Erotismo, sexualidade, gênero Aula 10 Depois de um longo período de suspensão, podemos enfim terminar nosso curso através da apresentação do pensamento da filósofa norte-americana Judith Butler e de sua maneira de desenvolver as implicações políticas da reconstrução do conceito de “gênero”. Nestas últimas aulas, gostaria de apresentar a vocês alguns aspectos importantes de sua experiência intelectual ainda pouco conhecida entre nós. Gostaria também de mostrar porque tal reconstrução do conceito de gênero por ela proposta representa uma das operações mais importantes da filosofia política contemporânea, seja por sua capacidade de mobilizar debates intelectuais, seja por seu uso em contextos práticos de lutas sociais. Judith Butler é uma filósofa norte-americana ainda em atividade. Nascida em 1956, ela ganhou espaço por permitir uma inflexão profunda dos debates feministas em direção à crítica do uso político da noção de identidade social. Assim, sai paulatinamente de cena visões essencialistas sobre a “condição feminina” ou sobre a naturalidade ou não de comportamentos sexuais, isto em prol da tentativa de desconstrução da própria noção de gênero. Butler serve-se de uma articulação inusitada entre o chamado “pós-estruturalismo” francês (em especial Foucault e Derrida), psicanálise e hegelianismo a fim de mostrar como a experiência de ter um gênero pode não ser compreendida como de maneira identitária. De fato, o conceito de gênero ganhou importância decisiva nas últimas décadas devido à maneira que ele nos permite compreender as relações entre sexo, identidade e política. No entanto, nada disto estava presente quando o conceito apareceu no campo clínico pela primeira vez, através das mãos do psiquiatra Robert Stoller em um livro de 1968 intitulado Sexo e gênero. Nele, Stoller procurava descrever os processos de construção de identidades de gênero através da articulação entre processos sociais, nomeação familiar e questões biológicas. Tratava-se de insistir na dinâmica própria da formação das identidades sexuais, para além de seu vínculo estrito à diferença anatômica de sexo. Neste sentido, o uso proposto por Judith Butler é particular. Diferentemente da noção foucaultiana de “sexualidade”, que é acima de tudo um conceito eminentemente crítico, a ideia de “gênero” está carregada de uma teoria da ação política, teoria que procura entender a maneira com que sujeitos lidam com normas, subvertem tais normas, encontram espaço produzindo novas formas. Não se trata de entender apenas como sujeitos são sujeitados às normas e completamente constituído por elas. Por isto, pelas mãos de Butler, a teoria de gênero não será apenas uma teoria da produção de identidades. Ela será uma astuta teoria de como, através da experiência de algo no interior do sexo que não se submete integralmente às normas e identidades, descubro que ter um gênero é um “modo de ser despossuido”1, de abrir o desejo para aquilo que me desfaz no outro. Daí uma afirmação como: A sociabilidade particular que pertence à vida corporal, à vida sexual e ao ato de tornar-se um gênero [becoming gendered] (que é sempre, em certo sentido, tornar-se gênero para outros) estabelece um campo de enredamento ético com outros e um sentido de desorientação para a primeira pessoa, para a 1 BUTLER, Judith; Undoing Gender, New York: Routledge, 2004, p. 19 perspectiva do Eu. Como corpos, nós somos sempre algo mais, e algo outro, do que nós mesmos2. Notem como tal colocação não está muito distante de afirmações que vimos anteriormente presente nos textos de Georges Bataille. Lembremo-nos, por exemplo, de afirmações como: O erotismo é a meus olhos o desequilíbrio em que o próprio ser se coloca em questão, conscientemente. Em certo sentido, o ser se perde objetivamente, mas então o sujeito se identifica com o objeto que se perde. Se for preciso, posso dizer, no erotismo: EU me perco3. Tanto em Bataille quanto em Butler sexo aparece como o nome de um evento marcado pelo advento das exigências de reconhecimento do que desarticula as estruturas identitárias da primeira pessoa do singular. Isto porque ele parece nos colocar em relação com aquilo que não se deixa determinar no interior das normatividades