MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL EXCELENTÍSSIMO SENHOR DOUTOR JUIZ FEDERAL DA DA SUBSEÇÃO JUDICIÁRIA DE SÃO PAULO VARA O MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL, pelos Procuradores da República signatários, no uso de suas atribuições constitucionais e legais, com fulcro no art. 129, incisos II e III, da Constituição Federal de 1988, bem como nos dispositivos pertinentes da Lei nº 7.347/85 e Lei Complementar n° 75/93, vêm, perante Vossa Excelência, propor a presente AÇÃO CIVIL PÚBLICA com pedido liminar, tendo por base os documentos em anexo e as razões de fato e de direito que passa a expor, em face de: UNIÃO FEDERAL, pessoa jurídica de direito público interno, com sede na Avenida Paulista, 1842, Edifício Cetenco Plaza – Torre Norte, 7º andar, conjuntos 76/77, no Município de São Paulo, Estado de São Paulo, podendo ser citada na pessoa de seu Advogado; ESTADO DE SÃO PAULO, pessoa jurídica de direito público interno, com sede no Palácio do Governo, na Avenida Morumbi, 4500, no Município de São Paulo, Estado de São Paulo, podendo ser citado na pessoa da Procuradora Geral do Estado de São Paulo, Dra. Rosali de Paula Lima; MUNICÍPIO DE SÃO PAULO, pessoa jurídica de direito público, com sede em sua Prefeitura Municipal, na Avenida Mercúrio, s/ nº, Palácio da Indústria, Parque Dom Pedro, em 1 - 22 MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL São Paulo/SP, representada por seu Procurador Geral, Dr. César Antonio Alves Cordaro. DOS FATOS Em julho de 2000 foi instaurada na Procuradoria da República em São Paulo o procedimento administrativo n º 1.34.001.002433/2001-45, a partir de notícia encaminhada pelo GRUPO DE APOIO E PREVENÇÃO À AIDS – GAPA BR SP, dando conta da ausência de exames de genotipagem do vírus da imunodeficiência humana (HIV-1) no âmbito do Sistema Único de Saúde - SUS, também conhecido pelo nome de teste da resistência. Constatou-se, no curso do procedimento, que a realização dos exames de genotipagem pelo Sistema Único de Saúde – SUS, somente é viabilizada para aqueles que se socorrem do Poder Judiciário. Com efeito, merecem ser transcritas as declarações do GAPA (doc. 1): “7. Que, o GAPA, prova o ingresso e consecução de algumas e manutenção das liminares por amostragem, tanto em Primeira Instância quanto no Tribunal de Justiça, anexando para tanto cópia das mesmas. (...) 10- Cumpre salientar que é sabido que essas ações judiciais vem sendo interpostas por várias Organizações Não Governamentais de todo o território nacional devido ao desrespeito aos direitos fundamentais da pessoa humana, o que ocorre em todo o Brasil. 10.1 Que, tais ações, que estão caminhando de forma 2 - 22 MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL geométrica, estão acarretando movimento excessivo, emperrando o Judiciário, eis que diariamente mais de dois portadores necessitam da intervenção do Departamento Jurídíco do Grupo de Apoio e Prevenção à Aids, para obter medicamentos ou exames não contemplados pela Rede Pública, porém de extrema necessidade, para preservação da vida e saúde dos ora representados” O Ministério Público Federal requisitou informações e providências dos gestores do SUS, através dos ofícios n os. 8687/2001, 8688/20001 e 11.155/2001 (docs. 2, 3 e 4). Respondendo à requisição do Ministério Público Federal, o DD. Secretário Municipal de Saúde, encaminhou as seguintes informações prestadas pelo Coordenador do Programa DST/AIDS (doc. 5): “...Já os exames de Genotipagem, serão implantados no SUS à partir de Outubro de 2001, não sendo um procedimento padrão do sistema até então. Mesmo assim, apenas no ano de 2000, foram realizados 21 exames pagos por esta Secretaria, após determinação Judicial” (grifos nossos) A Secretaria Estadual de Saúde informou, através do Ofício n º 2414/2001 (doc. 6), que atendeu à pretensão de alguns portadores do vírus HIV que já tinham processos judiciais em curso e que o exame de genotipagem não estaria disponível regularmente em laboratórios da rede pública, devendo ser encaminhado a laboratórios privados para sua execução. Confira-se: “Outrossim, com relação aos outros casos de solicitação de exames e medicamentos, informo que estão em fase de aprovação do repasse de recursos, tendo em vista não 3 - 22 MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL estarem ainda disponíveis regularmente em laboratórios da rede pública, devendo ser encaminhados a laboratórios privados para sua execução. Por conseguinte, tão logo se proceda a liberação dos