofia como dizia Kant, 2 e sim ensinar a filosofar, o tratamento dado à prática de ensino de Filosofia mudou radicalmente, passou a insinuar-se como possível. Essa forma de conceituar a Filosofia é resultado de pesquisa de iniciação científica, cujo título foi “Filosofia Para Crianças: um projeto norteador de um programa para o pensar” (Pibic/CNPq), no qual conhecemos o Programa “Filosofia para Crianças”, através das obras de Matthew Lipman e cursos no Centro Brasileiro de Filosofia para Crianças. Outro resultado foi a urgência de algumas adaptações no material e mais autonomia no uso dos manuais do professor. Tal necessidade ficou evidente após observarmos as atividades e efetiva aplicação do programa e compararmos com as teorias de que Lipman partiu. Impõe-se então o momento de desconstrução, da novidade. E se... Possibilidades. Esse novo sentido da prática educativa fez-se provocante ao nosso pensamento. “Nossa, nosso”: daqueles que planejam o filosofar como o único objetivo da Filosofia, como sentido do que está sendo procurado. A procura é tudo o que se quer encontrar, quando o filosofar está em movimento já não se busca, se encontra. Encontro que promove agenciamentos rizomáticos e jamais arbóreos. Não há um ponto final no filosofar, há várias exclamações, interrogações, e, sem aqui dar valor apreciativo, mas como ápice, muitas, muitas reticências. As certezas são bem vindas desde que estejam inquietas e enrubescidas. RELATO DE UMA EXPERIÊNCIA... Propulsionados pelo conceito de Filosofia como atividade, mais exatamente pelo “filosofar”, procuramos, atualmente, através de outra pesquisa em andamento, pensar materiais e recursos que atendam a infância, – salvaguardando todas as reservas e respeito que esse conceito merece-, e que sejam compatíveis com a teoria de Lipman de que crianças podem filosofar sobre qualquer assunto, independente de idade. Foram feitas algumas tentativas com recursos da cultura da literatura brasileira, dentre outros, o que nos levou, como veremos, a um novo questionamento na pesquisa. Para elucidar essa tentativa, segue o que chamaremos precipitada e irresponsavelmente de “uma experiência”. Foram distribuídos entre alunos de duas turmas das 2ª séries do primeiro segmento do Ensino Fundamental e para cinco turmas de 5ª séries do segundo segmento do Ensino 3 Fundamental, para grupos de quatro a seis componentes em Comunidade de Investigação (C. I.) cada qual na sua hora–aula de Filosofia, os fragmentos dos poemas de Manuel de Barros de “Exercício de Ser Criança”: Fragmento 1: No aeroporto o menino perguntou: --E se o avião tropicar num passarinho? O pai ficou torto e não respondeu. O menino perguntou de novo: -- E se o avião tropicar num passarinho triste? A mãe teve ternuras e pensou: Será que os absurdos não são as maiores virtudes da poesia? Será que os despropósitos não são mais carregados de poesia do que o bom senso? Ao sair do sufoco o pai refletiu: Com certeza, a liberdade e a poesia a gente aprende com as crianças. E ficou sendo. Fragmento 2: A mãe reparou que o menino gostava mais do vazio do que do cheio falava que os vazios são maiores e até infinitos. Fragmento 3: Com o tempo aquele menino Que era cismado e esquisito Porque gostava de carregar água na peneira Com o tempo descobriu que escrever seria o mesmo que carregar água na peneira. A mãe falou: --Meu filho, você vai ser poeta. Você vai carregar água na peneira a vida toda. Você vai encher os vazios com as suas peraltagens. E algumas pessoas vão te amar por seus despropósitos. 4 Fragmento 4: No caminho, antes, a gente precisava de atravessar um rio inventado. Na travessia o carro afundou e os bois morreram afogados. Eu não morri porque o rio era inventado. a) Caminhos da experiência: 1ª) Foi solicitado aos grupos que os componentes lessem o fragmento recebido. Obs: Os alunos-investigadores após lerem os fragmentos iniciaram voluntariamente a C. I. em seus grupos. 2ª) Os alunos-investigadores foram convidados a constituir a C.I. em turma. 