que definem a figura atual do homem. Sexo como o que nos empurra em direção a estas conformações ainda não reconhecidas do desejo, ainda não humanas. Por isto, há sempre algo de recuperação do que era visto como patológico, doentio e, por isto, sem direito à existência, ou ainda, como inumano, pois sem identidade fixa e definida. A modificação da sensibilidade social e da sensibilidade médica para problemas de gênero foi um acontecimento de forte ressonância filosófica, pois nos colocaria diante da compreensão de como nossa humanidade depende do reconhecimento de alguma forma de proximidade com o que colocamos na vala do inumano e, muitas vezes, do abjeto. O próprio uso do termo “queer” é bastante sintomático deste embate. O termo aparece no inglês do século XVI para designar o que é “estranho”, “excêntrico” , “peculiar”. A partir do século XIX, a palavra começa a ser usada como um xingamento para caracterizar homossexuais e outros sujeitos com comportamentos sexuais aparentemente desviantes. No entanto, no final dos anos oitenta, o termo começa a ser apropriado por certos grupos LGBT no interior de um processo de ressignificação no qual o significado pejorativo de uma palavra é desativado através de sua afirmação por aqueles a quem ela seria endereçada e que procuro excluir. Sensíveis a tal inversão, algumas teóricas de gênero viram nesta operação uma oportunidade para descrever um outro momento das lutar por reconhecimento não mais centradas na defesa de alguma identidade particular aos homossexuais. De onde se seguiu a produção do sintagma “Teoria queer”, enunciado primeiramente pela feminista italiana Teresa de Laurentis. Começar pelo desejo em Hegel Judith Butler publica seu primeiro livro em 1987. Trata-se de sua tese de doutorado, Sujeitos do desejo, dedicada ao conceito de desejo em Hegel e sua recepção no pensamento francês contemporâneo (em especial, em Sartre, Lacan, Foucault e Deleuze). No entanto, é com seu segundo livro, Problemas de gênero, de 1990, que ela aparecerá como um teórica inovadora à procura de uma compreensão da subjetividade e da experiência sexual não mais marcada pelo problema da produção 2 3 Idem, p. 25 BATAILLE, Georges; O erotismo, p. 55 de identidades subjetivas. Neste sentido, problematizar o “gênero” era, como veremos mais a frente, uma maneira importante de quebrar o espaço privilegiado no qual a vida social parece fundamentar-se na normatividade pretensamente fornecida pela natureza. Depois de Problemas de gênero, Butler publica vários livros nos quais procura aprofundar problemas específicos a partir das consequências de sua maneira de pensar problemas de gênero, como o papel da materialidade dos corpos, o impacto psíquico das normas sociais, a natureza da experiência moral, entre outros. São exemplos deste movimento de seu pensamento livros como: Bodies that matter: on the discursive oh “sex”(1993), Excitable speechs: a politics of the performative (1995), The psychic life of power: theories of subjection (1995) e Undoing gender (2004). A partir de Antigone’s claims: kindship between life and death (2000), Butler começa a escrever de maneira mais sistemática a respeito de questões política não diretamente relacionadas a lutas ligadas às minorias sexuais, mas a problemas ligados à modalidades de exclusão e de precarização da existência. São livros não ligados diretamente à questões de gênero, mas a teoria política, como: Precarious life: the powers of mourning and violence (2004), Giving an account of oneself (2005) e o último, sobre a questão judaico-palestina: Parting ways: jewishness and the critique of zionism (2012). O que gostaria de fazer aqui é retraçar algumas linhas gerais desta trajetória, permitindo com isto uma compreensão mais articulada de sua maneira peculiar de extrair consequências políticas das discussões sobre identidade de gênero. Para tanto, precisamos voltar à sua tese de doutorado sobre o conceito hegeliano de desejo. Um retorno que apenas leva a sério colocações da própria Butler, como: “Em certo sentido, todos meus trabalhos permanecem no interior da órbita de um certo conjunto de questões hegelianas: o que é a relação entre desejo e reconhecimento e como a