recursos financeiros, os interessados serão convocados para a realização dos exames e retirada dos medicamentos, logicamente dentro da maior brevidade possível, visando o cumprimento dos prazos judiciais em curso.” (grifos nossos) O Coordenador Geral de Doenças Sexualmente TransmissíveisDST e Aids, por sua vez, informou que o Ministério da Saúde adquiriu somente 6.000 testes de genotipagem para serem utilizados em um estudo operacional com o objetivo de implantar uma Rede Nacional de Genotipagem (doc. 7): “A Coordenação Nacional de DST e Aids do Ministério da Saúde (CN-DST/AIDS-MS) decidiu, implantar uma rede nacional de laboratórios aptos a executar o exame de genotipagem conhecida como RENAGENO (Rede Nacional de Genotipagem), para detectar a ocorrência de resistência genotípica do HIV-1 frente aos antiretrovirais, auxiliando na seleção de uma terapia de resgaste mais adequada, em pacientes atendidos pelo Sistema Único de Saúde. O Ministério da Saúde iniciou então a aquisição de 6.000 testes de genotipagem para serem utilizados em um estudo operacional com vistas a implantação da Rede Nacional de Genotipagem. Este projeto, que contará com 12 laboratórios, está em fase de implantação estando previsto o início de suas atividades ainda em outubro em dois laboratórios” (grifos nossos) 4 - 22 MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL Assim, o Sistema Único de Saúde – SUS, em suas diversas esferas de atuação – Federal, Estadual e Municipal-, tem negado o fornecimento do exame de genotipagem, imprescindíveis para verificar qual medicamento é mais adequado e eficiente ao tratamento do portador da Síndrome da Imunodeficiência Adquirida Sida/Aids, obrigando as pessoas soropositivas a litigar em Juízo para que o Estado cumpra seu dever de prestar assistência integral à saúde. Não obstante, todos os gestores reconhecem haver a obrigação de realização desses exames, tanto que estariam providenciando a adequação do sistema para tanto. Prometida a implantação do exame até outubro de 2001, é fato constatado pelo Autor que o SUS continua a não realizá-lo. Comprovam esta assertiva, as declarações prestadas, pelos Srs. Clodoaldo de Souza Feitosa e Edmilson de Paula Campos, em 30 de outubro e 05 de novembro respectivamente, na Procuradoria da República em São Paulo. Declarações prestadas pelo Sr. Clodoaldo: “... tem 55 (cinqüenta e cinco) anos de idade, que é portador do HIV desde 1992 e faz tratamento desde 1995; que faz uso de diversos medicamentos, que esses medicamentos não estão fazendo mais efeito, que está com CD4 muito baixo (161), o que indica que deverá trocar o medicamento sob pena de aparecimento de doenças oportunísticas, que sua carga viral está altíssima: 55000, que o médico solicitou exame de genotipagem, que esse exame indica qual medicamento deverá ser utilizado pelo declarante para dar continuidade ao seu tratamento, que o SUS não está disponibilizando o exame de genotipagem, que somente conseguem fazer o exame aqueles que ajuizam ações” (doc. 8, 9, 10 e 11) Declarações prestadas pelo Sr. Edimilson de Paula Campos: “que é portador do vírus HIV desde 1995. Que já fez uso de diversos medicamentos que compõem o coquetel. Que está com carga viral muito alta,em torno de 120.000 ml. 5 - 22 MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL Que necessita realizar exame de genotipagem para composição do próximo esquema antiretroviral eficaz, com a inclusão de medicações anti-retrovirais novas não utilizadas. Que não tem condições de arcar com o exame de genotipagem, de alto custo. Que é aposentado por invalidez. Que recebe duzentos e sessenta reais por mês. Que o SUS não fornece gratuitamente o exame. Que só conseguem fazer esse exame as pessoas que ajuízam ações judiciais. Que comprova os fatos alegados o relatório médico subscrito pela médica Ângela Naomi Atomiya”(docs. 12, 13 e 14) Deve ser ressaltado que o ocorrido com os senhores Clodoaldo de Souza Feitoza e Edmilson de Paula Campos não configuram casos isolados, haja vista que todas as pessoas soropositivas, que não têm condições econômicas de arcar com as despesas do exame clínico de genotipagem, de alto custo, ou que não demandam em Juízo, ficam privadas de medicamentos adequados e eficientes. A notícia de um número crescente de portadores do HIV que desenvolvem resistência às drogas e se encontram sem condições de seguimento e monitoração terapêutica, sujeitando-se ao desenvolvimento de doenças oportunísticas, reclama uma resposta efetiva do Poder Judiciário. De fato, a