3ª) O facilitador inicia a C. I. perguntando para os grupos o que os fragmentos discutidos fizeram pensar – independente dos demais grupos saberem do que o fragmento comentado tratava. PENSAMENTOS OU PÉROLAS DA EXPERIÊNCIA DA COMUNIDADE DE INVESTIGAÇÃO... Comunidade de Investigação das 2ª séries dos grupos que discutiram o fragmento 1: “A poesia parece que é como a Filosofia... porque eu penso que é a Filosofia que fala de coisas absurdas!”; “O menino está filosofando porque ele está perguntando coisas que a gente não costuma perguntar!”; “Será que se o menino não estivesse em um aeroporto ele teria essa curiosidade?”; “Por que quando ele perguntou novamente “ele” falou que o passarinho estava triste?”; “Por que o pai e a mãe não responderam a pergunta do filho?”. Comunidade de Investigação das 2ª séries dos grupos que discutiram o fragmento 2: “Penso que o menino estava com um balão vazio na mão...”; “O menino devia estar sem dever na agenda para falar isso...”; “O vazio sempre é maior porque se a gente não coloca nada dentro dele não sabe quanto cabe...”; “Eu penso que o infinito não existe porque eu nunca vi nada que é infinito”. Comunidade de Investigação das 2ª séries dos grupos que discutiram o fragmento 3: 5 “O grupo 1 leu o mesmo que nós? O que x disse serve para falar do nosso?!”; “A mãe dele é confusa!”; “A peneira é aquele negócio cheio de furinho, ele não consegue carregar água lá!”; “Quem escreve poesia é sério, não faz peraltagens!”. Comunidade de Investigação das 2ª séries dos grupos que discutiram o fragmento 4: “Isso está errado, ele também teria se afogado!”; “Isso ele falou para confundir a gente?”; “Ele inventou tudo, por isso ele inventou que não se afogou... E ele não deve gostar dos bois...!”; “Sabe, é bem legal escrever poesia, nela dá para escrever coisa que não pode ser!”. Comunidade de Investigação das 5ª séries dos grupos que discutiram o fragmento 1: “As leituras eram todos iguais?”; “Avião não tropica, só quem tem pernas pode tropicar, e não é tropicar, é tropeçar...”; “A poesia parece que é como a Filosofia... porque eu penso que é a Filosofia que fala de coisas absurdas!”; “Quem escreve é só escritor ou tem que ser chamado de poeta?”; “Eu não pensei que ele é poeta, parece que ele estava fazendo C. I. com o pai e a mãe!”; “Mas, e se o avião bater num passarinho?”; “Como alguém fica “torto” com uma pergunta?”; “Eu não penso quando saio do sufoco, eu penso para sair do sufoco!”; “Criança não faz poesia, é que os adultos acham bonito quando a gente diz alguma coisa que eles não tem coragem de falar...”. Comunidade de Investigação das 5ª séries dos grupos que discutiram o fragmento 2: “Por que a mãe reparou? Ele estava fazendo o quê?”; “Não dá para entender porque a mãe pensou isso!”; “Vai ver o menino nem estava fazendo nada... é que as mães aumentam as coisas, falam o que a gente nem quis dizer...”; “Nem o vazio nem o cheio é bom... depende do que está dentro deles, ou do que falta!”; “Eu não consigo pensar num exemplo de alguma coisa que vazia é maior e infinita...”; “Talvez a gente tem que entender o que é esse vazio que ele está falando”; “O infinito é maior que o vazio porque não tem como saber onde termina... e o vazio termina”. Comunidade de Investigação das 5ª séries dos grupos que discutiram o fragmento 3: “Ele é estranho, isso sim... ou alguém esquisito faz coisas estranhas?!”; “Ah! Quem vai ser poeta assim? Parece que o poeta vai ser sempre criança, porque criança é que faz peraltagens!”; “A mãe disse isso para avisar para o menino que ele vai sofrer porque ser poeta é difícil...”; “Fazer poesia não é como outra profissão, tem que viajar...ih, como nós aqui... só que a gente não vai escrever o que pensou... e se escrever? É poesia ou Filosofia?”. 6 Comunidade de Investigação das 5ª séries dos grupos que discutiram o fragmento 4: “Ele se enganou, ou quis se exibir... ele também deveria ter morrido...”; “Poesia não precisa ter lógica!”; “É poesia porque faz a gente estranhar as coisas, como a Filosofia...”; “Eu posso inventar o que eu quero e o que eu invento é meu, fica sendo aquilo que eu quero... é diferente de eu descobrir... daí já é alguma coisa... eu só reconheci”. ANÁLISES PRELIMINARES: A EXPERIÊNCIA DA EXPERIÊNCIA... É nesse ponto do processo de pesquisa em que atualmente nos encontramos, daí as análises preliminares. Temos novas perguntas depois de confeccionarmos o nosso material, ignorarmos o manual do professor, e promovermos nossa Comunidade de Investigação. Talvez se espere que nesse momento façamos um resgate da experiência acima descrita. Tudo o que temos, no entanto, são as perguntas: Mas... isso é possível, fazer um registro ou um resgate