constituição do sujeito implica uma relação radical e constitutiva à alteridade?”4. Butler começa por lembrar que há uma “visão filosófica” do desejo que procura nos fazer acreditar que a reflexão sobre a vida desejante deveria nos levar, necessariamente, a um paradigma de reconciliação no interior do qual encontraríamos a integração psíquica entre razão e afetos. Esta reconciliação, no entanto, não estaria presente em Hegel, pois em seu caso o desejo apareceria exatamente como aquilo que “fratura um eu metafisicamente integrado”5 por ser uma forma de “modo interrogativo de ser, um questionamento corporal de identidade e lugar”6. Ou seja, a descoberta do desejo é a descoberta de uma fratura que faz do meu ser o espaço de um questionamento contínuo a respeito do lugar que ocupo e da identidade que me define. Um questionamento que faz de meu ser um modo contínuo de interpelação ao outro, já que não há desejo sem que haja outro. Mesmo um desejo “narcisista” é o desejo pela imagem de si a partir da internalização do olhar de um Outro elevado à condição de ideal. Todo desejo pressupõe um campo partilhado de significação no qual o agir se inscreve. Pois todo desejo pressupõe destinatários, é desejo feito para um Outro e inscrito em um campo que não é só meu, mas é também campo de um Outro. Assim, perguntar-se sobre o ser do sujeito a partir do desejo é partir necessariamente do sujeito como um entidade relacional para a qual, como disse Butler, há “uma relação radical e constitutiva à alteridade”. 4 BUTLER, Judith; Subjects of desire, p. XX Idem, p. 7 6 Idem, p. 9 5 Esta leitura de Hegel privilegia uma interpretação que visa radicalizar a experiência de negatividade própria a seu conceito de desejo. Para compreender o que significa tal negatividade, lembremos como Hegel parece vincular-se a uma longa tradição que remonta a Platão e compreende o desejo como manifestação da falta. Vejamos, por exemplo, um trecho maior da Enciclopédia. Lá, ao falar sobre o desejo, Hegel afirma: O sujeito intui no objeto sua própria falta (Mangel), sua própria unilateralidade – ele vê no objeto algo que pertence à sua própria essência e que, no entanto, lhe falta. A consciência-de-si pode suprimir esta contradição por não ser um ser, mas uma atividade absoluta7. A colocação não poderia ser mais clara. O que move o desejo é a falta que aparece intuída no objeto. Um objeto que, por isto, pode se pôr como aquilo que determina a essencialidade do sujeito. Ter a sua essência em um outro (o objeto) é uma contradição que a consciência pode suprimir por não ser exatamente um ser, mas uma atividade, isto no sentido de ser uma reflexão que assimila o objeto a si. Esta experiência da falta é tão central para Hegel que ele chegar a definir a especificidade do vivente (Lebendiges) através da sua capacidade em sentir falta, em sentir esta excitação (Erregung) que o leva à necessidade do movimento; assim como ele definirá o sujeito como aquele que tem a capacidade de suportar (ertragen) a contradição de si mesmo (Widerspruch seiner selbst) produzida por um desejo que coloca a essência do sujeito no objeto. Mas, dizer isto é ainda dizer muito pouco. Pois se o desejo é falta e o objeto aparece como a determinação essencial desta falta, então deveríamos dizer que, na consumação do objeto, a consciência encontra sua satisfação. No entanto, não é isto o que ocorre: O desejo e a certeza de si mesma alcançada na satisfação do desejo são condicionados pelo objeto, pois a satisfação ocorre através do suprimir desse Outro, para que haja suprimir, esse Outro deve ser. A consciência-de-si não pode assim suprimir o objeto através de sua relação negativa para com ele, pois essa relação antes reproduz o objeto, assim como o desejo8. A contradição encontra-se aqui na seguinte operação: o desejo não é apenas uma função intencional ligada à satisfação da necessidade animal, como se a falta fosse vinculada à positividade de um objeto natural. Ele é operação de auto-posição da consciência: através do desejo a consciência procura se intuir no objeto, tomar a si mesma como objeto e este é o verdadeiro motor da satisfação. Através do desejo, na verdade, a consciência procura a si mesma. Até