omissão do Poder Público em realizar esse exame implica em flagrante desrespeito à garantia ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para a promoção, proteção e recuperação da saúde, dever do Estado imposto no art. 196 da Constituição Federal. O fornecimento gratuito pelo SUS do teste de genotipagem, objetivando a avaliação da resistência do HIV aos anti-retrovirais e a adoção de um regime terapêutico efetivo é direito difuso, transindividual, de natureza indivisível, do qual são titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstância de fato. A assistência terapêutica integral, garantida constitucionalmente, não socorre tão somente aos portadores do HIV/Aids - está classificada como 6 - 22 MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL epidemia há muitos anos pela Organização Mundial de Saúde; atende, outrossim, à sociedade como um todo. Ora, nítido está que os objetivos primordiais da presente demanda, para a qual está devidamente legitimado no pólo ativo o Ministério Público Federal, são a proteção do direito à saúde e do direito à vida. DO DIREITO Os fundamentos básicos do direito à saúde no Brasil estão elencados os arts. 196 a 200 da Constituição Federal. Especificamente, o art. 196 dispõe que: “Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação". O direito à saúde, tal como assegurado na Constituição de 1988, configura direito fundamental de segunda geração. Nesta geração estão os direitos sociais, culturais e econômicos, que se caracterizam por exigirem prestações positivas do Estado. Não se trata mais, como nos direitos de primeira geração, de apenas impedir a intervenção do Estado em desfavor das liberdades individuais. Os direitos de segunda geração conferem ao indivíduo o direito de exigir do Estado prestações sociais nos campos da saúde, alimentação, educação, habitação, trabalho etc. A Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990, que dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, estabelece: “...................... Art. 2º A saúde é um direito fundamental do ser humano, devendo o Estado prover as condições indispensáveis ao seu 7 - 22 MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL pleno exercício. § 1º O dever do Estado de garantir a saúde consiste na formulação e execução de políticas econômicas e sociais que visem à redução de riscos de doenças e de outros agravos e no estabelecimento de condições que assegurem acesso universal e igualitário às ações e aos serviços para a sua promoção, proteção e recuperação. |..................... Art. 4°. O conjunto de ações e serviços de saúde, prestados por órgãos e instituições públicas federais, estaduais e municipais, da administração direta e indireta e das funções mantidas pelo Poder Público, constitui o Sistema Único de Saúde – SUS. ......................” (grifos nossos). O artigo 7° da citada lei estabelece que as ações e serviços públicos que integram o Sistema Único de Saúde serão desenvolvidos de acordo com as diretrizes previstas no artigo 198 da Constituição Federal, obedecendo, ainda, aos seguintes princípios: “Art. 7°...................... I – universalidade de acesso aos serviços de saúde em todos os níveis de assistência; II - Integralidade de assistência, entendida como um conjunto articulado e contínuo de serviços preventivos e curativos, individuais e coletivos, exigidos para cada caso em todos os níveis de complexidade do sistema; III – preservação da autonomia das pessoas na defesa de sua integridade física e moral; IV – igualdade da assistência à saúde, sem preconceitos ou privilégios de qualquer espécie; ..................... XI – conjugação de recursos financeiros, tecnológicos, materiais e humanos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, na prestação de serviços de assistência à saúde da 8 - 22 MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL população; .....................”