não seria uma nova experiência? É possível resgatar ou registrar uma experiência? O que é uma experiência? Se tratarmos a “experiência” como uma palavra da Língua Portuguesa, ela explicitaria um ensaio, uma tentativa. Entretanto, se, buscarmos em um vocabulário técnico e crítico da Filosofia teremos minimamente, cinco definições, todas problemáticas, partindo do sentido geral e da experimentação. Destacamos duas definições. Uma que diz que, em geral, a experiência é “o fato de experimentar alguma coisa, na medida em que este fato é considerado não só como um fenômeno transitório, mas também como algo que alarga ou enriquece o pensamento” (LALANDE, 1994). E outra definição de experimentação que define que uma experiência “é o fato de provocar, a partir de certas condições bem determinadas, uma observação tal que o seu resultado, que não pode ser assinalado de antemão, seja capaz de fazer conhecer a natureza ou a lei do fenômeno estudado” (LALANDE, 1994). Enquanto definição por comparação, a experiência se oporia à memória, a imaginação criadora e a razão. Diante dessas definições, como resgatar uma experiência? Pela memória. Mas memória não é experiência. A memória conserva informações do passado e as resgata para a atualidade, mas não põe claramente em evidência o verdadeiro movimento do pensamento contido na experiência. Também pela imaginação criadora não é possível. 7 A imaginação criadora, ou seja, “a faculdade de combinar as imagens em quadros ou sucessões que imitam os fatos da natureza, mas que não representam nada de real nem de existente” (LALANDE, 1994) não pode resgatar a experiência, pois ela daria uma combinação nova, ou uma imitação da experiência e não “a” experiência. Resta a razão. Mas a razão não pode restar porque ela é primeira. A razão consiste em um sistema de princípios a priori que não depende da experiência, que podem ser logicamente formulados e dos quais temos uma consciência refletida. A razão está na intenção de verificar, por intermédio da experiência, uma hipótese já formulada ou de fazer nascer uma idéia, provocar um pensamento. A nossa experiência em Comunidade de Investigação que utilizou como recurso os poemas de Manuel de Barros e a metodologia lipmaniana, não quer somente alargar ou enriquecer o pensamento, que é o que sugere a definição geral de experiência, mas também suscitar o pensamento tanto quanto possível. A experiência quis provocar, e assim sugere experimentação... Afinal, é possível uma experiência do filosofar? Em tempo, “a experiência não é o que passa ou o que acontece, ou o que toca, mas o que nos passa, o que nos acontece ou o que nos toca” (LARROSA, 2004), e, contudo, “todo discurso sobre a experiência deve partir da constatação de que ela já não é realizável” (AGAMBEN, 2001). Não se pode afirmar que a experiência é, e sim que ela está. Não há como nos apropriarmos dela. Podemos tão somente propiciá-la. Um espaço em aberto para tal é o filosofar, que é antes de tudo atividade, movimento e paixão... Então, sem a pretensão de concluir, “Filosofia com Crianças: qual prática de ensino?” é uma discussão permanente e inquietante. Quando parecemos estar perto de um caminho, nem que seja para aconselhar que ninguém o escolha, voltamos ao que não sei se me autorizo a chamar de começo: por que uma prática de ensino se não temos nada a ensinar? O calcanhar de Aquiles da Filosofia - de que é covarde por não responder, só sabe perguntar -, tem nesse ato sua definição. O que é Filosofia? 8 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AGAMBEN, Giorgio. Infancia e Historia. Trad. Silvio Mattoni. Buenos Aires: Adriana Hidalgo, 2001. BARROS, Manuel. Exercício de Ser Criança. Rio de Janeiro: Salamandra, 1999. DELEUZE, Gilles, GUATTARI, Félix. O que é a filosofia? São Paulo: Editora 34, 1993/1. LALANDE, André. Vocabulário Técnico e Crítico da Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 1993. LARROSA, Jorge. Experiência e paixão. In: Linguagem e Educação depois de Babel. Belo Horizonte: Autêntica, 2004. P. 151-165. LIPMAN, M., SHARP, A, OSCANYAN, F. Philosophy in the Classroom. 2ed. Philadelphia: Temple University Press, 1980. Tradução: A Filosofia na Sala de Aula. São Paulo: Nova Alexandria, 1994. WITTGENSTEIN, Ludwig. Tractatus lógico-philosofhicus. Col. Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1995.