porque, devemos ter clareza a este respeito, a falta é um modo de ser da consciência, modo de ser de uma consciência marcada por aquilo que Hegel chama de “negatividade” e que insiste que as determinações estão sempre em falta em relação ao ser. Desta forma, não haverá objeto natural algum capaz de realizar a satisfação da negatividade própria ao desejo. Em Hegel, a consciência desejante procura no Outro não algo como a reiteração de seu sistema de interesses e necessidades. Ela procura no Outro o reconhecimento da natureza negativa e indeterminada de seu próprio 7 8 HEGEL, G.W.F.; Enciclopédia - vol III, op. cit., § 427 Idem, Fenomenologia do Espírito, op. cit., p. 124 desejo. É tendo tal esquema em mente que Butler poderá quebrar a natureza essencialista da noção de gênero (em suas versões ontológicas, políticas ou metodológicas) defendida então por certas correntes feministas. A produtividade das normas Três anos depois da publicação de sua tese, Butler apresente este que será seu trabalho mais conhecido, Problemas de gênero: feminismo e a subversão da identidade. O livro apresentava uma discussão inovadora sobre a noção de gênero servindo-se, em larga medida, de apropriações da teoria do poder de Michel Foucault. Dividido em três partes ele partia da tentativa em dissociar sexo e gênero, passava à crítica do estruturalismo (em especial Lévi-Strauss e Lacan) como corrente de pensamento que tendia à perpetuar uma ordem patriarcal de funcionamento da vida social, para ao final abrir certas considerações sobre as potencialidades política de uma noção de gênero que subverta a identidade. Maneira de mostrar como um política feminista não precisa adentrar na reificação ilusória do gênero e da identidade. Podemos dizer que a base da perspectiva de Judith Butler encontra-se na tentativa de fornecer uma teoria anti-representativa do sexual. Identidades sexuais não devem ser pensadas como representações suportadas pela estrutura binária de sexos. Trata-se, ao contrário, de tentar escapar da própria noção de representação através de uma teoria performativa do sexual. Teoria que sustenta a possibilidade de realização de atos subjetivos capazes de fragilizar o caráter reificado das normas, produzindo novos modos de gozo que subvertam as interdições postas pelo sistema binário de gêneros. Tal teoria nasce de uma tomada de posição que procura levar às últimas conseqüências a distinção entre sexo (configuração determinada biologicamente) e gênero (construção culturalmente determinada). No seu caso, não se trata de fornecer uma nova versão da distinção clássica entre natureza e cultura, até porque gênero, segundo Butler. “é o aparato discursivo/cultural através do qual ‘natureza sexual’ ou ‘sexo natural’ são produzidos e estabelecidos como ‘pré-discursivo’, como prévios à cultura, uma superfície politicamente neutra na qual a cultura age”9. Esta suspeita profunda em relação à dimensão do pré-discursivo, do anterior ao advento da lei, leva Butler a recusar toda ideia de uma naturalidade reprimida pelo advento das normas sociais. Partindo deste ponto, uma noção de gênero como ante-câmara de produção da ‘natureza sexual’ permite a Butler primeiramente defender o caráter ideológico da noção binária de gênero (masculino/feminino), já que: “A pressuposição de um sistema binário de gênero depende da crença em uma relação mimética entre gênero e sexo na qual gênero espelha sexo ou é, por outro lado, restringido por ele”10. A quebra de tal mimetismo permitiria, por sua vez, ao gênero aparecer como o espaço de: “múltiplas convergências e divergências sem obediência a um telos normativo ou a um fechamento nocional”11. Voltemos por um momento à noção de sexualidade em Foucault, pois é ela que opera na crítica de Butler à pressuposição mimética entre gênero e sexo. Vimos como Foucault insistia que as relações de poder nunca poderiam ser compreendidas como meramente opressivas. Elas são inicialmente produtivas, ou seja, elas produzem 9 BUTLER, Gender trouble, p. 11 idem, p. 10 11 Idem, p. 22 10 os sujeitos nos quais o poder age. Mas para aceitar que há uma natureza produtiva do poder, faz-se necessário também aceitar que nem todas as formas de dominação são