. Verifica-se, destarte, que a própria norma disciplinadora do Sistema Único de Saúde elenca como princípio a integralidade de assistência, definindo-a como um conjunto articulado e contínuo de serviços preventivos e curativos, individuais e coletivos, exigidos para cada caso em todos os níveis de complexidade do sistema. No que se refere aos portadores de HIV, adveio a Lei nº 9.313, de 13/11/96, que impôs a gratuidade do fornecimento de toda a medicação necessária ao tratamento da AIDS: "Art. 1º - Os portadores do HIV (vírus da imunodeficiência humana) e doentes de aids (Síndrome da Imunodeficiência Adquirida) receberão, gratuitamente, do Sistema Único de Saúde, toda a medicação necessária a seu tratamento. § 1º - O Poder Executivo, através do Ministério da Saúde, padronizará os medicamentos a serem utilizados em cada estágio evolutivo da infecção e da doença, com vistas a orientar a aquisição dos mesmos pelos gestores do Sistema Único de Saúde. ..................... Art. 2º - As despesas decorrentes da implementação desta Lei serão financiadas com recursos do orçamento da Seguridade Social da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, conforme regulamento” Entretanto, é imperativo frisar que o dever de fornecer toda a medicação necessária ao tratamento dos portadores do vírus HIV implica, obviamente, no fornecimento de remédios adequados e eficazes. O teste de resistência do HIV ou exame de genotipagem é necessário justamente para avaliar a sensibilidade do vírus e indicar quais são os medicamentos que devem ser ministrados ao paciente. 9 - 22 MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL O exame de genotipagem do vírus da imunodeficiência humana (HIV-1) “tem como objetivo detectar a presença de mutações no genoma viral. A relação de mutações encontradas podem estar associadas à resistência a terapia anti-retroviral prescrita. A análise das informações obtidas é o método mais rápido para o médico adotar um novo regime terapêutico, com a confiança que será mais adequado e eficiente para seu paciente”.1 Essa forma de diagnóstico é utilizada principalmente em pacientes que: ainda não deram início ao tratamento com drogas anti-retrovirais e necessitam definir o perfil genotípico da população viral infectante; apresentam aumento da carga-viral ou queda dos linfócitos CD4+ mesmo em tratamento; receberam muitas drogas anti-retrovirais; recentemente diagnosticados nas áreas de alta prevalência de vírus resistentes; estão grávidas (mulheres infectadas). A relevância do exame é reconhecida pelo próprio Coordenador Geral de DST/AIDS do Ministério da Saúde, Sr. Paulo Roberto Teixeira: “o uso de testes de avaliação da resistência do HIV-1 aos anti-retrovirais (‘exame de genotipagem’) está proposto no intuito de selecionar esquemas de resgate terapêutico mais adequados dentro do arsenal de medicamentos contra o HIV (anti-retrovirais) atualmente disponíveis (...) De uma forma geral, a seleção de um esquema anti-retroviral de resgate com o auxílio de um teste de resistência resultou em uma redução significativa da carga viral plasmática para HIV1 ...” (doc. 7). Deve ser ressaltado que a assistência aos portadores do HIV, com o fornecimento do exame de genotipagem aos doentes, não se insere no âmbito do poder discricionário da Administração. Com efeito, a assistência terapêutica não pode ser condicionada à morosa “liberação de recursos financeiros” ou a “implementação da Rede Nacional de Genotipagem”. A saúde é direito fundamental do ser humano, devendo o Estado cumprir o seu mister constitucional de atendimento integral à saúde, provendo, de forma imediata, condições ao seu pleno exercício. 1 Informações extraídas do site Genomic Engenharia Molecular 10 - 22 MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL Aliás, no tocante ao aspecto econômico-financeiro, o exame de genotipagem atende ao princípio constitucional da economicidade, na medida em que é fundamental para a definição da terapia adequada, propiciando, assim, economia no fornecimento de medicamentos e nos dispêndios com internações e tratamento das doenças oportunísticas. Deste modo, resta claro que o dever do Estado de prover as condições indispensáveis ao pleno exercício do direito à saúde, direito fundamental do ser humano, implica na obrigação do Sistema Único de Saúde propiciar aos usuários desse Sistema todos os meios existentes para a garantia de suas vidas. A feitura do exame de genotipagem, neste contexto, é imprescindível para o tratamento efetivo e condigno dos pacientes portadores do HIV. Vale citar as doutas palavras de José Afonso da Silva, ao discorrer sobre o direito à saúde: “E há de informar-se pelo princípio de que o direito igual à vida de todos os seres humanos significa também que, nos casos de doença, cada um tem direito a um tratamento condigno de acordo com o estado atual da ciência médica, independendemente de sua situação econômica, sob pena de não ter muito valor sua consignação em normas constitucionais” (grifos nossos) Finalmente, a jurisprudência também afirma o dever do Estado de assegurar o atendimento integral à saúde. O Supremo Tribunal Federal, no Recurso Extraordinário nº 242.859-RS, manteve acórdão do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, reconhecendo a obrigação do “Estado fornecer, de forma gratuita, medicamentos para portadora do vírus HIV que, comprovadamente, não poderia arcar com essas despesas sem privar-se dos recursos indispensáveis ao próprio sustento de sua família” (rel. Min. Ilmar Galvão, j. 29.6.99, Informativo 155). 