formas de opressão. Esta é um perspectiva que Butler partilha com Foucault. Retomemos a este respeito algumas características fundamentais da noção foucaultiana de poder: Por poder, parece-me que devemos inicialmente compreender a multiplicidade de relações de força que são imanentes ao domínio no qual elas se exercem, e que são constitutivas de sua organização; o jogo que pela via das lutas e afrontamentos lhes transformam, reforçam, invertem; os apoios que tais relações de força encontram umas nas outras de maneira a formar cadeia ou sistema ou, ao contrário, as defasagens, as contradições que isolam umas das outras; a estratégias enfim nas quais elas encontram efeito e cujo desenho geral ou cristalização institucional toma corpo nos aparelhos estatais, na formulação da lei, na hegemonia social12. Esta ideia de poder não toma como base as representações jurídicas do poder soberano. Ela é onipresente não porque ela tudo engloba em uma unidade, mas porque ela vem de todos os lugares. Ela não depende de uma intencionalidade consciente para funcionar, ela não resulta de decisões e escolhas de um sujeito individual. Se ele vem de todos os lugares, é fácil perceber também que a noção mesma de resistência é um movimento interno ao poder. O próprio poder só pode existir em função de uma multiplicidade de pontos de resistência. Como se a ausência de unidade do poder nos permitisse pensar um movimento que está, a todo momento, prestes a inverter seus sinais, prestes a produzir outras dinâmicas. Como se a disciplina e seus dispositivos apenas no limite pudessem garantir sua eficácia. Como se estivéssemos diante de : “um campo múltiplo e móvel de relações de força no qual se produzem efeitos globais de dominação, mas jamais totalmente estáveis”13. Notem que esta resistência não precisa vir de fora das relações de poder como, por exemplo, de um corpo insubmisso, de uma libido selvagem, de uma sexualidade não-controlada ou de um desejo natural. A resistência vem do próprio poder, isto no sentido de vir da heterogeneidade dos jogos de força, com suas direções múltiplas. Ou seja, quebrada a ideia de um poder que age de maneira unitária e ordenada, mas que produz efeitos inesperados, situações não completamente controladas, perde-se a necessidade de responder sobre o que o poder age. De certa forma, ele age sobre suas próprias camadas. Isto talvez explique porque gênero não deve ser compreendido como uma identidade estável. Assegurar algo em sua significação não é resultado de um gesto fundador, de uma espécie de batismo originário para todo o sempre. Antes, trata-se de um processo continuo de repetições que, ao mesmo tempo, anula a si mesmo (pois mostra a necessidade de repetir-se para subsistir) e aprofunda suas regras. Sendo assim, assumir um gênero não é algo que, uma vez feito, estabiliza-se. Ao contrário, estamos diante de uma inscrição que deve ser continuamente repetida e reafirmada, como se estivesse, a qualquer momento, a ponto de produzir efeitos inesperados, sair dos trilhos. Daí a necessidade de afirmar que: “A injunção de ser um gênero dado 12 13 FOUCAULT, Michel; Histoire de la séxualité I, p. 122 Idem, p. 135 produz necessariamente fracassos, uma variedade de configurações incoerentes que, na sua multiplicidade, excede e desafia a injunção que as gerou”14. Repetir de forma paródica Mas se significações são produzidas através da repetição, então um repetição que não fosse simplesmente mimética poderia deslocar os efeitos do poder. Neste ponto, encontramos a preocupação claramente política da teoria de Butler. Sem fazer apelo a uma espécie de história subterrânea do cuidado de si, tal como vimos em Foucault, história que conservou aspectos da relação a si que nos remeteria aos gregos, Butler procura pensar modalidades de repetição das normas que produzam tais efeitos de deslocamento. Em Problemas de gênero, é a paródia que parece ter tal função. O que nos interessa aqui é a anatomia desta crítica. Pois ela não deve levar à naturalização de outras categorias identitárias, mas à posição de identidades sexuais que sejam a própria encarnação da desestruturação da noção de representação, identidades que seriam a apresentação da desestabilização das identidades. Daí porque esta crítica das categorias identitárias seria performativamente implantada através, por exemplo, de práticas paródicas de gênero, como aquelas levadas a cabo por dragqueens e as práticas de cross-dressing. Pois ao operar uma "dupla inversão" que consistiria em embaralhar as distinções essência/aparência para afirmar, ao mesmo tempo: "minha aparência exterior é feminina, mas minha essência interior (o corpo) é masculina" e "minha aparência exterior é masculina (meu corpo), mas minha essência interior é feminina", as drags fariam uma espécie de "crítica da reificação dos gêneros". Butler poderá afirmar assim que elas revelariam: "estes aspectos da experiência de gênero que são falsamente naturalizados como uma unidade através da ficção regulatória da coerência heterossexual"15. Crítica paródica que, por inaugurar um deslocamento perpétuo de identidades, teria a força de sugerir a abertura a processos de ressignificação capazes de se disseminarem na malha social. Esta crítica articulada através do embaralhamento da diferença ontológica entre essência e aparência só é possível porque a aparência é elevada aqui à condição de simulacro que desorienta a própria noção de identidade e representação fixa por, ao mesmo tempo, adequar-se e não se adequar à diferença sexual e aos modos de sexuação tais como seriam postos pela Lei. Assim, tudo se passa aqui como se: Ao agir (performing) e ao chamar a atenção para a estrutura do gênero como performance, nós pudéssemos ser liberados de uma política dogmática ou de uma política que aspira saber o real de maneira segura. Não podemos escapar do sistema de identidade ou da ilusão de que há um sujeito que fala. Mas podemos agir, repetir ou parodiar todos estes gestos que criam um sujeito16. De fato, Butler reconhece bem as dificuldades de sua aposta. Ao definir performatividade como uma estrutura de citação e repetição contínua de determinações normativas, de um conjunto a priori de práticas, Butler insiste que a necessidade da repetição indica como o processo de determinação é sempre frágil. Práticas de subversão seriam capazes de expor o estatuto reificado do quadro 14 BUTLER, Judith; Gender trouble, p. 185 idem, p. 175 16 COLEBROOK, Irony, p. 125 15 heterossexual que sustenta práticas de gênero. No entanto, ela é a primeira a reconhecer que: “não há garantia de que a exposição do caráter naturalizado da heterosexualidade nos levará a subversão. A heterossexualidade pode aumentar sua hegemonia através da desnaturalização, tal como vemos paródias desnaturalizadoras que reidealizam normas heterossexuais sem colocá-las realmente em questão”17. Isto nos deixa com a questão de saber como diferenciar críticas à reificação que tenham força perlocucionária de outras que não tem. Em Problemas de gênero, Butler não abandona a crença na força subversiva de uma citação teatral das normas, citação que mimetiza e toma de maneira hiperbólica a convenção discursiva que ela subverte. No entanto, ela desenvolve tal posição de maneira astuta ao afirmar que este ato seria capaz, na verdade, de alegorizar uma perda própria a todo processo de incorporação da norma e de regulação das paixões; perda que produz: “o campo dos objetos heterosexuais ao mesmo tempo que produz um domínio destes a respeito dos quais seria impossível amar [por não se submeterem ao processo de constituição de objetos do amor heterosexual]. Assim, drag alegoriza a melancolia heterossexual, melancolia através da qual um gênero masculino é formado através da recusa em perder o masculino como possibilidade de amor, um gênero feminino é formado (assumido) através da fantasia incorporativa através da qual o feminino é excluído como possível objeto de amor”18. Desta forma, as práticas críticas poderiam expor a fraqueza da normatividade heterossexual através da alegorização de sua melancolia. Como se uma certa recuperação da ironia melancólica tivesse a força de desarticular matrizes de socialização e modos de indexação entre normas, modos de escolhas de objeto e determinações identitárias. Veremos melhor est e ponto na próxima aula. 17 18 BUTLER, Bodies that matter, New York; Routledge, 1993, p. 231 idem, p. 235