11 - 22 MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL “E M E N T A: PACIENTE COM HIV/AIDS - PESSOA DESTITUÍDA DE RECURSOS FINANCEIROS - DIREITO À VIDA E À SAÚDE – FORNECIMENTO GRATUITO DE MEDICAMENTOS - DEVER CONSTITUCIONAL DO PODER PÚBLICO (CF, ARTS. 5º, CAPUT, E 196) - PRECEDENTES (STF) - RECURSO DE AGRAVO IMPROVIDO. O DIREITO À SAÚDE REPRESENTA CONSEQÜÊNCIA CONSTITUCIONAL INDISSOCIÁVEL DO DIREITO À VIDA. - O direito público subjetivo à saúde representa prerrogativa jurídica indisponível assegurada à generalidade das pessoas pela própria Constituição da República (art. 196). Traduz bem jurídico constitucionalmente tutelado, por cuja integridade deve velar, de maneira responsável, o Poder Público, a quem incumbe formular - e implementar - políticas sociais e econômicas idôneas que visem a garantir, aos cidadãos, inclusive àqueles portadores do vírus HIV, o acesso universal e igualitário à assistência farmacêutica e médico-hospitalar. - O direito à saúde - além de qualificar-se como direito fundamental que assiste a todas as pessoas - representa conseqüência constitucional indissociável do direito à vida. O Poder Público, qualquer que seja a esfera institucional de sua atuação no plano da organização federativa brasileira, não pode mostrar-se indiferente ao problema da saúde da população, sob pena de incidir, ainda que por censurável omissão, em grave comportamento inconstitucional. A INTERPRETAÇÃO DA NORMA PROGRAMÁTICA NÃO PODE TRANSFORMÁ-LA EM PROMESSA CONSTITUCIONAL INCONSEQÜENTE. - O caráter programático da regra inscrita no art. 196 da Carta 12 - 22 MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL Política - que tem por destinatários todos os entes políticos que compõem, no plano institucional, a organização federativa do Estado brasileiro - não pode converter-se em promessa constitucional inconseqüente, sob pena de o Poder Público, fraudando justas expectativas nele depositadas pela coletividade, substituir, de maneira ilegítima, o cumprimento de seu impostergável dever, por um gesto irresponsável de infidelidade governamental ao que determina a própria Lei Fundamental do Estado. DISTRIBUIÇÃO GRATUITA PESSOAS CARENTES. DE MEDICAMENTOS A - O reconhecimento judicial da validade jurídica de programas de distribuição gratuita de medicamentos a pessoas carentes, inclusive àquelas portadoras do vírus HIV/AIDS, dá efetividade a preceitos fundamentais da Constituição da República (arts. 5º, caput, e 196) e representa, na concreção do seu alcance,um gesto reverente e solidário de apreço à vida e à saúde das pessoas, especialmente daquelas que nada têm e nada possuem, a não ser a consciência de sua própria humanidade e de sua essencial dignidade. Precedentes do STF. Observação Votação: Unânime” (STF – AGRRE/RS-271286. DJ 24-11-00, pp 0101 - EMENT VOL-02013-07 PP-01409) grifos nossos. “Ementa:PROCESSUAL CIVIL. ANTECIPAÇÃO DA TUTELA. PORTADORES DO HIV. MEDICAÇÃO NECESSÁRIA. I- OS PORTADORES DO HIV (VÍRUS DA IMUNODEFICIÊNCIA HUMANA) E DOENTES DE AIDS (SÍNDROME DA IMUNODEFICIÊNCIA ADQUIRIDA) RECEBERÃO GRATUITAMENTE DO SUS TODA MEDICAÇÃO NECESSÁRIA A SEU TRATAMENTO (ART. 1 DA LEI 9.313/96). II- A UNIÃO É RESPONSÁVEL PELA COMRA E DISTRIBUIÇÃO DE MEDICAMENTOS NECESSÁRIOS AO TRATAMENTO DA AIDS E, INTEGRANDO O SUS, TAMBÉM É RESPONSÁVEL PELO CONTROLE, 13 - 22 MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL COMBATE E TRATAMENTO DA DOENÇA III- AGRAVO IMPROVIDO”(TRF-2a. Região, AG processo 99.02.11462-8/RJ, 2a. Turma, DJ15/07/1999) . COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL A competência da Justiça Federal vem disciplinada no artigo 109 da Constituição Federal de 1988: “Art. 109. Aos juízes federais compete processar e julgar: I – as causas em que a União, entidade ou empresa pública federal forem interessadas na condição de autoras, rés, assistentes ou opoentes, exceto as de falência, as de acidente de trabalho e as sujeitas à Justiça Eleitoral e à Justiça do Trabalho; ...................... “§ 2°. As causas intentadas contra a União poderão ser aforadas na seção judiciária em que for domiciliado o autor, naquela onde houver ocorrido o ato ou fato que deu origem à demanda ou onde esteja situada a coisa, ou, ainda, no Distrito Federal”. Ora, inequívoco o interesse da União Federal no presente feito, tendo em vista a solidariedade financeira existente no Sistema Único de Saúde, da qual participa, em parceria com o Estado e o Município: “Art. 198. As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único, organizado de acordo com as seguintes diretrizes: I- descentralização, com direção única em cada esfera de governo; II- atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais; III- participação da comunidade. 14 - 22 MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL Parágrafo único. O sistema único de saúde será financiado, nos termos do art. 195, com recursos do orçamento da seguridade social, da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, além de outras fontes”. A Lei 8.080/90 estabeleceu, também, que: “Art. 9o - A direção do Sistema Único de Saúde (SUS) é única, de acordo com o inciso I do artigo 198 da Constituição Federal, sendo exercida em cada esfera de governo pelos seguintes órgãos: I - no âmbito da União, pelo Ministério da Saúde; II - no âmbito dos Estados e do Distrito Federal, pela respectiva Secretaria de Saúde ou órgão equivalente; e III - no âmbito dos Municípios, pela respectiva Secretaria de Saúde ou órgão equivalente. Sobre o dever constitucionalmente imposto a cada um dos entes federativos de garantir e promover a saúde, já se manifestou, inclusive, o Egrégio Supremo Tribunal Federal, nos seguintes termos: “(...) O preceito do artigo 196 da Carta da República, de eficácia imediata, revela que ‘a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para a sua promoção, proteção e recuperação’. A referência, contida no preceito, a ‘Estado’ mostra-se abrangente, a alcançar a União Federal, os Estados propriamente ditos, o Distrito Federal e os Municípios. Tanto é assim que, relativamente ao Sistema Único de Saúde, diz-se do financiamento, nos termos do artigo n° 195, com recursos do orçamento, da seguridade social, da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, além de outras fontes. Já o caput do artigo informa, como diretriz, a descentralização das ações e serviços públicos de saúde que devem integrar rede regionalizada e hierarquizada, com direção única em cada esfera de governo. Não bastasse o parâmetro constitucional de eficácia imediata, considerada a natureza, em si, da atividade, afigura-se-me como fato incontroverso, 15 - 22 MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL porquanto registrada, no acórdão recorrido, a existência de lei no sentido da obrigatoriedade de fornecer-se os medicamentos excepcionais, como são os concernentes à Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (SIDA/AIDS), às pessoas carentes. O município de Porto Alegre surge com responsabilidade prevista em diplomas específicos, ou seja, os convênios celebrados no sentido da implantação do Sistema Único de Saúde, devendo receber, para tanto, verbas do Estado. Por outro lado, como bem assinalado no acórdão, a falta de regulamentação municipal para o custeio da distribuição não impede fique assentada a responsabilidade do Município. Decreto visando-a não poderá reduzir, em si, o direito assegurado em lei. Reclamam –se do Estado (gênero) as atividades que lhe são precípuas, nos campos da educação, da saúde e da segurança pública, cobertos, em si, em termos de receita, pelos próprios impostos pagos pelos cidadãos. É hora de atentar-se para o objetivo maior do próprio Estado, ou seja, proporcionar vida gregária segura e com o mínio de conforto suficiente para atender ao valor maior atinente à preservação da dignidade do homem.(...)” (Voto do Min. Marco Aurélio, proferido no RE 271.286-8-RS). Ante o exposto, figurando a União como parte ré, justificada está, nos termos do artigo 109, I, da CF/88, a competência da Justiça Federal para o processamento e julgamento da presente demanda. LEGITIMIDADE ATIVA DO MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL A norma do art. 127 da Constituição Federal prescreve que ao Ministério Público, instituição essencial à função jurisdicional, compete a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis. Estabelecido este vetor, dispõe em seguida: Art. 129. São funções institucionais do Ministério Público: ................... 16 - 22 MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL II – Zelar pelo efetivo respeito dos Poderes Públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos assegurados nesta Constituição, promovendo as medidas necessárias a sua garantia. III - promover o inquérito civil público e a ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e outros interesses difusos e coletivos. ...................”. Pela análise do texto normativo transcrito, verifica-se que o constituinte incumbiu especificamente ao Ministério Público a relevante missão de defesa proteção do patrimônio público, do meio ambiente e qualquer outro interesse difuso, coletivo ou individual homogêneo de relevância social. Em harmonia com a Carta Federal, preceitua a Lei Complementar n.º 75/93, que dispõe sobre a organização, as atribuições e o estatuto do Ministério Público da União: Art. 5º São funções institucionais do Ministério Público da União: ................... V - zelar pelo efetivo respeito dos Poderes Públicos da União e dos serviços de relevância pública quanto: a) aos direitos assegurados na Constituição Federal relativos às ações e aos serviços de saúde e à educação. ................... Art. 6º Compete ao Ministério Público da União: ................... VII - promover o inquérito civil e a ação civil pública para: ................... c) a proteção dos interesses, individuais indisponíveis, difusos e coletivos, relativos às comunidades indígenas, à família, á criança, ao adolescente, ao idoso, às minorias étnicas e ao consumidor. Destarte, afigura-se legítima a atuação do Ministério Público 17 - 22 MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL Federal para a defesa de direitos e interesses difusos, entre os quais se insere o direito à saúde, exteriorizada, in casu, na busca de provimento judicial que assegure, aos portadores de HIV e doentes de AIDS, a realização do exame de genotipagem ou teste de resistência. DA LEGITIMIDADE PASSIVA DOS RÉUS A legitimidade passiva dos réus União Federal, Estado de São Paulo e Município de São Paulo decorre, inicialmente, da Constituição Federal: “Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação” A Lei 8.080/90, por sua vez, disciplina a organização, direção e gestão do Sistema Único de Saúde, nos seguintes moldes: “Art. 9o - A direção do Sistema Único de Saúde (SUS) é única, de acordo com o inciso I do artigo 198 da Constituição Federal, sendo exercida em cada esfera de governo pelos seguintes órgãos: I - no âmbito da União, pelo Ministério da Saúde; II - no âmbito dos Estados e do Distrito Federal, pela respectiva Secretaria de Saúde ou órgão equivalente; e III - no âmbito dos Municípios, pela respectiva Secretaria de Saúde ou órgão equivalente”(grifo acrescido). Depreende-se, destarte, que o Sistema Único de Saúde ramificase, sem, contudo, perder sua unicidade, de modo que de qualquer de seus gestores podem/devem ser exigidas as “ações e serviços” necessários à promoção, proteção e recuperação da saúde pública. 18 - 22 MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL Os réus, portanto, como integrantes e gestores do Sistema Único de Saúde, figuram como partes passivas legítimas, uma vez que a decisão postulada projetará efeitos diretos sobre suas respectivas esferas jurídicas. DA ANTECIPAÇÃO DE TUTELA Dispõe o art. 273 do Código de Processo Civil que: “Art. 273. O juiz poderá, a requerimento da parte, antecipar, total ou parcialmente, os efeitos da tutela pretendida no pedido inicial, desde que existindo prova inequívoca, se convença da verossimilhança da alegação e: I – haja fundado receito de dano irreparável ou de difícil reparação; ou II – fique caracterizado o abuso do direito de defesa ou o manifesto propósito protelatório do réu”. (grifo acrescido). A prova inequívoca da verossimilhança do pedido, segundo os dizeres do art. 273 do Código de Processo Civil ou o fumus boni iuris, encontrase caracterizado conforme tudo o que foi exposto e evidencia-se na obrigação constitucional do Estado de assegurar o direito à saúde, que está ligado indissociavelmente ao direito à vida. De outro lado, o receio de dano irreparável ou de difícil reparação é manifesto, estando evidenciado na própria gravidade da doença. O vírus HIV, ao se manifestar e atuar no corpo humano, provoca a imuno-deficiência, ou seja, reduz a imunidade de seu portador, o que permite que as chamadas doenças ou infecções oportunistas se instalem e que, ante à baixa imunidade, o corpo humano não tenha como combatê-las. Assim, é de uma clareza gritante que a demora em ministrar-se ao paciente os remédios adequados e eficazes, alicerçado nas informações que constarão no exame de genotipagem do HIV, poderá causar-lhe até mesmo a morte. 19 - 22 MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL A conduta dos réus é manifestamente inconstitucional e ilegal, podendo causar danos irreparáveis aos usuários do Sistema Único de Saúde que precisam fazer o exame de genotipagem do HIV. O bem ameaçado é a vida desses pacientes, sendo que a demora pode significar, como já ressaltado, que tenham sua saúde muito agravada ou até mesmo a morte. As declarações prestadas na Procuradoria da República em São Paulo pelos Senhores Clodoaldo de Souza Feitoza e Edimilson de Paula Campos, bem como os relatórios médicos apresentados, ilustram o periculum in mora. De fato, os medicamentos que estão sendo fornecidos ao Sr. Clodoaldo e ao Sr. Edimilson não estão surtindo mais efeito para conter a evolução da Aids, sendo necessária a definição de um esquema antirretroviral eficaz, que somente é possível através da realização do exame de genotipagem. As situações clínicas desses pacientes, que apresentam aumento drástico da carga viral face ao insucesso dos esquemas terapêuticos aplicados, é compartilhada por milhares de usuários do SUS, reclamando resposta urgente do Poder Judiciário. Assim, tendo em vista o dano irreparável que será ocasionado pela rotineira e inevitável demora na tutela judicial definitiva, pugna o Ministério Público Federal pela concessão da tutela antecipada, após a devida oitiva dos representantes judiciais dos réus em 72 horas, para obrigar os réus à obrigação de fazer, consistente no fornecimento imediato de exames de genotipagem à população usuária do Sistema Único de Saúde – SUS no âmbito de suas abrangências geográficas. Para tanto, requer que ao Estado de São Paulo como ao Município de São Paulo seja determinado que realizem direta ou indiretamente (através de instituição privada contratada) esse exame nos pacientes que forem atendidos nas respectivas redes de assistência. Por outro lado, que a ré União Federal reparta com os demais réus o custo desses exames de diagnóstico, realizando as devidas transferências orçamentárias. 20 - 22 MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL Para a remota hipótese de descumprimento, pede seja fixada multa de, no mínimo, R$ 10.000,00 (dez mil reais), devida solidariamente pelos réus em cada caso de desrespeito à decisão judicial. E, para que dêem cumprimento, pede sejam intimados do teor da decisão os Excelentíssimos Secretários Estadual e Municipal de Saúde, assim como, por precatória, o Excelentíssimo Senhor Ministro da Saúde, sob pena de responsabilização penal e por improbidade administrativa. DOS PEDIDOS Concedida a tutela antecipada, o Ministério Público Federal vem requerer a Vossa Excelência: I. a citação dos réus, para querendo, contestar a ação; II. a procedência da ação, condenando a UNIÃO, o ESTADO DE SÃO PAULO e o MUNICÍPIO DE SÃO PAULO, de forma solidária, ao fornecimento gratuito e ininterrupto, através das respectivas redes de atendimento, a todos portadores do vírus HIV e a todos doentes de AIDS, de exames de genotipagem necessários ao seu tratamento; III. a condenação da UNIÃO, do ESTADO DE SÃO PAULO e do MUNICÍPIO DE SÃO PAULO, de forma solidária, a publicar a sentença definitiva a ser proferida nos presentes autos nos jornais de maior circulação em âmbito nacional, estadual e local, em três dias alternados, sendo um deles domingo, sem, contudo, fazer menção à nome ou identificação dos portadores do HIV constantes dos autos; IV. com esteio no art. 12, da Lei n o. 7.347/85, a cominação de multa diária para o caso de descumprimento da liminar 21 - 22 MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL deferida; V. a decretação de segredo de justiça dos presentes autos, visando preservar o direito à intimidade dos portadores do HIV. Embora já tenha apresentado o Ministério Público Federal prova pré-constituída do alegado, protesta, outrossim, pela produção de outras, por todos os meios em direito admitidos. Dá-se à causa o valor de R$ 500.000,00 (quinhentos mil reais). São Paulo, 05 de novembro de 2001. ADRIANA DA SILVA FERNANDES Procuradora da República MARLON ALBERTO WEICHERT Procurador da República *Nesta petição inicial foram utilizados vários argumentos constantes da ação civil pública n o. 2001.72.01.002827-3, proposta pelo Procurador da República, Dr. Davy Lincoln Rocha em face da União Federal, Estado de Santa Catarina e Município de Joinville, em curso perante a 2 a. Vara Federal de Joinville. 22 - 22